Contributos da Tecnologização da Tiflografia
para a
Ampliação dos Processos Comunicacionais
Augusto Deodato Guerreiro
Começo por agradecer, penhoradamente, num reconhecimento
especial, ao Professor Doutor José A. Bragança de Miranda a
pronta disponibilidade demonstrada para a orientação científica
desta investigação, a exigência de método e de rigor e os
igualmente enormes (e tão invulgares) sentimentos demonstrativos
de uma humanidade envolvente, sensibilidade, acessibilidade,
simpatia e generosidade intelectual no nascimento, no percurso e
na finalização deste projecto.
De resto, estou convicto de que esta investigação nunca
teria surgido no meu pensamento -afirmo-o sem qualquer rebuço se
eu não tivesse passado pelo Mestrado em Ciências da
Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, deslumbradamente assistindo às
aulas (conferindo e absorvendo pontos de vista) e lendo as obras
de vários Professores desta Faculdade, entre os quais a minha
consciência me obriga a citar de novo o Professor José A.
Bragança de Miranda e, por ordem alfabética, os Professores
Doutores Adriano Duarte Rodrigues, António Fidalgo (da
Universidade da Beira Interior), Maria Augusta Babo e Tito
Cardoso e Cunha.
Também aqui expresso, vivamente, o meu profundo
reconhecimento ao Gabinete de Referência Cultural (Pólo
Interactivo de Recursos Especiais da Câmara Municipal de Lisboa,
pelo valiosíssimo acervo bibliográfico de que me socorri e
eventos técnico-científicos e culturais que tive a oportunidade
de idealizar e concretizar), à Área de Leitura Especial da
Biblioteca Nacional (na pessoa do seu Coordenador Dr. Filipe
Pereira Oliva), pela consistente colaboração, ao sugerir-me e
facultar-me o acesso a bibliografia específica e imprescindível
à concretização deste estudo.
Da mesma forma, registo o meu reconhecimento, pela vasta
bibliografia posta à minha disposição e/ou pelas sugestões
bibliográficas que amavelmente me foram feitas, à Biblioteca do
Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das
Pessoas com Deficiência, à Association Valentin Haüy em Paris, à
Biblioteca do Complexo de Ensino Superior Jean Piaget de Almada,
à Divisão de Bibliotecas e Documentação da Câmara Municipal de
Lisboa, ao Serviço de Referência da Biblioteca Nacional, à
Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto (na
pessoa do seu Coordenador Dr. Rui Silva), ao Centro Prof.
Albuquerque e Castro -Edições Braille (Dr. Fernando da Silva,
Dr. José António Baptista, Rita Ferreira Borges e Aureliano
Moreira), ao Centro de Produção de Material do Centro Regional
de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo (na pessoa da sua
Coordenadora Dr.ª Helena Cabrita), ao Centro de Recursos do
Departamento de Educação Básica do Ministério da Educação, ao
Royal National Institute for the Blind em Londres, à Biblioteca
da Universidade do Minho, à Biblioteca João Paulo II da
Universidade Católica Portuguesa, à Biblioteca da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à
Biblioteca do Departamento de Ciências da Comunicação da mesma
Faculdade.
Também quero deixar aqui expresso o mais vivo
reconhecimento pela prestimosa e sincera colaboração (na
pesquisa bibliográfica, na leitura, na reprografia e no
processamento informático de documentos) de grandes amigos (cuja
inexcedibilidade no plano da amizade e da solidariedade nunca
poderei esquecer), designadamente os Adolfo de Vasconcelos,
Alice Gomes, Conceição Santos, Custódia dos Remédios, Diamantino
Santo, Helena Silva Pereira, João Vieira, José Branco Rodrigues
(filho do emérito Tiflólogo e Professor José Cândido Branco
Rodrigues), José Pinto, Luís Cerdeira, Luís Nabais, Matilde
Soares, Rita Gonçalves e Teresa Bispo, sem demérito para aqueles
que, de forma directa ou indirecta, também contribuíram para a
realização desta investigação.
Infelizmente, não cabe aqui referir as entidades que
tenham contribuído com os necessários recursos materiais e
financeiros por mim requeridos para a elaboração deste estudo,
não obstante a inequívoca importância científica do projecto e
as óbvias carências materiais sentidas e em devido tempo
mencionadas. Cabe aqui referir -com mágoa o digo -que tanto a
Fundação Calouste Gulbenkian como a Praxis 21 não corresponderam
às minhas fundadas esperanças na concessão de bolsas para o
efeito. A aquisição de equipamento específico, nomeadamente
informático, reprografia de informação, consultas bibliográficas
e investigação on line, e as deslocações a bibliotecas e a
centros de investigação específicos, inclusive no estrangeiro,
concretizaram-se a expensas minhas.
Finalmente, não sei... por que misteriosa intervenção,
consegui reunir inimagináveis forças de natureza física e
intelectual, compatibilizando-as com os múltiplos compromissos e
preocupações de ordem pessoal e profissional, com vista à
materialização desta proposta de alargamento do paradigma
comunicacional. Essas forças -é este o meu último
agradecimento, especialmente profundo -devo-as à minha muito
querida mulher pelas inúmeras horas por ela perdidas em
investigação e correcções ao texto e também às horas sem conta
de que a privei de mim, o mesmo se passando com os meus dois
filhos, razão por que dedico este livro aos três amados entes
que são a justificação da minha vida, sem cuja compreensão,
coragem, solidariedade e amor não me seria possível concretizar
a tarefa que acabei por levar a cabo.
«De uma Nova Comunicação dos Sentidos»
Pede-me Augusto Deodato Guerreiro umas palavras prefaciais ao livro
que, agora, o leitor tem entre mãos. É com alegria que o faço, por admirar o autor, ao qual me ligam laços
de amizade que a convivência de vários anos fortaleceu, mas também porque
considero que estamos perante uma obra original e necessária; original pela
temática e os modos de a tratar, resistindo bem à comparação com o que se
faz por esse mundo fora no domínio da tiflografia e das linguagens especiais
para pessoas com deficiência, nomeadamente a nível visual; obra necessária,
dizemos, pelos resultados a que chegou e pelas propostas que traz a público,
consubstanciando anos de investigação sobre os contributos das novas
tecnologias da informação para a deficiência sensorial.
Este livro deve muito ao feliz encadeamento de um conjunto de
circunstâncias, a saber: um autor particularmente apetrechado ao nível do
conhecimento prático e teórico da tiflografia, nomeadamente o Braille, de
cuja história é um excelente especialista. A isto tudo acresce ainda o
recurso à comunicação, que mobiliza para apreender os modos como a
experiência comum se constitui, mas também os modos como se é excluído ou se
é integrado na comunidade do humano. Finalmente, a capacidade para
investigar o contributo das tecnologias da informação para a tiflografia e
as linguagens especiais. Por motivos biográficos, Deodato Guerreiro é um
utilizador destas tecnologias e um dinamizador da sua aplicação e isso
reflecte-se nitidamente em todo o projecto que anima esta obra.
As palavras que se seguem visam explicitar, talvez sumariamente,
algumas das linhas orientadoras do livro. Tendo na cegueira o seu impulso
inicial, o livro acaba por versar, de modo mais abrangente, sobre toda a sensorialidade e a maneira como os interfaces tecnológicos nela se
inscrevem.
Comecemos por referir, em primeiro lugar, que este trabalho se
inscreve na necessidade, que se tem vindo a acentuar, dada a dominância das
actuais tecnologias da «imagem», de reavaliar o dispositivo da visibilidade
ocidental.
Trata-se de um domínio de estudos que tem vindo a incrementar-se,
nomeadamente nas áreas de língua inglesa. Basta mencionar, neste contexto,
as conhecidas obras de Martin Jay, de Jonathan Crary, de Marie-José Mondzain
ou de Jean Baudrillard, entre muitos outros. Deveria ser consensual a tese
de que as máquinas da imagem, como a fotografia, o cinema, o vídeo e a
televisão, não são meros instrumentos, mas o efeito de uma dispositivo
«óptico» que, tendo origem nos princípios do ocidente, culminam na nossa
modernidade, com maioria de razão quando convergem digitalmente.
É difícil dizer, mesmo quando interrogados neste quadro mais alto, se
a tiflografia, e o instrumentário que originou, tende a instabilizar esse
dispositivo, caracterizado pela centralidade da visão, ou se, ao invés, são
um prolongamento do referido dispositivo. Parece evidente, contudo, que as
linguagens especiais, como o Braille, não deixam intocado o referido
dispositivo. Embora as preocupações do autor sejam basicamente a de
«suplementar» a deficiência sensorial através do uso das novas tecnologias,
a questão está bem presente em todo o trabalho.
O principal contributo de Deodato Guerreiro para o estudo desta
questão está no seu questionamento daquilo que denominamos por «menu de
sentidos» ocidental, que se estrutura de acordo com uma hierarquia subtil e
dissimulada: a da centralidade da visão. Dessa posição preponderante
dependem todos os outros sentidos, mormente, os da audição ou do tacto.
Aparentando sustentar-se sobre a percepção biológica e psicofísica, esse
«menu» provocou uma hipertrofia da visão e das máquinas que lhe estão
associadas, mas também a dominância da «teoria», cuja etimologia remete para o «olhar» e o «ver». Michel Serres mostrou as consequências de tal
centralidade em Le Parasite ou em Les Cinq Sens, pretendendo reequilibrar de
outro modo o referido «menu». Aliás, é bem conhecido que boa parte das
análises de Michel Foucault sobre a «vigilância» assentam na crítica ao
«panoptismo» ocidental. Ora, que é o «panóptico», senão a absoluta
preponderância da visão, mesmo onde ela fica despercebida?
A colocação da tiflografia neste quadro não deixa de provocar um
desequilíbrio de todo este esquema sensorial, que pode e deve ser
questionado no momento em que as tecnologias da informação estão a abalá-lo,
e a retrabalhá-lo, profundamente. Por exemplo, o especialista em «som
virtual», Christopher Currell, em trabalhos voltados para a simulação do
sentido auditivo mostrou que era preciso decompô-lo em mais de 40 elementos.
Como se a «simples» audição ocultasse dezenas de outros sentidos, ligados à
espacialidade, à distância, às fontes, aos timbres, etc. No fundo a
tecnologia contemporânea está a revelar o «inconsciente percepcional» que
ficara oculto pelo modo como historicamente os sentidos foram construídos.
De facto essa construção, apoiando-se na fisicalidade do corpo, é acima de
tudo simbólica. Basta lembrar que enquanto para nós existe praticamente uma
palavra para referir a cor «Branco», entre os esquimós existem algumas
dezenas. O nosso «branco» não vê, nem pode ver e, por isso mesmo, oculta
outros tipos de «brancos». Este fenómeno tem um alcance muito lato.
O desenvolvimento do projecto de Deodato Guerreiro passa, em segundo
lugar, pela explícita intenção de operar um alargamento do paradigma
comunicacional. Isso não se deve a inquietações teóricas, mas a imperativos
éticos.
A experiência vivida do autor e a especificidade do tema foram
decisivas em tal orientação. De facto, a comunicação só tem a ganhar com a
inclusão da problemática da cegueira, mas também de outras perturbações
sensoriais, como a surdez ou a mudez. A cegueira desempenha um papel
peculiar quando confrontada com o dispositivo óptico característico do
ocidente, cujos limites revela. Não será por acaso que a questão da cegueira
metáfora foi tão importante nos filósofos modernos, como Diderot, Condillac,
Leibniz, etc. Nos nossos dias Paul de Man, no seu livro Blindness and
Insight, extraiu daí consequências fundamentais para a crítica da
modernidade «iluminista» e à maneira como se constitui em toda a nossa
cultura uma estranha economia do visível e do invisível, que está longe de
ter sido verdadeiramente apreendida nos seus efeitos profundos; por outro
lado, as linguagens especiais ou «artificiais» que se desenvolveram na
«modernidade» e, com maior intensidade no século XIX, estão em fase de
convergência com a linguagem digital dos computadores. A imensa plasticidade
do digital permite «traduzir» os diversos sentidos e os diversos media,
abalando as distinções entre oral e escrito, entre imagem e som, entre
audição e tacto. A alteração das relações entre visível e invisível e a
capacidade de integrar os diversos sentidos, correspondem a algo de novo.
Daí que seja bem-vinda a tese de que a excessiva centração sobre a
visão é responsável por um desequilíbrio do paradigma comunicacional,
exigindo um alargamento. O comunicacional fundamenta-se numa certa visão da
intersubjectividade e numa dominância do logos; os seus efeitos perversos
manifestam-se na série de oposições que se desdobra, por exemplo, entre
«voz» e «escrita», entre «presença» e «ausência», entre «informação» e
«comunicação», etc.. Daí a crítica feroz à escrita, nomeadamente a
tipográfica, com que se inaugura a modernidade. É típica neste contexto a
posição de McLuhan no seu importante livro sobre a Galáxia Gutemberg, que
recusa o tipográfico em nome de uma presença mais plena e uma comunidade sem
resto, baseada na oralidade e no táctil.
A dificuldade de McLuhan em aceitar a tipografia deve-se à tentativa
de «inverter» o menu de sentidos ocidental, num momento em que este começa a
entrar em crise. Que é a tipografia senão a inscrição do «óptico» no seio da
própria linguagem? Se acrescentarmos a isso a contemporânea preponderância
das «imagens» , e a sua articulação com o texto, como mostrou Johanna
Drucker, somos forçados a reconhecer uma evidentíssima crise no modelo
dominante da comunicação, logo nos seus inícios modernos.
A proposta do autor passa pela «inclusão» na comunicação do «háptico»
e, em geral, dos fenómenos ligados ao tacto e à quinestesia. Há alguma
vantagem em tal inclusão, que não visa desierarquizar a experiência da
visão, nem de lhe contrapor uma outra mais inefável da «voz» ou do «tacto»,
mas de alargar o comunicacional, enquanto forma de ampliar a experiência
possível. Trata-se, assim, de ampliar, de alargar e estender a experiência,
contra a estrutura que a limita. O que implica encontrar novas
correspondências entre a experiência dos orto-visuais e a experiência de
todos os outros. A falta de correspondência entre todas as experiências
possíveis «conduziu a um desprezo profundo pelo corpo»; como refere Deodato
Guerreiro, que apela a um universo «multifacetado, complexo e
pluridimensional» da experiência.
De maneira estimulante novos problemas surgem em catadupa. Estaremos
perante um «simples» extensionamento? Está em causa apenas um «suplemento de
visão», uma espécie de «visão protésica», prolongada por novos instrumentos
e interfaces de proveniência tecnológica? O risco seria o de repetir o mesmo
gesto que se critica, fazer com que o táctil e as sensações «hápticas»
fiquem, agora, dependentes da «visão» tecnologicamente sustentada. O
inaceitável seria fazer desaparecer uma forma de experiência, que alguns
vivem em desespero, é certo, por um iluminismo exacerbado pelos
computadores.
A última questão que queremos abordar tem a ver com as tecnologias da
informação, cuja análise ocupa boa parte do livro.
Extremamente bem informada sobre a aplicação das tecnologias actuais à
tiflologia, à tiflografia e às linguagens artificiais, o livro de Deodato
Guerreiro insere esta problemática numa panorâmica histórica, minuciosa e
pormenorizada, que se lê com inegável interesse.
É verdade que o Ocidente procurou desde sempre inventar linguagens
artificiais, e todas o são, pelo simples facto de serem «escrita». Aliás,
Derrida mostrou na sua Grammatologie que no oral já está implícita a
escrita. Todavia, as linguagens artificiais como o «Braille» vieram alterar
profundamente, e quase despercebidamente, as bases da cultura ocidental,
criando um primeiro espaço de comunicação sensorial, cujos efeitos estão a
manifestar-se nos nossos dias. De acordo com o autor, o Braille foi o «meio
de comunicação vital e principal propulsor da sociabilidade, da
comunicabilidade, da interacção e, consequente integração sócio-intelectual
dos cidadãos» com deficiência. Ao mesmo tempo, o Braille implica uma
primeira tradução do óptico em háptico, que ocorre por meio da escrita, que
constitui uma primeira tecnologia «incorporal» e bem fundamental. Tocar
nesta estrutura acarreta a crise de toda a metafísica ocidental que, desde o
Fedro de Platão, se baseia na procura da autenticidade, contra a escrita, e
próxima da «voz», o desejo da «interioridade», do «íntimo». O digital está a
alterar profundamente toda esta estrutura.
Não se trata, portanto, de acrescentar o «tacto» ou a «audição», pois
as coisas são mais complexas. A tecnologia actual tende a fazer comunicar
todos os sentidos, através de próteses e interfaces específicos para cada um
deles, articulando-os pela linguagem digital, que assim aparece como um
«tradutor» generalizado.
Em toda a obra pode notar-se uma nítida inclinação para o Braille na
sua versão digital, o que se explica pelo perfeito domínio dessa linguagem
por parte do autor. As análises de Deodato Guerreiro sobre a tecnologização
da tiflografia são assim de um interesse fundamental, quer teórico, quer
prático. Descreve com vigor a passagem das linguagens artificiais primitivas
para o Braille e deste para uma tiflografia generalizada, que já não se
centra apenas na transcrição táctil do visual, que o Braille histórico
sempre foi. A passagem do Braille em papel para o Braille digital,
electrónico, segue uma tendência conhecida, da progressiva passagem do
analógico para o digital.
Tudo indica, portanto, que o Braille perde muito da sua omnipresença
diante do desenvolvimento de tecnologias mais subtis, como as da
digitalização da voz, da imagem e da escrita, dotadas de cada vez maior
reversibilidade, como algumas das tecnologias analisadas comprovam. Caso,
por exemplo, da transcrição directa do escrito em «voz» sintética e da voz
natural em «escrita» digital.
Tal como no paradigma comunicacional, mais do que um alargamento,
estava em causa uma certa crise, criadora de novas possibilidades, também no
caso da tiflografia generalizada está-se a ir bem mais longe que a mera
aplicação da informática ao Braille.
No fundo é a própria essência da tecnologia que está aqui em causa. O
que este estudo comprova é que a técnica actual não pode ser vista como
simples «instrumento», mas como algo que afecta a totalidade da experiência
humana. Trata-se de partir da experiência, e isso obriga a reconhecer, como
faz o autor seguindo McLuhan, que «os meios de comunicação constituem
autênticas próteses e extensões de infinito alcance para o homem». Em suma,
as tecnologias, mais do que instrumentos, são configuradores da experiência,
podendo reforçar o humano, mas podendo também pô-lo em causa. Deste ponto de
vista elas têm de ser integradas, num complexo que articule as tecnologias e
os seus interfaces, como sustenta o autor, com os sentidos e o mundo.
Não se trata de uma questão técnica, nem de um suplemento dos
sentidos, mas de usar as possibilidades técnicas para criar novas formas de
experiência, novas formas de vida.
Estamos diante de uma obra aliciante, que coloca questões novas em
domínios quase arqueológicos, com um entusiasmo e uma alegria, por onde
perpassa vida.
Lisboa, 26 de Setembro de 1999
José A. Bragança de Miranda
Tal como há cerca de cinco milhares de anos o homem inventou uma
notação gráfica da linguagem oral (embora o simples facto de se registarem
mitograficamente acontecimentos e mensagens remonte a datas ainda mais
longínquas, desde a arte rupestre da época glaciar) para perpetuar os seus
feitos, as suas descobertas e invenções, o seu pensamento, a sua história,
generalizando-se progressivamente as diversas formas de notação ou processos
comunicacionais de cariz artificial (que vieram a designar-se por escrita)a
todos os povos do mundo e, com as adequadas adaptações, em especial aos
cidadãos com diferença, também os indivíduos cegos sentiram a mesma
necessidade de criarem, no âmbito da logografia, um sistema de escrita e de
leitura que lhes permitisse comunicarem uns com os outros e com as pessoas
normovisuais, bem como acederem à informação e à cultura, tanto quanto
possível em igualdade de circunstâncias e de oportunidades com as pessoas
que vêem.
Ao longo da História, muitos foram os processos artificiais da
linguagem de que há notícia terem sido colocados ao dispor dos cegos pelos
normovisuais (e mesmo pelos próprios cegos), uns mais engenhosos,
exequíveis e exercitados do que outros, mas, em obediência a imperativos de
natureza essencialmente abrangencial, ergonómica e neurofisiológica, muito
específicos do sentido do tacto, não passaram de tentativas com resultados
efémeros e, nalguns casos, traduzidos até em frustrações extremas, por
alimentarem – de boa-fé, é certo -falsas esperanças para as pessoas
cegas. (Augusto Deodato Guerreiro, 1998).
Noutros casos, pelo contrário e por incrível que pareça, tais
dificuldades impulsionaram o desenvolvimento da comunicabilidade oral, a
fluência vocabular, a retórica e a capacidade argumentativa (consideremos o
caso do erudito cego português José de Sousa(1680-1744), para além de
Baltazar Dias(século XVI) e António Feliciano de Castilho(1800-1875),
entre outros, que não liam nem escreviam propriamente), a imediaticidade e a
sagacidade intelectuais.
O saber escrever bem (a arte de bem escrever) nem sempre significa bem
falar (a arte de bem falar em público). Quantos cientistas e escritores de
renome sistematizam e escrevem genialmente grandes tratados e que,
oralmente, são autênticas nulidades? Quantos -com a sua incapacidade
expositiva, umas vezes exacerbada pela prolixidade e outras vezes mitigada
pela ausência de especificações de sentido indispensáveis à clarificação de
determinada matéria fora do senso comum -chegam a confundir o raciocínio e,
por consequência, até a desvirtuar a inteligibilidade e a sedimentação de
conhecimentos do seu auditório? Porém, mesmo escrevendo-se bem e falando-se
com precisão (evitando-se beliscar minimamente a realidade ou a verdade dos
factos), a escrita funcionará sempre como um veículo inalienável de do saber, transmissão de factos e com longevidade imorredoura (se
prolongável tecnicamente) e inalterável no conteúdo e forma da mensagem que
transporta, enquanto a oralidade (o adágio popular “palavras leva-as o
vento” é verdadeiro) teve sempre uma sobrevivência discursiva autêntica
curta, fatalmente permeável à natural efemeridade e tergiversidade através
dos tempos, não obstante por vezes mais persuasiva em determinadas
circunstâncias.
Já a fervilhante política da clássica Atenas exigia aos cidadãos
eloquência para convencerem os seus pares nas assembleias, disciplina tão
útil, mas que também suscitou inúmeras e violentas paixões (a retórica
associada à oratória), passando a retórica, ao longo dos séculos por
conturbadas vicissitudes e chegando a ser banida dos programas escolares,
mas vindo a surgir em França, Itália e nos Estados Unidos, a partir de 1950,
vários estudos visando a sua renovação, sustentando a pedagogia americana
que ela é o estudo dos preceitos linguísticos, gramaticais ou estilísticos,
destinados não apenas a regulamentar a expressão falada, mas a obter,
através dela, uma forma agradável e dotada de poder convincente, capaz de
penetrar e mover os grupos sociais, isolados ou em conjunto, segundo os
modernos conceitos de massa. Caminha-se, assim, para uma identificação com a
teoria da comunicação oral, escrita e figurativa, alargando-se esta
disciplina a uma interpretação da teoria das figuras e fundamento do estilo,
valorizada pelo estrutural literário e nova crítica. Nesta trajectória
redimensionada, acessível e muito útil às pessoas cegas, também elas têm
vindo a conquistar na sociedade, com o exercício da sua inteligente
capacidade argumentativa e escorreita sagacidade intelectual, um lugar de
progressiva e dignificante cidadania, conforme o que podemos observar ao
longo da História da Tiflologia.
A palavra oral foi (e estamos cientes de que o será sempre) o
principal veículo de comunicação entre as pessoas ouvintes, cegas ou
normovisuais, beneficiando ao longo da História (umas e outras) do poder da
oralidade, do uso e aproveitamento comunicacionais que dela fizerem, da
capacidade argumentativa para ganhar ou para perder. É evidente que, se
faltassem as palavras, cada geração receberia da precedente coisas, mas não
ideias e encontrar-se-ia fatalmente na condição penosa de ter sempre que
começar tudo do princípio. O conhecido provérbio que sustenta a
superioridade do silêncio em relação à palavra “o silêncio é d’oiro” tem na
nossa perspectiva um valor muito relativo e limitado a situações
contingentes de ordem familiar ou monástica que, nalguns casos, ainda hoje
se respira. Apenas com o silêncio, a humanidade teria chegado tão só (quem
sabe?...) às armas de pedra. Com a palavra, a humanidade atingiu um
desenvolvimento imparável em todos os domínios do saber e do progresso. Não
é novidade para ninguém que as palavras colocam ao nosso alcance uma fácil
estratégia de classificação da realidade e permitem dominá-la
qualitativamente no plano cognoscitivo, tal qual os símbolos numéricos
possibilitam o seu domínio em termos quantitativos.
Daqui a importância da palavra no processo complexo da socialização e
desenvolvimento da humanidade, desde o berço. Nas primeiras idades, o
processo de aquisição da palavra decorre, como sabemos, de factores
biológicos, ambientes linguísticos estimulantes e com respeito pelas
diferenças individuais. Para muitos autores, os ambientes linguísticos têm
influência muito particular e determinante, sendo importante neste aspecto
essencial uma intensa e permanente relação verbal da família com as
crianças, na respectiva disposição viva e diversificada de palavras e
frases. Durante o seu desenvolvimento, a criança aprende a observar e a
actuar de acordo com os membros da sua comunidade linguística envolvente.
Pela palavra, a criança organiza o caos (visual, audível, táctiloquinestésico)
à sua volta, descobre a surpresa das coisas que a rodeiam,
constrói (num processo evolutivo) a sua «cosmovisão» de acordo com as
modalidades sensoriais que possuir (e que for capaz de, articuladamente,
operacionalizar), desenvolvendo as suas competências de integração pessoal e
comunitária.
Neste universo de grandes afirmações, as questões comunicacionais
ligadas às pessoas com certas deficiências surgem, em determinados casos,
problemáticas por sua própria natureza. Estas pessoas, à partida, oferecem
sérios obstáculos e profundas desvantagens para que o percurso do seu
desenvolvimento linguístico se processe minimamente equilibrado e coerente.
Por força dos resultados experienciais e culturais, bem como das
“conquistas” no âmbito da informática e das novas tecnologias dos últimos
tempos, quanto à importância fundamental da comunicação no desenvolvimento
pessoal e social, os técnicos interventores nos domínios da deficiência e da
reabilitação só muito recentemente despertaram para esta vertente principal
e tão indispensável na sua intervenção e imprescindível para a prossecução
dos objectivos da equiparação de oportunidades em toda a sociedade humana.
Quanto representa e quão gratificante é para os cidadãos portadores de
deficiência sentirem que são entendidos e aceites sempre que tentam
comunicar! Quanto mais extenso e aprofundado é o acto comunicacional destas
pessoas, mais extensa e aprofundada se enraíza a sua integração em todos os
domínios da vida social.
Quanto aos graves problemas da comunicação no âmbito da deficiência
auditiva, há que considerar a importância da língua gestual, como língua
materna das pessoas surdas, tão fundamental para o desenvolvimento
psicológico e social e para a resolução dos seus problemas de comunicação,
como é fundamental a língua portuguesa para todos nós, ouvintes portugueses.
As estratégias oralistas privilegiam a leitura labial e permitem sem
obstáculos o ensino-aprendizagem da língua gestual portuguesa. Muito
recentemente (fruto da cooperação entre o Secretariado Nacional de
Reabilitação e a ex-Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário) foi
construído o “Gestuário”, o primeiro dicionário de língua gestual
português. Nesta sequência, também se publicou, em 1994, uma excelente abordagem,
a primeira descrição gramatical da língua gestual portuguesa,
como uma inédita e valiosa contribuição para a comunidade de surdos de
Portugal e para a própria comunidade científica, que certamente prosseguirá
a sua intensa investigação neste domínio comunicacional.
O principal objectivo expresso no livro em referência é demonstrar que
a língua gestual tem o mesmo estatuto linguístico que a língua verbal e que
a língua gestual portuguesa tem o estatuto linguístico das outras línguas
gestuais já estudadas. Com este estudo, pretende-se simultaneamente
equacionar um levantamento de questões linguísticas, constituindo um ponto
de partida para discussões de fenómenos gramaticais.
Na realidade, o sistema de educação de surdos em Portugal é sustentam
os autores do livro -, oficialmente e na prática,
predominantemente oral, urgindo que se façam estudos sérios sobre os seus
resultados e se apresentem alternativas credíveis e bem estruturadas para
dar resposta às lacunas encontradas.
Importa agora avançar e investir no desenvolvimento de gestuários
específicos, designadamente para a Filosofia, para as Matemáticas, para a
Física... Também constitui grande importância o facto de ter sido
recentemente inaugurado em Portugal o telefone para as pessoas surdas, como extraordinário meio de comunicação, vencendo todas as dificuldades
geográficas para os seus encontros.
No cruzamento dos problemas da cegueira e da surdez situam-se os
problemas das pessoas surdo-cegas, cuja possibilidade de comunicação se
localiza preferencialmente nas palmas das mãos, através da aplicação da
escrita dactilológica, estando muitos técnicos interessados na exploração da
mancha gráfica da palma da mão, como grafia extraordinariamente importante de comunicação com as pessoas surdo-cegas.
