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 Sobre a Deficiência Visual


A História de Natal de Auggie Wren

Paul Auster

excerto


Auggie Wren's Christmas Story | Tom Waits - Innocent When You Dream ► filme Smoke 1995 (vídeo: 5 minutos)
 

Ouvi a história ao Auggie Wren. Já que o Auggie não faz lá muito boa figura nela, pelo menos tão boa figura como gostaria, pediu-me que não usasse o nome dele. Fora isso, tudo aquilo da carteira perdida e da cega e do jantar de Natal é exactamente como ele me contou.  [...]

- Foi no Verão de setenta e dois - disse - . Entrou-me um miúdo, uma manhã, e pôs-se a roubar coisas na loja. Devia ter aí uns dezanove, vinte anos, e acho que nunca tinha visto na minha vida um ladrão com tanta falta de jeito. Posta-se ali ao pé do expositor dos livros de bolso na parede do fundo e põe-se a encher de livros os bolsos da gabardina. Nessa altura havia imensa gente ao pé do balcão e eu não o vi logo. Mas assim que percebi o que é que ele estava a tramar, pus-me aos gritos. Ele largou a correr que nem uma lebre e quando eu consegui sair de trás do balcão, já ele ia desembestado pela Atlantic Avenue abaixo. Fui atrás dele aí até meio do quarteirão, e depois desisti. Ele tinha deixado cair qualquer coisa no caminho, e como já não me apetecia correr mais, baixei-me para ver o que seria.

Acontece que era a carteira dele. Não tinha dinheiro, mas havia a carta de condução dele e mais umas três ou quatro fotografias. Acho que podia ter chamado a polícia e tê-lo mandado prender. Tinha o nome e a morada na carta de condução, mas tive um bocado de pena dele. Era um desgraçado, todo marcado das bexigas e assim que olhei para as fotografias que trazia na carteira, já não consegui sentir-me muito zangado com ele. Robert Goodwin. Era o nome. Numa das fotografias estava de pé, com o braço por cima dos ombros da mãe, ou avó.

Noutra, estava sentado, aos nove ou dez anos, equipado para o baseball, com um grande sorriso. Não tive coragem. Agora devia drogar-se, imaginei eu. Um miúdo pobre de Brooklyn sem grandes perspectivas e qual era a importância de dois livros de bolso merdosos? Portanto, fiquei com a carteira. De vez em quando sentia uma certa vontade de lha mandar, mas fui sempre adiando e nunca fiz nada. E então chega o Natal e eu fico sem nada que fazer. O patrão costuma convidar-me lá para casa no Natal, para passar o dia, mas nesse ano estava com a família lá em baixo na Flórida a visitar uns parentes. E eu estou em casa, nessa manhã, e sinto-me um bocado em baixo, com pena de mim, e vejo a carteira do Robert Goodwin numa prateleira da cozinha. E penso, olha, c´o catano, já agora porque não faço uma coisa bem feita, só desta vez, e visto o casaco e saio para ir devolver a carteira em pessoa.

A morada era ali para Boerum Hill, algures na zona da habitação social. Estava um frio de rachar, e lembro-me de que me perdi umas quantas vezes à procura do prédio. Aquilo parece tudo igual, e a gente anda para ali às voltas no mesmo sítio a pensar que se está noutro. Mas pronto, finalmente lá chego ao andar que procurava e toco à campainha. Não acontece nada. Concluo que não está ninguém em casa, mas toco outra vez, só para ter a certeza. Espero mais um bocadinho e quando estava mesmo a desistir, oiço alguém que vem a arrastar os pés em direcção à porta. Uma voz de velha pergunta quem é, e eu digo que ando à procura do Robert Goodwin.

- És tu, Robert?- diz a velha, e desaferrolha aí umas quinze fechaduras e abre a porta.

