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João, o Cego é o arquétipo do Rei-Cavaleiro
«Os homens contiveram os corcéis e voltaram-se desajeitadamente nas suas selas para espreitarem pelas fendas da viseira e saberem a razão dos toques. Viram então que o último dos cavaleiros franceses, o rei e os guerreiros da sua casa, bem como o rei cego da Boémia e os seus
companheiros, avançavam a trote, juntando à matança o seu peso e as suas armas. O rei de França cavalgava sob o seu pendão azul, salpicado de flores-de-lis douradas,
enquanto a bandeira do rei da Boémia mostrava três plumas brancas num campo vermelho-escuro. Todos os cavaleiros de França estavam agora envolvidos. Os tambores
transpiravam, os padres rezavam e os trombeteiros reais tocavam uma grande fanfarra como presságio de morte para o exército inglês. [...]

Eduardo III conta os mortos
no campo de batalha de Crecy, c. 1410
O próprio rei, com o seu amigo rei da Boémia entrara na refrega. Embora João da Boémia fosse cego insistira em combater e assim a sua guarda pessoal atara as rédeas dos
seus cavalos, metendo o corcel do rei no centro de modo a não o perderem.
- Praga! - era o seu grito de guerra. - Praga! - O filho do rei, o príncipe Charles, estava também unido ao grupo.
- Praga! - gritava enquanto os cavaleiros da Boémia conduziam a última carga. Porém, tratou-se apenas de um avanço às cegas, por entre um emaranhado de cadáveres, corpos
feridos e cavalos aterrorizados. [...]
O rei de Maiorca, o conde de Saint Pol, o duque da Lorena e o conde da Flandres tinham morrido. A bandeira da Boémia, com as suas três plumas brancas, caíra por terra e o
rei cego fora arrastado, atingido por machados, clavas e espadas. O resgate real morrera com ele e o filho sangrou até à morte sobre o corpo do pai. Os homens da sua
guarda pessoal, arrastados pelos cavalos mortos ainda ligados aos vivos foram dizimados, uns a seguir aos outros pelos ingleses. Já não soltavam o seu grito de guerra,
mas sim um uivo próprio de almas perdidas. Estavam cobertos de sangue, manchados, salpicados, encharcados nele, mas o sangue era francês.» "Harlequin" - Bernard Cornwell [excertos]
Vida e feitos
João I da Boémia nasceu em 1296 e morreu em França a 26 de Agosto de 1346. Filho de Margarida de Brabant e do Imperador Henrique VII,
conde do Luxemburgo, torna-se rei da Boémia en 1310 graças ao seu casamento com Elisabeth des Přemyslides, irmã de Venceslau da Boémia. Foi Conde do Luxemburgo a partir de 1313 e rei titular da Polónia,
de 1310 a 1335. Mais interessado nos campos de batalha da Europa do que na governação da Boémia, deixa à mulher os cuidados da coroa, enquanto contribui para a vitória de
Luís V da Baviera em Mühldorf (1322), na do rei da França contra os Flamengos (1328) ou quando vai em ajuda dos cavaleiros teutónicos (1329).
![Casamento de João do Luxemburgo com Elisabeth des Přemyslides [1310]](http://1.bp.blogspot.com/-XurFqm_RQ8c/TV7Eo01ShII/AAAAAAAAMhs/7vIpVM2F2Bw/s1600/Cliché+2011-02-18+20-11-12mari2.jpg)
Casamento de João do Luxemburgo
com Elisabeth des Přemyslides [1310]
Desde 1329 que João da Boémia só consegue ver de um olho. A partir de 1339 sobrevém a cegueira total.
A sua primeira reacção a esta tragédia é fazer o
testamento - a 9 de Setembro de 1340 - altura em que ainda não está completamente adaptado à cegueira, pelo menos no plano psicológico, e adopta uma existência
mais sedentária. Mas logo a partir desse ano ajuda à libertação de Tournai e não tarde a voltar a pegar em armas. Procura, em todas as circunstâncias, dissimular
a falta de visão e participa nos torneios com a viseira sempre baixada. Nenhum escritor francês descreve como, na prática, ele mantém a sua actividade, mas não
podemos esquecer que a sua longa experiência em torneios constitui para João uma enorme vantagem.

