Ouvi a história ao Auggie Wren. Já que o
Auggie não faz lá muito boa figura nela, pelo menos tão boa figura como
gostaria, pediu-me que não usasse o nome dele. Fora isso, tudo aquilo da
carteira perdida e da cega e do jantar de Natal é exactamente como ele
me contou.
[...]
- Foi no Verão de setenta e dois - disse - . Entrou-me um miúdo, uma
manhã, e pôs-se a roubar coisas na loja. Devia ter aí uns dezanove,
vinte anos, e acho que nunca tinha visto na minha vida um ladrão com
tanta falta de jeito. Posta-se ali ao pé do expositor dos livros de
bolso na parede do fundo e põe-se a encher de livros os bolsos da
gabardina. Nessa altura havia imensa gente ao pé do balcão e eu não o vi
logo. Mas assim que percebi o que é que ele estava a tramar, pus-me aos
gritos. Ele largou a correr que nem uma lebre e quando eu consegui sair
de trás do balcão, já ele ia desembestado pela Atlantic Avenue abaixo.
Fui atrás dele aí até meio do quarteirão, e depois desisti. Ele tinha
deixado cair qualquer coisa no caminho, e como já não me apetecia correr
mais, baixei-me para ver o que seria.
Acontece que era a carteira dele. Não tinha dinheiro, mas havia a carta
de condução dele e mais umas três ou quatro fotografias. Acho que podia
ter chamado a polícia e tê-lo mandado prender. Tinha o nome e a morada
na carta de condução, mas tive um bocado de pena dele. Era um
desgraçado, todo marcado das bexigas e assim que olhei para as
fotografias que trazia na carteira, já não consegui sentir-me muito
zangado com ele. Robert Goodwin. Era o nome. Numa das fotografias estava
de pé, com o braço por cima dos ombros da mãe, ou avó.
Noutra, estava sentado, aos nove ou dez anos, equipado para o baseball,
com um grande sorriso. Não tive coragem. Agora devia drogar-se, imaginei
eu. Um miúdo pobre de Brooklyn sem grandes perspectivas e qual era a
importância de dois livros de bolso merdosos? Portanto, fiquei com a
carteira. De vez em quando sentia uma certa vontade de lha mandar, mas
fui sempre adiando e nunca fiz nada. E então chega o Natal e eu fico sem
nada que fazer. O patrão costuma convidar-me lá para casa no Natal, para
passar o dia, mas nesse ano estava com a família lá em baixo na Flórida
a visitar uns parentes. E eu estou em casa, nessa manhã, e sinto-me um
bocado em baixo, com pena de mim, e vejo a carteira do Robert Goodwin
numa prateleira da cozinha. E penso, olha, c´o catano, já agora porque
não faço uma coisa bem feita, só desta vez, e visto o casaco e saio para
ir devolver a carteira em pessoa.
A morada era ali para Boerum Hill, algures na zona da habitação social.
Estava um frio de rachar, e lembro-me de que me perdi umas quantas vezes
à procura do prédio. Aquilo parece tudo igual, e a gente anda para ali
às voltas no mesmo sítio a pensar que se está noutro. Mas pronto,
finalmente lá chego ao andar que procurava e toco à campainha. Não
acontece nada. Concluo que não está ninguém em casa, mas toco outra vez,
só para ter a certeza. Espero mais um bocadinho e quando estava mesmo a
desistir, oiço alguém que vem a arrastar os pés em direcção à porta. Uma
voz de velha pergunta quem é, e eu digo que ando à procura do Robert
Goodwin.
- És tu, Robert?- diz a velha, e desaferrolha aí umas quinze fechaduras
e abre a porta.
Tem uns oitenta anos no mínimo, talvez mesmo noventa, e a primeira coisa
em que reparo é que ela é cega. - Tinha a certeza de que virias, Robert
- diz ela. - Sabia que não ias esquecer a tua avó Ethel no Natal. - E
abre os braços como se me fosse abraçar.