Tem uns oitenta anos no mínimo, talvez mesmo noventa, e a primeira coisa em que reparo é que ela é cega. - Tinha a certeza de que virias, Robert - diz ela. - Sabia que não ias esquecer a tua avó Ethel no Natal. - E abre os braços como se me fosse abraçar.

Image from Augie Wren's Christmas Story by Paul Auster Illustrated by ISOL
Illustração de ISOL

Não tinha muito tempo para pensar, compreende. Tive de dizer logo qualquer coisa, e antes de tomar consciência do que se estava a passar, ouvi as palavras saírem-me da boca.

- É mesmo, avó Ethel. - disse - Voltei para a ver no Natal. Não me pergunte por que o fiz. Não faço ideia nenhuma. Talvez não quisesse desiludi-la ou coisa assim, não sei. Foi assim que me saíu, e de repente a velhinha abraçava-me ali à porta e eu abraçava-a a ela.

Não lhe disse exactamente que era o neto dela. Ou pelo menos não lho disse com todas as letras, mas ficou implícito. Não estava a tentar enganá-la. Era uma espécie de jogo que tínhamos decidido jogar os dois - sem ter de discutir as regras. Ou seja, a mulher sabia que eu não era o neto dela, o Robert. Estava velha e um bocado cheché , mas não estava assim tão passada para o outro lado que não soubesse a diferença entre um estranho e a carne da sua carne. Mas estava toda contente a fingir, e já que eu não tinha nada de melhor para fazer, também achei por bem alinhar com ela.

Portanto, entrámos no apartamento e passámos o dia juntos. A casa estava uma completa lixeira, acrescento já agora, mas não se pode esperar outra coisa de uma cega a fazer a limpeza. De cada vez que me perguntava como é que eu estava, mentia-lhe. Disse-lhe que tinha arranjado um emprego numa tabacaria, disse-lhe que me ia casar, contei-lhe uma novena de histórias bonitas, e ela fazia de conta que acreditava em tudo.

- Que bom, Robert! - dizia, acenando com a cabeça e sorrindo - Sempre soube que te ias sair bem.

Daí a bocado, comecei a ficar cheio de fome. Não parecia haver muita comida em casa, fui a uma loja ali do bairro e trouxe uma data de coisas. Um frango já pronto, sopa de legumes, uma embalagem de salada de batata, um bolo de chocolate, toda a casta de coisas. A Ethel tinha umas duas garrafas de vinho escondidas no quarto e juntando tudo lá conseguimos atamancar um jantar de Natal bastante decente. Ficámos os dois um bocadito tontos com o vinho, lembro-me eu, e quando acabámos de comer fomo-nos sentar na sala, onde as cadeiras eram mais confortáveis. Tive de ir fazer chichi, pedi licença e fui à casa de banho ao fundo da entrada. Foi aí que as coisas deram outra reviravolta. Já era um disparate pegado estar para ali com aquela cena de me fazer passar pelo neto de Ethel, mas o que eu fiz a seguir foi completamente louco, e nunca mo perdoei.

Entro na casa de banho, e empilhadas contra a parede ao lado do chuveiro, vejo umas seis ou sete máquinas fotográficas. Máquinas de trinta e cinco milímetros novinhas em folha, ainda nas caixas, mercadoria de primeira. Percebo que isto é obra do verdadeiro Robert, um lugar onde armazenou os roubos mais recentes. Nunca tinha tirado uma fotografia na vida, e nem por sombras alguma vez tinha roubado alguma coisa, mas assim que vejo as máquinas ali na casa de banho , decido que quero uma para mim. Assim, sem mais aquelas. E sem sequer parar para pensar, meto uma das caixas debaixo do braço e volto para a sala.

Não demorei senão uns minutos, mas nesse tempo a avó Ethel adormecera na cadeira.

Demasiado Chianti, acho eu. Fui à cozinha lavar os pratos, e ela continuou a dormir com aquela barulheira toda, ressonando como um bebé. Não havia razão para a incomodar, e decidi ir-me embora. Nem sequer podia escrever uma notazinha a despedir-me, já que ela era cega, e portanto, saí, sem mais nada. Pus a carteira do neto dela em cima da mesa, peguei outra vez na máquina, e saí do apartamento. E é o fim da história.