João o Cego confere à cidade Esch-sur-Alzette
(Luxemburgo) o estatuto de «cidade livre» [1328]
Aliado de Filipe VI da França no início da Guerra dos Cem Anos [1339-1453], é combatendo os ingleses em Crécy (1346) que João o Cego, heroicamente,
encontra a morte. E não esqueçamos que nesta altura, para além de cego há quase uma década, atingira os 50 anos, idade bastante avançada para a época.
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João, o Cego - por Jacques Le Boucq
Tanto a sua existência como as circunstâncias da sua morte foram muito idealizadas e romantizadas pelos cronistas latinos e franceses dos séculos XIV e XV.
Jean Froissart não deixa de exaltar os seus feitos, fazendo de João o Cego uma personagem maior da História luxemburguesa:
-
«O príncipe é corajoso, hábil lutador de torneios, devotado à paz entre os cristãos, leal e pronto a morrer pela honra.»
O cronista Jean le Bel coloca-o no topo da lista dos mortos de Crécy:
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«Se tivesse de começar pelo mais nobre e mais gentil, escolheria o valente rei da Boémia».
A vida de João de Luxemburgo foi marcada pelos ideais de cavalaria e pela busca da glória nos torneios em que participava, mas também, por vezes, por uma agenda
política utópica. Para pôr em prática os seus ideais, o rei cavaleiro acumula feitos físicos extraordinários, tais como percorrer a cavalo, em duas semanas, os mil
quilómetros que separam Praga de Paris. O seu esqueleto, recentemente estudado, revela um corpo desgastado por exercícios equestres de longo fôlego.
A cegueira contribui ainda mais para a
idealização do monarca. João da Boémia era bastante ouvido por Filipe VI, a quem
aconselhou no desenrolar do plano da batalha de Crécy, contando com a superioridade numérica da França em homens e armamento. A sua morte heróica no campo
de batalha, combatendo pessoalmente os ingleses, apesar da cegueira, é devidamente celebrada por Petrarca e Froissart.
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João de Luxemburgo, rei da Boémia, na batalha de Crécy
De facto, a meio do combate, faz-se amarrar a dois dos seus cavaleiros, por meio das rédeas dos cavalos, e ordena que um terceiro o guie para o coração da refrega. Matando
à sua passagem, tanto amigos quanto
inimigos, recebe inúmeros golpes fatais, que o condenam a morrer no campo de batalha. Campo de batalha de onde o rei de França acaba por fugir.
O seu cadáver só é encontrado no dia seguinte,
ainda amarrado aos cavalos e cavaleiros que o escoltavam. Na sua Crónica, relata Froissart:
-
«Os seus companheiros foram encontrados no dia seguinte, à volta do seu senhor, com os cavalos amarrados uns aos outros».
A sua popularidade cresce no século XIX, quando serve de âncora a uma nascente consciência nacional no Luxemburgo.
O seu combate idealista, mas desesperado, foi fiel à divisa "Ich dien" (eu sirvo), usada, após Crécy, pelos príncipes de Gales. Ocupa na mitologia luxemburguesa o
lugar que Joana d'Arc tem em França.

João I do Luxemburgo, o Cego em Crécy
- manuscrito do séc. XV -
A batalha de Crécy ocorreu em 26 de agosto de 1346,
no norte da França, e foi uma das mais importantes e decisivas da Guerra dos Cem Anos. As tropas inglesas de Eduardo III derrotaram as do Rei francês Filipe VI, apesar de
serem numericamente muito inferiores. Empregaram novas armas e tácticas (os arqueiros ingleses atiravam mais depressa e mais longe do que os besteiros franceses), pondo
de parte as normas e ideais e marcando o princípio do fim da era da cavalaria. Nesse dia, o rei da Boémia e conde de Luxemburgo, João I o Cego, apresentou-se
como nobre cavaleiro, a favor do rei Filipe VI de Valois.