Illustração de ISOL
Não tinha muito tempo para pensar, compreende. Tive de dizer logo
qualquer coisa, e antes de tomar consciência do que se estava a passar,
ouvi as palavras saírem-me da boca.
- É mesmo, avó Ethel. - disse - Voltei para a ver no Natal. Não me
pergunte por que o fiz. Não faço ideia nenhuma. Talvez não quisesse
desiludi-la ou coisa assim, não sei. Foi assim que me saíu, e de repente
a velhinha abraçava-me ali à porta e eu abraçava-a a ela.
Não lhe disse exactamente que era o neto dela. Ou pelo menos não lho
disse com todas as letras, mas ficou implícito. Não estava a tentar
enganá-la. Era uma espécie de jogo que tínhamos decidido jogar os dois -
sem ter de discutir as regras. Ou seja, a mulher sabia que eu não era o
neto dela, o Robert. Estava velha e um bocado cheché , mas não estava
assim tão passada para o outro lado que não soubesse a diferença entre
um estranho e a carne da sua carne. Mas estava toda contente a fingir, e
já que eu não tinha nada de melhor para fazer, também achei por bem
alinhar com ela.
Portanto, entrámos no apartamento e passámos o dia juntos. A casa estava
uma completa lixeira, acrescento já agora, mas não se pode esperar outra
coisa de uma cega a fazer a limpeza. De cada vez que me perguntava como
é que eu estava, mentia-lhe. Disse-lhe que tinha arranjado um emprego
numa tabacaria, disse-lhe que me ia casar, contei-lhe uma novena de
histórias bonitas, e ela fazia de conta que acreditava em tudo.
- Que bom, Robert! - dizia, acenando com a cabeça e sorrindo - Sempre
soube que te ias sair bem.
Daí a bocado, comecei a ficar cheio de fome. Não parecia haver muita
comida em casa, fui a uma loja ali do bairro e trouxe uma data de
coisas. Um frango já pronto, sopa de legumes, uma embalagem de salada de
batata, um bolo de chocolate, toda a casta de coisas. A Ethel tinha umas
duas garrafas de vinho escondidas no quarto e juntando tudo lá
conseguimos atamancar um jantar de Natal bastante decente. Ficámos os
dois um bocadito tontos com o vinho, lembro-me eu, e quando acabámos de
comer fomo-nos sentar na sala, onde as cadeiras eram mais confortáveis.
Tive de ir fazer chichi, pedi licença e fui à casa de banho ao fundo da
entrada. Foi aí que as coisas deram outra reviravolta. Já era um
disparate pegado estar para ali com aquela cena de me fazer passar pelo
neto de Ethel, mas o que eu fiz a seguir foi completamente louco, e
nunca mo perdoei.
Entro na casa de banho, e empilhadas contra a parede ao lado do
chuveiro, vejo umas seis ou sete máquinas fotográficas. Máquinas de
trinta e cinco milímetros novinhas em folha, ainda nas caixas,
mercadoria de primeira. Percebo que isto é obra do verdadeiro Robert, um
lugar onde armazenou os roubos mais recentes. Nunca tinha tirado uma
fotografia na vida, e nem por sombras alguma vez tinha roubado alguma
coisa, mas assim que vejo as máquinas ali na casa de banho , decido que
quero uma para mim. Assim, sem mais aquelas. E sem sequer parar para
pensar, meto uma das caixas debaixo do braço e volto para a sala.
Não demorei senão uns minutos, mas nesse tempo a avó Ethel adormecera na
cadeira.
Demasiado Chianti, acho eu. Fui à cozinha lavar os pratos, e ela
continuou a dormir com aquela barulheira toda, ressonando como um bebé.