- E voltou lá alguma vez, para a ver ?-perguntei.

- Uma vez - disse ele - aí uns três ou quatro meses depois. Senti-me tão mal por ter roubado a máquina, que nem sequer a tinha usado ainda. Finalmente decidi-me a devolvê-la, mas a Ethel já lá não estava. Não sei o que lhe aconteceu, mas alguém se mudou para o apartamento, e não me soube dizer onde é que ela estava.

- Provavelmente, morreu.

- Sim, provavelmente.

- O que quer dizer que passou o último Natal dela consigo.

- Acho que sim. Nunca tinha pensado nisso.

- Foi uma boa acção, Auggie. Foi uma coisa bem feita que fez por ela.

- Menti-lhe e depois roubei-a. Não percebo como é que lhe pode chamar uma boa acção.

- Fê-la feliz. E, de qualquer maneira, a máquina era roubada. Não é bem como se a pessoa a quem a tirou fosse mesmo o dono.

- Tudo pela arte, não é, Paul? - Não diria tanto. Mas ao menos deu um bom uso à máquina.

- E agora já tem a sua história de Natal, não é? - É - disse eu. - Acho que sim.

Fiz uma pausa, a observar o Auggie, enquanto um sorriso malandro se lhe espalhava na cara. Não pude ter a certeza, mas a expressão dos olhos dele nesse momento era tão misteriosa, tão cheia do brilho de um deleite interior, que de repente me ocorreu que ele tivesse inventado aquilo tudo. E ia perguntar-lhe se ele me tinha estado a gozar, mas percebi então que nunca mo diria. Tinha sido tinha sido levado ao engano a acreditar nele e era a única coisa que tinha importância. Desde que haja uma pessoa que acredite, não há história que não possa ser verdadeira.

- É dos bons, Auggie - disse - Obrigada pela ajuda.

- Sempre às ordens, - respondeu, olhando-me ainda com aquela luz maníaca nos olhos.

- Afinal, se não se pode contar os segredos aos amigos, que amigos é que nós somos? - Fico-lhe a dever um favor.

- Não, não fica. Escreva lá tudo como eu lhe contei, e não me fica a dever nada.

- Fora o almoço.

- É isso. Fora o almoço.

Retribuí o sorriso do Auggie com um sorriso dos meus, e depois chamei o empregado e pedi a conta.

FIM
 

Sinopse | Paul Auster compra os seus cigarros holandeses numa determinada tabacaria de Brooklyn, cujo proprietário, de alcunha literária Auggie Wren, tem um curioso hábito: fotografar a sua rua a diversas horas, em diferentes estações, ano após ano. No Natal de 1990, o The New York Times pediu a Paul Auster um conto natalício e será Auggie a inspirá-lo ao contar uma história plena de ternura. Mas a inspiração não tocou apenas a Paul Auster, já que o realizador de cinema Wayne Wang decidiu contactá-lo e propor uma colaboração que acabaria por dar origem ao filme Smoke, cujo final é, precisamente, "A História de Natal de Auggie Wren".

Nome maior da literatura contemporânea,
Paul Auster nasceu em 1947, em Newark, Estados Unidos. Foi galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura 2006, nomeado Comendador da Ordem das Artes e das Letras de França em 2007 e é membro da Academia Americana de Artes e Letras e da Academia Americana de Artes e Ciências. Autor de culto, a sua obra encontra-se traduzida em mais de quarenta línguas.
 

Capa de "A História de Natal de Auggie Wren"


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A História de Natal de Auggie Wren
Paul Auster
excerto
Tradução de Luísa Costa Gomes
Plano Nacional de Leitura | 12-14 anos

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22.Dez.2023
Publicado por MJA