No que respeita ao universo da deficiência mental (média, ligeira,
profunda e multideficiência) também se desenvolvem esforços na comunicação
por imagens, dependendo o número e o tipo de imagens a utilizar das
capacidades pessoais de as identificar e as relacionar com as suas
necessidades de vida diária, ou outras, sem o que não terá uma função de
comunicação. Também aqui se impõe a criação de um dicionário de sinais de
comunicação, principalmente para a deficiência mental profunda e
multideficência, embora já esteja a ser usada a comunicação através de
pictogramas e ideogramas (mais próxima da mitografia do que da
morfemografia), sendo os pictogramas constituídos por símbolos estilizados
que representam o mundo real, e os ideogramas por símbolos estilizados que
representam ideias (é o sistema Pic, constituído por 400 símbolos impressos
em cartões e em autocolantes). Um outro sistema de comunicação importante é o de Bliss, um sistema visual gráfico constituído por símbolos acompanhados
dos respectivos significados e que representam pessoas, objectos, conceitos,
ideias, sendo um sistema escrito baseado mais no significado do que nos
símbolos, um bom meio alternativo de comunicação, porque, com os seus
conceitos relacionados e lógicos, ultrapassa as limitações de outros
sistemas.
É neste contexto que importa inscrever as incidências do progresso das
novas tecnologias da informação que vieram dar novos rumos ao mundo, neste
caso, da reabilitação, designadamente a computorização, as ajudas técnicas e
outros meios auxiliares de processos comunicacionais, em especial da leitura
e da escrita. Cada pessoa com deficiência pode desenvolver ao longo da sua
vida, em consonância com as suas capacidades, o seu próprio sistema de
comunicação constituído por formas verbais e não verbais, orais e não orais,
através do som, da escrita, dos gráficos, dos movimentos corporais, de modo
variável e evolutivo.
Para estruturar o seu sistema de comunicação, importa, de forma
reflexiva e sequencial, desenvolver as suas capacidades residuais da fala,
vocalização, motricidade corporal, percepção.
No que concerne ao sistema de comunicação das pessoas deficientes
visuais, cujo contacto com o mundo exterior se estabelece fundamentalmente
por intermédio dos sentidos do tacto e do ouvido, do odorato e até do gosto,
simultaneamente com o cultivo e exercício da perceptibilidade dos sistemas
sensoriais, foram desenvolvidas as capacidades tácteis, hoje maximizadas com o contributo informático-tecnológico, sendo possível aceder automaticamente
aos textos em caracteres comuns através de terminais braille e/ou de voz
sintética, ou de software especiais para ampliação dos caracteres vulgares
de forma a poderem ser lidos por pessoas amblíopes.
Contudo, a oposição oral-escrito será sempre polémica, em nossa
opinião, não obstante, presentemente, a oralidade, em casos especialmente
justificados, haver ganho também uma esperança de vida incomensurável,
durativizável pela acção das potencialidades das novas tecnologias da
informação, as quais vieram revolucionariamente contribuir para a inovação e
ampliação do horizonte das artificialidades da linguagem e, por
consequência, possibilitar a acessibilidade de todos os cidadãos,
escorreitos ou não (salvo óbvias excepções), ao inexaurível universo da
comunicação e da cultura da sociedade contemporânea. Estamos na era da
linguagem integrada e da respectiva tecnologização, encontrando-se as
pessoas portadoras de deficiência (designadamente as deficientes visuais)
cada vez mais integradas no mundo da informação como utilizadoras (mesmo
como produtoras ou programadoras) deste universo comunicacional.
As potencialidades das tecnologias da informação na acessibilidade das
pessoas portadoras de deficiência à comunicação e à cultura é,
presentemente, um universo rico de inovação, pelo que, tendo em conta a
amplitude que temos estado a conferir a esta introdução, o presente livro
deveria ter um âmbito mais geral, abrangendo as diversas tipologias da
deficiência, mas isso traduzir-se-ia numa investigação de fôlego e amplitude
diferentes e exorbitante dos parâmetros intelectuais que ora nos norteiam,
razão por que só aprofundaremos, neste domínio científico, o processo de
sociabilidade, de comunicabilidade, de mobilidade, de autonomia e de
interacção das pessoas cegas na sociedade, com fundamental incidência na
perceptibilidade dos sistemas sensoriais alternativos ao da vista,
equacionando a interligação sensorial e a percepção háptica, na tiflografia
e braillologia (matéria esta com que trabalhamos e temos vindo a aprofundar
desde 1973), numa perspectiva logográfica e histórico-cultural, atribuindo
especial relevância às vantagens da tecnologização da tiflografia, como
inquestionável instrumento intelectossocial integrador destes indivíduos na
cultura actual. Ao mesmo tempo, estamos cientes de que o brailleeasua
tecnologização constitui, de certo modo, uma nova linguagem que vem
acrescentar funções tácteis a uma linguagem puramente cerebral, intelectual,
que era a oralidade, embora a oralidade pressuponha uma certa tactilização, tendo o braille, na escrita moderna, a vantagem de acrescentar uma
modalidade sensorial que tem estado quase completamente afastada das ciências da comunicação: o sentido do tacto, pelo qual passam todos os
outros sentidos (e por eles a inteligência) e que protagoniza a dor e o
prazer e os ingredientes constitutivos da excelsa beleza (ou da sua
saturação) que culmina no intelecto.
Nesta acepção, e ao longo de quatro capítulos, aprofundaremos quatro
grandes itens da vertente tiflo-sócio-comunicacional, que inserimos nas
ciências da comunicação, (interdependentes e interrelacionados) fundamentais
para dar corpo a esta investigação, alicerçando-a num argumento sólido e
inequívoco (tanto quanto possível) no plano teórico e experiencial, baseado
na importância da perceptibilidade dos sistemas sensoriais consubstanciada
em suportes psico-sócio-intelectuais, cognitivos e culturais, como
perspectiva relevante e preconizadora do alargamento do paradigma
comunicacional, preenchendo, a nosso ver, uma lacuna na área das Ciências da
Comunicação.
Desta forma, no primeiro capítulo (“Questões da Cultura, Linguagem,
Escrita e Comunicação no Plano Tiflológico”), constituíram o fulcro das
nossas atenções a cegueira no contexto da oralidade e da escrita, a cegueira
enquanto reveladora das equivocidades da comunicação, bem como conceitos e
preconceitos a propósito de “ver” e “não-ver” (atendendo, por vezes também,
à coexistência de “problemas” e de questões oriundos de outros horizontes
históricos que sobrevivem no “arquivo cultural” da humanidade -oral e/ou
artificialmente), enunciando já um alargamento da comunicação e da cultura
acessíveis às pessoas cegas, consubstanciado no fenómeno da cultura em
geral, como móbil inexpugnável da tão almejada (e já observável nalguns
casos) transformação das mentalidades no que se refere à compreensão e
intercompreensão despreconceituada (em termos experienciais e culturais) das
inequívocas e demonstradas potencialidades e capacidades das pessoas cegas,
em muito equiparadas (por vezes em perfeita analogia) com as das pessoas
normovisuais.
No segundo capítulo (“Percepção dos Sistemas Sensoriais numa Dimensão
Tiflo-Sócio-Comunicacional”), trataremos, com a profundidade possível, a
percepção dos sistemas sensoriais numa dimensão tiflo-sócio-comunicacional,
passando por algumas reflexões em torno do conceito fenomenológico de
percepção (conquanto de forma muito preliminar, visto que uma abordagem
fenomenológica numa acepção mais profunda transcenderia o nosso objecto de
investigação), para, em seguida, nos concentrarmos na questão do “sentido
dos obstáculos” ou tacto dos sistemas sensoriais alternativos ao da vista,
incidindo em aspectos do sentir e do perceber, bem como na perceptibilidade
destes sistemas sensoriais como garante de uma interacção sócio-intelectual
das pessoas cegas, tendo naturalmente presente que a perceptibilidade
sensorial não é apenas, a nosso ver, um conjunto de elementos primários e independentes da inteligência, mas sobretudo o resultado da actividade
psico-sensório-intelectual.
No terceiro capítulo (“A Questão da Tiflografia num Contexto
Comunicacional e Histórico-Cultural”), numa sucessão de passos histórico-culturais para a constituição de um sistema de leitura e de escrita ajustado
ao sentido do tacto, como veículo de cultura em analogia com os sistemas de
leitura e de escrita para as pessoas normovisuais, concentrar-nos-emos
aprofundadamente na génese e na evolução signográfica da tiflografia num
contexto comunicacional e histórico-cultural, não menosprezando outras
iniciativas tiflográficas (ainda que goradas) como alternativa ao Sistema
Braille, critérios de produção e de publicação em braille, materiais
braillográficos e serviços de produção e de utilização em Portugal,
referindo também as publicações em série portuguesas (em braille, em áudio e
em suporte electrónico), umas que pereceram à nascença, outras menos
efémeras e outras que ainda sobrevivem.
Finalmente, no quarto capítulo (“As Vantagens da Tecnologização da
Tiflografia e da Acessibilidade da Informação às Pessoas Cegas”),
desenvolveremos a importância das novas tecnologias, aprofundando evoluções
do braille à braillo-informática e da informação analógica à digital (ou
informação estruturada), do equipamento informático específico de leitura e
de escrita cada vez mais ajustado às necessidades especiais, dando relevo às
perspectivas actuais da acessibilidade da informação, no plano
informáticotecnológico,
o que faculta às pessoas privadas da sensibilidade visual, um
futuro de maior e independente acessibilidade à informação e à cultura, de
uma maior e eficiente autonomia e interacção, de uma mais ampla
comunicabilidade e sociabilidade, de uma mais profícua actividade sócio-intelectual e sócio-profissional, satisfazendo naturais exigências pessoais
e sociais.
Sobre a questão da originalidade da presente investigação, cabe aqui
anotar claramente que o seu conteúdo não é apenas resultante da
singularidade do sujeito que somos -a consequência e o resultado imediatos
de uma (às vezes) dolorosa experiência humana que aqui procura encontrar a
sua formulação -, mas também da confluência de inúmeras leituras e de aulas
que nos estimularam e que têm sido sempre decisivas no avanço da nossa
formação na matéria em referência. Lográmos, no entanto, escrever este
livro, sempre animados pelas permanentes preocupação e honestidade
intelectual em conferir-lhe qualidade e idoneidade, profundidade, rigor e
(perdoe-se-nos alguma imodéstia) ineditismo, convicção esta reforçada pelo
facto de termos conseguido fazer, pela primeira vez na história da
tiflologia portuguesa, um levantamento bibliográfico exaustivo sobre o
assunto (o qual estudámos a fundo), muito disperso designadamente por
publicações em braille, em formato áudio e em caracteres comuns, como se
pode observar ao longo deste livro e na bibliografia geral. Simultaneamente,
também recorremos a fontes de referência orais na Bélgica, no Brasil, em
Espanha, nos Estados Unidos, em França, em Portugal Continental e Região
Autónoma da Madeira.
Em nossa opinião, é um erro solipsista e sem fundamento deontológico
ou ético-intelectual supor que a influência e a originalidade constituem uma
dicotomia. As influências são, já por si, resultantes de uma receptividade
pessoal em relação a tal ou tal obra e não indiscriminadamente a qualquer
autor. Não temos receio das influências, nem sequer de sofrê-las, visto que
estamos cientes de que esse tipo de apreensão intelectual se deve a uma
falsa noção de originalidade que não tem em conta a sua relação com a
confluência de todas as leituras que fizemos, em relação às quais não
podemos deixar de ser sensíveis e sempre devedores. Nesta acepção, na
profunda investigação efectuada (não obstante ainda longe da sua conclusão),
podemo-nos permitir cometer uma ou outra incorporação, como o faziam os
Clássicos e, como por exemplo, Luís de Camões logo no primeiro verso de “Os
Lusíadas”, “As armas e os barões assinalados”, inspirado por Virgílio,
“Armas virunque cano...” (Hendíadis).
O grande interesse que sempre temos nutrido por esta relevante área da
tiflologia, os Professores que tivemos e as leituras que nos aconselharam,
bem como outras que por nossa iniciativa efectuámos, exerceram sobre nós uma
atracção e um fascínio irresistíveis, tão irresistíveis como o desejo de
“imitar” aqueles professores e os demais autores e de integrar o que de novo
trouxeram à nossa reflexão. Verificamos, porém, que esta fascinação que
certos autores exerceram sobre nós e o decorrente desejo de os “imitar” não
se traduzem objectivamente numa tese destituída de originalidade e de cunho
pessoal. Entre as contribuições intelectuais que tentámos seguir
(identificadamente) e o presente livro subsiste uma diferença essencial,
sendo essa diferença que precisamente nos leva a admitir que o nosso
contributo na investigação e formulação desta problemática comunicacional
possui a autonomia e a originalidade que consideramos imprescindíveis numa
investigação desta natureza e que, de modo algum, foi prejudicada pela
influência que sobre a mesma exerceram aulas, seminários, congressos e um
sem-número de leituras de artigos (dispersos por publicações em série) e
monografias, nos formatos braille, áudio, caracteres comuns e em suporte
informático, bem como os já inúmeros eventos técnico-científicos e culturais
que realizámos, designadamente, no âmbito da Câmara Municipal de Lisboa,
como poderemos observar ao longo deste livro. Pelo contrário, a influência
foi decisiva para a descoberta da voz original do investigador que procura o
seu caminho ou que, tendo-o já encontrado, aspira à sistematização desta
vertente comunicacional alternativa (preenchendo uma lacuna -inadmissível
neste fim de século -no horizonte das Ciências da Comunicação) e a novos
rumos da sua objectivização para que a identidade e o saber se renovem, se
intensifiquem e se ampliem. Vestimos esta problematicidade, queremos
compartilhá-la para, com essa partilha, desmistificarmos concepções
desconexas e sem fundamentação experiencial e teórica, dando corpo
iniludível e inquestionável a este tão esquecido (ou negligenciado) domínio
tiflo-sócio-comunicacional e tiflo-interactivo.
Como acima usámos, pela primeira vez, o vocábulo «tiflologia»,
conceito que iremos utilizar nesta investigação e cuja terminologia carece,
a nosso ver para já, de um esclarecimento preliminar, (encontrando-se uma
explicitação mais aprofundada no ponto quatro do primeiro capítulo e na
introdução ao quarto capítulo) podemos, adiantar que, como se pode comprovar
pela consulta de alguns dicionários, a formação do vocábulo tiflologia
corresponde à aglutinação dos vocábulos gregos typhlos (cego) e logos
(razão,conhecimento). O conceito, no caso dos dicionários que o registam,
apresenta-se, naturalmente, com um conteúdo em evolução, como poderemos
observar nos pontos supra-referidos.
Partindo de uma acepção estritamente confinada à instrução, como
acontece, por exemplo, no «Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa», de H. de Lima e G. Barroso, que o descreve como “tratado sobre
a instrução dos cegos”, regista, mais tarde, um aditamento através do qual
passa a incorporar também a formação profissional, como nos mais recentes
dicionários académicos da Porto Editora, e aparece-nos hoje muito mais
abrangente, envolvendo inúmeras vertentes, como pode verificar-se em
«Electronic Dictionary and Thesaurus», de Collins, que nos dá a seguinte
definição: “typhlology -the branch of science concerned with blindness and
the care of the blind.”.
A tiflologia (conforme o também expresso na introdução ao quarto
capítulo) ainda não se nos apresenta propriamente como uma ciência, mas como
uma posição plurifacetada, traduzida numa actividade multidisciplinar, em
que convergem disciplinas do âmbito de diversas ciências (designadamente
“oftalmologia e outras especialidades da ciência médica, psicologia,
pedagogia, sociologia, engenharia, arquitectura, acção social, direito”), com o objectivo de se compreender integralmente “o déficit funcional
motivado pela deficiência visual em todas as suas implicações intrínsecas e
extrínsecas ao deficiente e procurar, na medida do possível, reduzir ou
eliminar essas implicações”, preocupação que já tornou possíveis um
razoável leque de conquistas nos mais diversos domínios, conforme o
aprofundado na introdução ao quarto capítulo.
Precisando, de forma mais sintética e conclusiva o nosso objecto de
investigação, diremos que é, na realidade, pela comunicação e pela cultura
que o ser humano se realiza plenamente como pessoa e contribui para o bem da
comunidade e de toda a sociedade humana, sendo consequentemente pela
socialização da comunicação e da cultura (no seu sentido mais amplo) que a
família, a escola, a sociedade humana encontram a sua significação e
legitimam o seu sentido.
Cientes de que alguns autores defendem, com inquestionável rigor
científico, o problema da linguagem tendo por detrás a ideia da teoria da
visão, muito embora reconhecendo essa incontestabilidade, procuraremos
justificar neste estudo (acentuamo-lo de novo sem pretendermos ser
repetitivos, mas porque o sentimos e experienciamos) um alargamento do
paradigma da comunicação, uma vez que, a nosso ver, a comunicação é algo de
um pouco mais complexo, interagindo em nós alguns dos seus elementos de
forma quase inconsciente, pelo que propomos um modelo alargado a partir de conceitos redimensionantes que apresentamos -o da visão, o da
perceptibilidade dos sentidos (no que se integram a atenção e a sensibilidade aumentadas) e o da tecnologização da tiflografia -, radicados
nos restantes sentidos para suplementarem a visão, dando-nos hoje as novas
tecnologias não só um suplemento da visão, como uma visão mais completa das
coisas, criando, sobretudo para as pessoas cegas, uma “visão” em alternativa
e desinibida de metaforicidades. Thomas Khun sustenta, no que se refere a
mudanças de paradigma, que, embora o mundo “não mude com uma mudança de
paradigma”, contudo, depois dela, o cientista passará a trabalhar num “mundo
diferente”.
Desde a mais remota antiguidade que se entende que cada pessoa é um
universo inexaurível de descoberta. cujo paradigma mais recente e
problematizante foi (em nossa opinião) Michel Foucault(1926-1984) que
muito investiu na arqueologia do pensamento. O tacto dos nossos sentidos, a
maravilhosa faculdade que é a percepção dos sentidos e que
todos possuímos tem sido profunda e injustamente subjugada pela
hipervalorização do sentido da vista. Vamos acordá-la, libertá-la,
reabilitá-la e conferir-lhe o poder a que ela tem direito, poder que ela
sempre teve, mas que nunca lhe foi reconhecido. Temos agora a feliz
oportunidade de o demonstrar e apercebermo-nos de quão importante e
imprescindível ela é para todos nós, sobretudo como fenómeno
tiflo-sóciocomunicacional
e tiflo-interactivo.
Karl Popper diz-nos que “toda a solução dada a um problema levanta
novos problemas; principalmente quando o problema original é profundo e a
solução apresentada é corajosa.”. Na verdade, não temos dúvidas de que
nos impulsiona uma grande ansiosidade e coragem para aprofundarmos esta
questão, mas também não temos igualmente dúvidas de que enveredámos por esta
problematicidade animados pela prudência e pela consciencialização da sua
complexidade tiflológica no âmbito das ciências da Comunicação, propondo a
inclusão e sistematização de uma vertente comunicacional nova a descoberto
neste domínio. Ficaríamos profundamente gratificados e felizes se este nosso
contributo, nos planos teórico e experiencial, viesse a impressionar
positivamente as sensibilidades de investigadores responsáveis nesta matéria
e, por consequência, a ampliar os horizontes da comunidade científica.
QUESTÕES DA CULTURA, LINGUAGEM, ESCRITA
E COMUNICAÇÃO NO PLANO TIFLOLÓGICO
"Ver só com os olhos
É fácil e vão:
Por dentro das coisas
É que as coisas são."
Carlos Queiroz
"Dos próprios cegos depende em grande parte
a resolução dos seus problemas específicos.
Trabalhar para atingi-la é dever a que nenhum
deles pode eximir-se conscientemente"
J. de Albuquerque e Castro
Levantar algumas questões relacionadas com a linguagem, a
escrita, a comunicação e a cultura, no âmbito da tiflologia,
mediante uma interpretação da cultura através da oralidade e da
escrita, bem como da concepção metafísica, desconstruindo os
conceitos de «visão» e de «cegueira», constituirá o nosso
objectivo de investigação ao longo deste primeiro capítulo.
Como é sabido, não existe nenhuma actividade humana desintegrada do uso da
linguagem (em sentido lato, da mesma forma que esta é indissociável do complexo
das questões culturais e experienciais que o ser humano tem vindo, desde sempre,
a assimilar (por mera comunicação em convívio social, por aprendizagem, por
treino, por teorização ou puro raciocínio).
Com base na experiência, tem vindo a
teorizar-se um conceito amplo de linguagem, como meio para que
todo o ser humano possa comunicar e, simultaneamente, aceder à
informação e ao esclarecimento.
Mas os conceitos de “língua” e de “fala” (cuja
desconstrução exorbita do nosso objecto de estudo) remetem-nos
para uma problemática (que, pela mesma razão supra-expressa, não
nos ocupará) que tem vindo, desde a opositividade destes Saussure, conceitos, sustentada por a suscitar viva e
profícua polémica no domínio da semiologia, mercê dos resultados
de investigações e consequentes confrontos intelectuais
designadamente de linguistas, fonologistas, fenomenologistas e
semiólogos.
Secundando o pensamento dos gramáticos de Port-Royal,
Claude Lancelot e Antoine Arnauld(1660), “a língua foi
inventada para permitir aos homens a comunicação dos seus
pensamentos”, acrescentando que “a fala, para permitir a
comunicação, deve constituir uma imagem, um quadro do
pensamento, o que exige que as estruturas gramaticais sejam como
que uma espécie de cópia das estruturas intelectuais”, no que se
identificam com Saussure, se tivermos em conta o tipo de
utensilagem mental que envolvemos através da fala para nos
fazermos entender uns com os outros.
Neste contexto, mais exactamente quando aludimos a uma determinada linguagem,
nem sequer nos questionamos em que medida é necessário considerar a utilização
que os sujeitos “falantes” podem fazer da sua própria linguagem. Não há dúvidas:
sucumbiríamos (ou nem sequer emergeríamos), pelo menos intelectualmente, se não
possuíssemos qualquer dispositivo comunicacional, natural ou artificial, o que
significaria (sem qualquer emissão informacional do nosso corpo, sem acesso à
informação e à cultura) amorfização intelectual e, consequentemente, inépcia
absoluta para lutar pela defesa de interesses individuais e sociais, num plano
de proficuidade pessoal e colectiva.
E foi talvez da oposição existente entre a oralidade e a
escrita, a língua natural e a artificial, que surgiu a imperiosa
necessidade de, progressiva e elaboradamente, se anotarem
(inicialmente por processos mitográficos, mais tarde
logográficos, morfemográficos e fonográficos), se equacionarem e
se interpretarem todas as actividades, a vida em sociedade e a
cultura dos nossos antepassados.
A comunicação entre os seres locutores pode estabelecer-se
através do acto de falar (a simples oralidade), da língua
gestual, dos movimentos corporais, das mais diversas
artificialidades e notações gráficas da linguagem, abrangendo,
indiscutivelmente também, a tiflografia, sistema de leitura e de
escrita este que, pela sua fundamentação, evolução e
consistência logográfica, será o nosso objecto de estudo neste
livro, integrando, necessariamente, outros factores e outros
contributos da fenomenologia e da psicologia humanas (nos
domínios sensório-motor, perceptivo-motor, sensório-intelectual
e cognitivo), para que possamos concluir (sem equivocidades) que
as pessoas cegas, desde que consolidadamente incentivadas,
ensinadas, orientadas e apetrechadas naqueles domínios, desde
que propendendo para a amplitude de valores e dispertas
intelectualmente para essa abrangência, são indiscutivelmente
capazes de aceder à informação e à cultura, autonomizando-se,
socializando-se e interagindo sem dificuldades, com natural
direito à generalizada igualdade de oportunidades. São, de
resto, reflexões à luz da moderna tiflologia e tiflografia, ao
nível da problematicidade comunicacional e informacional, numa
tentativa de contributo para a ampliação do paradigma
comunicacional e dos horizontes das Ciências da Comunicação.
Assim, neste primeiro capítulo, centrar-nos-emos nas
questões da cegueira no contexto da oralidade e da escrita, da
cegueira enquanto reveladora das equivocidades da comunicação e
em conceitos e preconceitos a propósito de «ver» e «não-ver»,
perspectivando já um alargamento da comunicação e da cultura
acessíveis às pessoas cegas (a cegueira não pode ser encarada
como sinónimo de pobreza intelectual e excrescência social
vegetante), cumprindo o primeiro grande item desta investigação,
consubstanciado no fenómeno da cultura e alicerçado em
parâmetros intelectuais propulsores do aumento e do
enriquecimento da utensilagem mental das pessoas cegas.
I.1 -A Cegueira no Contexto da Oralidade e da Escrita
Apresenta-se-nos hoje de forma fascinante a questão do
acesso das pessoas cegas à informação e à cultura, processo que
tem passado, ao longo da História, por diversas vicissitudes,
mas sempre num itinerário evolutivo, de descoberta constante de
outras potencialidades (umas que se manifestam por vezes sem que
disso nos demos conscientemente conta, outras adormecidas por
não terem representatividade consciente na centralidade da
visão), surgindo e implementando-se novos valores no âmbito da
ampliação sensorial e da decorrente sensibilidade aumentada, o
que já se traduz num normal e elevado grau de acessibilização.
Numa época em que os processos de acessibilidade a este
vasto domínio do conhecimento estão em frenética renovação, as
pessoas cegas não poderão alhear-se destas questões, tanto mais
que se lhes abrem horizontes até há pouco tempo inimagináveis.
Já estamos a assistir a uma revolução na vida destas pessoas,
pelo menos ao nível sócio-intelectual, cognitivo e sócio-profissional, muito superior àquela que (embora muito justamente
nela baseada) lhes foi proporcionada com a criação e consequente
difusão do Sistema Braille, no século XIX. Hoje em dia, a pessoa
portadora de deficiência visual, em especial a totalmente cega,
já poderá, utilizando determinadas e adequadas tecnologias,
manipular e aceder à informação do mesmo modo que a pessoa
normovisual, cujas consequências (uma incomensurável
transformação ao nível da inequivocidade das suas
potencialidades e capacidades e das mentalidades da generalidade
dos cidadãos) aprofundaremos no quarto capítulo.
Neste ponto um do primeiro capítulo, ficar-nos-emos por uma
abordagem a propósito dos cegos errantes e a cultura oral -para
os quais, o sentido social por excelência era (tal como hoje) o
ouvido -, num esforço de desmistificação, de reposição e de
definição de conceitos ao nível da cegueira (que por vezes
simboliza ignorância) e da visão (no sentido mais
intelectualizante e abrangencial, no domínio da intelecção do
saber, que possamos imaginar), em que a cultura, no seu sentido
mais amplo, confere verdadeira significação ao indivíduo, à
sociedade humana e ao mundo, legitimando o nosso sentido de vida
na sociedade humana que todos nós somos, matéria esta que
(corroborante do desenvolvimento do conceito de comunicação)
será aprofundada no ponto três deste primeiro capítulo.
Porque aludimos à audição, recordamos a este respeito que
Aristóteles defendeu e precisou que é pelo ouvido que melhor se
aprende de um mestre. Nesta conformidade, a pessoa cega,
antes da difusão dos seus específicos sistemas de leitura e
escrita, não estaria em grande desvantagem em relação aos outros
membros (normovisuais) da comunidade em que se inseria. Se
exceptuarmos algumas dificuldades postas por certas actividades
práticas, bem como a visualização do universo, a contemplação
visual de determinados atractivos... a pessoa cega estaria mesmo
em aceitáveis condições para aceder à informação e à cultura do
seu tempo.
Mas nas épocas que precederam o aparecimento da escrita, ser “culto” não ia
além de se saber escutar os mais velhos e compreender a natureza, situação que
veio a modificar-se completamente com a introdução da escrita nas sociedades
humanas, verificando-se, a partir de então, mutações e transformações profundas
nas suas estruturas.
Tomando a realidade tiflológica de então à luz desta
tipologia de rigor, a pessoa cega daquela época (abstraindo o
suposto misticismo que vulgarmente lhe era atribuído) estaria em
condições de poder ser inteiramente autónoma e activa e de fruir
a cultura da sua comunidade.
Se emontarmos o nosso pensamento à Grécia Antiga, todos
temos conhecimento de que, segundo a tradição grega, o autor da
“Ilíada” e da “Odisseia”, o poeta Homero, seria cego, uma
questão que, para alguns, se apresenta imbuída mais de um juízo
estético do que histórico. A propósito, refere Almada Negreiros
(sustentado por Nietzsche) que a questão homérica será um juízo
estético e não uma questão histórica. Contudo, continua de pé
a imagem tradicional de Homero como “velho e cego, errante de
cidade em cidade, cantando os seus versos”.
Segundo Almada Negreiros, Homero não teria existido em
pessoa (tese contrariada por Montoro Martínez na sua monumental
obra Los Ciegos en la Historia), sendo tanto a “Ilíada” como
a “Odisseia” a recolha dos cantos mais populares dos antigos
poetas cantores da Grécia primitiva.
Mas a descoberta que se nos afigura de relevante
problematização neste domínio encontra-se no livro Ver
(capítulos Memória e Imaginação, A Cegueira de Homero e Mito-Alegoria-Símbolo) do já citado Almada Negreiros. Tomando a referência ao poeta grego de que “sete cidades da
Grécia disputaram o seu nascimento”, é aceitável que não tivesse
sido uma pessoa única. Mas então, porquê “velho e cego”? O
“errante de cidade em cidade, cantando os seus versos” e o facto
de que “sete cidades da Grécia disputam o seu nascimento” também
nos deixam a convicção de se tratar de um personagem único.
Mas no capítulo Memória e Imaginação de Ver, é demonstrado
que “as duas faculdades instintivas do homem são a memória e a
imaginação. Primeiro o homem viu e depois imaginou. Depois de
assistir impotente à confusão do Caos, imaginou a sua defesa
entre os Elementos”. (“O homem não dispõe só da memória, a qual,
por si apenas, é negação; por isso o homem tem segunda faculdade
instintiva, gémea da memória, a imaginação. A memória e a
imaginação têm a sina de não poderem desacompanhar-se: a
imaginação é o cego da memória, e a memória o moço-de-cegos da
imaginação. A memória não tem iniciativa; a imaginação tem-na
mas é cega de nascença. A memória tem olhos e a cega imaginação
tem querer: a Vontade!”). A cegueira é, pois, comum à
imaginação e a Homero!