Não havia razão para a incomodar, e decidi ir-me embora. Nem sequer
podia escrever uma notazinha a despedir-me, já que ela era cega, e
portanto, saí, sem mais nada. Pus a carteira do neto dela em cima da
mesa, peguei outra vez na máquina, e saí do apartamento. E é o fim da
história.
- E voltou lá alguma vez, para a ver ?-perguntei.
- Uma vez - disse ele - aí uns três ou quatro meses depois. Senti-me tão
mal por ter roubado a máquina, que nem sequer a tinha usado ainda.
Finalmente decidi-me a devolvê-la, mas a Ethel já lá não estava. Não sei
o que lhe aconteceu, mas alguém se mudou para o apartamento, e não me
soube dizer onde é que ela estava.
- Provavelmente, morreu.
- Sim, provavelmente.
- O que quer dizer que passou o último Natal dela consigo.
- Acho que sim. Nunca tinha pensado nisso.
- Foi uma boa acção, Auggie. Foi uma coisa bem feita que fez por ela.
- Menti-lhe e depois roubei-a. Não percebo como é que lhe pode chamar
uma boa acção.
- Fê-la feliz. E, de qualquer maneira, a máquina era roubada. Não é bem
como se a pessoa a quem a tirou fosse mesmo o dono.
- Tudo pela arte, não é, Paul? - Não diria tanto. Mas ao menos deu um
bom uso à máquina.
- E agora já tem a sua história de Natal, não é? - É - disse eu. - Acho
que sim.
Fiz uma pausa, a observar o Auggie, enquanto um sorriso malandro se lhe
espalhava na cara. Não pude ter a certeza, mas a expressão dos olhos
dele nesse momento era tão misteriosa, tão cheia do brilho de um deleite
interior, que de repente me ocorreu que ele tivesse inventado aquilo
tudo. E ia perguntar-lhe se ele me tinha estado a gozar, mas percebi
então que nunca mo diria. Tinha sido tinha sido levado ao engano a
acreditar nele e era a única coisa que tinha importância. Desde que haja
uma pessoa que acredite, não há história que não possa ser verdadeira.
- É dos bons, Auggie - disse - Obrigada pela ajuda.
- Sempre às ordens, - respondeu, olhando-me ainda com aquela luz maníaca
nos olhos.
- Afinal, se não se pode contar os segredos aos amigos, que amigos é que
nós somos? - Fico-lhe a dever um favor.
- Não, não fica. Escreva lá tudo como eu lhe contei, e não me fica a
dever nada.
- Fora o almoço.
- É isso. Fora o almoço.
Retribuí o sorriso do Auggie com um sorriso dos meus, e depois chamei o
empregado e pedi a conta.
FIM
Sinopse | Paul
Auster compra os seus cigarros holandeses numa determinada tabacaria
de Brooklyn, cujo proprietário, de alcunha literária Auggie Wren, tem um
curioso hábito: fotografar a sua rua a diversas horas, em diferentes
estações, ano após ano. No Natal de 1990, o The New York Times pediu a
Paul Auster um conto natalício e será Auggie a inspirá-lo ao contar uma
história plena de ternura. Mas a inspiração não tocou apenas a Paul
Auster, já que o realizador de cinema Wayne Wang decidiu contactá-lo e
propor uma colaboração que acabaria por dar origem ao filme Smoke, cujo
final é, precisamente, "A História de Natal de Auggie Wren".
Nome maior da literatura contemporânea, Paul Auster
nasceu em 1947, em Newark, Estados Unidos. Foi galardoado com o Prémio
Príncipe das Astúrias de Literatura 2006, nomeado Comendador da Ordem
das Artes e das Letras de França em 2007 e é membro da Academia
Americana de Artes e Letras e da Academia Americana de Artes e Ciências.
Autor de culto, a sua obra encontra-se traduzida em mais de quarenta
línguas.
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A História de Natal de Auggie Wren
Paul Auster
excerto
Tradução de Luísa Costa Gomes
Plano Nacional de Leitura | 12-14 anos