A Cruz da Boémia no local da
batalha, em Crécy (séc. XIV)
Com o rei da Boémia, morreram em Crécy onze príncipes e mais de 1.200 homens de armas pertencentes à nobreza, incluindo Carlos II, conde
de Alençon, irmão do rei Filipe, assim como Luís I, conde de Flandres e Rudolfo, duque da Lorena.
A cegueira
Segundo algumas fontes, João terá cegado, em resultado de uma inflamação ocular, decorrente de um acidente com uma lança, quando -
juntamente com os Cavaleiros da Ordem Teutónica - participou numa cruzada
para converter a
Lituânia ao catolicismo. Segundo outros, a perda progressiva de visão seria devida a cataratas. Em qualquer dos casos, a visão foi-se deteriorando até à cegueira
total em 1339.
Decidiu, então, consultar os médicos mais famosos da época. O primeiro veio de França, e como declarou não poder fazer nada para aliviar a condição do rei, João da Boémia mandou que o amarrassem e metessem dentro de um saco para ser atirado ao rio.
Outro médico chamado foi um médico árabe que, sabendo o que acontecera ao seu colega francês, exigiu a assinatura de um documento que o autorizasse a
regressar ao seu país, fosse qual fosse o resultado da consulta. Também ele nada pôde fazer para melhorar a visão do rei, mas, pelo menos, conservou a própria vida.
Em 1336, durante uma viagem a Avignon com o rei da França, deslocou-se a Montpellier para consultar Guy de Chauliac [1300-1368], que foi médico pessoal de 3
Papas. Este era um
grande cirurgião, o mais eminente da Idade Média. A sua obra mais importante foi o Tractatus Chirurgicae Septem, cum Chirurgicalis Antidotario ou Collectorium Artis
Medicinae [1363]. Mais conhecido como Chirurgia Magna, foi o tratado de referência para a cirurgia até pelo menos ao séc. XVII. Nessa obra, em que
descreve inúmeros procedimentos cirúrgicos, assim como o narcótico - que por inalação - usava como soporífero durante as cirurgias, dedicou uma extensa
secção à oftalmologia e descreveu a catarata da seguinte maneira:
-
«Trata-se de uma imperfeição cuticular no olho, à frente da pupila, que prejudica a visão. É um
humor estranho intraocular que desce gradualmente e endurece devido à frieza do próprio olho.
Que este humor se acumule entre a córnea e a íris (como o demonstrou Jesus), ou entre o humor aquoso e o cristalino (como o defendeu Galeno no
seu décimo livro "Sobre o uso das partes do corpo do homem") não é algo que me interesse
agora. O primeiro estádio denomina-se Ilusão da Visão, o segundo Queda de água ou, às vezes Gutta, o terceiro
e último estádio, Catarata, porque cria um obstáculo à visão, tal como a represa de um moinho e como uma catarata que caia do céu, esconde
o sol.»
Guy de Chauliac, talvez aplicando a si mesmo as advertências que prescrevera sobre o modo de proceder de todo o cirurgião:
-
«Será erudito, experiente, habilidoso e
cuidadoso. Será audaz nas coisas seguras e cauteloso nas perigosas. Evitará tratamentos e práticas deficientes. Deverá ser amável com o enfermo, respeitoso com os seus
colegas, cauteloso nos seus prognósticos. Que seja modesto, digno, gentil, compadecido e misericordioso; que não cobice dinheiro nem seja venal; que a sua recompensa seja
adequada ao seu esforço, às possibilidades do paciente, ao tipo de problema e à sua própria dignidade.»
decidiu não operar as cataratas do rei da Boémia – operava-as por
abaixamento.
Escreveu um opúsculo com uma série de conselhos destinados aos pacientes com cataratas e
ofereceu-o ao monarca, que não ficou satisfeito nem com o conteúdo nem com a atenção recebida do médico francês.

João de Luxemburgo
Para alguns, a morte de João o Cego em Crécy, foi um acto heróico. Para muitos
outros terá sido uma morte intencionalmente buscada, de modo a pôr um fim ao insuportável sofrimento causado pela cegueira.
Sucedeu-lhe o filho Venceslau - que tomou o
nome Carlos IV, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
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Referências:
18.Nov.2013
Publicado por
MJA
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