E, nesta linha, o conteúdo de “Cegarrega”, de Jerónimo Nogueira
(que cegou dos dois olhos em adulto, por acidente, presentemente
licenciado em filosofia e professor desta disciplina no ensino
secundário), remete-nos para um contexto homérico, mas
perspectivado numa dimensão de modernidade e dos nossos dias.
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Cegarrega
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Fala casto o teu dizer,
De Homero computa lenda:
Jogar o mundo com venda,
Da cegueira se faz ver.
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E digo ao vento que vejo
Os álamos a navegar...
E os olhos, a chorar,
Não negam o seu desejo.
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Ser cego é ter paixão
E a diferença enclausura:
Se nos sonegam cultura
Decretam a exclusão.
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Falo casto o meu dizer?
E achego minha adenda:
No desvelar dessa venda
Se justifica o viver.
-
-
E ainda há quem se ofenda
Quando de nós se desvenda
Algum cáustico saber:
Computa de politiqueiros
Em escrava visão de falseiros
Que trunca quem é por fazer!
Mas porquê velho? Porque, continua Almada Negreiros, na
linha do que pensa Wolff, é o autor da Ilíada eda Odisseia “
os cantos mais populares dos antigos poetas-cantores da
primitiva Grécia” -, porque todos estes “antigos poetas-cantores
da primitiva Grécia” têm um só personagem e um único nome:
Homero. E seguindo Wolff e Almada Negreiros, estes “cantos mais
populares dos antigos poetas-cantores da primitiva Grécia” foram
iniciados por Homero desde o primeiro dia da primitiva Grécia.
Desde o primeiro dia da Grécia que o poeta-cantor Homero vem
“cantando os seus versos”, sempre os mesmos versos que variam
segundo os tempos e variam para todos os tempos.
“Errante de cidade em cidade”, todas as cidades da Grécia
escutam o mesmo canto feito para todas as cidades da Grécia ao
mesmo tempo. “Homero é velho porque é antigo da primitiva Grécia
e ainda vive, e mais do que qualquer outro antigo é o primitivo,
e mais do que qualquer primitivo é ele o primeiro grego nascido,
e tanto como o primeiro grego nascido é ele o primeiro europeu
nascido, e tanto como o primeiro europeu nascido é ele o
primeiro homem do mundo, o que-nunca-morre, o imortal, o que
vive todos os dias, para sempre, até mesmo depois de ter
desaparecido a Grécia Antiga: o homem!”.
Mas então porquê cego? Fundamentando-nos ainda em Almada
Negreiros, Homero é cego porque a sua cegueira é a noite
obscura dos “terrores pânicos” do homem. Porque canta uma luz
que os olhos da memória nunca viram. Porque a imaginação lhe deu o dom de imitar o que só imaginado se poderá ver. Porque a
imaginação lhe deu a vontade que cega e as garras do domínio da
vida. Porque a vontade custa o maior preço e o maior preço na
Grécia eram os olhos (Édipo). É cego, em suma, porque é cego
tudo quanto, a bem ou a mal, se mete de permeio entre a vida e o
homem. Por outras palavras: Homero é cego porque é o meio. O
meio que liga a Origem ao Fim. O meio é o espírito, o
transportador do espírito, desde a Origem, o Princípio, até ao
Fim que é sempre o Homem; o espírito é abstracto, actua sobre
formas mas não tem forma; envolve a forma, enche-a, mas não a
substitui, revela-a.
Eterno revelar de um fazer que se quer palavra, a ele que
“procurava palavras, as mãos tacteando na noite, ávidas
ainda.”. Jerónimo Nogueira acrescenta que “Todos somos cegos, tacteando o
sentido.”.
Na verdade, o que é inquestionável e como se pode apreciar
pelos poemas ditos homéricos, o papel do seu autor foi
importantíssimo para toda a Humanidade. A sua actividade
garantiu-nos a transmissão da cultura grega durante as épocas
mais recuadas da sua história, quando a comunicação oral era a
forma essencial da aprendizagem. Sócrates ensinava através do diálogo
e Aristóteles comunicava o seu saber conversando com os seus alunos enquanto
passeava com eles.
Eram,
pois, bons ambientes para as pessoas cegas se cultivarem e, de
certo modo, começarem também a libertar-se, por um lado, do peso
da misticidade, por outro, de estigma de serem consideradas,
nalgumas tribos e sociedades (desde épocas imemoriais)
causadoras de calamidades e portadoras de males espirituais,
atributos que, infundadamente, as rotulavam e as votavam a um
incompreensível amorfismo vivencial, por vezes terrificamente
vistas como nocivas inutilidades humanas, augurando o infortúnio
de progenitores e das tribos ou sociedades onde tinham a má
sorte de nascer.
No tocante à sua existência como prenúncio de calamidades, desde tempos
remotos e devido à tendência da selecção natural, tem-se dado lugar às
acções mais absurdas que se possam imaginar. Por exemplo, para os cegos
congénitos ou para os que ficassem cegos em tenra idade, a julgar pelos
relatos dos diários de vários exploradores ingleses sobre tribos africanas
(conforme o atesta Montoro Martínez(1991), existiram enormes infanticídios
no seio daqueles povos, os quais eliminavam todos os portadores da
deficiência visual. No entanto, levando em conta a forma de vida “primitiva”
destas tribos, não devemos ficar muito surpreendidos com estes terríveis
actos contra todos os portadores de deficiência visual, especialmente ao
recordarmos que Platão e Aristóteles concordavam e defendiam tal eliminação
apesar da sua elevada ética e cultura.
Como portador de males espirituais, segundo Montoro
Martínez no primeiro volume da sua obra em referência, na África
Central o nascimento de um cego era considerado como prenúncio
da chegada de tempo de fome e todo o tipo de flagelo natural e
espiritual. Devido a este preconceito, a superstição levava
certas tribos ao extremo de meter os recém-nascidos numa cesta
de vime, afogando-os no rio Congo. Após este acto, o corpo era
sepultado na selva virgem acompanhado de rituais e cânticos
apropriados, o que era feito com o “bom” e sincero propósito de
afastar do povo o terrível castigo dos deuses malignos!...
Refere também Montoro Martínez que, até há relativamente
pouco tempo, na Nova Caledónia e Papuásia (Nova Guiné), um cego
era mais temido que um leproso, pois, enquanto este era colocado
fora da tribo, o cego era pura e simplesmente eliminado sem
misericórdia. Todavia, não devemos admirar-nos destas atitudes
tribais, porquanto, sob a mesma influência diabólica, há menos
de cinquenta anos (era moderna), o teórico do nazismo Rosemberg
afirmava na sua lei o seguinte: “Todos os enfermos crónicos e
inúteis para o trabalho deviam ser simplesmente suprimidos”.
Podemos concluir que todas estas atitudes negativas do ser
humano são o resultado de um sentimento de culpa ou remorso
retidos no subconsciente através das gerações, desde que, no
princípio, o homem ficou sujeito à sua própria defesa, sem Deus
na sua vida.
Poderíamos (se se tratasse de um estudo apenas e de índole
genuinamente histórica) remontar à vida das pessoas cegas na
Antiguidade, na Mesopotâmia, através dos tempos, pela privação
natural ou como castigo divino, obrigando-se estas a ser mão-de-obra
para trabalhos pesados para, mais tarde, e sem impedimento,
ocuparem finalmente, um lugar digno na sociedade. Por exemplo,
em Israel, o indivíduo que ficasse cego exercendo um cargo
público não seria impedido de dar continuidade ao seu
serviço. (1.º Livro de Samuel, Capítulo 4, Versículos 11-18).
Mas retomando o que vínhamos dizendo sobre as pessoas cegas,
designadamente Homero na Grécia, a cultura grega, com a sua própria
democracia (mãe de todas as existentes), foi bastante estéril no que
respeita a leis que protegessem os cegos, não tendo ficado registada nenhuma
lei em abono destes. Vulgarmente se atribuía a cegueira à intervenção
directa dos deuses. Há notícia de pelo menos dezoito cegos célebres nesta
época, estando entre eles o afamado Homero que ficou cego em adulto,
distinguindo-se por vários poemas “imortais”, mas que escreveu com os seus
olhos já doentes a “Odisseia”.
A cultura romana, conforme refere também Montoro Martínez,
foi talvez uma das mais discriminadoras em relação aos
deficientes, incluindo, como é evidente, os cegos. Sendo uma
época conturbada, foi no entanto um tempo em que os invisuais
foram considerados muito úteis, devido ao facto de existir então
uma enorme carência de mão-de-obra, em virtude do recrutamento
militar intenso entre os séculos IV e III a.C. Considerado útil, o cego foi também beneficiado juntamente com outros deficientes
ao ser-lhes concedido um local chamado Cubiculum (espécie de
albergue) no monte Aventino como lugar de descanso e habitação.
Entre os cegos romanos, foi famosos Appius Claudius Caecus,
político e construtor, responsável da célebre “via Appia”, a
artéria principal de Roma, e da “aqua Appia”, o seu primeiro
aqueduto de águas livres. Porém, há circunstâncias em que, na Antiguidade,
as pessoas cegas beneficiaram da elevada cultura existente na época, caso do
Egipto, em que vários faraós foram benevolentes para com os invisuais, os
quais tiveram a oportunidade de exercer actividade profissional como
músicos, moleiros, padeiros, alfaiates e curtidores. O cego mais célebre que
existiu no Egipto foi Sesostires I, poderoso faraó da XIIª dinastia que
reinou entre 1995 e 1965 a.C.
A propósito, sustenta Orlando Monteiro (cego desde criança
por acidente e licenciado em Filologia Germânica) que, dentro da
concepção cristã da Idade Média, concepção em certa medida ainda
hodierna, ao lado das concepções pagãs, se via “no indivíduo
privado da vista um ser com faculdades de comunicar com os entes
sobrenaturais.”. E acrescenta que “a cultura, que
anteriormente podia ser considerada como sinónimo de luxo ou
tida como diletantismo, é hoje um eficiente instrumento de
trabalho, bem como o meio mais higiénico e valorativo para o
enriquecimento do espírito; isto, tanto no que respeita ao
aspecto puramente profissional, como no aspecto da valorização
humana.”. E conclui que “Vão já bem longe os tempos em que a cultura era
tida como um tabú a que só uma minoria privilegiada tinha livre acesso. Hoje
constitui ela um direito do cidadão nascido em qualquer país civilizado.”.
Entretanto, difundia-se o alfabeto, invenção fenícia
aperfeiçoada pelos gregos. Se Sócrates nada escreveu, Platão e
Aristóteles deixaram-nos as suas obras em “livro”. Pode dizer-se
que, a partir dos gregos, a palavra escrita se superiorizou à
palavra falada, no que se refere à transmissão da cultura.
Desta forma, em obediência a imperativos de natureza sócio-intelectual, passou a haver uma diferença entre cultura erudita
e cultura popular. Na cultura popular, as pessoas cegas estariam
sempre à vontade, em virtude de o seu meio de transmissão lhes
ser naturalmente acessível: bastava-lhes saberem ouvir e saberem
falar. Na cultura erudita, infelizmente, já que muitas vezes os
conhecimentos se começaram a difundir por intermédio da escrita,
as pessoas cegas viram surgir-lhes múltiplas desvantagens.
Contudo, cabia-lhes um papel relevante em termos culturais: eram
difusores de cultura popular. Concluirão alguns: mas essa
cultura era marginal. Sem dúvida, mas importante, visto que, em
tempos recuados, a maior parte da população era analfabeta.
Logo, esta seria a cultura da maior parte das pessoas,
incluindo, obviamente, as pessoas cegas.
À luz do poder estabelecido, tais formas culturais eram
marginais. De igual modo eram considerados os seus agentes,
tanto valia serem cegos como normovisuais, pois tanto era
marginal o cantor e tocador sem vista, como o jogral e a
bailadeira normovisuais.
Começaram, nessa clivagem cultural, as desvantagens da
pessoa cega, tornando-se-lhe a cultura erudita progressivamente
inacessível, até ao limiar da modernidade, altura em que se
reinicia para si outra etapa no plano da cultura e em que
começam a despontar condições e a surgir invenções que lhe
permitem a acessibilidade (desta vez também progressivamente) à
cultura erudita.
McLuhan, no seu livro “A Galáxia de Gutenberg”, realça os
veículos através dos quais as mensagens têm vindo a ser
transmitidas, de geração em geração, sendo o cerne principal
desta leitura a passagem do homem da cultura oral e manuscrita
ao homem moderno da cultura impressa, em que o grande marco
diferenciador de ambas as estruturas temporais é a invenção da
tipografia (a imprensa), da qual resulta o fenómeno sociológico
da aparição do público como grande massa de indivíduos ansiosos
por informação, de entre os quais as pessoas cegas só começaram
a desfrutar de tal dispositivo a partir do século XIX, não
obstante alguns dispositivos engenhosos e curiosos anteriormente
inventados, como veremos no terceiro capítulo.
Este autor pretende deixar claro que a invenção da imprensa
implica obviamente alfabetização, visto uma ser a consequência
da outra, contrapondo-a, no entanto, à alfabetização manuscrita,
com as profundas transformações que esta operou no foro
cultural, científico e civilizacional, bem como no próprio
«modus vivendi» do ser humano, reportando-nos, neste particular,
à Antiguidade Clássica e à Idade Média.
É, pois, com o aparecimento da tipografia que desponta a
fase de arranque de um progresso contínuo e incessável que tem
como resultado as reproduções em série, nascidas nessa altura, e
que contribuiu para a modelação decisiva do Mundo Ocidental de
então. A tipografia surge como um meio que possibilitou ao homem
ver mais longe, descobrir em si próprio qualidades que
desconhecia, conferir expressão prática à sua experiência, visão
e expressão mental, enfim, criar, sem estar plenamente
consciente de que o fez nem por que razão o fez.
Contudo, McLuhan vai mais além, estabelecendo um confronto entre a era
moderna e uma nova era já começada, em que se evolui da imprensa para a
electrónica. Passa-se de uma orientação visual, caracterizada por uma
adaptação a esse código visual que é a letra impressa, a uma orientação
auditiva, à semelhança das tradições orais antigas relembradas pelos hábitos
de leitura oral, mas desta vez com base nas técnicas electrónicas áudio.
Não obstante todas as vicissitudes desta transição
comunicacional, temos informação da existência de
impressionantes oradores cegos, desde a mais remota antiguidade.
A propósito (e talvez a pretexto de uma questão de
patrioticidade), recordamos o português José de Sousa(16801744),
que se distinguiu pela sua fluente e empolgante oratória
em latim, tendo sido várias vezes Presidente da Academia dos
Anónimos (no século XVII) para, conforme afirmação sua, levantar
a literatura portuguesa do letargo em que jazia.
Os romanos, dos quais a nossa cultura actual constitui eco,
em larga medida no campo da linguagem, já tinham a percepção do
valor da linguagem, ao definirem o ser humano como vir (bonus)
peritus dicendi. Porém, a genialidade da intuição não se
estendeu, em idêntico grau, à amplitude do dicere. Uma cultura
juridicista, em boa parte continuadora da não menos importante
cultura sofista, impregnou o homem ocidental de retórica, mais
preocupado com a oralidade argumentativa (sempre disposta a
subjugar o adversário) do que com a transmissão de uma mensagem
ou verdade, em cujo campo se deveriam encontrar os
interlocutores, para cada um deles dar voz temporal à
intencionalidade desse conteúdo e não para aí terçarem armas em
duelos aniquiladores.
Apesar do carácter imprescindível das várias funções da
linguagem (comunicar e exprimir, entre outras), a abrangência do
acto desta harmoniza-se melhor com a sua índole ontológica do
que com a referência ao homem, esta aliás também essencial, que
a oratória protagoniza.
Nesta perspectiva, somos levados a admitir que a linguagem se cria quando
o homem constrói o mundo, como um todo articulado e o melhor possível, na
qualidade da sua perfeição global e na riqueza da articulação das suas
diferenças. “Não há linguagem sem a articulação do tecido do mundo, donde se
adivinha, desde já, o carácter não absolutamente autónomo da linguagem, que
emerge na acção da construção do mundo, em que interferem os mais diversos
factores, na qual o homem se excede constantemente, tal como é excedido o
mundo dado, imediato, por um outro mais universal e diferenciado, que o
essencial processo de metaforização privilegiadamente insinua. A humanização
é, assim, através da linguagem, processo de mundanização, mais ainda, de
ontologização.”.
Estamos cientes de que, por vezes, a hipervalorização do
sentido da vista na comunicação, e consequente socialização,
dificulta o acesso das pessoas cegas à informação e à cultura.
Trata-se, na realidade, do sentido mais absorvente e
valorizado pela humanidade (sobretudo no Ocidente),
compreendendo-se facilmente a razão de tal relevo. Isto porque a
vista, além de nos dar a luz e a cor, é um sentido que nos
permite contactar com as coisas, circunstâncias, acontecimentos
e contextos que estão afastados de nós e fora do nosso espectro
táctil e audível. Assim sendo, pelos contrastes de luz e cor, é
possível transmitir e apreender um conjunto de vivências que de
nenhum outro modo estão acessíveis ao indivíduo, sendo nesta
vantagem que radica, fundamentalmente, a importância da
modalidade sensorial visual.
Por isso, o homem tem tentado tirar o máximo proveito deste
sentido, sendo neste domínio que a pessoa cega tem vindo a
perder, nalguns casos, acessibilidade à igualdade de
oportunidades.
Mas estamos convictos de que esta questão da igualdade de oportunidades,
bem como outras inferências infundadamente criadas ou suscitadas, se podem
ultrapassar, sobretudo com vontade, cultura e esclarecimento das pessoas
cegas, das instituições e da opinião pública. A cultura, na etimologia
grega, significa ver. E ver, seja em que dimensão for, é normalmente uma
forma de felicidade. A cultura pode, em regra, conduzir à felicidade. Só com
cultura é possível vivermos com prazer na sociedade consciente e esclarecida
que todos formos capazes de construir ou de moldar, para que todos nela
caibamos sem discriminações. São os pais, os educadores, os professores de
hoje que poderão semear lógica e formas saudáveis de pensar, com liberdade
na interacção, de maneira a que a cultura triunfe e a nossa posteridade, os
nossos filhos, os nossos netos, colham e se deliciem com os frutos das
árvores que todos conseguirmos cultivar. E para que este contributo para a
felicidade humana tenha viabilidade, é preciso investigar, é preciso
estudar. Escreveu Guizot(1787-1874) que o estudo será a valorização da mente
ao serviço da felicidade humana. –
Estudemos,
pois, e tenhamos todos a felicidade de contribuir para que o
progresso (o novo mundo culto, vivo, livre e são, desinibido de
utopia) contemple todas as mentes e que não nos falte a
imaginação para ultrapassar os condicionalismos à avidez de
cultura e de esclarecimento. Cícero(106-43 a.C.) também dizia que uma casa sem livros seria um corpo sem alma. É
evidente que a cultura nos alimenta e nos redimensiona o
pensamento e o comportamento.
A propósito, e um pouco como corolário, Borges escreve:
“Sempre o Paraíso como uma espécie de biblioteca. Há pessoas que o imaginam como um jardim e outras que pensam nele como um
paraíso. (...) Sempre senti que meu destino era, antes de tudo,
um destino literário -ou seja, que me aconteceriam muitas
coisas ruins e algumas boas. Mas eu sempre soube que, a longo
prazo, tudo isso se converteria em palavras -sobretudo as
coisas ruins, já que a felicidade não precisa de transformações.
A felicidade é o seu próprio fim.”.
A pessoa cega, antes do século XIX, não teve um acesso
eficaz aos sistemas de escrita e de leitura e nunca pôde, até
hoje, desfrutar do gozo de certas artes plásticas, especialmente
da pintura, o que significa dizer que não tinha ao seu alcance
sistemas de informação capitais para a vida em sociedade. Não
controlando os sistemas de escrita, nunca pôde instruir-se em
escolas e universidades de igual para igual com os normovisuais.
Por outro lado, nunca lhe foi possível exprimir-se -e ainda não o é -pelas chamadas “artes visuais”, a não ser
estereotipadamente.
A vista tem dominado os meios de acesso à informação, pelo
que pensamos que devia ser difícil para uma pessoa cega desejar
singrar no mundo intelectual, antes do século XIX (embora
encontremos ao longo da história algumas curiosas referências
pontuais, mas sem expressão a um nível elevado), o que nos induz
a sustentar que o aparecimento do Sistema Braille e a sua
disseminação constituiu uma revolução tiflo-sócio-intelectual,
visto facultar às pessoas cegas a possibilidade de lerem e
escreverem fluentemente, utilizando as pontas dos dedos, e
abrindo-lhes, na década de 80 do século XX, caminho para a
manifestação e exploração de outras potencialidades e novos
horizontes do saber e de interacção, através da informática e
todas as tecnologias de informação dela decorrentes.
Como sabemos, tal como a escrita vulgar para as pessoas
normovisuais, também a tiflografia, que se exponencializa no
genial Sistema Braille (braillografia e mais recentemente
braillo-informática), tem vindo, desde a criação do Sistema
Braille e acompanhando a evolução das várias notações gráficas
da linguagem, a registar inovações de natureza signográfica,
contemplando novos símbolos, notações e convenções que
correspondem a necessidades específicas nos códigos Braille
aplicáveis às diversas especialidades do saber.
Contudo, diremos, para já, que o Sistema Braille foi o
móbil detonador das barreiras sócio-intelectuais das pessoas
cegas. Parafraseando um pouco Marcel Cohen, diremos que a
escrita é a grande invenção social e instrumento intelectual que
consiste numa representação visível – e nós acrescentamos:
tangível e audível – e perdurável da linguagem, que por este
meio se torna transportável e conservável. A escrita,
seja em caracteres comuns, ou representada por qualquer outro
processo igualmente durativizado, deve assegurar,
inequivocamente, a preservação histórica da vida universal.
Aprofundaremos esta questão nos capítulos terceiro e quarto,
conferindo particular relevo à sobrevivência da informação.
I.2 - A Cegueira Enquanto Reveladora das Equivocidades da
Comunicação
Numa perspectiva metafísica, esta, à partida, pressupõe que
estejamos numa compreensão obstaculizada por erros ou por
ausências sensoriais (por exemplo a ausência do sistema
sensorial visual) que provocam a sua diminuição. Porém, a teoria
da comunicação mais radical a este respeito -designadamente com Jakobson e Lacan -parte da ideia de que não é assim, porque
toda a comunicação tem equivocidades e a compreensão é um ganho
que resulta do próprio processo, não sendo algo que é
pressuposto à partida.
O facto de se considerar que a ausência da vista é uma falha, que provoca
dificuldades de compreensão, pode não significar aceitar que o sistema
sensorial visual tenha a centralidade de todo o processo, que só há este
sistema e que o resto é complementar, visto que, na vida comum, utilizamos
uma forma complexa, na apreensão do conhecimento, através dos sentidos. Toda
a alternativa ao problema da metafísica ocidental passou sempre pela questão
da cegueira. Será a cegueira uma falha ou um revelador de outras
potencialidades? Seremos mais cegos quando vemos, ou quando não vemos?
Haverá uma cegueira provocada pela visão? Paul de Man mostra que toda a
metafísica está centrada numa certa ideia da visão e que, mesmo no interior
do maior esclarecimento, há à partida uma cegueira, pois, se assim não
fosse, seria inevitável uma certa violentação do mundo e de nós próprios.
A excessiva centralidade na visão conduziu a um desprezo
profundo pelo mundo, pelo corpo, pela relação com o outro, o que
está em sintonia com a crítica de Derrida ao fonocentrismo e ao
teoricismo. A própria teoria (em grego) significa aquilo que se
vê, contemplação, todo o Ocidente está fascinado pela
centralidade e pelo maravilhoso da visão. Descartes(1596-1650),
com a ideia sobre o pensamento discreto, distingue uma forma
clara e nítida dos objectos que leva ao desenvolvimento da
tecnologia, e Diderot(1713-1784), na sua «Lettre sur les
Aveugles à l'Usage de ceux qui Voient» (publicada em 1749 e
revista por ele trinta e quatro anos mais tarde sem
inovações), dá-nos uma porção de informações importantes,
sobretudo de natureza psicológica, sobre a pessoa cega,
denunciando já uma noção de suplência dos sentidos, não
empregando o vocábulo nem suficientemente explicitando o
conceito, pois o termo suplência, ou substituto dos sentidos, só
entrou na linguagem científica no século XIX.
Mas só no século XVIII, mediante as preocupações culturais
de então, as pessoas cegas começaram a ser olhadas com outras
“luzes”, passando a literatura a ser comandada pela filosofia,
sendo quase toda a literatura orientada num determinado sentido
ideológico, havendo, por conseguinte, uma outra capacidade para
observar as pessoas cegas e para as ver como elementos sociais
possíveis e como pessoas.
Diderot, na elaboração da sua Carta, tomou para estudo uma
pessoa cega de Puiseaux, homem abastado, um tanto culto, casado,
pai de família, perscrutando-o em todas as vertentes, concluindo
a Carta (reforçando de certo modo a sua opinião) com uma notícia
publicada em Inglaterra sobre o “célebre cego” Nicholas
Saunderson, que foi professor de matemática em Cambridge.
Mas retomando a questão da suplência dos sentidos,
Voltaire(1694-1778), quando agradece a Diderot a Carta que este
lhe enviou, nota que ele punha em foco a possibilidade que “o
seu cego” tinha de substituir as insuficiências visuais pelos
contributos trazidos pelos outros sentidos. Assim é que Diderot
conta como a pessoa cega, que tomou para estudo, enfia as
agulhas, como ele sabe se está longe ou perto da lareira pelo
grau de temperatura que esta exala, se o copo está mais cheio ou
mais vazio pelo ruído que o líquido vai produzindo ao cair
dentro do copo, tendo aqui, portanto, as sensações térmicas e
auditivas a substituir as sensações visuais, assunto que
aprofundaremos no segundo capítulo.
Embora Diderot, com a estatura mental que se lhe reconhece,
tivesse sido pioneiro nesta análise psicológica da pessoa cega
que tomou como referência, não pôde esgotar o assunto, não
apenas por condicionalismos da época, mas pela insuficiência de
conhecimentos científicos que só mais tarde se desenvolveram.
E há aspectos enunciados por Diderot na sua Carta com os
quais não estamos de acordo, como é o caso da negação às pessoas
cegas da capacidade de possuírem uma imaginação espacial, de
serem destituídas do sentimento do pudor e pouco inclinadas ao
roubo, bem como a ausência da vista ser condição impeditiva da
concepção da ideia de Deus.
• Negação às pessoas cegas da capacidade de possuírem
uma imaginação espacial -Segundo Diderot, tudo quanto
estivesse para além do explorável ao alcance da mão
ultrapassaria as possibilidades de domínio da pessoa cega.
Diderot não teve em conta que, na exploração do espaço, não
existem apenas as sensações tácteis, mas também a
perceptibilidade auditiva, as sensações quinestésicas.
Exploramos o espaço não só com as mãos mas também com o nosso
corpo. Damos uma volta inteira a uma sala, descemos uma rua e
subimos outra vez a mesma rua (mesmo com as mãos nos bolsos) e
descobrimos o espaço, estruturando-o mentalmente. É certo que
uma pessoa cega não pode estruturar o espaço para além das
suas possibilidades de circulação corporal e abrangência
auditiva, olfactiva, quinestésica. Por exemplo: não pode fazer
uma ideia do espaço sideral; quem nunca viu dificilmente
imaginará a imensidade do mar, até à linha do horizonte, lá ao
fundo, como que a tocar o céu... Mas a verdade é que pode
construir suficientemente tanto o espaço geográfico como o
espaço geométrico para ter um comportamento normal. Um erro de
Diderot, ainda hoje cometido por algumas pessoas, segundo o
qual, a vista seria fundamental para examinar e medir o
espaço. Claro que a vista é um órgão precioso para isso, mas
só por si (em determinadas circunstâncias) não basta. Há até
quem pretenda que ela apreende o espaço exactamente através
das sensações tácteis e quinestésicas que o corpo lhe
emprestou.
As pessoas cegas são destituídas do sentimento do pudor e
pouco inclinadas ao roubo -Diderot nega certas ideias morais às
pessoas cegas, parecendo-lhe serem destituídas do sentimento do
pudor e pouco inclinadas ao roubo. É preciso ter-se em conta que
Diderot vive dentro de uma filosofia de tipo sensista, que era a
filosofia predominante no seu tempo, com Locke(1632-1704) e
Condillac(1715-1780) atrás dele, em que os sentidos eram, por
assim dizer, toda a fonte de conhecimento. Já Locke tinha dito
que nada existia no intelecto que não houvesse passado pelos
sentidos, acrescentando Leibniz(1646-1716), a não ser o próprio
intelecto. E Condillac constrói toda a sua psicologia a partir de uma
sensação única, que se vai desenvolvendo.
Porém, mais tarde, com o desenvolvimento das teorias idealistas e das teorias do conhecimento de tipo
intelectualista, as coisas modificaram-se bastante. Nós hoje
sabemos que há ideias que, embora possam ter partido dos
conhecimentos empíricos, são elaboradas independentemente, já
dentro do intelecto. Por exemplo, ninguém nos vai dizer que a
ideia de raiz cúbica nos vem dos sentidos. É verdade que a
acessibilidade dum indivíduo cego ao exterior ambiental
envolvente é reduzida e, nalguns casos, completamente diferente
daquela que o indivíduo normovisual tem, não tendo nada a ver
com questões de mentalidade nem de quociente de inteligência.
