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Soldados cegos
gaseados da 1.ª Grande Guerra - John Singer Sargent, 1918
É alta noite. Acendo uma vela. Há algumas horas que sinto um mal horrivel.
Tomou-me uma tosse violenta, ao passo que me ganha o peito uma opressão e um
ardor horrível, como se me houvessem despejado algum líquido corrosivo cá
dentro. Os olhos doem-me agudamente. Vejo-me a um pequeno espelho metálico de
algibeira. Diabo! Tenho a impressão de que uma névoa me não deixa ver bem. É que
estão irritados e laivados de sangue. Espreguiço-me. Sinto juntamente uma fadiga
imensa e uma necessidade inquieta de me agitar. Disponho papéis; abro a mala;
tomo e largo coisas à toa, até que enfim começo a despir-me.
Mas eis que anseio numa nova aflição. Arquejo, sacudido de haustos e vómitos
hediondos, e, longamente, corre-me da boca uma espuma branca e viscosa laivada
de sangue.
Agora uma atonia funda prostra-me o corpo. Urge que me deite. E, quando vou a
meter-me na cama, sinto um ardor violento e cruciante nos olhos que entram de
chorar a grandes bagadas. De súbito cerram-se e quando tento de novo abri-los,
sinto que as pálpebras estão violentamente coladas uma à outra.
Então às mãos ambas afasto-as um pouco para logo as deixar cerrar, tão doloroso
é esse esforço. Mas, - coisa horrível! - eu não vi. Uma suspeita terrível me
lanceia a alma: estarei cego?! Afasto de novo as pálpebras. Horror! Não vejo!
Não vejo! Estou cego! O coração bate marteladas doidas.
Sento-me na cama e procuro dominar-me. Digo a mim mesmo que é naturalmente
inflamação passageira. Mas como não vejo e só o tacto agora me guia, na tontura
da aflição e da fadiga extrema, cambaleio e tropeço em tudo.
Às apalpadelas consigo deitar-me. Tento descansar. Mas não há maneira: o coração
acicatado da emoção horrível, exaustinado pelo veneno, galopa, galopa cá dentro.
No quarto, por cima de mim, os meus dois pobres companheiros gemem,
decerto alanceados pelas mesmas dores. Agora não gemem, uivam espantosamente. E
o meu coração não descansa. Sufoco. Então num repelão deito a roupa fora,
sento-me na cama e desato a bradar, chamando pela dona da casa:
— Madame! Madame! s'il vous plaît.
E quando ela vem sobressaltada, grito-lhe ainda:
— Je suis aveugle!
FIM
JAIME CORTESÃO
(1884 - 1960)
Médico, escritor e historiador, antifascista, Jaime Cortesão foi uma figura
de grande prestígio nos meios da Resistência contra o regime de Salazar e é uma
das mais insignes figuras da cultura portuguesa de meados do séc. XX.
Simpatizava com os ideais anarquistas, defendia o republicanismo democrático e
ingressou na Maçonaria. Esta diversidade de interesses e a paixão política
encurtam a sua carreira como médico. Envolveu-se no movimento revolucionário de
14 de Maio de 1915 e entrou na Guerra de 1914-1918 como voluntário do Corpo
Expedicionário Português, no posto de capitão-médico miliciano. Nesta qualidade
participou na Campanha da Flandres (1918), foi ferido em combate e foi-lhe
atribuída a Cruz de Guerra. Posteriormente, escreveu um livro sobre este
episódio da sua vida, intitulado "Memórias da Grande Guerra".
Helena Pato
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in:
«Memórias da Grande Guerra»
de Jaime Cortesão
2.ª edição, pp 207, 208 e 209
18.Jan.2017
Publicado por
MJA
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