Mas Diderot, ao negar aos indivíduos cegos, baseado na ausência
da modalidade sensorial visual, a capacidade de pudor, enganou-se redondamente, porque o pudor não é o resultado de uma
percepção, mas uma ideia que pode perfeitamente ser adquirida
por educação. Como o pudor está ligado, em muitos aspectos, ao
comportamento corporal, é claro que uma pessoa cega pode,
inadvertidamente, apresentar-se com impudor. No entanto, da
experiência que todos temos e que mais tarde se foi
desenvolvendo, sabemos que existe em muitas pessoas cegas uma
ideia de pudor tão estratificada como nas pessoas normovisuais.
É óbvio que tanto nuns como noutros o pudor pode ir desde uma
insensibilidade quase total a uma sensibilidade requintada.
No que respeita ao roubo, como função da facilidade que
temos de roubar, um indivíduo que não tenha possibilidade de se
defender se roubar não se atreve a fazê-lo, sendo a vista um
órgão precioso para facilitar tal atitude. Um indivíduo com
propensão para o roubo olha primeiro à volta e, se tem a certeza
de que não está a ser visto, rouba; mas, se está alguém a ver,
já não se atreve a roubar. Por outro lado, para roubar é preciso
encontrar o objecto pretendido, o que a vista também facilita
extraordinariamente. Mas não podemos agora elevar um grau de
facilidade ou de dificuldade a uma atitude moral. Entender que a
pessoa cega não é inclinada ao roubo é pretender que há
realmente nela uma psicologia diferente, que ela é
estruturalmente diferente das pessoas normovisuais, o que não
nos parece ser verdade.
Mas poderá falar-se de “psicologia da cegueira”?
Fundamentando-nos na compilação de Alberto Rosa e Esperanza
Ochaíta, pode-se falar de psicologia particular de um grupo,
sempre que os membros deste compartilhem entre si (mas não com
outros grupos) mecanismos operativos indispensáveis para
desenvolver as diferentes acções necessárias que lhes permitam
integrar-se nas mais diversas actividades sociais. Por isso,
pode apenas falar-se de “psicologia da cegueira” se forem
especificadas claramente as características que distinguem os
indivíduos cegos, já que existem bases institucionais e um
conjunto de instrumentos e condições sociais que permitem
considerá-los como grupo, exigindo-se que se tome uma postura
teórica.
É a justificação desta dimensão teórica que torna legítimo o facto de se falar de “psicologia da cegueira”, cujo objectivo
primordial será a explicação do desenvolvimento do aparelho
psíquico dos indivíduos que constituem este grupo, concedendo
especial atenção aos recursos de que dispõem e não àqueles de
que carecem.
Ao mesmo tempo, a dita postura teórica permite-nos
considerar a «psicologia do cego» como uma variante da
psicologia geral humana, o que nos ajudará a conhecer um
conjunto de possibilidades de acção do aparelho psíquico, que
não se manifestam nas pessoas normovisuais, e que nos permite
conhecer os efeitos diferenciadores que tem a visão sobre o
comportamento humano.
O objectivo da «psicologia da cegueira» será, nesta
acepção, o estudo do modo como os indivíduos humanos com a
capacidade sensorial visual diminuída (ou dela privados)
desenvolvem as suas funções psicológicas e organizam o seu
comportamento com os recursos de que dispõem.
Nesta acepção, sustenta José António Baptista (cego total e licenciado em
Filosofia) que o cego, “quando não afectado por deficiências devidas a
causas patogénicas localizadas fora do aparelho visual, se apresenta
psicológica e socialmente normal, tanto mais quanto mais tarde perdeu a
vista e na medida em que haja recebido educação adequada.”.
Retomando a questão da não inclinação das pessoas cegas
para o roubo (na perspectiva de Diderot), refutamos tal ideia,
pois, por exemplo, nos antigos internatos, nas associações de
cegos, também aparecem pequenos roubos: rouba-se um punção,
rouba-se papel, rouba-se um livro, rouba-se um objecto ao
colega... Provavelmente, não se atreverão a assaltar um banco, à
“gangster”, porque isso exigiria uma capacidade diferente. Um
problema é o da facilidade ou dificuldade de roubar, ou seja, o
de pôr em acção uma determinada técnica, outro problemaéoda
estruturação psicológica do roubo, quer dizer, o de uma
inclinação ou não inclinação íntima da pessoa cega para o roubo.
• A ausência da vista impede a concepção da ideia de
Deus -Diderot admite que a pessoa cega, impossibilitada de
ver a natureza, a obra do Criador, não pode conceber a ideia
de Deus. E baseia-se também um pouco nos relatos feitos por
Saunderson na hora da morte, negando este quaisquer princípios
religiosos, argumentando inclusive com um pastor protestante
que o pretendia converter. Mas os argumentos de Saunderson
eram aproximadamente os mesmos que naquele tempo, muito inclinado ao ateísmo, o próprio Diderot, como Voltaire, utilizavam. Nós todos sabemos que a ideia de Deus não vem do espectáculo da natureza, embora se utilize muitas vezes esse espectáculo para, empiricamente, estabelecer essa ideia nos espíritos ainda em formação. No plano religioso, as pessoas cegas são tão crentes ou tão descrentes como as que vêem.
Já vimos que a literatura do passado não estudava a pessoa
cega do ponto de vista psicológico. E Diderot, que dispunha
apenas de uma pessoa cega como exemplo, não tinha informações
suficientes para poder verificar que a realidade contradizia
estas suas conclusões.
É o desenvolvimento da tecnologia que recoloca e põe em
causa a questão da visão e que permite alternativas no que se
refere à compensação e ampliação das capacidades das pessoas
portadoras de deficiência visual, pois que, a tecnologização da
informação lhes abre inúmeras perspectivas e lhes acessibiliza
novos horizontes. O pensamento diferenciante, particularista e
discreto, baseado na predominância da visão, é o que levou ao
desenvolvimento de uma espécie de tecnocracia ou de domínio da
técnica no mundo moderno, só que a técnica é levada a certo
ponto a libertar-se do domínio da palavra e a virar-se para o
som, para a imagem, criando novas virtualidades.
Podemos ter uma concepção metafórica da visão. Vemos com a
alma, o olho interior, como defendiam os místicos antigamente.
No fundo, construímos a imagem do mundo, a nossa imagem do
outro, a partir de uma série de informações, não estando, por
vezes, preparados para as perceber. Por exemplo, no que se
refere à orientação cinestésica -uma certa percepção
cinestésica ou ambiental, que não corresponde a nenhum sentido
preciso -, é o conjunto dos sentidos que deve proporcionar essa
informação. O Ocidente esteve sempre tentado a privilegiar um
sentido que organizasse todos os outros. Há uma hierarquia
organizada a partir da visão, sistema sensorial a partir do qual
todos os outros são organizados, articulados, passando a
suplementos da visão. É uma construção que historicamente, no
fundo, está limitada, levando-nos a concepções muito restritivas
do significado da comunicação, da relação com o outro. No caso
da realidade virtual, esta é forçada a simular a percepção de
todos os sentidos ou, pelo menos, de alguns deles. No Japão,
Christopher Currell, depois de estudos aprofundados sobre o
problema da audição, descobriu que temos, pelo menos, cinquenta
e cinco sentidos. Organizamos a nossa relação com o mundo a
partir da ideia clássica dos cinco sentidos, mas a verdade é que o investigador, quando começou a ter que imitar a nossa audição,
descobriu que havia ali uma infinidade de sentidos ocultos de
que nós não temos a mínima noção, porque, justamente, para nós
são naturais, mas no momento em que temos que construí-los ou
simulá-los a fazer qualquer coisa parecida, começa-se a ver que
é extremamente complexo. Por exemplo, o problema da distância é
uma questão essencial, o problema da temporalidade é uma questão
essencial, o estar à espera ou não de um dado som é
completamente diferente de não estar à espera. Há muita coisa ao
nível da percepção que está a ser trabalhada, porque a
tecnologia actual tem capacidades de imitação ou de simulação de
novos sentidos que não tinha há quinze anos atrás. Hoje
consegue-se imitar a nossa maneira de construir o som de forma
que não era possível ainda há muito pouco tempo. E de tal
maneira que na experiência contada (como observaremos no segundo
capítulo), o próprio investigador não era capaz de distinguir o
som no espaço imaginário do som no espaço real, mesmo sendo um
especialista do tema.
Temos a considerar que as teorias do «sexto sentido», que
observaremos mais em profundidade no segundo capítulo, são uma
forma de se tentar resolver as aporias ou dificuldades da teoria
dos cinco sentidos. Como é evidente que a teoria dos cinco
sentidos se revela insuficiente para perceber a nossa relação
com o mundo e com o ambiente, tudo o que extravasa dos cinco
sentidos é metido no «sexto sentido». A teoria dos cinco
sentidos parece não ter, nesta acepção, muito sentido, sendo
muito limitativa, daí que as pessoas tenham sido obrigadas a
dizer que há um “sexto sentido” que, no fundo, tem a ver com uma
capacidade de lhes dar informação diferente da do tacto, da
audição, etc., ou seja, há qualquer coisa mais do que aquilo que
a teoria clássica dos cinco sentidos produziu. E assim surgem a
teoria da percepção com Merleau-Ponty(1908-1961), o
sentido e a percepção com Austin(1911-1960), a teoria cinco
dos sentidos, com Michel Serres.
I.3 – Ver e Não Ver
Impõem-se-nos, a propósito dos conceitos de ver e não ver,
algumas reflexões.
Para que não subsistam dúvidas relativamente à forma como registamos,
entendemos e concebemos a questão da cegueira, sabemos que, em todas as
sociedades humanas, “a cegueira e os indivíduos dela portadores têm sido
alvo de comportamentos caracteristicamente emocionais, mesmo quando gozam de
uma aparente tolerância ou da reverente consideração geral.”.
Na óptica de Vítor Rapoula Reino, que é cego total e psicólogo, “tudo se
passa, na realidade, como se a própria ideia da perda da visão ou do apagar
da luz dos olhos implicasse intrinsecamente uma carga emotiva extremamente
intensa, em que uma componente subjectiva de natureza subconsciente e uma
componente psicossocial relacionada com crenças profundamente enraizadas se
confundem indissoluvelmente.”.
Mas, equacionando a questão mais concretamente, poderíamos dizer que, ao
adoptar-se uma determinada atitude face às pessoas cegas e à cegueira,
certas pessoas normovisuais estão antes a defrontar-se com os seus próprios
fantasmas inconscientes, reagindo ao medo de se verem eventualmente
atingidas por aquilo que consideram o mais temível dos males. Se a morte, em
sistemas culturais como o nosso, encerra um potencial simbólico tão
“pateticamente negativo” (expressão de Vítor Reino), não será exagerado
afirmar que a ideia de cegueira lhe é, em muitos aspectos, comparável,
funcionando como uma morte simbólica, segundo o mesmo autor um “mergulhar
nas trevas da eterna noite...”. Aliás, certos processos de reabilitação, em
indivíduos atingidos por cegueira súbita, assumem, sob o ponto de vista
psicológico, “o carácter de uma autêntica ressurreição, um retorno vitorioso
de entre os mortos após um período mais ou menos longo de morte aparente.”.
Ao receio (medo) subconsciente de perder a vista associam-se factores de natureza psicossocial mais ou menos
estereotipados, que condicionam profundamente toda a atitude em
relação à cegueira, sendo inumeráveis as crenças e preconceitos
a este nível, confundindo-se e interpenetrando-se numa complexa
rede que influencia decisivamente toda a gama de comportamentos
sociais perante a ausência do sistema sensorial visual. Refira-se, a título de exemplo, “essa estranha sobrevivência mítica que
a associa ao castigo ou ira divina ou os sentimentos irracionais
que a relacionam com o instinto sexual.”. Citado por Rapoula Reino, “Louis
S. Cholden, psiquiatra americano que se dedicou ao estudo de problemas
ligados à reabilitação de cegos tardios, assinala que a investigação
psicanalítica aponta para a existência de uma profunda conexão inconsciente
entre a visão e a actividade sexual, cuja importância teve oportunidade de
comprovar pessoalmente no decorrer do seu trabalho.”.
Para concordarmos inteiramente com Cholden, o seu conceito
de visão não poderia ser tão restritivo, mas englobar (ou pelo
menos considerar) a manifestação não menos importante de um
outro inexaurível universo sensorial. Um indivíduo cego não é de
modo nenhum menos propenso e apetente, menos auto-controlável e
menos ajustável a todas as realidades, menos racional, em termos
pulsionais, do que um indivíduo com vista.
Vítor Rapoula Reino, no estudo referenciado em nota e
efectuado em 1984 (o qual ele próprio qualifica de “pequeno e
despretensioso”, mas cujos resultados, para nós, se revestem de
importante interesse tiflo-sociológico), inquiriu três grupos
diferentes (vinte professores do ensino regular, vinte
professores do ensino especial e vinte pessoas cegas), “numa
situação de associação livre (resposta rápida e pouco elaborada
a um estímulo verbal)”, para obter uma amostra de reacções à
palavra cegueira, palavra supostamente carregada de tensão e de
emotividade, recorrendo à seguinte fórmula:
“Pense, durante cerca de trinta segundos, o que lhe ocorre
espontaneamente a propósito do termo cegueira. Em seguida,
escreva as duas palavras (ou ideias) que mais se impuserem ao
seu espírito. Finalmente, escreva um M (tratando-se de mulher)
ou um H (tratando-se de homem), imediatamente seguido do número
indicativo da sua idade actual”, tendo obtido, desta forma,
quarenta palavras (ideias-chave) por grupo, num total de cento e
vinte palavras (ideias-chave).
As palavras e expressões obtidas -consubstanciadas em
“respostas de carácter estereotipado”, “de ressonância
emocional”, “por racionalização” e “respostas tipicamente
subjectivas” -suscitaram a Vítor Reino as seguintes reflexões,
às quais também juntaremos o nosso contributo.
1. Respostas de carácter estereotipado
Consideremos, para já, as palavras “escuridão”, “escuro”,
“noite”, “buraco”, “sombra”. Sabemos que a ideia de “mundo de
trevas” é associada à cegueira pela crença comum, o que se
cristalizou “ao ponto de constituir um verdadeiro estereótipo”,
em nossa opinião já bem analisado pelo psicólogo norte-americano
cego Thomas D. Cutsforth (na sua crítica ao fracasso da
Psicologia para tratar o sentido do tacto), também citado por
Vítor Reino no seu artigo em referência.
De facto, a lógica que está por detrás deste poderoso
estereótipo é, sustenta Vítor Reino, “clara e eloquente, como
não podia deixar de ser: se uma pessoa é cega, ela não pode
perceber a luz; e se as trevas ou a obscuridade são o que fica
na ausência da luz, como a experiência individual o demonstra,
consequentemente o cego vive mergulhado na mais completa
escuridão...”. Parafraseando Thomas D. Cutsforth, o cego
defronta-se com um mundo de escuridão experimentada, povoado de
todos os horrores da melancolia, medo, solidão e todos os demais
sentimentos que o indivíduo assustadiço experimenta no escuro.
Na realidade, esta ideia estereotipada transparece
abundantemente das mais diversas fontes, encontrando-se mesmo,
por um curioso fenómeno que mereceria uma detida análise, nos
escritos de pessoas cegas que nunca tiveram qualquer noção da
luz ou experiência visual (confrontem-se, por exemplo, “Lutando
contra as trevas” e outras obras de Helen Keller). Foram as
próprias produções literárias de pessoas cegas famosas que
contribuíram decisivamente para difundir noções deste tipo,
usufruindo das preferências do público livros como “Seguindo a
obscura senda” (obra de carácter autobiográfico de Clarence
Hawkes). Curiosamente, diversas variantes da expressão “mundo de
trevas” têm sido largamente adoptadas como títulos de revistas
para cegos em todo o mundo. A propósito, Thomas D. Cutsforth
refere, na sua obra anotada, que quinze das revistas publicadas
em relevo em língua inglesa nos princípios dos anos 30
empregavam designações derivadas dessa mesma ideia. Citando
apenas algumas, “Em busca da Luz”, “Raio de Sol para os Cegos”,
“Crepúsculo”. Em Portugal, acrescentamos nós, “Luz nas Trevas”
(nome dado ao Instituto para Cegos fundado no Funchal nos
princípios dos anos 30, denominação que, em 1980, também veio
a ser dada a uma “Obra para Evangelização e Ajuda Espiritual aos
Cegos”, a Associação Luz nas Trevas), etc.
Thomas D. Cutsforth assinala no seu livro a impossibilidade
de viver mergulhado num mundo de trevas e obscuridade, na medida
em que se irá naturalmente desenvolver todo um fenómeno
adaptativo que o torna neutral, como que cinzento, sem luz nem
trevas. Esta opinião, apoiada em dados de natureza psicológica e
fisiológica, leva-nos a crer que o cego não vive, de facto, numa
noite permanente, o que, aliás, a acontecer, tornaria a sua
existência insustentável sob o ponto de vista da sanidade
mental.
J. de Albuquerque e Castro (1903-1967) defende que “os
cegos não vivem às escuras”, “nem sequer são, ao contrário do
que frequentemente se afirma, aqueles seres tristes e escuros
que vivem para sempre imersos em trevas.”. “Talvez como
imagem literária isso possa servir aos gastos abundantes de
escritores e jornalistas que, amigos de efeitos fáceis, os
exploram até ao cansaço. Mas, como realidade, pouco ou nada
representa.”. “A noite em que muitos julgam que os cegos
vivem é apenas a noite da sua própria imaginação, à qual
sacrificam, sem exame, os dados da sua experiência
objectiva.”.
Não obstante, a ideia de escuridão surge de imediato
associada à cegueira, como o comprovam as respostas
proporcionadas pelo estudo de Vítor Reino. Nos dois primeiros
grupos, a respectiva frequência de aparecimento afigura-se-nos
extremamente significativa, por oposição ao grupo das pessoas
cegas em que surge representada por uma única resposta. Se se
pode tratar, em certa medida, de um simples lugar-comum sem
significado especial, tal circunstância não deixa de constituir,
ao mesmo tempo, parece-nos, um reflexo incontestável de medos
irracionais e de uma incompreensão básica da realidade da
cegueira.
2. Respostas de ressonância emocional
Ao confrontar as palavras e expressões correspondentes aos
três grupos inquiridos, Vítor Reino conclui que se torna, “desde
logo, evidente a tendência para a diminuição de respostas de
ressonância tipicamente emocional.”. Basta observar, no grupo de
professores do ensino regular, o predomínio das palavras “noite,
“abismo”, “imensidão”, “nada”, “pavor”, “catástrofe”, “choque”,
“vazio”. No grupo de professores do ensino especial, a
frequência deste tipo de palavras reduz-se nitidamente,
acentuando-se no grupo das pessoas cegas. Convém assinalar que
consideramos “escuro”, “escuridão”, “noite”, etc. como respostas
de ressonância emocional, conquanto já analisadas no ponto
anterior sob outro ponto de vista.
Dos três grupos, o que parece reagir menos emocionalmente à
palavra “cegueira” é o das pessoas cegas, sendo o de professores
do ensino regular o que emite respostas de ressonância
tipicamente emotiva, figurando o grupo dos professores do ensino
especial como ligeiramente mais emotivo do que das pessoas
cegas.
Adianta Vítor Reino que, “muito provavelmente, este tipo de
resposta é o que mais fielmente traduz as atitudes sociais ainda
hoje prevalecentes relativamente à cegueira, reflectindo todo um
complexo quadro de sentimentos fundados em temores
subconscientes e em velhos fantasmas interiorizados.”. E, como
corolário, refere que considera “positiva e salutar a livre
expressão de tais sentimentos denunciada, particularmente, pelas
respostas do primeiro grupo, circunstância talvez fundamental
para uma verdadeira tomada de consciência dos problemas
psicossociais ligados à cegueira e aos indivíduos dela
portadores.”.
3. Respostas por racionalização
Em paralelo com a tendência para a diminuição de respostas
de ressonância tipicamente emocional, verifica-se um acréscimo
de “respostas por racionalização ou análise intelectual”,
traduzindo a intervenção “de mediadores de natureza analítica e
racional.”. Como exemplo, temos as palavras “visão”, “luz”,
“cor”, “glaucoma”, “bengala”, “braille”, “apoio”, que reflectem
reacções como que filtradas por uma perspectiva essencialmente
tecnicoprofis-sional, as quais podem ser destituídas de um real
interesse psicológico, na medida em que a dimensão subjectiva e
espontânea se subordina a uma atitude de carácter meramente
racional. Quanto ao grupo das pessoas cegas, infere Vítor Reino
do seu estudo que “a tendência para adoptar respostas por
racionalização assume um aspecto diferente, aparecendo
preferencialmente palavras que exprimem estados ou condições
concretas que o sujeito sente como susceptíveis de o situar face
ao mundo que o rodeia.”. Razão por que surgem designadamente as
palavras “marginalização”, “mendicidade”, “desemprego”,
“desvantagem”, “limite”, bem como, sob uma forma mais analítica
e intelectualizada, as palavras e expressões “tacto”, “tiques”,
“dificuldade de locomoção”, entre outras. Concordantes com Vítor
Reino, diremos que: “Tanto quanto nos é possível estabelecer, o
aparecimento de respostas de natureza racionalizada não
significa, inevitavelmente, que a atitude fundada em emoções e
sentimentos irracionais tenha dado lugar a uma perspectiva
tranquila e objectiva de autêntica compreensão humana em face da
cegueira e dos indivíduos cegos. Em muitos casos, podemos apenas
estar na presença de respostas determinadas ou condicionadas por
factores de tipo defensivo que os sujeitos utilizaram como forma
de evitar ou reduzir a tensão associada à manifestação de tais
sentimentos e emoções.”.
4. Respostas tipicamente subjectivas
Esta modalidade de respostas “é a que consiste em palavras
ou expressões em que o carácter puramente subjectivo predomina
sobre qualquer outro aspecto.”, um último tipo de respostas
encarado por Vítor Reino, em que pôde detectar algumas, ainda
que numa frequência particularmete diminuta, tendo obtido, como
exemplo, os termos “mãe”, “homem”, “rua”.
E, nesta acepção, reforça Vítor Reino: “Tratando-se de uma
situação de associação livre, o aparecimento de respostas deste
tipo traduz a influência de sentimentos ou atitudes próprios da
individualidade psicológica de cada sujeito ou da sua
idiossincrasia, escapando, evidentemente, a uma análise teórica
como aquela que um estudo desta natureza torna possível.”.
A frequência “pouco significativa”, conclui este autor, com
que esta “categoria específica” de respostas nos surge “não
implica, de modo algum, que a reacção da generalidade dos
sujeitos se tenha caracterizado por uma tendência manifesta para
encobrir ou coarctar a expressão de sentimentos de ordem
pessoal. Na realidade, muitas das respostas adoptadas reflectem
incontestavelmente a subjectividade dos indivíduos inquiridos,
por vezes mesmo de uma forma extremamente autêntica e vivida.”.
De facto, o estudo que temos estado a seguir constitui uma
base e uma proposta importantes de reflexão sobre uma vasta área
de problemas em torno do significado psicológico, sociológico e
até semiológico da cegueira. As respostas obtidas (apesar de
corresponderem ao limiar da década destinada à sensibilização da
opinião pública sobre a deficiência) vêm confirmar, no
essencial, que “a palavra cegueira continua a provocar reacções
em que a componente emocional assume uma importância decisiva”,
sugerindo a dominância de sentimentos relacionados com
“fantasmas subconscientes profundamente enraizados”, o que não
nos surpreende, se considerarmos a intensa carga simbólica de
“temores” e “medos” inconscientes que caracterizam a forma pela
qual a cultura tem encarado a cegueira ao longo da história.
Vítor Reino, no seu estudo em referência, veio mais uma vez
provar que, implícita e explicitamente, “inúmeras pessoas
afirmam ainda hoje que, de todos os males que se poderão vir a
abater sobre elas, a cegueira é o que mais sinceramente temem e
lhes infunde maior pavor...”. Mais ainda do que a deterioração
das faculdades mentais, a condenação a uma imobilidade motora
permanente, “ou qualquer outra moléstia do corpo ou do
espírito”, a perspectiva de perderem a vista causa-lhes sempre
uma sensação (supomos que inigualável) de “pânico” e “horror”,
“muito embora a cegueira, comparativamente a diversas outras
perturbações, permita alimentar a esperança de uma vida
relativamente normal em muitos domínios.”.
No fundo, trata-se da já aludida complexa acção dos
“fantasmas”. Há assim que exorcizá-los “para que a ideia de
cegueira deixe de transportar consigo essa intensa carga
simbólica que lhe está associada e, consequentemente, os
próprios cegos possam esperar uma melhor compreensão e aceitação
por parte da sociedade em que vivem.”. E não temos dúvidas de
que, só depois de “exorcizada toda a ancestral corte de
fantasmas tão intimamente associada à cegueira, os cegos poderão
ser olhados com certa naturalidade, sem que complicados
processos psicológicos de natureza defensiva nos ponham em
guarda contra algo que, implicitamente, constitui uma terrível
ameaça para o nosso próprio equilíbrio mental.”. (Vítor Reino,
1992)
J. de Albuquerque e Castro sustenta que “a cegueira não é
em si mesma causa de infortúnio” e “não desfalca a
personalidade do indivíduo”, sublinhando que os normovisuais
(a sociedade em geral) devem olhar os cegos segundo os cinco
princípios básicos seguintes:
1.º São seres psiquicamente normais;
2.º São indivíduos que vivem a sua vida sem quaisquer desfalques na massa das suas necessidades humanas;
3.º São elementos sociais regularmente válidos e úteis;
4.º São estruturas morais e mentais que não romperam o equilíbrio entre o mundo subjectivo que as forma e as realidades objectivas em que se movem;
5.º O que faz a sua infelicidade não é a cegueira em si, mas o ambiente
de compaixão ou indiferença que os rodeia, a falta de comunhão afectiva
entre eles e o meio, a inactividade forçada, com o consequente nível
económico muito baixo, e, sobretudo, essa tendência colectiva, manifestada
por tanta forma, para os considerar como se foram seres de espécie à parte.
E acentua J. de Albuquerque e Castro que, “Quando tais princípios se
desencontrem da realidade, não se procure a causa na cegueira, mas no
complexo psicológico do indivíduo, independentemente dela, no meio mais ou
menos hostil ou indiferente em que ele vive, ou em insuficiências de
educação, a que o cego tanto deve a sua inferiorização como homem.”.
A própria Helen Keller(1880-1968) refere que “o maior problema que
os cegos enfrentam é a falta de visão dos seus amigos que vêem.”.
Portanto, não nos cansamos de repetir, há que conhecer de perto e
divulgar por todos os meios as reais potencialidades das pessoas cegas, ao
nível das diferentes áreas que permitam a sua plena concretização e
desenvolvimento integral. Por vezes, é preciso “ver para crer”. E,
sobretudo, “há que promover uma progressiva mas firme evolução ideológica
que torne efectivamente possível uma autêntica mudança de atitudes, no plano
social e individual.”.
Todas estas concepções (muitas delas profundamente
erróneas), umas que nasceram com o próprio homem, outras menos
ancestrais, outras ainda nossas contemporâneas, baseadas, na
generalidade, em antigos estereótipos e fantasmas interiorizados
(como observámos), têm sido agravadas ao longo da história da
humanidade por uma notória ignorância (ou cómoda negligência)
das reais potencialidades das pessoas cegas e, mais
especificamente, das consequências da cegueira ao nível da
personalidade e da inteligência. Felizmente que a história
regista alguns pontos de vista de filósofos e filantropos
eminentes (anteriores aos séculos XIX e XX), designadamente
Descartes, Diderot e Valentin Haüy(1745-1822), relativamente às
pessoas cegas, pontos de vista tanto mais estranhos quanto
lavrados pela pena de personalidades que assumiram posições
indiscutivelmente pioneiras no contexto social da sua época.
Não esqueçamos que, se é um facto que tal estado de coisas
se tende progressivamente a alterar com as profundas
modificações nas condições de vida e nos valores sociais e
humanos que caracterizam o actual momento histórico, não é menos
incontestável que as atitudes fundadas em crenças, preconceitos
e temores subconscientes são fortemente resistentes à mudança,
evoluindo a um ritmo bem mais lento do que seríamos levados a
supor. Felizmente também que o mundo vive mudanças rápidas e
radicais que influenciam a sociedade em geral e a escola em
especial, instituição esta que deverá assumir profícua
preponderância pedagógico-didáctica na acção educativa e no
ensino, com um comportamento dinâmico e esclarecido, provocando
a saudável mutação de mentalidades em relação a concepções
erróneas que escondem, amorfizam ou negligenciam potencialidades
e valores sem os quais continuaremos necessariamente a conceber
a assimilação de saberes, a apreensão e organização consciente
do mundo envolvente de forma substancialmente restritiva.
O que, no plano científico, tergiversa (ainda hoje) as
reais potencialidades das pessoas cegas são determinadas
afirmações avulsas, que se escrevem e se dizem publicamente, em
certa medida por pessoas de responsabilidade na matéria,
baseadas em convicções resultantes de suposições fundadas apenas
no que superficialmente parece e não em realidades e
experiências comprovadas. A cegueira intelectual pode constituir
uma terrível condicionante à independente afirmação, pessoal e
social, de determinados indivíduos no domínio da tiflologia.
É a cegueira intelectual (“blindness”), conforme atesta
Paul de Man(1983). Centrando-se no criticismo literário
contemporâneo, faz referência às diversas formas de linguagem
literária que conduzem a interpretações por vezes subjectivas,
uma forma de fazer crítica de obras que podem encerrar elas
próprias elementos críticos, aludindo a modelos de crítica na
sua legitimidade, nos seus resultados e na sua aceitação. O
autor em referência foca o desconhecimento literário em oposição
ao discernimento, concluindo que, por vezes, estes se tocam,
realçando:
“Critics moments of greatest blindness with regard to their own critical
assumptions are also the moments at which they achieve their greatest
insight”.
E coloca a questão: “Como ler textos literários e como
compreendê-los?” Todos sabemos que o homem, como leitor, é um
crítico permanente e, como tal, a sua leitura conduz a uma
interpretação pessoal e unilateral, o que nos leva a crer que
cada interpretação sugere uma crítica diferente. “Criticism is a
metaphor for the act of reading, and this act is itself
inexhaustible” (adianta Paul de Man). Tal como é inesgotável a
leitura, também as críticas o são.
Isto porque, segundo Derrida, algumas partes dos escritos de Rousseau
demonstram falta de senso intelectual (blindness). Mas segundo Paul de Man,
Derrida repreende Rousseau quando, ele próprio, procede legitimamente da
mesma forma. E sustenta: “Rousseau's use of traditional vocabulary is
exactly similar, in its strategy and its implications, to the use Derrida
consciously makes of the traditional vocabulary of western philosophy. What
happens in Rousseau is exactly what happens in Derrida”.
Paul de Man conclui que qualquer interpretação implica a
possibilidade de erro, afirmando que um certo grau de
insensibilidade intelectual faz parte de toda a literatura. A
“blindness” (cegueira intelectual ou ignorância) invade-nos
vezes sem conta aos mais diversos níveis do conhecimento,
conferindo-nos um estado de inquestionável cegueira intelectual.
Como sabemos, a nossa racionalidade (a faculdade que
distingue o ser humano dos outros seres vivos) assenta na
capacidade que possuímos para intelectualizar os dados captados
pelo cérebro através dos sentidos. Nesta acepção, a função que
incumbe aos sentidos constitui condição sine qua non para o
desenvolvimento das nossas potencialidades no relacionamento com o meio físico e social e para a afirmação das nossas capacidades
superiores.
Contudo, os sentidos (por uma questão genético-dimensional
e, por vezes, devido a uma questão cultural e de comodidade) não
concorrem todos para este fim na mesma medida, fundamentalmente
porque uns captam mais quantidade e variedade de informação do
que outros.
Segundo alguns psicólogos especialistas nesta matéria,
chega mais informação ao cérebro através do sentido da vista
(cerca de 80%) do que pelo conjunto dos restantes sentidos,
limitando-se outros a afirmar que passa através do sentido da
vista mais informação do que por todos os outros. Mas segundo David Marr,
a visão reflecte a absorção de tudo.
Na realidade, parece não restarem dúvidas a ninguém de que,
dos clássicos cinco sentidos, o da vista é o que desempenha um
papel mais amplo e absorvente no desenvolvimento equilibrado do indivíduo, permitindo-lhe socializar-se através da imitação,
permitindo-lhe dominar, razão por que a vida se apresenta
organizada por quem vê para os que vêem.
Contudo, nos nossos dias, devido ao comportamento de uma já
razoável maioria dos que vêem e dos que não vêem, começaram a
ser pensados determinados aspectos da sociedade (com tendência
para uma certa globalização) para os que não vêem e para os que
apresentam dificuldades de mobilidade e da mais diversa ordem.
“A falta ou diminuição do sentido da vista acarreta um enorme deficit de
informação, o que gera um grande número de situações de deficiência, desde
as que apresentam apenas efeitos sociais de deficiência, desde as que
apresentam apenas efeitos sociais ligeiros até às que podem sub-humanizar o
indivíduo se não se adoptarem procedimentos adequados.”.
“A visão -na concepção de Leonor Moniz Pereira -aparece
intimamente ligada à imagem do corpo. Desempenha um papel de
estimulação dos outros sentidos, ajudando ainda a organização
dos acontecimentos auditivos e tácteis que acontecem no
espaço.”. Nós não temos dúvidas em afirmar que a ausência do sistema
sensorial visual nos estimulou (e continua a estimular) o desenvolvimento do
conjunto das restantes modalidades sensoriais, designadamente as do tacto e
da audição, possibilitando-nos ter (e cultivar) uma ampla perceptibilidade
dos sentidos e uma percepção espacial com um grau de precisão bastante
satisfatório. Sustenta Leonor Moniz Pereira que “a visão apresenta ainda
como característica o facto de se sobrepor aos outros tipos de informação
sensorial, optando o indivíduo pela visão quando esta entra em conflito com
as outras informações sensoriais. Apesar disso, os outros tipos de
informação sensorial não podem ser desprezados, necessitando o indivíduo
sempre deles para uma movimentação eficiente no espaço.”.
“Nunca é demais, no entanto, referir -defende a autora que a visão, a
audição, o tacto e a propriocepção não trabalham isoladamente, como
modalidades diferenciadas e distintas, mas como um sistema unitário, podendo
por isso existir tarefas, tais como certas apreciações espaciais, que se
podem basear em diferentes tipos de informação sensorial.”.
Embora tratemos da percepção dos sentidos das pessoas cegas
no segundo capítulo, podemos desde já, adiantar que a maioria
dos investigadores em matéria referente à informação visual são
da opinião de que a informação visual desempenha um papel
preponderante em relação aos outros tipos de informação
sensorial na deslocação no espaço. Leonor Moniz Pereira realça esta questão no seu livro em referência, concluindo que a
informação visual nos dá com mais facilidade e rapidez a
informação de:
a) “onde nos encontramos;
b) orientação em relação à gravidade, pela apreciação da
verticalidade; de localização da horizontal, medição das
distâncias e das mudanças de posição relativa, fornecendo
pontos de referência;
c) manutenção do equilíbrio do corpo, desempenhando neste caso a visão
periférica o papel fundamental.”.
Mas a interpretação desta matéria adoptada pela Associação
dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), demonstrando a
vertente tiflológica da sua vocação, encontra-se na sua
Declaração de Princípios, aprovada pela sua Assembleia de
Representantes, em reunião de Novembro de 1992 (citada por F. P.
Oliva no seu artigo «A ACAPO e a Acção Tiflológica», explicitada
nos seguintes termos:
“A visão, como sentido unificador de toda a actividade
sensorial, contribui predominantemente para a informação e
formação dos indivíduos, o que ocasiona sérias desvantagens para
os deficientes visuais. Contudo, o grau desta desvantagem pode
ser contínuo e consideravelmente atenuado se, na educação, na
reabilitação e na formação profissional, forem aplicadas
técnicas adequadas, se forem convenientemente explorados e
implementados os recursos tecnológicos apropriados e se forem
adoptadas medidas sociais justas para compensação da
deficiência”.
De facto, foi um conjunto de preocupações deste jaez que,
numa perspectiva sócio-cultural do nosso século XX, constituiu o
gérmen da tiflologia, conceito que temos vindo a utilizar nesta
investigação e cuja terminologia carece, a nosso ver, de uma
explicitação mais sistemática.
Assim, de acordo com a perspectiva histórica geralmente
adoptada, foi em França, no último quartel do século XVIII, que
a acção filantrópica de Valentin Haüy, veementemente
desencadeada em prol das pessoas cegas (como observaremos no
terceiro capítulo), fez despontar a tiflologia.
Contudo, o termo tiflologia, segundo o que até agora
conseguimos apurar, só fez a sua aparição no início do século
XX, não sendo corrente o seu uso ainda hoje. Enquanto o seu
curso pode ser frequentemente assinalado nos países do Sul da
Europa e também, embora já com menor frequência, nalguns países
da América Latina, o mesmo já não se verifica fora desta área
geográfica. No entanto, foi no supra-aludido artigo de F. P.
Oliva e, por sua indicação, que, numa revista inglesa, «New
Beacon» (Junho de 1988), publicação em Braille, encontrámos uma
inesperada e curiosa aplicação da raiz do termo tiflologia como
elemento de vocábulos formados para significar OM (Orientação e
Mobilidade), como técnica, e a sua prática, como vivência.
Trata-se dos termos «typhlonautics» (tiflonáutica) e
«typhlonaut» (tiflonauta). Estes termos foram empregados por
Walter Thornton, um piloto da RAF que cegou na Segunda Guerra
Mundial, introdutor da técnica da bengala longa em Inglaterra,
por cuja adopção se bateu com grande determinação devido às
enormes vantagens que lhe reconheceu. Também participou em
testes com algumas ajudas electrónicas para a mobilidade.(F. P.
Oliva, 1995).
Montoro Martínez(1995), refere-nos a utilização do termo tiflologia por Carlos Lickefett English em Espanha, na
Universidade de Madrid, em 1912, mas anota no seu livro que, não
obstante a diligência que ele próprio efectuou, o termo ainda
hoje não figura no Dicionário da Academia Espanhola. “Alguns
anos antes, em França, de acordo com uma informação que nos foi
prestada por Louis Ciccone, J. Dussouchet, também professor
universitário e vicepresi-dente da primeira direcção da
Associação «Valentin Haüy», tinha empregado pela primeira vez o
termo typhlophile (tiflófilo) para significar «amigo dos cegos»,
que mais tarde passou a expressar a atitude de ajuda, apoio,
colaboração, que o lema daquela Associação «pour le bien des
aveugles» procurava suscitar nas autoridades e nos cidadãos.” (F. P. Oliva, 1995).
Em Portugal, com a mesma finalidade e já na segunda metade
do século XX, o fecho do expediente saído da então Associação de
Beneficência «Luís Braille» (hoje integrada na ACAPO) ainda
compreendia votos de «saúde e dedicação tiflófila».
Como se pode comprovar pela consulta de alguns dicionários,
a formação do vocábulo tiflologia corresponde à aglutinação dos
vocábulos gregos typhlos (cego) e logos (razão, conhecimento). O
conceito, no caso dos dicionários que o registam, apresenta-se,
naturalmente, com um conteúdo em evolução, como pode ver-se
pelos breves apontamentos que se seguem:
Partindo de uma acepção estritamente confinada à instrução,
como acontece, por exemplo, no «Pequeno Dicionário Brasileiro da
Língua Portuguesa», de H. de Lima e G. Barroso, que o descreve
como “tratado sobre a instrução dos cegos”, regista este, mais
tarde, um aditamento através do qual passa a incorporar também a
formação profissional, como nos mais recentes dicionários
académicos da Porto Editora, e aparece-nos hoje muito mais
abrangente, envolvendo inúmeras vertentes, como pode
verificar-se em «Electronic Dictionary and Thesaurus», de
Collins, que nos dá a seguinte definição: “typhlology -the
branch of science concerned with blindness and the care of the
blind.”.
Mas, retomando a questão do ver e do não ver, diremos que
coexistem (confundindo-se) os conceitos de «ver» e de
«conhecer», tornando-se o «ver» uma operação que ultrapassa em
muito as faculdades perceptivas do sentido da vista (o olho),
para se transformar no próprio modelo do conhecimento.
Citando António Guerreiro, “Ver é conhecer, analisar, criticar, pôr à
distância, exercer todas as mais nobres faculdades do intelecto, tal como o
entendimento. Assim, a visão sempre pôde ser vista como o mais
intelectualizado de todos os sentidos.”.
Mas o Antigo e o Novo Testamento estão cheios de personagens cegas.
Sustenta António Guerreiro, no seu artigo em referência, que “no mundo em
que elas habitam, há uma economia e uma moral estritas da visão que fazem
desta um bem que não pode ser gasto de maneira perdulária e sem regras. Ver,
por si só, contém em si uma lógica do desregramento e do excesso, em suma:
do pecado. Jean Starobinski recorda o modo como os Padres da Igreja sempre
colocaram a visão sob suspeita, e cita uma passagem de Bossuet onde se
adverte para os perigos da concupiscência do olhar: “N'attachez point vos
yeux sur un objet qui leur plait, et songez que David périt par un coup
d'oeil.”.
Nesta acepção, adianta ainda o supra-referido autor que “os
grandes mitos do ver como perigo mortal não são judeus nem
cristãos. São mitos da literatura grega e latina e os seus
heróis constituem arquétipos trágicos que a nossa época não se
cansou de actualizar.”. Esses heróis trágicos chamam-se Orfeu. E
António Guerreiro assevera que, designadamente, Narciso, Édipo,
“todos eles quiseram alargar o alcance do seu olhar,
estendendo-o a territórios proibidos (como Orfeu, que perde
Eurídice quando cede à tentação de olhar para ela) ou
deixando-se perder pelo fascínio do ver reflexo (Narciso, que
se apaixona pela sua própria imagem e transpõe o limite da
superfície das águas).”. Num caso como noutro, ver é um destino trágico,
“ligado à ideia de posse e de conquista, para além do limite razoável. Que o
ver constitui um excesso de que todos os outros sentidos foram absolvidos,
mostra-o o primado que adquiriu na nossa cultura e o triunfo de um número
infinito de metáforas formadas a partir do campo semântico da visão.”.
É clara a estreita relação que, desde os Gregos, se estabelece entre o
«ver» e o «saber». O «espanto», por onde começa o pensamento grego, “não é
mais do que um olhar que se lança em resposta ao ente enquanto tal.”.
Nesta linha de pensamento, entendemos que o “excesso do
visível é aquilo de que é feita a cultura ocidental, tendendo o
próprio progresso a confundir-se com a invenção e difusão de
novos modelos de percepção visual.
Até chegarmos ao estádio supremo que hoje nos induz a falar
de “civilização da imagem”, “sociedade do espectáculo”,
“sociedade dos simulacros”, por exemplo, talvez a “sociedade dos
simulacros” seja aquela que melhor resume os paradoxos da visão,
“quando esta já só parece alimentar-se do desejo por si própria,
por uma visão intransitiva, por uma visão onde já não há nada
para ver”.
Por isso, diz António Guerreiro, “cria um novo regime de
objectos consentâneo com essa vontade hipertélica de ir para
além dos seus próprios fins. A esta ideia moderna de simulacro de
cópia sem original -, podemos associar o facto de ter perdido
toda a consistência da ideia de uma presença imediata ao olhar
na reflexão, sobre a qual a metafísica fundava a sua certeza
originária, tornando-se a consciência não o lugar de uma
presença mas de um adiamento, de uma ausência, de uma
lacuna.”.
“Ver” é conquistar, “alargar o espaço secularizado.”. As
invenções de Brunelleschi, no começo do século XV, no campo da
perspectiva, trazem uma forma de representar o espaço,
produzindo “novos mecanismos da verdade do humano.”. Contudo,
não esqueçamos que, no “quatrocentos”, a perspectiva era ainda
inseparável da interpretação moral e religiosa, sendo percebida
como “o símbolo analógico de uma convicção moral”, no dizer de
Panofsky.
Descartes descreve uma experiência, no sentido de provar
que, na realidade, todo o acto de ver é um juízo intelectual do
sujeito pensante. Ou seja, o Eu acede à consciência de si
através da visão, reflectindo-se a partir dos sinais exteriores
representados no fundo do olho. Mas este Eu cartesiano não se
limita a ver-se: vê-se a ver-se e assim sucessivamente.
Descartes (o primeiro homem moderno no dizer de Ortega y
Gasset) sonhava com a ideia de fabricar lentes e devolver a
vista às pessoas cegas. E, para o filósofo, o erro reside sempre
numa crença ou numa opinião, enquanto aquilo que está aquém ou
para além do ver.
Mas o Iluminismo concedeu à visão, bem como a tudo aquilo
que ela implica, o lugar mais proeminente (de que ainda somos
todos herdeiros), fazendo da visão o seu ídolo supremo, não só
por a considerar o mais perfeito e agradável de todos os
sentidos, mas principalmente por entenderem os pensadores do
século da razão, como o próprio Diderot, que só ela nos permite
aceder às ideias, apresentando-se o conceito de “belo” para quem
vê diferente daquele que podem as pessoas cegas ter ou cultivar.
Para os homens da razão, “ver” era ganhar distância para
proceder a um acto de crítica e entendimento, de penetração em
todas as zonas de sombra que supostamente regridem à medida que o conhecimento progride.
A letra do Hino da Associação Promotora do Ensino dos
Cegos, fundada no ano de 1888 em Lisboa, também se
consubstanciou no contributo “iluminado” e tiflológico do
pensamento do “Século das Luzes”.
Voltaire, levando às últimas consequências este esquema do
ver crítico do Século das Luzes, sustenta que é necessário
abandonar a esfera dos interesses e dos preconceitos do homem e
vê-lo como se o observássemos de Marte ou de Júpiter.
Mas no século XIX, o panoptismo, o gosto pelos panoramas e
pelo ver tudo e de todas as maneiras, defende António Guerreiro
que “não destitui a visão do seu lugar central. Só que agora
essa centralidade incide noutro tipo de faculdades, por exemplo
a imaginação e tudo o que tem a ver com a satisfação de pulsões
lúdicas. Será fácil perceber que começa aqui a dissociação desse
par composto pela visão e pela verdade, a que a metafísica da
luz, desde Platão e Aristóteles, emprestou todo o seu manancial
de metaforicidade.”.
É que, efectivamente, também “vemos” com a memória e com a
imaginação, consubstanciadas na informação e no labor interactivo do conjunto dos restantes sentidos, para além da
vista. Em muitas circunstâncias, não é preciso ver para «ver».
Curiosamente, Jerónimo Nogueira, que é cego total, diz, na
poética dos seus escritos, o seu ser cego. “Da realidade do não-ver à prosperidade do a-ver, comunga-se a tarefa do não-visto.”.
Ao longo do seu livro, deixa facilmente transparecer a
identidade de um viver teimosamente hostil, mas revelador da
largueza do conceito de visão. Em nossa opinião, de facto, a
cegueira física pode não implicar falta de visão.
-
-
“Ceguinho
-
-
-
Desconheces os dedos que lêem,
Pensas que são falidos
Mas eles não vão perdidos:
Encontram e também vêem!
-
-
Lembram os olhos a rodos
Que buscam o essencial:
Trilhos do espiritual
Que a terra dá a todos!
-
-
Cataloga-se a diferença
Como sendo uma crença
De seres tão coitadinhos.
-
-
É a ignorância humana
Na revelação profana
De outros e novos caminhos!^
Escreveu Emília Montalvo (cega, professora de braille e
poetisa) que “Ser cega é ter na alma a claridade para fazer da
própria adversidade as asas que bem alto a hão-de erguer.”.
No fundo, confrontamo-nos, nesta perspectiva (o que muito
nos gratifica), com uma nova forma de “ver”, em que assumem
fundamental preponderância a inteligência, a cultura, a vontade, o interesse e a sensibilidade para a descoberta e
desenvolvimento de outras potencialidades humanas.
-
“A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.”.
“Basta existir para se ser completo”... Basta, pelo menos,
pensar, libertar o pensar e interagir realmente. É que a
realidade pode não ser o sobejo do sonho, mas pode ser o
prelúdio do sonhar a descoberta de novas evidências e
realidades, é o lugar onde todo o sentir e o fazer se devem
partilhar e onde os sonhos vão surgindo e se vão realizando.
“Em vez de serem os sonhos realizações de desejos não
realizados na vida diurna, são os actos da vida diurna que são
realizações de sonhos não sonhados na vida nocturna.”.
No mundo dos sonhos e das palavras com que os definimos,
deve imperar sempre persistência, perspicácia, saber inteligente, comportamentos volitivos espevitadores de ideias
letárgicas e de desmistificação de erroneidades, como
esclarecimento e redimensionamento de convicções,
consubstanciados numa inexpugnável e saudável imaginação.
Citado por J. A. Bragança de Miranda, “não dizia o poeta
Wallace Stevens que «no mundo das palavras, a imaginação é uma
das forças da natureza»”? (Stevens, 1957). E J. A. Bragança de
Miranda acrescenta: “É este recurso à «imaginação» enquanto
faculdade de re-jogar o «jogo dos possíveis» que permite a
flexibilização de todo o instituído, tudo aquilo que está
cristalizado, sobrevivendo numa espécie de «estado fóssil»,
quais resíduos sedimentados no curso do tempo.”.
I.4 - Por um Alargamento da Comunicação e da Cultura
Neste final do século XX (não obstante uma certa
hostilidade e imprevisibilidade da sociedade), muito está
conseguido a nível mundial, no plano da acessibilidade das
pessoas cegas à informação e à cultura, mediante o recurso ao
sistema de escrita e de leitura Braille (em suporte permanente
e/ou evolutivo) e aos suportes em formato áudio (analógico e/ou
digital, informação estruturada), o que se traduz num natural
processo de autonomia, integração e interacção social destas
pessoas. Portugal encontra-se ainda mal apetrechado nestes
domínios relativamente a França, Estados Unidos, Inglaterra e
Espanha, entre outros países. Contudo, temos vindo a realizar
trabalho adequado à nossa realidade e a ser considerados, no
âmbito da integração sócio-intelectual e pedagógico-didáctico
das pessoas cegas, inéditos e com algumas repercussões a nível
internacional.
Como resultado deste empenhamento e determinação dos
serviços de produção e de utilização (pelo menos os
portugueses), já temos cerca de trezentas pessoas cegas com
formação académica superior nos mais diversos domínios:
licenciados, mestres e até doutorados, inclusivamente, em
Matemática e em Biologia.
Curiosamente, Lisboa sorri rejubilante e compraz-se feliz
por haver alargado a acessibilidade do seu inexaurível universo
histórico-cultural a umas largas dezenas de milhar de cidadãos
ávidos de informação e de esclarecimento, por iniciativa e sob a
égide da Câmara Municipal de Lisboa, através do seu Gabinete de
Referência Cultural (Pólo Interactivo de Recursos Especiais) e de “Dinamização Cultural: Revista Áudio da Câmara Municipal de
Lisboa”, cujo conteúdo intelectual e tecnológico aprofundaremos
no quarto capítulo.
Os consulentes destes equipamentos municipais são,
fundamentalmente, as pessoas deficientes visuais, as que, por
qualquer impedimento funcional temporário, não podem utilizar os
sentidos da vista ou do tacto para ler, e as que não lêem, entre
as quais figuram os analfabetos funcionais, para além dos
cidadãos com dificuldades ao nível da mobilidade, incluindo os
idosos. Sendo um gabinete de investigação vocacionado para tais
problemáticas, está aberto também à generalidade das pessoas que
desejem estudar e/ou aprofundar domínios do âmbito da
deficiência em geral e, mesmo, da gerontologia, em especial numa
perspectiva antropocientífica.
Estamos cientes de que comunicar e aceder à informação e à
cultura é estarmos permanentemente actualizados e evolutivos,
visto que, vitalmente, é no universo complexo, multifacetado e pluridimensional da comunicação que tudo se gera e se
desenvolve. Pensamos que as pessoas cegas não são em nada
diferentes das pessoas normovisuais, no que concerne à propensão
para este ou para aquele domínio do conhecimento. Todos temos
necessidades e preferências culturais mais ou menos definidas,
todos precisamos de informação e de cultura para que legitimemos o nosso sentido de vida na nossa comunidade de inserção ou de
reinserção.
Num artigo intitulado «A Revolução Cultural Feminina», a
sua autora (citada por Isidro E. Rodrigues, em 1987, e por
Augusto Deodato Guerreiro, em 1989), Han Suyin, cidadã inglesa
que nasceu na China, define a cultura como sendo “um conjunto de
valores materiais e espirituais, de realizações e crenças, de
conhecimentos e capacidades suficientemente estável para que
possa originar uma identidade distinta”, afirmando ainda que
“este complexo de práticas mentais e sociais de um grupo ou
grupos humanos é transmitido de geração para geração como seu
próprio património cultural.”.
É que, conforme M. J. Herskovits atesta, o Homem vive em
muitas dimensões. Move-se no espaço, onde o meio natural exerce
influência constante sobre ele. Existe no tempo, que lhe dá um
passadohistórico e o sentimento de futuro. Realiza as suas
actividades numa sociedade de que faz parte e identifica-se com
os outros membros do seu grupo para cooperar com eles no seu
sustento e na sua continuidade.
Porém, François Jacob alerta-nos para o facto de que “uma
época ou uma cultura caracteriza-se menos pela vastidão dos
conhecimentos que adquire do que pela natureza das questões por
ela postas.”. Ou seja: uma época ou uma cultura caracteriza-se mais pela natureza das questões que coloca do que pela
extensão do seu conhecimento.
Contudo parece não haver dúvidas de que podemos apontar a
cultura como perspectiva de futuro e como factor essencial de
diferenciação e identificação do homem (com ou sem determinadas
capacidades sensoriais) na sociedade e no mundo. Todo o ser
humano se realiza numa dimensão histórica, arcando com o peso de
uma tradição social portadora de regras de conduta que lhe
impõem logo após o nascimento. Mas pode repensá-las e
modificá-las, sendo desta forma que a resposta natural, directa
e pulsional vai sendo substituída por outra menos natural, de
acordo com normas ditadas pelo contexto social em que se
desenvolve o indivíduo.
De facto, é uma redundância referir que o ser humano vive
em sociedade, sendo no meio social que luta pela sua existência,
mas já não será redundante afirmar que essa prerrogativa natural
implica um sistema complexo de relações com os seus semelhantes,
regulados por normas e regras a que cada um tem de se submeter.
As interacções humanas, as suas condições e consequências,
são geradoras de conduta humana, da formação da personalidade
individual, pelo que se assume numa forma embrionária (de
aprendizagem) e num ajuste individual (comportamento do
indivíduo ao longo da sua existência).
A história da vida (seja numa acepção empírica ou crítica)
é fundamental para esta formação, tomando em linha de conta a
família, o círculo de amigos, os próprios massmedia, mas
essencialmente o professor, a escola, onde se despende grande
parte do tempo vivido na idade de formação, onde confluem os
processos de socialização e onde os espaços de convívio requerem
uma identidade cultural própria da comunidade envolvente e de
vivência do país.
Efectivamente, numa dimensão antropológica (parafraseando
Herskovits no seu livro em referência), o conceito de cultura surge como fundamento de toda a intervenção educativa,
entendendo-se como o processo de transformação operado pela
sociedade na conduta de cada ser humano, para dotá-lo de maiores
possibilidades no respeitante à consecução de um nível maior de
adaptação e aproveitamento do meio.
A cultura é, portanto, o que o indivíduo adquire ao longo
do tempo (desde o berço), em contacto com o meio social, e que
transmite às gerações sucessivas, constituindo um elemento
precioso e ampliando os recursos com que a natureza o dotou,
constituindo-se no ser humano com tudo o que é adquirido, tudo o
que é regulado por normas, específicas e particulares.
Nesta perspectiva (e conforme escreve Isidro E. Rodrigues,
em 1987), é cultura de uma sociedade “o seu sistema de atitudes
e modo de agir, os seus costumes e instituições, os valores
espirituais, morais e estéticos pelos quais se rege.”. Ainda
que num sentido menos lato, também é cultura “determinado
desenvolvimento do estado intelectual, artístico e científico,
em que se revela, com uma base e orientação humanas, um esforço
colectivo pela libertação do espírito.”. É ainda a cultura
entendida por muitos como sendo “o desenvolvimento do intelecto,
a utensilagem mental, o saber acumulado e a permanente
actualização do mesmo, o software que permite ao Homem que o
guarda o maravilhoso prodígio de raciocinar com clareza, de
conceber e executar planos, e sem o qual jamais seria possível
actuar inteligentemente, adoptando comportamentos adequados às
diversas situações que pela vida fora se lhe deparam.”.
Neste contexto, integram necessariamente o nosso pensamento
diversos outros autores, sobretudo Eliot(1996) e Bragança de
Miranda(1998), atendendo a que, inquestionavelmente, esta
«jóia inestimável» (a cultura) assegura a emancipação aos que a
procuram, conduzindo-os a um aperfeiçoamento cada vez maior,
facto que lhes propicia, sustenta ainda Isidro E. Rodrigues,
“serem olhados e escutados pelos seus concidadãos com
consideração e respeito, e, muitas vezes, mesmo com
admiração.”.
A este propósito, Albuquerque e Castro escreveu:
“Se a cultura valoriza o homem, na medida em que lhe
permite projectar-se em todas as dimensões no universo que o
rodeia e tomar consciência mais viva do universo que traz
consigo, ela assume para o não vidente importância difícil de
apreciar, dado que daí depende quase toda a sua capacidade para
ascender do meramente vegetativo ao realmente vivido.”. “Não
tendo possibilidade de se instruir através da vista, por
contacto com o meio objectivo, só por intermédio de livros e
outros instrumentos de cultura ele pode em geral tomar
conhecimento de seres e coisas, de factos e fenómenos, que são
para o comum da gente insignificante parcela do seu saber total,
oferecida desde muito cedo pela experiência de cada dia.”.
A cultura, em todas as circunstâncias e processos
comunicacionais, ajuda-nos a crescer e industria-nos na
assimilação dos conceitos, promove a incursão e sedimentação,
nas nossas mentes, de valores intelectuais, comportamentos e
regras de conduta cívica, social, moral, disciplinadoras da
nossa interdependência e inter-relação na sociedade, da
afirmação da nossa personalidade com a necessária capacidade de
tolerância e de determinação no estabelecimento de equilíbrios
sócio-intelectuais e culturais, na sociedade de todos nós. A
cultura deverá mobilizar-nos no sentido de nos mantermos
vigilantes, coerentes, pacíficos e pacifistas, úteis e profícuos
à sociedade humana e a nós próprios. É claro que, por vezes, a
ausência do sentido da vista impõe às pessoas cegas profundas
limitações no acesso à informação e à cultura, distanciando-as das pessoas normovisuais, em certas circunstâncias ou domínios,
de forma abismal. A sensação (quando acontece por falta de meios
e de interfaces adequados) desta premente e confrangedora
realidade pode ser quase asfixiante, mas absolutamente
insuficiente e impotente para compeli-las (como se se
encontrassem sem alternativas) a cruzar os braços e a vegetar na
exclusão social.
Estamos cientes de que é impossível acessibilizar à
generalidade das pessoas cegas tudo o que se publica a nível
mundial, da mesma forma que tal não é possível fazê-lo para as
pessoas normovisuais, atendendo a obstáculos designadamente de
natureza logográfica, idiomático-linguística, preferencial,
técnico-funcional, ergonómica. Mas também estamos cientes de que
tem sido sobretudo por negligência e ausência de generosidade
sócio-política (falta de vontade política em Portugal) que
escasseia ainda a informação e a cultura, a que as pessoas cegas
possam aceder com independência.
A nossa proposta de solução alternativa imediata para estas
pessoas é serem capazes de orientar os seus interesses de forma
sistematizada para uma estruturada e inteligente gestão dos
recursos mediáticos e comunicacionais existentes que lhes
permitem aceder ao infinito mundo da informação, parte do qual
disponível em variados suportes, que podem contribuir com
bastante eficácia para a ampliação e rendibilização das suas
também inesgotáveis potencialidades. Saberem Braille, serem
capazes de ler fluentemente para sentir gosto pela leitura,
complementarem a informação disponível em Braille com o já vasto
espólio existente em formato áudio e em suporte electrónico (que
no seu conjunto em Portugal já ascende a cerca de doze mil
títulos), conseguirem manter-se atentos às programações da rádio
e da televisão em toda a sua amplitude, à informação multimedia
mediante recursos especiais, aceder às tão difundidas “autoestradas
da informação” -a consequência da maravilhosa “aldeia
global” de MacLuhan, que prodigiosamente e tão depressa evoluiu
para o fenómeno da rede de redes Internet que liga
simultaneamente redes de universidades, de governos, de empresas
e já perto de 50 milhões de utilizadores individuais em todo o
mundo.
Todos estes meios são veículos comunicacionais alternativos
que, no seu conjunto e de forma articulada, concorrem para um
maior e melhor apetrechamento intelectual e sócio-educativo das
pessoas cegas, facultando-lhes novos horizontes culturais e
facilitando-lhes a integração ou, por vezes, a reinserção social
aos mais diversos níveis. As pessoas cegas também já podem
conciliar a utilização do suporte permanente, de ecrã de papel
branco, com o rígido ecrã, de vidro audiovisual ou informático,
ou seja o inconfundível e sempre nobre lugar dos signos onde se
elucida o sentido do mundo, o livro, com o suporte evolutivo, de
que o CD-ROM já oferece um modelo.
Na realidade e inteligibilizando um pouco estes postulados,
a cultura é um complexo amplamente aglutinador e evolutivo de
questões experienciais e intelectuais que constitui o móbil
sócio-educativo e cultural detonador de barreiras psico-sóciopedagógicas
e culturais (mesmo ao nível da auto-interiorização) e propulsor do progresso aos mais diversos níveis. É a cultura
que conduz o ser humano à sua realização plena como pessoa,
levando-o, incentivadamente, a contribuir para o bem da
comunidade e de toda a sociedade humana, sendo pela cultura, no
seu sentido mais amplo, que a família, a escola, a comunidade e
toda a sociedade humana encontram a sua significação e legitimam o seu sentido.
Mas as pessoas cegas não poderão menosprezar um outro
aspecto, que é fundamental para que lhes reconheçam, sem equivocidades, as suas potencialidades e capacidades. E é pela
sua militância sócio-intelectual, numa postura cultural sólida
para esclarecer as pessoas alegadamente escorreitas, é pela sua
utensilagem mental que conseguirão pertencer, de pleno direito e
naturalmente, a essa entidade abstracta que é a sociedade, como
legítimas (e não bastardas) células activas, laboriosas,
inteligentes e frutíferas, indissociadas dessa sociedade
heterogénea, dinâmica e evolutiva, mutável mas adaptável à
medida do homem, à sociedade que todos nós somos (Augusto
Deodato Guerreiro, 1996).
Ao longo da sua história, o homem tem vindo a ampliar e a
aperfeiçoar os seus processos de comunicação e de informação,
criando, para a efectiva materialização destes processos, os
mais diversos e sofisticados dispositivos.
Não podemos viver realmente sem a informação e sem a
comunicação, sob pena de não passarmos de um estado amórfico e
de sucumbirmos intelectualmente, sendo o século XX o século da
informação, tal como o século XIX foi o século da produção
industrial. Eis o móbil que nos impulsionou para a organização
de um evento técnico-científico e cultural (uma Conferência
Nacional subordinada ao tema «O Som e a Informação»), em
Dezembro de 1996, no âmbito da Câmara Municipal de Lisboa,
congregando esforços pessoais e institucionais para reflectirmos
em conjunto questões que se prendem com a informação,
comunicando.
Foi, pois, para corporizarmos um almejado sonho,
enformarmos um contexto informativo e um elemento facilitador da
comunicabilidade e da sociabilidade das pessoas cegas que
resolvemos organizar o supra-referido evento técnico-científico
e cultural, numa dimensão nacional, com o objectivo de, em
conjunto e traduzindo uma intercompreensão nesta matéria,
assentarmos ideias e critérios normativos para a produção de
informação em áudio no nosso país e no que respeita à
significação do som, como veículo de informação e fenómeno
integrante e indissociável da comunicabilidade e sociabilidade
imprescindíveis às pessoas portadoras de deficiência visual,
consolidando a sua autonomia, a sua independência sócio-intelectual e sócio-profissional, a sua percepção e intelecção
de circunstâncias e da diversidade de dados à sua volta, a sua
interacção na comunidade envolvente, na sociedade, no mundo, com
todas as vantagens que a informática e as novas tecnologias dela
decorrentes permitem a estas pessoas: viverem (ao longo da
história da tiflologia) uma segunda e frutuosa revolução, a
primeira foi no século passado -a acessibilidade àquele
instrumento intelectossocial imprescindível a toda a humanidade
-a escrita.
Naquela Conferência sobre o som-, todos conhecemos os sons
e os timbres das nossas vozes e o nosso contentamento na análise
do som enquanto elemento indispensável a todo o ser humano, em
especial às pessoas cegas-, reflectimos sobre a normalização de
critérios de produção de som, onde também a magia e o
maravilhoso estão sempre presentes, como inolvidáveis melodias e
com soluções resultantes da orquestração de contributos
emergentes do fervilhar de vontades para enquadrar e disciplinar
a questão da produção áudio em Portugal, recorrendo aos mágicos
recursos das novas tecnologias e às adequadas técnicas de
leitura e de narração.
Procurámos redescobrir esta espécie de partitura, quantas
vezes eventualmente perdida na nossa inteligibilidade, nos baús
de suposições e de convenções, nos sótãos poeirentos da rotina, da negligência e da comodidade. Todos nos esforçámos para que
esta iniciativa (que no fundo é de todos nós, serviços de
produção e de utilização, investigadores, técnicos e
utilizadores da informação áudio) viesse a constituir um marco
importante e significativo para a sedimentação de conhecimentos
e para a exequibilidade de projectos concretos e necessários,
neste domínio, à ampliação e valorização da utensilagem mental
das pessoas cegas de Portugal, desiderato que foi atingido,
conforme o que aprofundaremos no quarto capítulo.
Em estilo de conclusão deste capítulo (e antes de nos
debruçarmos aprofundadamente, no segundo capítulo, sobre a
atenção e a sensibilidade aumentadas e perceptibilidade dos
sistemas sensoriais alternativos ao da vista), concordantes com
o sustentado por excelentes professores e investigadores que
tivemos a felicidade de conhecer e que nos enriqueceram o saber
e o currículo académico (dois dos quais nos deram a gratificante
alegria de participar nesta Conferência, José A. Bragança de
Miranda e Maria Augusta Babo), a comunicação é o mais recente
instrumento mobilizador, disponível para provocar efeitos de
consenso universalmente aceite nos mais diferentes domínios da
experiência moderna.
Efectivamente, no nosso tempo, a comunicação serve para
legitimar discursos, comportamentos e acções, tal como a
religião nas sociedades tradicionais, o progresso nas sociedades
modernas ou a produção na sociedade industrial. A comunicação,
de contornos vagos e indefinidos, presta-se aos mais diversos
usos estratégicos, a ser invocada pelos diversos campos sociais
e a circular pelas esferas em que se verificam diferendos e
conflitos.
De facto, à medida que, no mundo moderno, as sociedades se
têm vindo a segmentar numa diversidade de campos autónomos,
“comunicar tem-se tornado um imperativo ético e uma urgência
política.”. Parafraseando Adriano Duarte Rodrigues, este
imperativo, que se impõe tanto no domínio do relacionamento
entre os indivíduos, como na esfera das relações entre os
Estados e as instituições, tornou-se tanto mais indiscutível
quanto mais as sociedades modernas parecem ter deixado de poder
contar com os mecanismos que tradicionalmente costumavam regular
os diferendos, não parecendo ainda vislumbrar-se novas
modalidades processuais alternativas para a instauração de
consensos e para a fundamentação de entendimentos.
O ideal da comunicação é hoje encarado de maneira positiva
como abertura de um espaço caleidoscópico de composição, não só
da pluralidade das razões técnico-científicas que pretendem
impor-se como leituras legítimas da realidade, mas também das
posturas anti-racionalistas que formaram, ao longo dos últimos três séculos, o seu negativo. É esta natureza positiva do espaço
aberto hoje pela racionalidade comunicacional que parece estar
na origem tanto da sua força como da sua debilidade.
O facto de designarmos por comunicação social o conjunto
dos meios de informação leva-nos por vezes a confundir o domínio
da informação com a experiência comunicacional. Adriano Duarte
Rodrigues, no seu livro em referência, precisa que a natureza do
processo da informação não é recíproca e reversível, mas
irreversível, uma vez que consiste na transmissão unilateral ou
unidireccional de um saber entre alguém que é suposto saber, um
destinador, e um ou mais destinatários que são supostos ignorar
a mensagem ou o conjunto das mensagens transmitidas. A
comunicação, ao contrário da informação, é um processo que
ocorre entre pessoas dotadas de razão e de liberdade entre si
relacionadas pelo facto de fazerem parte de um mesmo mundo
cultural.
Reforça ainda este autor que tal confusão é compreensível
nas sociedades relativamente fechadas sobre si e com um nível de
desenvolvimento tecnológico também relativamente limitado, uma
vez que, nestas sociedades, o domínio da informação não apresenta uma autonomia suficiente nem ultrapassa fronteiras
delimitadas pelas culturas tradicionais. Todos nós sabemos que o
valor informativo de uma qualquer realidade vai diminuindo o seu
impacto junto das populações à medida que se vai integrando no
universo de saberes aceite pela sociedade. Todos nós sabemos que o valor informativo da afirmação de que a Terra girava à volta
do Sol era certamente grande no tempo de Galileu, mas que deixou
de o ser a partir do momento em que passou a integrar o saber
aceite de maneira indiscutível pela nossa sociedade.
Chegou, pois, também o momento de o valor informativo de
determinadas realidades e de certos conceitos de índole
tiflológica, designadamente no que se refere à acessibilidade
das pessoas cegas à informação, à formação e à cultura, o que
lhes desenvolve a sociabilidade e a comunicabilidade,
capacitando-as indiscutivelmente para o perfeito exercício de
funções aos mais diversos níveis, deixar de impressionar
convicções obsoletas e de as mensagens sobre realidades
comprovadas neste domínio (com o indispensável esforço das
pessoas cegas e das pessoas normovisuais) integrarem o mundo das
mensagens socialmente aceites como prováveis e indiscutíveis,
traduzindo-se o valor informativo destas questões em
constatações inequívocas, aceites naturalmente pela sociedade,
sem comiserações, sem paternalismos, sem
superproteccionismos.
Como também sustenta Adriano Duarte Rodrigues, a
comunicação é um processo dotado de relativa previsibilidade,
dependendo da previsibilidade do processo comunicacional um dos
seus princípios fundamentais, que é o da intercompreensão.
A Câmara Municipal de Lisboa, através da sua Revista Áudio
“Dinamização Cultural”, que organiza e oferece com regularidade
um ou outro evento lúdico-cultural ou científico-cultural aos
assinantes e simpatizantes da revista, mesmo que pretenda
surpreendê-los com esse seu gesto, partilha com eles o sentido
do gesto, na medida em que responde a uma expectativa gerada por
um hábito ou por um relacionamento estreito previamente assumido
ou, pelo menos, pretende alimentar e aprofundar essa relação
mútua e recíproca. É graças ao princípio da intercompreensão que
esse determinado evento da publicação em referência integra o
conjunto das manifestações entendidas pelos leitores-ouvintes
como manifestações de afecto (que também se gera neste caso) e
precursoras ou propulsoras da ampliação e enriquecimento de
horizontes. Sem a liberdade do gesto da revista nem o
reconhecimento por parte dos leitores-ouvintes do significado
desse gesto, não há comunicação nem compreensão do elã que essa
iniciativa representa. A saudação que, por exemplo, no dia da
abertura do evento dirigimos com alegria a todos os ilustres
participantes, ou quando nos cruzamos com alguém, não é uma
informação, mas é a realização de um processo recíproco de troca
simbólica.
Não restam, pois, dúvidas de que os processos
comunicacionais são dotados de valores que põem em jogo as
preferências, as opções, os desejos, os amores e os ódios, os
projectos, as estratégias dos intervenientes na intercompreensão
e na interacção.
Eis, pois, de uma forma mais aprofundada, a razão por que
naquela Conferência nos encontrámos, em intercompreensão, a
partilhar, como noutras alturas anteriores, a comemoração de
mais um ano de vida de “Dinamização Cultural”, naquela vez o seu
6º aniversário, correspondendo a mais uma expectativa.
As diversas manifestações dos processos comunicacionais
respondem a expectativas geradas pelas regularidades que formam o tecido das relações sociais, acentua Adriano Duarte
Rodrigues(1994).
Por conseguinte, a comunicação é uma competência prévia não
só ao conteúdo concreto e ao sentido das suas manifestações, mas
também ao valor informativo das mensagens que os sujeitos trocam
entre si. É por isso que tanto pode abranger “as interacções
positivas como as negativas, os amores e os ódios, o
entendimento e o desentendimento, os discursos e os silêncios,
as acções e as omissões.”.
Estamos hoje em contacto permanente e instantâneo com uma
multiplicidade de mundos da experiência que se situam fora do
horizonte da nossa percepção espontânea, fazendo com que a nossa
percepção da realidade ultrapasse cada vez mais as barreiras de
espaço e de tempo que delimitam os quadros de referência da
nossa percepção da realidade e as fronteiras do nosso mundo.
Complexos e sofisticados dispositivos de informação, como o
telefone, o cinema, os jornais, a rádio, a televisão, os
satélites de telecomunicações, o telefax, o correio electrónico,
os discos compactos, o computador, as redes e os sistemas
integrados de serviços telemáticos, fazem parte do nosso dia a
dia, definem novos horizontes da nossa experiência, alargando a
esfera de percepção e de intervenção no mundo, elaborando a
nossa própria representação da realidade.
Hoje em dia, sem sairmos do nosso quarto ou da nossa sala
de estar, os sistemas de informação põem o mundo inteiro ao
nosso alcance. É por isso que dificilmente poderíamos hoje
imaginar a nosssa vida sem estes dispositivos mediáticos que
passaram a fazer parte integrante dos nossos próprios órgãos de
percepção, da perceptibilidade dos nossos sistemas sensoriais. O
telefone e a rádio são autênticas próteses auditivas do homem do
nosso tempo (a que as pessoas cegas, mais do que ninguém,
recorrem para também ampliarem e sedimentarem conhecimentos), a
televisão projecta a nossa visão (o nosso conhecimento, o nosso
saber) até aos confins do planeta, os computadores substituem
cada vez mais a componente mecânica da nossa memória e facultam,
sobretudo às pessoas cegas, uma extraordinária extensão dos
sistemas sensoriais (tacto, tacto dos sentidos), da
perceptibilidade aumentada dos sentidos, da atenção e intuição,
mediante o contributo da informática e das novas tecnologias
dela decorrentes, os software e os interfaces específicos, em
cujo domínio a Câmara Municipal de Lisboa já disponibiliza para
todos os cidadãos um pólo interactivo de recursos especiais, o
Gabinete de Referência Cultural, bem como “Dinamização Cultural”
que leva aos seus inúmeros leitores-ouvintes espalhados pelo
mundo uma heterogeneidade de informação até agora inédita ou que
era inacessível às pessoas cegas. Os dispositivos electrónicos
da informação permitem ultrapassar cada vez mais as limitações
do espaço, do tempo e dos handicaps que, até há pouco tempo, nos
mantinham relativamente confinados à comunidade (segregacionista
ou não) que nos tinha visto nascer, viver (ou vegetar), crescer
e perecer.
Na realidade, os meios de comunicação, na ampla acepção da
sua importância e significação, constituem autênticas próteses e
extensões de infinito alcance para o homem.
Neste universo de grandes e espantosas afirmações, as
questões comunicacionais ligadas a algumas pessoas com
determinadas deficiências surgem, por vezes, problemáticas por
sua própria natureza. Estas pessoas, à partida, oferecem
(nalguns casos) sérios obstáculos e profundas desvantagens para
que o percurso do seu desenvolvimento linguístico se processe
minimamente equilibrado e coerente.
Por força dos resultados experienciais e culturais, bem
como das “conquistas” no âmbito da informática e das novas
tecnologias dos últimos tempos, quanto à importância fundamental
da comunicação no desenvolvimento pessoal e social, os técnicos
interventores nos domínios da deficiência e da reabilitação só
muito recentemente despertaram para esta vertente principal e
tão indispensável na sua intervenção e imprescindível para a
prossecução dos objectivos da equiparação de oportunidades em
toda a sociedade humana. E nós facilmente deduzimos quanto
representa e quão gratificante é para os cidadãos deficientes
sentirem que são entendidos e aceites sempre que tentam
comunicar. Quanto mais extenso e aprofundado é o acto
comunicacional destas pessoas (as que apresentam significativas
dificuldades sobretudo ao nível cognitivo), mais extensa e
aprofundada se enraíza a sua integração em todos os domínios da
vida social.
É neste contexto que importa inscrever as incidências do
progresso das novas tecnologias da informação que vieram dar
novos rumos ao mundo, neste caso, da reabilitação,
designadamente a computorização, as ajudas técnicas e outros
meios auxiliares de processos comunicacionais, em especial da
leitura e da escrita. Cada pessoa com deficiência pode
desenvolver ao longo da sua vida, em consonância com as suas
capacidades, o seu próprio sistema de comunicação constituído
por formas verbais e não verbais, orais e não orais, através do
som, da escrita, dos gráficos, dos movimentos corporais, de modo
variável e evolutivo.
Para estruturar o seu sistema de comunicação, importa, de
forma reflexiva e sequencial, desenvolver as suas capacidades
residuais, por exemplo, da fala, de vocalização, de motricidade
corporal, de percepção.
No que concerne à problematicidade tiflológica de que nos
ocupamos -o sistema de comunicação das pessoas deficientes
visuais, cujo contacto com o mundo exterior se estabelece
fundamentalmente por intermédio dos sentidos do tacto e do
ouvido, do odorato e até do gosto, simultaneamente com o cultivo
e exercício do «tacto dos sentidos» ou perceptibilidade dos
sistemas sensoriais -, foram desenvolvidas as capacidades
tácteis, hoje maximizadas com o auxílio informático-tecnológico,
sendo possível aceder automaticamente aos textos em caracteres
comuns através de terminais braille e/ou de voz sintética, ou de
software especiais para ampliação dos caracteres vulgares para
poderem ser lidos por pessoas amblíopes.
No cruzamento dos problemas da cegueira e da surdez situam-se os problemas das pessoas surdo-cegas, cuja possibilidade de
comunicação se localiza preferencialmente nas palmas das mãos,
através da aplicação da escrita dactilológica, estando muitos
técnicos interessados na exploração da mancha gráfica da palma
da mão, como grafia extraordinariamente importante de
comunicação com as pessoas surdo-cegas.
Adriano Duarte Rodrigues diz-nos que “A esfera da
informação é, no entanto, em grande medida antagónica do domínio
comunicacional. A informação pertence à esfera da transmissão,
entre um destinador e um ou mais destinatários, de dados, de
acontecimentos, de conhecimentos. O seu objectivo é um interesse
relativamente independente da experiência subjectiva daqueles
que informam e daqueles que são informados. A natureza
cibernética das novas tecnologias permite hoje acelerar o
processo informativo, ultrapassar as barreiras espaciais à
circulação da informação, neutralizar a subjectividade dos
actores sociais, homogeneizar as mensagens, converter a
informação num fluxo contínuo e planetário.”.
Pelo contrário, a comunicação, sustenta ainda o mesmo
autor, “é uma relação fundamentalmente intersubjectiva;
enraiza-se na experiência particular e singular dos
interlocutores, fazendo apelo tanto à experiência individual
como à experiência colectiva que entendem pôr em comum.”.
Há comunicólogos de renome que estão, com inquestionável
rigor científico, muito centrados sobre o problema da linguagem
e num certo sentido que tem por detrás a ideia da teoria da
visão. Embora reconhecendo essa inquestionabilidade, estamos a
procurar justificar (porque o sentimos) um alargamento do
paradigma da comunicação, visto que, a nosso ver, a comunicação
é algo de muito mais complexo, processando-se em nós, por vezes,
alguns dos seus elementos de forma quase inconsciente, sobretudo
quando temos em funcionamento todos os sistemas sensoriais. De
certo modo, problematizamos o modelo restritivo da comunicação e
propomos um modelo alargado a partir de conceitos
redimensionantes que apresentamos-oda visão (uma certa
desipervalorização desta modalidade sensorial), o da percepção
dos sentidos (no que se integra a atenção)eoda tecnologização
da tiflografia -, radicados nos restantes sentidos para
suplementarem a visão, dando-nos hoje as novas tecnologias não
só um suplemento da visão, como uma visão mais completa das
coisas (em determinadas circunstâncias situacionais), criando
para as pessoas cegas uma “visão” em alternativa e desinibida de
metaforicidades, uma comunicabilidade, sociabilidade, mobilidade
e autonomia, interacção e sensibilidade aumentadas.
Ficaremos muito gratificados intelectualmente se, com a
problematicidade que tanto nos motiva, porventura pudermos, de
algum modo e modestamente, contribuir para o alargamento do
paradigma da comunicação. A nossa reflexão poderá ampliar este
domínio, embora estejamos cientes de que o mundo nem sempre muda
com uma ampliação ou mutação de paradigma, mas, depois da nossa
proposta de extensão do paradigma comunicacional, o cientista
poderá trabalhar, certamente, num mundo diferente. Na verdade,
“um paradigma”é“uma forma de olhar. Mudar de paradigma: mudar
de olhar.”. O termo paradigma está “fortemente associado à
passagem de uma concepção da história concebida em moldes de
continuidade para uma concepção da história concebida em moldes
de descontinuidade.”. Conquanto ainda estejamos longe de
uma pretensão genuinamente científica, não podemos deixar de
referir que, a este propósito, Thomas S. Khun sustenta que,
“quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo.
Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos
instrumentos e orientam seu olhar em novas direções.”.
A PERCEPÇÃO DOS SISTEMAS SENSORIAIS
NUMA DIMENSÃO TIFLO-SÓCIO-COMUNICACIONAL
"Toda a inteligência passa pelos sentidos. Todos os sentidos passam pelo
tacto."
Jacob Rodrigues Pereira
O horizonte próximo que nos limita aprende-se a ver com a
ponta dos dedos.
O horizonte longínquo que nos liberta é o que se toca com o uso da palavra que nos
permite vê-lo e ultrapassá-lo e com o falar que nos permite perceber o que
ouvimos
João dos Santos
Conforme o expresso no capítulo anterior, a comunicação
entre os seres locutores pode estabelecer-se através do acto de
falar (a simples oralidade), da língua gestual, dos movimentos
corporais, das mais diversas artificialidades e notações
gráficas da linguagem, abrangendo, indiscutivelmente também, a
tiflografia, integrando, necessariamente, outros factores e
contributos da fenomenologia e da psicologia humanas
(designadamente nos domínios psico-sensório-motor, perceptivomotor
e cognitivo), para que possamos concluir (sem
equivocidades) que as pessoas cegas, desde que consolidadamente
incentivadas, ensinadas e orientadas nos planos psicomotor e
psico-sensório-intelectual, propendendo para a amplitude de
valores e despertas intelectualmente para essa abrangência, são,
sem qualquer margem de dúvida, capazes de aceder à informação e
à cultura, aos mais diversos ingredientes situacionais e
contextos à sua volta, aperceber-se de atitudes e de caracteres
humanos (praticamente como as pessoas normovisuais),
autonomizando-se, socializando-se e interagindo sem
dificuldades, mercê da natural hipersensibilidade (da se
sibilidade aumentada) e do exercício da perceptibilidade dos
sentidos, numa tentativa de, nesta acepção, ampliarmos o
paradigma comunicacional.
A percepção (de cujas vertentes, as que julgamos mais
interactivas e desfrutáveis pelas pessoas cegas, nos iremos
ocupar neste segundo capítulo) assenta num determinado
enquadramento fenomenológico (conquanto passemos pela
fenomenologia de forma muito preliminar por não ser esse o nosso
objecto de investigação), em que a capacidade de observação do
indivíduo indica -secundando Robert S. Woodworth e Donald G.
Marquis(1962) em Psicologia, páginas 1227-1256 da edição em
braille consultada -a primeira das questões fundamentais a
serem consideradas, a forma pela qual o uso dos sentidos
habilita a pessoa a conhecer o ambiente, sendo o processo da
observação constituído por dois passos (que entendemos
sucessivos e indissociáveis): a atenção, que é o passo
preliminar, a preparação para observar, e a percepção,queéo
passo final, a verdadeira observação de algum facto ou objecto, o que também nos remete para o conceito de “antecipação
perceptiva”, que desempenha uma importante função no âmbito da
percepção ambiental e que abordaremos no quarto ponto deste
capítulo, ponto este que, considerando a síntese integradora de
que o mesmo se reveste, assume uma acepção conclusiva, como
corolário deste capítulo.
De resto, seguindo ainda os autores supra-referidos, a
palavra percepção designa o processo pelo qual se chega ao
conhecimento do ambiente que nos envolve através dos sentidos. A
definição deve, porém, ampliar-se e abranger a capacidade que o
indivíduo possui para descobrir também, por meio dos sistemas
sensoriais, factos referentes à sua pessoa propriamente. Nesta
perspectiva, a percepção é o processo de chegarmos ao
conhecimento de objectos e de factos objectivos por meio dos
sentidos.(Robert S. Woodworth e Donald G. Marquis, 1962).
A importância prática do “perceber e conhecer factos
objectivos”, acentuam Woodworth e Marquis, “patenteia-se quando
consideramos as relações do indivíduo com o meio em que vive”.
Estas relações são activas, envolvendo reciprocidade. O
indivíduo está constantemente a lidar com o ambiente, agindo sobre objectos que o rodeiam. E, para agir eficazmente, tem que
“conhecer esses objectos, não completamente, é claro, mas até
certo ponto”. Conhecemo-los por meio dos estímulos que provêm de
objectos integrantes do ambiente e que atingem os nossos órgãos
receptores.
Mas como pode o organismo, confinado como está dentro da
pele, conhecer o que se acha “lá adiante” e interagir
eficientemente com essa coisa, com essa situação ou com esse
contexto?
Explicar como é que o indivíduo cego é capaz de perceber à
distância factos ou situações objectivas constitui uma aliciante
problematicidade para o psicólogo e para o comunicólogo, mas,
sem dúvida, ainda difícil de resolver claramente no plano
científico. O mundo ou o ambiente emitem estímulos que chegam
aos órgãos receptores do organismo, aos quais o indivíduo
responde com movimentos musculares que, por sua vez, agem sobre o ambiente.(Robert S. Woodworth e Donald G. Marquis, 1962). O
indivíduo pode ouvir um som, mas sem se importar muito com a
fonte que o emite. Mas se o escutar e procurar compreender o que
significa esse som, terá mais probabilidade de o perceber, como,
por exemplo, o zumbido de um avião ou de um automóvel, de
qualquer coisa.
Neste segundo capítulo, procuraremos tratar, com a
profundidade possível, a percepção dos sistemas sensoriais numa
dimensão tiflo-sócio-comunicacional, fazendo, de forma
preambular, algumas reflexões em torno do conceito
fenomenológico de percepção, para, em seguida, abordarmos a
questão do «sentido dos obstáculos» ou tacto dos sistemas
sensoriais alternativos ao da vista, mergulhando em aspectos do
sentir e do perceber, bem como na perceptibilidade dos sistemas
sensoriais como garante da comunicabilidade, sociabilidade,
mobilidade, autonomia e interacção das pessoas cegas.
Há muito que se estuda o fenómeno da percepção nas pessoas
cegas e não poucas são já também as teorias a pretenderem
explicá-lo. Mas cientes de que as observações realizadas em
vários países, neste século XX, ainda estão longe de resultados
concludentes, procuraremos conferir alguma fundamentação teórica
e experiencial (necessariamente imbuída de um certo empirismo) a
esta questão, até porque vestimos e experienciamos toda esta
problematicidade, pela circunstância de sermos uma pessoa cega.
Ao mesmo tempo, somos impelidos por uma intrínseca imposição
intelectual para contribuirmos, de forma clarividente (tanto
quanto nos é possível), para a fundamentação teórica de todas as
questões tiflocomunicacionais que elegemos e constituem parte
integrante do objecto desta investigação.
II.1 - Algumas Reflexões em Torno do Conceito Fenomenológico de
Percepção
Por uma questão de sensibilidade (e também de
acessibilidade), é no fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty que,
fundamentalmente, nos vamos basear para alicerçarmos e
reflectirmos ideias e convicções sobre a “fenomenologia da
percepção”, com o rigor intelectual (infelizmente ainda muito
limitativo) que nos é possível imprimir a este assunto.
Coloca-se-nos, para já, a questão fundamental: o que é a
“fenomenologia”?
“Etimologicamente, fenomenologia deriva da palavra grega
faínomai, que no sentido primário significa brilhar (da mesma
raiz que fôs, luz), e depois também mostrar-se ou aparecer.”.
No sentido husserliano, “A fenomenologia (fainómenon +
lógos) -refere Júlio Fragata no livro citado -será portanto o
estudo dos fenómenos puros ou absolutos, isto é, uma
«fenomenologia pura»”.
Fundamentando-se em Husserl, sustenta ainda Júlio Fragata
que “A «fenomenologia» será caracteristicamente analítica, ou
descritiva: atenderá simplesmente àquilo que se manifesta ou
aparece, fomentando para este efeito uma atitude particularmente
apta a apreender a «realidade» na sua plenitude
manifestável.”.
Mas é também com esta questão que Maurice Merleau-Ponty, no
seu livro “Fenomenologia da Percepção” (que seguimos para a
explicitação desta matéria), meio século depois dos primeiros
trabalhos de Husserl sobre a fenomenologia, ainda se interroga
sobre o que é a fenomenologia, visto reconhecer estar longe de
ser resolvida a questão. Neste contexto, sustenta o autor que “a
fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas,
segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da
percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a
fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na
existência”, e não pensa que se possa compreender o homem e o
mundo de outra maneira senão a partir da sua “facticidade”.
É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para
compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também
uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da
reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo
consiste em reencontrar este contacto ingénuo com todo o mundo,
para lhe conferir um estatuto filosófico.
A questão da “fenomenologia” é encarada por Merleau-Ponty
devido à sua própria definição: Estudo das essências. Aqui,
outra questão se coloca: o que se entende por “essências”? É que
a Fenomenologia é o estudo das essências, mas na existência, ela
compreende o homem e o mundo a partir da sua “facticidade”, como
atrás, à laia de introdução, ficou expresso.
A necessidade de passar pelas essências não significa que a
filosofia as tome por objecto, mas ao contrário. Não há
essências separadas, mesmo em Husserl elas “devem trazer consigo
todas as relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as algas palpitantes”, as
essências separadas são as da linguagem, pois é função da
linguagem fazê-las existir numa separação, que ainda assim é apenas aparente, pois elas repousam na vida antipredicativa da
consciência. Para esta filosofia, o mundo é sempre um “Déjà là”
mesmo antes da nossa reflexão, uma “presença inalienável”.
Para se entender o que é a fenomenologia é necessário pôr
de parte o método científico de “Análise objectiva”, conforme o
sustentado pelos modernos, e renunciar à nossa posição de um
sujeito para quem tudo o mais se apresenta como objecto
analisável.
A fenomenologia, tal como a filosofia, é e está em
constante construção, é movimento, está a caminho. E o único
método a que ela se submete é o método fenomenológico que não
pretende analisar e construir teses sobre o analisado, mas como
ensaio de uma descrição directa da nossa própria experiência,
pretende um contacto directo e ingénuo com o mundo, contactar os
famosos temas fenomenológicos ligados na vida, sem tentar
explicá-los, mas apenas descrevê-los.
Quando Husserl chamou à fenomenologia “Filosofia
descritiva”ou“retorno às coisas mesmas”, anunciava já uma nova forma anti-científica de “ver” o mundo, visto que “a ciência
manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Para si, estabelece
modelos internos das coisas e, operando sobre estes índices ou
variáveis, as transformações permitidas pela sua definição só se
confrontam de quando em quando com o mundo actual.”. Ainda em “O
Olho e o Espírito” nos diz Merleau-Ponty que “o pensamento
operatório torna-se numa espécie de artificialismo absoluto,
como se vê na ideologia cibernética, na qual as criações humanas
derivam de um processo natural de informatização, mas concebido
com base no modelo das máquinas humanas.”.
É necessário que a ciência se compreenda a si mesma, que se
conceba como construção, mas com base num mundo existente, que
“o pensamento da ciência-pensamento de sobrevoo, pensamento do
objecto em geral se coloque de novo num aí prévio, in locus,
sobre o solo do mundo sensível e do mundo trabalhado”, que o
pensamento apressado e improvisador da ciência aprenda a
“aprofundar-se nas coisas enquanto tais e em si mesmo”,
tornando-se de novo “filosofia”. Isto porque, sustenta-o Merleau-Ponty, “Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência,
eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do
mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.
Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e
se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar
exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente
despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão
segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de
ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma
determinação ou uma explicação dele.”.
Merleau-Ponty propõe-nos um contacto directo com o mundo,
um regresso às “coisas mesmas” antes do conhecimento “dont la
connaissance parle toujours” (conforme o expresso na versão
francesa de “La Phénoménologie de la Perception”)eéem relação
a este regresso que a explicação científica se torna, a nosso
ver, limitada. No entanto, este “regresso às coisas mesmas” que
a fenomenologia defende nada tem a ver com o regresso idealista
à consciência, da mesma forma nada tem a ver com a análise
reflexiva (“Assim a reflexão arrebata-se a si mesma e se
recoloca em uma subjetividade invulnerável, para aquém do ser e
do tempo. Mas isso é uma ingenuidade ou, se se preferir, uma
reflexão incompleta que perde a consciência do seu próprio
começo.”).
O mundo para o qual regressamos não existe como um objecto
que possuímos, ele é o meio natural, é, como diz Merleau-Ponty,
“o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas
percepções explícitas”. O homem não pode “olhar” o mundo e ser
simples espectador. Ele está no mundoeéna relação com o mundo
que ele se conhece, um mundo com sentido, ao qual nos devemos
abrir, que “O mundo é aquilo mesmo que nós nos representamos,
não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos
todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo”, um mundo que é por definição único. O homem só se
alcança a si mesmo através da sua relação com o mundo, um mundo
que é ele mesmo, do qual ele é parte indissociável. E aqui se
coloca a questão da “redução fenomenológica” que é apresentada
por Husserl como “o retorno a uma consciência transcendental
diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência
absoluta, animado do começo ao fim por uma série de apercepções
que caberia ao filósofo reconstituir a partir de seu
resultado.”.
Mas através da reflexão, descobrimos não só a nossa
presença a nós mesmos, mas ainda “a possibilidade de um
«espectador estrangeiro», quer dizer, se também, no próprio
momento em que experimento minha existência, e até nesse cume
extremo de reflexão, eu careço ainda desta densidade absoluta
que me faria sair do tempo, e descubro em mim um tipo de
fraqueza interna que me impede de ser absolutamente indivíduo e
me expõe ao olhar dos outros como um homem entre os homens, ou
pelo menos uma consciência entre as consciências.”. Segundo
Merleau-Ponty, para que o outro possa realmente existir para
nós, é necessário que a nossa existência não se deixe reduzir à
consciência que temos de existir e o cogito “deve revelar-me em
situação, e é apenas sob essa condição que a subjetividade
transcendental poderá, como diz Husserl, ser uma
intersubjetividade.”. O verdadeiro cogito não define a
existência do sujeito pelo pensamento que ele tem de existir,
não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do
mundo, não substitui o mundo pela significação do mundo. A nossa reflexão não é sobre o mundo, mas sobre um mundo irreflectido. É
uma reflexão que deve ter consciência dela mesma como
acontecimento, como “uma verdadeira criação, como uma mudança de
estrutura da consciência, e cabe-lhe reconhecer, para aquém de
suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito, porque o
sujeito é dado a si mesmo.”. A reflexão não se retira do
mundo em direcção à unidade da consciência como fundamento do
mundo, ela simplesmente recua, suspende a nossa ligação ao
mundo, recusa-lhe a nossa cumplicidade, ela “distende os fios
intencionais que nos ligam ao mundo para fazê-los aparecer, ela
só é consciência do mundo porque o revela como estranho e
paradoxal.”. Eisa“redução fenomenológica”! uma redução que
tem por base o espanto, a admiração, que só pode existir a
partir do momento em que nós rompemos a nossa familiaridade com o mundo, uma ruptura que nos ensina “o brotar imotivado do
mundo”. Porém há que ter em conta que a redução nunca é total ou
completa, pois não somos espíritos absolutos, “nós estamos no
mundo” e o nosso pensamento não consegue abarcar a totalidade, o
mundo é inesgotável, inacabado. O mundo fenomenológico é o
sentido que transparece na intercepção das nossas experiências
com as do outro, é um mundo ligado à subjectividade, que é
sempre intersubjectividade. O mundo fenomenológico não é a
explicitação de um “ser prévio”, o único pré-existente é ele
mesmo, ele é a fundação do ser, ele é a trama, a tela onde o ser
se destaca. Deve-se reaprender a ver o mundo, é isto que a
verdadeira filosofia ensina.
A percepção assenta num determinado enquadramento
fenomenológico, em que a capacidade de observação do indivíduo
indica -secundando Robert S. Woodworth e Donald G. Marquis -a
primeira das questões fundamentais a serem consideradas, a forma
pela qual o uso dos sentidos habilita a pessoa a conhecer o
ambiente, sendo o processo da observação constituído por dois
passos (que entendemos sucessivos e indissociáveis): a atenção,
que é o passo preliminar, a preparação para observar, e a
percepção, que é o passo final, a verdadeira observação de algum
facto ou objecto, o que também nos remete para o conceito de
“antecipação perceptiva”, que desempenha uma importante função
no âmbito da percepção ambiental e que abordaremos no quarto
ponto deste capítulo.
Quando alguém nos diz “observe isto”ou“preste atenção a
isto”, o seu desejo é que atentemos em alguma coisa, na
esperança de que percebamos algum facto ou objecto
significativamente importante.
De resto, seguindo Woodworth e Marquis, a palavra percepção
designa o processo pelo qual se chega ao conhecimento do
ambiente que nos envolve através dos sentidos. A definição deve,
porém, ampliar-se e abranger a capacidade que o indivíduo possui para descobrir também, por meio dos sentidos, factos referentes
à sua pessoa propriamente. Somos capazes de observar se a nossa
pele está queimada do sol ou se certo músculo está dorido. E
embora esses factos não sejam estritamente ambientais, são
factos objectivos e o processo de observá-los é o mesmo que
utilizamos quando atentamos em objectos exteriores. Nesta
acepção, a percepção é o processo de chegarmos ao conhecimento
de objectos e de factos objectivos por meio dos sentidos. (Robert S. Woodworth e Donald G. Marquis, 1962).
A importância prática do “perceber e conhecer factos
objectivos”, acentuam Woodworth e Marquis, “patenteia-se quando
consideramos as relações do indivíduo com o meio em que vive”.
Estas relações são activas, isto é, envolvem reciprocidade. O
indivíduo está constantemente a lidar com o ambiente, agindo
sobre objectos que o rodeiam. E, para agir eficazmente, tem que
“conhecer esses objectos, não completamente, é claro, mas até
certo ponto”. Conhecemo-los por meio dos estímulos que atingem
os nossos órgãos receptores. Os estímulos vêm de objectos que
fazem parte do ambiente, mas os estímulos não são esses
objectos. Estímulos e objectos são coisas inteiramente diversas.
Quando vemos um lago lá em baixo, no vale, o que acontece não é
evidentemente que o lago sobe esfuziante até aos nossos olhos,
mas simplesmente que a luz vinda como reflexo da superfície do
lago fere os nossos olhos. Vemos essa luz cintilar e percebemos
que a superfície do lago está a ser encrespada pela brisa.
Ouvimos um zumbido surdo que se torna cada vez mais intenso e
percebemos que um avião se aproxima. Ora, o avião não é um
zumbido, assim como a brisa não é um cintilar, nem o lago uma
nódoa de luz brilhante.(Robert S. Woodworth e Donald G. Marquis,
1962). Os factos objectivos são, de certa maneira, indicados ao
observador pelos estímulos recebidos, mas são bem distintos dos
estímulos.
Como pode o organismo, confinado como está dentro da pele,
conhe cer o que se acha “lá adiante” e interagir eficazmente com
essa coisa?
Explicar como é que o indivíduo é capaz de perceber factos
objectivos constitui aliciante problema para o psicólogo, mas,
sem dúvida, difícil de resolver, conforme o já enunciado na
introdução a este capítulo. O mundo ou o ambiente emitem
estímulos que chegam aos órgãos receptores do organismo, aos
quais o indivíduo responde com movimentos musculares que, por
sua vez, agem sobre o ambiente. (Robert S. Woodworth e Donald G.
Marquis, 1962). O indivíduo pode escutar um zumbido, mas sem se
importar muito com a fonte do som. Mas se procurar compreender o
que significa esse som, terá mais probabilidade de o perceber
como o zumbido de um avião. Ainda mais: se tiver percebido a
situação globalmente e estabelecido certa preparação
situacional, cada novo facto que perceber terá de “encaixar-se
na situação”. Se, por exemplo, estiver a assistir a um jogo de
futebol, uma explosão súbita de exclamações e gritaria não lhe
sugere que alguma revolução eclodiu, mas apenas que um dos
clubes marcou algum ponto sensacional. Isto é, “o facto isolado
é percebido em relação à situação global”. E a percepção de um
facto contribui para a perceptibilidade de outros. Esse processo
de “encaixar entre si os factos” e, assim, chegar ao
conhecimento do meio, começa logo que a criança é capaz de
“notar”, o que, provavelmente, acontece assim que se inicia o
funcionamento do córtex cerebral. Com o funcionamento do córtex,
a criança já tem essa atitude objectiva de “procurar perceber
objectos e fazer alguma coisa com eles”. Já não se satisfaz
simplesmente com “receber estímulos”, mas “procura” também
“descobrir-lhes a significação”.
A criança aprende gradualmente a controlar as expressões
emocionais, de acordo com a “pressão social” do ambiente em que
vive. Aprende a disfarçar a expressão de muitas emoções e
adquire as expressões “padronizadas do costume social”.
Desde que o indivíduo interaja com o ambiente, é importante
que conheça esse ambiente e o domine suficientemente, de modo a
satisfazer as suas necessidades e propósitos, usando os sentidos
como meio de aceder e conhecer o ambiente. Mas a questão da
perceptibilidade dos sentidos será mais aprofundada no ponto
quatro deste capítulo, tendo em conta o objecto fundamental
desta investigação.
O objectivo deste estudo é (muito modestamente) contribuir
para a ampliação do paradigma da comunicação, mas também dar uma
nova perspectiva do ser humano, que é “carnal”, que é totalidade
de ser, inteiro, impossível de ser “esquartejado” e estudado em
partes como o faz a ciência, estando fora de questão o facto de
cada pessoa ser só igual a si mesma. A pessoa cega tem
limitações (decorrentes da ausência da vista), relativamente à
pessoa normovisual com idênticas ou diferentes propensões, no
acesso a determinado tipo de informação, a que apenas é
observável através da vista. Todavia, a ausência deste sentido
não lhe tolhe a faculdade de «ver», não a restringe à pobreza
espiritual, intelectual e à resignada obrigatoriedade de
vegetar, não a exclui de nenhuma obrigação nem de nenhum
compromisso social ou de qualquer outra ordem, não a demite da
interdependência e inter-relação em toda a sociedade humana, não
lhe confere o estatuto de um ser humano diferente, incompleto e,
por isso mesmo, inútil e indesejado.
Cada pessoa é igual a si mesma, mas há princípios que nos
identificam uns com os outros, nos ligam uns aos outros e nos
impelem para a conjugação de esforços e consumação de projectos
sociais comuns para o bem de toda a sociedade humana. “Há
princípios em relação aos quais é impossível transigir: o da
exigência da felicidade para todos, da identidade vivida entre
todos os homens. Eu sou outro, o outro é eu. A desumanidade que
fere o outro destrói a humanidade em mim.”.
Uma das razões por que nos socorremos de Merleau-Ponty é
devida ao facto de se tratar de um filósofo que visa a
valorização do homem, do homem integral. Ele pretende tornar
racional, encontrar um “logos”, um fundamento para a vida
integral do homem, pelo que demonstra tanto interesse pelo
problema fundamental do conhecimento, da racionalização das
ciências, da história e da política. Esta fundamentação radical
só se consegue através de uma síntese entre filosofia e ciência,
subjectivo e objectivo, consciência e natureza, homem e mundo.
Síntese e não separação radical como pretendiam os behavioristas
e o intelectualismo.
Merleau-Ponty está contra a ideia de que as coisas são
unidades de ordem lógica (defendida pelo intelectualismo) e
também contra o empirismo, pois entende que as coisas estão para
além das suas manifestações sensíveis. Pretende ultrapassar esta
alternativa idealismo-realismo, sem no entanto sair do mundo da
existência concreta, como o fez Husserl, fenomenólogo que muito
admira. É na existência que Merleau-Ponty vai procurar a síntese
superadora da dualidade: “para si”-“em si”,
intelectualismo-empirismo, consciência-mundo, ficando, com esta
síntese, Kanteo“cogito” cartesiano ultrapassados. Segundo
Merleau-Ponty, “o cogito é o contacto simultâneo com o meu ser e o ser do mundo”, pois “o homem quando pensa, pensa sempre alguma
coisa, ele é sujeito voltado para o mundo”, pelo que o
pensamento, só por si, não subsiste. Merleau-Ponty fala-nos também do processo de redução.
Espontaneamente, possuímos um conhecimento natural das coisas, a
redução é um movimento reflexivo que visa eliminar tudo o que
pode contaminar a pureza desse conhecimento espontâneo da coisa,
para que esta se apresente na sua verdade pura, como
“transcendência aberta ao meu conhecimento.”. Através da
redução, procura-se que o mundo apareça “tal qual é antes de
qualquer regresso a nós mesmos”. Para ir às “coisas mesmas”é
necessário “ser para o mundo”, perceber a relação essencial com o mundo exterior. Há a descoberta de uma existência primordial
irreflectida que antecede e fundamenta o conhecimento. A redução
fenomenológica nunca é completa por sua mesma natureza, deixa
sempre um fundo de irreflexão, pois o seu fim é revelar o
irreflectido, que é o mundo da experiência natural e esse nunca
pode ser perfeitamente consciencializado. Merleau-Ponty não
pretende atingir o ideal absoluto ou desvendar o ser, mas
atingir as coisas na sua “facticidade” (conforme o atrás
referido) e contingência. Liga, na sua fenomenologia, a razão e
o mundo.
A fenomenologia tem como estilo existir como movimento, é
auto-fundante, é sempre abertura a e tem como método a reflexão
sobre o mundo vivido pela consciência em toda a sua abrangência
(o mundo vivido é o mundo do qual partimos), a fenomenologia não
procura analisar cientificamente: “eu não sou analisável, pois
eu sou fonte absoluta.”.
A fenomenologia pretende voltar às “coisas mesmas”, ou
seja, voltar ao mundo antes do conhecimento, o mundo originário, o que nos levaria a citar (se o nosso objectivo fosse aprofundar
a questão fenomenológica) designadamente António Fidalgo, ou
Husserl, Lyotard e, até, Virgílio Ferreira,
Morujão, Paisana.
II.2 – A Questão do «Sentido dos Obstáculos» ou Tacto dos
Sistemas Sensoriais Alternativos ao da Vista
A questão do “sentido dos obstáculos”, da perceptibilidade
à distância ou tacto dos sentidos, como recurso comunicacional e
de sociabilidade, constitui um factor imprescindível e
determinante da faculdade (ou sistema sensorial) tiflocomunicacional.
Não se vêem, mas pressentem-se e sentem-se os obstáculos à
nossa volta, constituindo esta perceptibilidade ou tacto dos
sentidos um excelente recurso referencial que facilita a
intelecção, a mobilidade, a autonomia e a interacção das pessoas
cegas, sendo, ao mesmo tempo, um auxiliar comunicacional e, por
consequência, de sociabilidade, que igualmente lhes permite
intuir e até aperceberem-se nitidamente de situações, gestos e
atitudes, que ocorrem em torno de si próprias.
Mas os dados empíricos só se tornam inteligíveis, isto é,
uma investigação empírica só se transforma em ciência quando se
decide a “construir” o seu objecto, ou seja, em vez de acolher
confusamente todos os fenómenos observáveis num certo campo de
investigação, elabora ela própria os conceitos com a ajuda dos
quais interroga a experiência.
Entre os problemas que a moderna tiflologia procura
resolver e conferir-lhes fundamentação científica, avulta o de
saber se as pessoas cegas são ou não dotadas de uma espécie de
«sexto sentido» (onde, sustentamos nós, confluem todas as
manifestações e sensações que se traduzem no conjunto de outras modalidades sensoriais exorbitantes dos cinco clássicos
sentidos), que lhes permita conhecer a presença de quaisquer
obstáculos e, desse modo, evitar acidentes a que, pelas próprias
condições da sua anomalia, estão mais sujeitos do que
ninguém.
Na realidade, atribui-se vulgarmente a todas as pessoas
cegas a posse de um extraordinário desenvolvimento dos sistemas
sensoriais que lhes restam e que as compensam da privação do
sentido da vista. E, como observaremos ao longo deste capítulo,
presentemente já temos dados comprovados que nos permitem
conferir a esta questão verdade e rigor comprovados.
É certo que a falta de um sentido (o da vista neste caso),
tornando a actividade dos restantes mais intensa e permanente,
desenvolve nas pessoas cegas uma hipersensibilidade que nunca
adquiririam em condições normais. Mas não menos certo é que a
ideia de tal compensação, como diz Salvaneschi (citado por
Albuquerque e Castro(1961), é forma do egoísmo humano, embora
requintada, que atribui para tranquilidade dos que não sofrem
alguma coisa mais a quem na realidade tem alguma coisa menos.
É nesta acepção que se pode explicar o conformismo dos
povos e dos indivíduos perante as injustiças e desequilíbrios
sociais que, ao longo da história da humanidade, se têm mantido
em todos os domínios.
Não se trata aqui, como é de supor, dessa outra espécie de
«sexto sentido» que se caracteriza como o conjunto de
actividades psíquicas, pouco definidas e ainda mal explicadas,
que vão da telepatia e do presságio à clarividência e ao êxtase
(Albuquerque e Castro, 1961). Para nós, o «sexto sentido» é uma
adopção, por nítida comodidade, que se tem vindo a fazer das
mais diversas impressões e manifestações do conjunto,
devidamente articulado, dos inúmeros sentidos (para além dos
clássicos) que o ser humano possui, muitos dos quais ainda por
descobrir, mas a cuja investigação a realidade virtual tem vindo
a dar substancial contributo.
Na verdade, sempre que o homem manifesta a intuição de
fenómenos que lhe não são revelados directamente pelos órgãos
dos sentidos ou não decorrem da sua actividade mental, quer essa
intuição provenha realmente de funções especiais que a
Psicologia não pôde ainda determinar experimentalmente, quer
resulte de simples coincidências, dir-se-á logo, na gíria comum,
que ele ou ela possui um «sexto sentido».
Também não importam, na totalidade, certas manifestações
sensitivas atribuídas ao homem por alguns psicólogos, derivadas
do que eles chamam “sentido ósseo, visceral, álgico e de
orientação magnética” tão peculiar aos pombos correios e aos
morcegos.(Albuquerque e Castro, 1961).
Interessa apenas focar a capacidade que alguns indivíduos
têm, sobretudo os sem qualquer resíduo visual, de perceberem a
aproximação de qualquer obstáculo e, por vezes, conhecerem que
na sua frente, ou à sua volta, algo se encontra ou alguma coisa
atenta contra a sua segurança.
Mas impõe-se a questão colocada por Albuquerque e Castro,
no artigo atrás referido: estaremos em presença de um sentido
diferenciado, com características próprias, que se projecta no
plano da consciência e actua sob a acção da vontade?
Não havia, na altura em que Albuquerque e Castro escreveu o
aludido artigo, conhecimento de que alguém, até então, tivesse
provado cientificamente a veracidade da resposta à sua questão,
em face das investigações realizadas nesse domínio
tiflocomunicacional.
Hoje já possuímos alguns dados, provados, que nos podem
ajudar no encaminhamento para respostas com uma determinada
credibilidade científica.
Não temos dúvidas de que é nos planos cognitivo e da
consciência, sob a acção da vontade e da sagacidade intelectual,
que a perceptibilidade dos sistemas sensoriais das pessoas cegas
actua na detecção de obstáculos, na representação espacial e na
mobilidade, o que aprofundaremos nos pontos três e quatro do
presente capítulo.
Na verdade, estamos cientes, por experiência própria, de
que não podemos ser abúlicos (nestas e noutras circunstâncias)
sob pena de virmos a ser inúteis, prejuízo social e de
sucumbirmos intelectualmente, pois só os voluntariosos (despidos
de toda e qualquer infundada ou irreflectida teimosia) são
capazes de exercer sistematicamente a sua vontade, conscientes
de que “qualquer esforço orientado para um fim fixado pela razão
contribui para aumentar a força do querer”, em que o
essencial (em favor de um progresso fecundo) é constituir ou
“reconstituir a armadura de que depende a solidez do edifício
mental, a vontade.”.
O querer/vontade é um sentimento susceptível de se cultivar
e exercitável, não sendo “no momento em que se formam, mas no
momento em que produzem os seus efeitos motores, que as
resoluções e as aspirações modificam a contextura do cérebro...”.
A propósito, Paul Foulquié ainda refere que a vontade
implica a intervenção de motivos ou de razões de ordem
intelectual e, citando Baruk, sustenta que “A vontade não atinge
a sua plenitude senão quando se torna moral e se dirige para o
bem.”. É preciso que, permanentemente e de forma evolutiva,
cultivemos e exerçamos o tonificante magistério da alegria de
vivermos, dignificando e dinamizando a vida, neste caso, com uma
outra forma de ver.
W. Dolanski (citado por Albuquerque e Castro), que a este
assunto dedicou atento e aturado estudo, afirma que “esta
espécie de sexto sentido não é privilégio dos indivíduos
destituídos de vista, pois se encontra em muitos que o não são.
Naqueles, porém, assume importância capital, pelos benefícios
que pode trazer-lhes, quando não for apenas simples impressão
fugidia e imprecisa, mas sensação conscientemente
experimentada.”.
Há muito que se estuda o fenómeno da percepção e não poucas
são já também as teorias a pretenderem explicá-lo. Mas cientes
de que as observações realizadas em vários países, neste século
XX, ainda estão longe de resultados concludentes, procuraremos
conferir alguma fundamentação científica a esta questão, até
porque vestimos e experienciamos toda esta problematicidade,
pela circunstância de sermos uma pessoa cega. Ao mesmo tempo,
somos impelidos por uma intrínseca imposição intelectual para
contribuirmos, de forma clarividente (tanto quanto nos é
possível), para a fundamentação teórica de todas as questões
tiflocomunicacionais que elegemos e constituem parte integrante
do objecto desta investigação.
As hipóteses propostas, até à data em que Albuquerque e
Castro escreveu o artigo em referência, contradizem-se, por
vezes, e nenhuma delas tinha sido ainda plenamente confirmada
pela experiência.
Conforme o sustentado por Albuquerque e Castro naquele
artigo, pretendem uns que este «sentido dos obstáculos», como
geralmente se lhe chama, não é mais que a resultante da acção
independente ou conjugada de alguns dos sentidos ordinários.
Querem outros ver nele uma capacidade especial do organismo localizada em qualquer parte do corpo, no peito, na cara, no
meio da testa...
Para nós, esta faculdade localiza-se inquestionavelmente na
cabeça, ao nível e com directa intervenção do sistema sensorial
auditivo, permitindo-nos percepcionar, numa dimensão
pluridireccional, sons e ruídos denunciadores indiscutíveis de objectos, de factos e acontecimentos, de circunstâncias e
situações de uma enorme diversidade, bem como de obstáculos
mesmo no seu absoluto silêncio. Quanto maiores forem esses
obstáculos, maior será a distância a que as pessoas cegas os
percepcionam. É graças a esta extraordinária faculdade que, ao
entrarmos pela primeira vez numa sala, nos damos conta da sua
forma e dimensão: se é quadrada ou rectangular, se é exígua ou
ampla, se o tecto é baixo ou alto. Temos vindo constantemente a
surpreender-nos com a possibilidade de se detectarem obstáculos
de altura muito variável, chegando a percepcionar lancis com
cerca de 10cm de altura a uma distância aproximada de 1 metro ou
mesmo de metro e meio, influindo o estado atmosférico no grau de
maior ou menor perceptibilidade deste tipo de obstáculos.
Efectivamente, eminentes investigadores cegos -como Pierre
Villey (1879-1933), partilhando as doutrinas de Truschel e
outros -admitem a possibilidade de ser o sentido da audição que
adverte o indivíduo da proximidade ou da presença do obstáculo.
As refracções das ondas sonoras, produzindo modificações de
timbre e de intensidade, manifestadas pela voz humana, pelo
ruído dos passos, etc., constituiriam elemento que chamaria a
atenção da pessoa cega (acção acústica).
Alguns investigadores, ao invés, excluem a intervenção do
ouvido e sustentam que a razão do fenómeno está na pressão
exercida sobre a pele pela coluna de ar posta em movimento,
quando indivíduo e obstáculo se aproximam entre si (acção
mecânica). É o que denominamos tacto dos sistemas sensoriais
alternativos ao da vista, perceptibilidade dos sistemas
sensoriais.
Outros ainda vêem na diferença de temperatura do ar
ambiente a causa da percepção do indivíduo cego da aproximação
de qualquer impedimento à sua marcha (acção térmica).
É evidente que estas teorias estão em grande parte longe de
corresponder à realidade e que o facto de as opiniões divergirem
tanto, apesar de se basearem em alguns casos na experiência,
denuncia igualmente fragilidade.
E assim é que, enquanto que, por um lado, se admite que o
«sentido dos obstáculos» resulta da acção combinada do ouvido e
do tacto (o que parece pretender fundir numa só as demais
teorias), W. Dolanski, por seu lado, procura encontrar novos
caminhos, rejeita aquelas teorias com excepção apenas da que se
baseia na acção acústica e explica o acontecimento não só com
dados fisiológicos mas psicológicos também.(Albuquerque e
Castro, 1961).
O comportamento às vezes temerário das pessoas cegas, o
receio dos riscos que correm a cada passo e a necessidade de se
movimentarem com autonomia, de agirem, de não ficarem sempre à
espera de ajuda, desenvolve nelas um tipo de atenção e de
sensibilidade aumentadas (novos sentidos, porque não?) que se
traduz num estado de alerta permanente, permitindo-lhes
aperceberem-se dos mais diversos indícios de qualquer ocorrência
ou da proximidade de um obstáculo, que escapam à percepção da
generalidade das pessoas normovisuais e, até, dos amblíopes
habituados a utilizar o resíduo visual que porventura lhes
reste.
A título de exemplo, podemos referir fraquíssimos ruídos,
vagos cheiros, pequenas elevações ou abaixamentos bruscos de temperatura, leves correntes de ar, vibrações e emanações de
toda a ordem (que são imperceptíveis para uma grande
generalidade de normovisuais, que confia aos olhos o encargo de
velar pela sua segurança), podem actuar como sinais de alarme
nas pessoas cegas que se deslocam em permanente estado de
alerta, que, embora difuso e muitas vezes subtraído à
consciência, não deixa de se manifestar nelas e de ocupar lugar
de primeiro plano quando o perigo surge, denunciado por algum
daqueles indícios.
Seja como for, todos os testemunhos revelam a existência,
sobretudo nas pessoas totalmente cegas, desta capacidade de se
darem conta da presença de tudo quanto constitua obstáculo à sua
volta, principalmente à sua marcha para diante.
Parece, no entanto, que a teoria que pretende conferir ao
sentido da audição o órgão básico em que se apoia o denominado
«sentido dos obstáculos» (nós preferimos designá-lo como
“percepção a distância”) se apresenta como a mais fecunda, uma
vez que repetidas experiências têm mostrado que a capacidade de
“percepção” se oblitera ou perde total eficácia em ambientes
intensamente sonorizados, quando os obstáculos não atingem o
nível do rosto ou sempre que o canal auditivo se obtura.
Porém, esta teoria, que na opinião de muitos poderá
explicar a génese do fenómeno entre as pessoas cegas ouvintes
(para nós inclusive), parece (incompreensivelmente para certos
autores) cair por base e ficar, de algum modo, destituída de
total significado, quando observada em pessoas surdocegas.
Nestas, o «sentido dos obstáculos» tem-se manifestado (refere-o
Albuquerque e Castro em 1961) «tão agudo» como em certas pessoas
cegas ouvintes, o que nos induziria a afirmar (se porventura não
tivéssemos experienciado aprofundadamente a questão e não
vestíssenos o problema da cegueira, sendo ouvintes) que haveria
de ser também em campo diferente do das sensações auditivas que
se localizaria o processo genético dessa faculdade -a
capacidade de percepcionar obstáculos ou uma enorme diversidade
de circunstâncias e de situações à nossa volta, sem recurso à
modalidade sensorial visual. O que pretendemos clarificar é que,
nas pessoas surdocegas, esta capacidade não tem, sem margem de
dúvida, qualquer comparação com a das pessoas cegas ouvintes e,
naquelas, essa pretensa sensação (preferiríamos escrever nula)
varia consoante a etiologia da surdocegueira. Nestas pessoas, a
perceptibilidade dos obstáculos à sua volta radica-se,
fundamentalmente, nos sistemas sensoriais do tacto e do olfato.
Segundo Albuquerque e Castro, no seu artigo atrás citado,
os factores de ordem psicológica assumem aqui primordial
importância e poderiam certamente oferecer orientação segura
para a definitiva solução do problema, se não soubéssemos que
muitas pessoas cegas se apercebem não só da parede que está na
sua frente -e nós acrescentamos: ou à sua volta, mas também da
árvore que margina a espaços regulares o caminho por onde vão ou o muro que de repente se levanta à esquerda ou à direita, das
portas abertas ou fechadas ao longo de uma determinada rua que
se percorre, de uma rua à direita ou à esquerda.
J. de Albuquerque e Castro, que ainda possuía um apreciável
resíduo visual, foi quem em Portugal abordou esta questão, até
hoje com maior sistematização e precisão. A este propósito e na
página 9 do artigo em referência, afirma Albuquerque e Castro:
“Não podendo trazer ao debate o testemunho da nossa própria
experiência, já que somos dos que aproveitam resíduos de visão
de apreciável coeficiente, não nos é fácil em rigor decidir por
qualquer das teorias expressas, verificada a incapacidade de
todas elas para trazer ao problema solução integral e
satisfatória. Além disso, sabemos como o experimentador pode influir poderosamente no resultado da experimentação e como
aquilo que parece causa não passa muitas vezes de reflexo.”.
Nestas, como noutras investigações, tem que imperar sempre
uma inalienável honestidade intelectual e rigor científico. Para
já, não temos quaisquer dúvidas em admitir que o «sentido dos
obstáculos» não é um simples produto da fantasia, visto que as
pessoas cegas que o possuem e cultivam (como nós mesmos) dele
tiram valioso elemento de defesa contra alguns dos perigos que,
na sua locomoção em casa ou na rua, tão frequentemente põem em
risco a sua integridade física, nalguns casos também por abúlico
comportamento ou por negligência intelectual.
II.3 - O Sentir e o Perceber
Os sistemas sensoriais da pessoa cega, desde que
escorreitos, bem treinados e necessariamente baseados em
experiência ou experiências acumuladas, ampliam-lhe e refinam-lhe a capacidade e o domínio da informação sensorial, o que se
traduz num substancial aumento da sensibilidade, da atenção (e
até da intuição), da perceptibilidade do meio envolvente e,
consequentemente, numa maior e melhor mobilidade para se
orientar e interagir nesse mesmo ambiente, incrementando o
imprescindível desenvolvimento da sua psicomotricidade.
Uma das capacidades mais importantes para o desenvolvimento
de qualquer indivíduo (e que contribui de forma decisiva para a
sua interacção com o meio ambiente)éadese movimentar com
independência, com segurança e com um objectivo determinado,
desempenhando a informação sensorial uma função determinante
para o desenvolvimento dessa capacidade, bem como para o
estabelecimento de todo o tipo de interacções com o meio
ambiente, visto que é através deste tipo de informação, captada
pelos receptores sensoriais, que o indivíduo percebe o mundo, o
interpreta e age sobre ele.
Os receptores sensoriais, de acordo com a modalidade
sensorial a que respeitam, são classificados em
“exteroceptores”, “proprioceptores”e“interoceptores”, sendo os
“exteroceptores” receptores à distância (visão, audição, olfacto
e tacto/termo-recepção) e receptores imediatos (tacto e gosto) e
os “proprioceptores” receptores quinestésicos e equilíbrio
vestibular.
De acordo com o objecto desta investigação, abordaremos
apenas as questões que emergem como fundamentais, relativamente
à informação recolhida pelos exteroceptores e proprioceptores,
por serem os que mais contribuem para uma movimentação eficiente
no espaço, estando cientes, no entanto, que a informação
originada nas vísceras também desempenha uma função na actuação
dos órgãos de equilíbrio e orientação. Todavia, segundo Leonor
Moniz Pereira (citando Valentinuzzi, 1980), esta reduz-se
fundamentalmente a situações em que as posições do corpo ou os
seus movimentos ultrapassam os limites das condições normais.
São um exemplo dessa informação visceral, que é recebida em
situações de acelerações elevadas ou posições corporais
difíceis, as situações que possam influenciar via sistema
nervoso autónomo o desempenho das funções de equilíbrio e
orientação.
Os receptores sensoriais são células nervosas
especializadas, destinadas a informar o sistema nervoso central
sobre o estado do ambiente (externo ou orgânico) ou sobre as
alterações deste estado. Citando Schmidt (1980), Leonor Moniz Pereira refere que os estados ou as modificações desses estados,
que actuam sobre os receptores, se denominam estímulos.
No entanto, nunca é demais salientar que, a vista, a
audição, o tacto e a propriocepção não trabalham isoladamente,
como modalidades diferenciadas e distintas, mas -secundando
Leonor Moniz Pereira -como um sistema unitário, podendo, por
isso, existir tarefas que se podem basear em diferentes tipos de
informação sensorial. O sistema visual é constituído por
numerosas e complexas estruturas (olho, vias ópticas, córtex
occipital), estruturas estas que possibilitam a conversão de uma
determinada banda de energia radiante electromagnética em
energia bioeléctrica, transmissível a estruturas vivas, com que o córtex cerebral trabalha e integra em conjunto com a
informação proveniente de outros órgãos dos sentidos, permitindo
construir um modelo do mundo exterior.
Deve-se aos olhos a obtenção da mais importante e
qualificada informação sobre o mundo exterior, caracterizando-se
esta pela rapidez, precisão na localização e avaliação de
distâncias no espaço. A vista fornece-nos a posição relativa
entre diferentes objectos, proporcionando-nos uma “imagem”de
conjunto, assinalando com facilidade as propriedades de
distintos materiais existentes no meio ambiente, bem como as
dificuldades e perigos que nele se encontram.
Natalie C. Barraga tem chamado a atenção para o facto de
ser através da vista que o cérebro recebe informações para a
interpretação da cor, dimensão e forma dos objectos, a noção de
distância e a capacidade de seguir um movimento enquanto o corpo
se mantém imóvel.
Em relação à deslocação no espaço, tem sido atribuída ao
sentido da vista a tarefa de manter com precisão a posição
relativa do corpo, bem como das diversas partes que o
constituem. Verna Hart, citando Houvand e Templeton, afirma que
os olhos avaliam a orientação do corpo e relacionam-no com algo
que vêem no meio ambiente, determinando, de igual modo, a
orientação do corpo, no que se refere à gravidade, e
desempenhando uma importante função na estimulação das outras
modalidades sensoriais. E Leonor Moniz Pereira, citando
Cratty e Sams (1968), Hill e Blash (1980) e Warren (1981),
refere que os mesmos sustentam que “a visão é um factor muito
importante para o desenvolvimento de habilidades
perceptivo-motoras, na aquisição de conceitos espaciais e na
formação da imagem do corpo”. Segundo Warren (1977) -adianta
Leonor Moniz Pereira -“a visão está profundamente envolvida,
por via de mecanismos que ainda não se compreendem inteiramente,
no processamento das informações tácteis e auditivas. Ela
facilita, nas crianças normovisuais, a organização dos
acontecimentos auditivos e tácteis que acontecem no espaço”.
Para Hill e Blash, o sentido da vista desempenha o papel
principal como fonte de estimulação e integração das outras
informações sensoriais no processo de desenvolvimento da criança
normovisual.
Segundo Martínez, o sentido da vista desempenha,
igualmente, um papel de mediador entre as diversas informações
recebidas através das outras modalidades sensoriais, actuando
como estabilizador entre o indivíduo e o meio ambiente.
No que respeita ao sistema sensorial auditivo, podemos
dizer que este sistema é constituído pelo ouvido externo (meato
auditivo e membrana do tímpano), ouvido médio (martelo, bigorna
e estribo) e ouvido interno (orgão de equilíbrio e orgão
auditivo ou cóclea), sendo sensível à informação sonora. Este
sistema desempenha, de igual modo, uma importante função na
orientação espacial (localização de fontes sonoras), sendo no entanto a percepção da direcção afectada pelo tempo de
propagação do som e pela intensidade do mesmo.
O espaço auditivo, ao fornecer informações provenientes de
qualquer direcção do meio circundante, apresenta características
muito diversas do espaço visual. Embora a informação auditiva se
circunscreva aos ruídos ambientais, desempenha um papel de
relevo na deslocação no espaço, fornecendo uma informação
fundamental, sobretudo para o indivíduo cego, como por exemplo,
a localização de objectos e lugares do meio ambiente que
produzem som, possibilitando-lhe estabelecer a sua posição
relativa face a esses objectos e lugares e de uns em relação aos
outros, bem como das suas dimensões, através do eco produzido.
A construção da “imagem mental” do meio circundante, por
intermédio do sentido da audição, apresenta um maior grau de
dificuldade, quando comparada com o sentido da vista, dadas as
suas características de descontinuidade espacio-temporal.
Quanto ao sistema olfactivo, o olfacto, outro dos
receptores à distância, reagindo às qualidades químicas do meio
ambiente, é um dos modos mais primitivos de comunicação.
Contudo, através da observação das culturas ocidentais,
constata-se que a sua função tem sido sistematicamente relegada
para segundo plano.
Hall (1971) -citado por Leonor Moniz Pereira no seu livro
atrás anotado -afirma que “a organização dos espaços na cultura
ocidental dá muito pouca atenção à possibilidade de utilização,
para além da visão, de sentidos como o olfacto, o que já não
acontece por exemplo nas culturas orientais.”.
O olfacto desempenha, igualmente, um papel importante na
deslocação do indivíduo cego no espaço, fornecendo informações
úteis no que se refere à localização de objectos e/ou lugares
que podem ser utilizados como pontos de referência (mercearia,
farmácia, restaurante, livraria, bomba de gasolina, etc.). O
cheiro a um perfume característico de alguém possibilita a
identificação de um familiar ou de um amigo.
No âmbito do sistema táctil-cinestésico, convém ainda
considerar, de entre os receptores à distância, os de informação
cutânea. A localização de uma fonte de calor como, por exemplo, o sol, pode contribuir de forma segura para a deslocação no
espaço, servindo como ponto de referência. A deslocação do ar
pode também constituir uma informação útil (em determinadas
circunstâncias), apontando uma direcção ou ajudando na detecção
de obstáculos. Este tipo de informação, apesar de não ser
geralmente utilizado pelos normovisuais, reveste-se de
significativa importância para as pessoas cegas, devendo serlhes
estimulada a capacidade de utilização deste recurso
referencial.
Actuando como receptor imediato, o tacto trabalha em
conjunto com a cinestesia, permitindo a recolha de informação do
espaço próximo, isto é, o espaço que circunda o indivíduo e que
tem como limite o comprimento do braço.
Defende Natalie C. Barraga (na referência bibliográfica
atrás anotada, 1974) que este sistema fornece, igualmente,
informações relativas aos atributos e propriedades do meio e dos
objectos, como por exemplo o tipo de textura, peso, temperatura,
estabilidade, espessura, rigidez e pequenas diferenças ou
irregularidades na forma e dimensão de um objecto ou de uma
superfície.
Na generalidade, o tacto caracteriza-se por ser uma
modalidade sensorial essencialmente analítica, atingindo com
facilidade o pormenor e o detalhe. A informação/imagem adquirida
através do tacto é de construção morosa, pois necessita de
muitas experiências e tentativas. O mesmo se passa em relação ao reconhecimento da posição relativa de vários objectos entre si,
havendo necessidade de efectivar o registo por ordem cronológica
das diferentes experiências efectuadas para se ser capaz de
estabelecer a sua localização, exigindo todo este processo um
grande esforço de memorização.
A modalidade táctil-cinestésica apresenta ainda, como
limitação, a necessidade do sujeito ter de “agir” sobre o
objecto, tendo que estar motivado para o fazer, consciente da
necessidade de recolher essa informação. Neste tipo de recolha,
é necessária a execução de movimentos precisos e bem executados
no espaço. Este tipo de informação evidencia também, como
limitação, o facto de ser recebido em simultâneo com a execução
do gesto, uma vez que exige um contacto próximo com o objecto,
ao contrário da informação visual que permite prever a situação
seguinte, resultando daqui a insegurança na deslocação no
espaço, o que origina a procura de uma maior base de apoio, com o consequente alargamento da base de sustentação que, em geral,
se observa na pessoa cega.
Natalie C. Barraga (na referência bibliográfica atrás
anotada, 1974), citando Juurma (1967), Hulin e Katz (1934),
sustenta que a percepção associativa de qualidades, que são
percebidas pela via táctilo-quinestésica, parece contribuir
menos para a elaboração da imagem no córtex cerebral do que a
informação dada pelas qualidades visuais, no que se refere ao
mundo táctil.
Mas relativamente ao sentido do tacto, Deolinda B. Mourão
(1982) sustenta que, “para as pessoas não afectadas por qualquer
deficiência sensorial, as sensações tácteis pouco ou nada
significam, uma vez que toda a sua existência decorre quase
exclusivamente em função de estímulos de natureza visual ou
auditiva. Apesar disso, uma grande parte das informações do meio
ambiente veiculadas para o cérebro através dos órgãos da visão,
pode ser captada por meio de receptores sensitivos desigualmente
distribuídos por toda a superfície cutânea. Dadas, no entanto,
as diferenças qualitativas e quantitativas dessas mesmas
informações, apenas os cegos e cegos-surdos tiram, da utilização
do sentido do tacto, todas as vantagens que este pode
proporcionar-lhes”.
A propósito de “cegos”e“cegos-surdos”, sugerem-nos tais
especificações a oportunidade de precisarmos, neste momento,
nuances de ordem terminológica em relação à problemática da
deficiência, citando António Rebelo (1995): “Desde o início da
década de 80 que se têm dado significativas inovações na
abordagem à problemática da pessoa com deficiência. Podemos
referir o desenvolvimento de serviços oficiais, o surgir de
organizações dedicadas à reabilitação, os pais que formaram
diversas associações, uma nova terminologia. Hoje, ao abordarmos
estes temas, não o fazemos referindo-nos ao deficiente, mas à
pessoa com deficiência. A importância desta nomenclatura advém
do facto de primeiro abordarmos a palavra «pessoa» e depois se
fazer referência à sua incapacidade.”.
“Há pessoas que vivem no mundo em que a relação com a
realidade -escreve António Rebelo na referência bibliográfica
anotada -se faz através de um só dos cinco sentidos: o tacto.
São as pessoas surdocegas. Privadas na totalidade ou
parcialmente da visão e da audição simultaneamente, tentam
implementar a sua comunicação com o mundo através do tacto... E
não é fácil consegui-lo!”. E sustenta que “a dupla incapacidade
actua nelas não como uma simples soma, mas como uma categoria
única e distinta tornando os indivíduos surdocegos.”.
Apesar da problemática da surdocegueira exorbitar do
objecto essencial deste estudo (pois que o debruçarmo-nos sobre a questão nos levaria, certamente, à elaboração de outro livro),
sempre referimos que na reabilitação destas pessoas “é
necessário usar metodologias e técnicas que exigem grande
especialização, tanto na educação de crianças como na
reabilitação de jovens e adultos, aproveitando ao máximo os
possíveis restos de visão e audição, realçando o desenvolvimento
das capacidades do sentido do tacto.”.(António Rebelo, 1995).
Tendo em conta o facto da “população surdocega” ser muito
heterogénea, quer pela própria etiologia, quer pela idade em que
se ficou surdocego, pelo sistema de comunicação anteriormente
desenvolvido ou pela ausência de qualquer sistema de
comunicação, é exigido aos técnicos “especialização,
actualização permanente em novas técnicas de comunicação e de
meios alternativos práticos e eficazes na transmissão de
informação a uma pessoa que tem o sentido do tacto, como o meio
mais privilegiado, ou na maioria dos casos, como o único meio
para receber conhecimentos do exterior.”.(António Rebelo, 1995).
Mas retomando as diferenças qualitativas e quantitativas
das informações que apreendemos através da vista e do tacto,
diremos que, secundando Deolinda B. Mourão (1982), no aspecto
qualitativo, “as sensações visuais superam as tácteis no número
de características que levam ao conhecimento do indivíduo, as
quais conferem ao objecto uma realidade que nem sempre é
susceptível de captação pelo sentido do tacto. A cor, através
das diferentes nuances em que pode apresentar-se, é o exemplo
mais flagrante dessas mesmas características, uma vez que o
brilho e pequenos pormenores relativos à textura de materiais
têm um papel muito menos importante na individualização das
coisas.”.
No que respeita ao aspecto quantitativo, refere ainda
Deolinda B. Mourão no artigo referenciado em nota, “as sensações
tácteis ficam ainda muito aquém das sensações visuais, em
virtude do espaço que é possível alcançar com os órgãos da
visão, e ao qual a mão só teria acesso, recorrendo a meios de
deslocação capazes de transportar o indivíduo em todas as
direcções e a todos os pontos desse mesmo espaço.”.
Impossibilitados de nos socorrermos de uma tal ubiquidade -por
exemplo as nuvens e os corpos celestes são coisas inalcançáveis
pela mão, não obstante tudo o que a vista pode ver e que a mão
não pode tocar ser susceptível de assumir uma forma real na
imaginação da pessoa cega, atendendo ao grande poder de
comunicação que as palavras contêm -, é incorrecto dizer-se que
a pessoa cega está impossibilitada de possuir imagens que só a
vista pode alcançar. Na realidade, aquilo que a mão pode atingir
de forma imediata e num curto espaço de tempo é
incomparavelmente inferior àquilo que a vista consegue abranger,
ainda que tomemos apenas como exemplo uma sala ou outro qualquer
compartimento de uma casa. De facto, tudo o que se encontra no
interior de uma sala pode ser tangível, porém a forma como se
processaria uma tal tangibilização leva a que a mesma se
verifique em circunstâncias bastante particulares, ficando a
pessoa cega, geralmente, numa situação desvantajosa em relação à
pessoa normovisual. Neste caso, também a descrição, bem como a
reprodução em modelos mais pequenos dos objectos que a mão não
consegue facilmente alcançar podem diminuir esta desvantagem.
Para além dos aspectos exteriores ao indivíduo já
referidos, há diferenças bastante acentuadas entre a percepção
táctil e a percepção visual, no que respeita à atitude do
próprio indivíduo no momento em que realiza uma ou outra
percepção, conforme o enunciado anteriormente. Enquanto a
percepção visual acontece automaticamente (o indivíduo vê sem
necessitar de tomar consciência disso), a percepção táctil só se efectuará se o indivíduo se dispuser a examinar, com atenção e
algum esforço de concentração, algo que deseja conhecer.
Efectivamente, numa e noutra percepção sensorial, a vontade do
indivíduo actua com finalidades opostas, isto é, o indivíduo que
não quiser ver tem que agir nesse sentido fechando os olhos, ao
passo que o indivíduo que pretende tactear alguma coisa tem que
pôr em acção os seus músculos e algumas das suas faculdades
mentais.
Neste contexto, Deolinda B. Mourão (1982) escreve:
“Existindo tão nítidas diferenças entre o sentido do tacto e o
sentido da vista, seria de supor que a falta deste último
afectasse de tal modo a vida do indivíduo, que este se sentisse
incapaz de qualquer actividade. Se isso não acontece é porque,
apesar da enorme vantagem que o sentido da vista tem sobre o
sentido do tacto, este pode ainda contribuir, de uma forma
bastante satisfatória, para a realização das mais variadas
tarefas da vida do indivíduo. De entre estas, as mais
importantes são as que ligam o indivíduo à sociedade de que faz
parte, permitindo-lhe uma participação útil e activa na
comunidade em que está inserido.”.
O sentido do tacto cumpre uma função fundamental na
realização profissional da pessoa cega, dependendo a sua
formação intelectual em grande medida de sensações tácteis, quer
através do contacto com o ambiente, quer através da leitura
táctil ou digital.
É incontestável a acção da imagem na evolução intelectual,
razão por que o meio físico e os órgãos dos sentidos exercem uma
preponderante influência nessa mesma evolução. A criança cega,
encontrando-se impossibilitada de agir em função de imagens
visuais, recorre naturalmente ao sistema sensorial táctil,
levada pela curiosidade e pelo desejo de identificar e conhecer o espaço em que vive. O facto da vista apreender informação,
numa abrangência incomparavelmente superior àquela que os
receptores sensitivos do tacto conseguem captar, não significa
que esta modalidade sensorial deixe de transmitir ao indivíduo
cego noções reais de volume, forma e situação relativa dos
objectos, que constituirão a base do seu raciocínio lógico.
Porém, em virtude das várias dificuldades levantadas pela
exploração táctil, de entre as quais se salienta, o que é
defendido por Deolinda Mourão, “a acção pouco significativa
exercida pelos estímulos”, o indivíduo tem que ser incitado, de
forma adequada e segura, a usar todos os recursos sensoriais e
motores de que dispõe, para obter do meio ambiente um nível de
informações tão amplo quanto possível.
No que diz respeito ao aspecto afectivo, é o sentido do
tacto que, depois do ouvido, se manifesta primeiro do que o
sentido da vista, constituindo o tacto, por isso mesmo, o
primeiro elo de ligação entre a criança (ainda antes do seu
nascimento) e a mãe, o que não significa que, no futuro, esta
modalidade sensorial possa proporcionar ao indivíduo um maior
número de emoções do que o sentido da vista. “Relacionados com a
cor e a luz -adianta Deolinda B. Mourão -, existem formas de
arte de grande divulgação, completamente vedadas às formas de
conhecimento do sentido do tacto. Através deste, porém, é
possível experimentar alguns momentos de satisfação ou desagrado
pelo contacto com objectos e materiais de uso diário, água ou ar
atmosférico, além da literatura e poesia, a maior parte das
vezes possível através do sistema braille.”.
Para que através dos sistemas sensoriais alternativos ao da
vista se adquira uma mais ampla e eficaz percepção ambiental,
impõe-se o treino designadamente auditivo, olfactivo e táctilcinestésico.
No que respeita à audição, Fraiberg e outros autores (1966, 1976) recomendam que a sua estimulação se deve iniciar
tão precocemente quanto possível, de forma a poder ser
estabelecida uma coordenação “ouvido-mão” que estimule e guie os
movimentos do corpo. Para alcançar tal objectivo, o som precisa
de ter significado, necessitando o indivíduo de ser capaz de
realizar uma discriminação auditiva que contribua para o
conhecimento de si próprio e do mundo, princípios que levam
Fraiberg a propor duas fases de estimulação:
1.ª Fase - Interacção verbal, associando nomes, objectos e
verbos a gestos motores (agarrar, mexer, correr, por exemplo);
2.ª Fase - A
criança deve ser ensinada a ouvir ler,
aprendizagem que deve iniciar-se por pequenas frases e
pequenos textos.
No que respeita à deslocação no espaço, o saber localizar com
precisão uma fonte sonora, determinando a distância a que se
encontra dela, desempenha um papel primordial nesta fase,
procurando-se, posteriormente, que a criança saiba deslocar-se
em diferentes direcções relativamente à fonte sonora.
No que concerne ao treino olfactivo, este sentido deve ser
utilizado, de igual modo, como forma de motivação para a
deslocação, devendo, numa primeira fase, tentar-se que a criança
se desloque na direcção de um odor agradável e, numa fase
posterior, deve ser ensinada a utilizar os odores como pontos de
referência em relação aos quais ela se possa deslocar ou situar
no espaço.
Para se treinar o sistema sensorial táctil-cinestésico, para se
obter o desenvolvimento desta modalidade sensorial, Barraga
(1974) sugere que é necessário levar a criança a
-discriminar a textura dos objectos e perceber as suas formas;
-construir, a partir de uma informação analítica, qualidades
reconhecíveis nos mesmos objectos (rigidez, unidade,
estabilidade, peso, forma, espessura e textura, por exemplo);
-tomar conhecimento gradual de pequenos detalhes dos objectos e
integrá-los na sua forma total.
Para além da utilização da linguagem, como informação
adicional, Barraga (1974) sugere também que a eficácia deste
sentido, para recolher e fornecer informação, implica sempre o
movimento, necessitando as crianças cegas de envolver todo o
corpo na procura e recolha de informação acerca delas próprias e
do mundo exterior. No entanto, aquisições deste tipo
encontram-se muito condicionadas pela ausência da vista, visto
que estas dificultam a aprendizagem de movimentos intencionais.
Pensamos que se articulam, num processo de identificação de
certas realidades, não apenas sistemas sensoriais isolados, mas
também sistemas conjunturais de modalidades sensoriais como, por
exemplo, a actuação, em determinadas circunstâncias, do sistema
quino-táctil.
O tacto, cuja sensibilidade ao contacto e à pressão varia
consoante as regiões do corpo e depende da densidade da
repartição dos corpúsculos tácteis, permite-nos sentir com o
corpo realidades diversas e com graus diferentes de intensidade.
A nossa testa, por exemplo, é sensível a pressões de 0,2mg por
mm2, ao passo que para a polpa dos dedos se requer 1,5mg de
pressão. A acuidade táctil corresponde à sensação de duplo
contacto e depende também da densidade dos receptores. Deste
modo, para que a ponta da língua distinga as duas pontas de um
compasso (estesiómetro de Weber), basta que estejam afastadas de
um milímetro, enquanto que, na polpa dos dedos, são necessários três milímetros, nas costas da mão dezasseis milímetros, na coxa
setenta milímetros.
A capacidade de discriminação táctil, ou perceptibilidade
táctil dos objectos, encontra o seu maior desenvolvimento nas
extremidades dos órgãos móveis (os órgãos de palpação) dos seres
vivos: antenas dos insectos, tentáculos do caracol, tromba do
elefante, mão do ser humano, cujo maior poder de discriminação
táctil se encontra na polpa dos dedos, especialmente entre o
polegar e o indicador, sendo pela capacidade de interpretação
táctil da forma, desenvolvida a um grau inverosímil, que as
pessoas cegas conseguem ler fluentemente textos em relevo.
Atendendo a que a sensibilidade táctil apresenta o seu grau
máximo de desenvolvimento por volta dos oito anos, a sua
educação deve coincidir, sempre que possível, com os primeiros
anos de escolaridade, pois, só assim se poderá colher da leitura táctil todo o proveito e satisfação que a mesma proporciona. É
que, sendo a velocidade de leitura condicionada pelo maior ou
menor desenvolvimento da capacidade táctil do indivíduo, convém
que esta atinja todas as suas possibilidades para que a leitura
seja fluente e sem grande esforço físico. Acresce salientar o
cuidado atento que deve ter-se relativamente ao tipo de
materiais e temperaturas que se observam com o tacto, bem como
outras precauções para a sua preservação, de forma a que a educação desta modalidade sensorial não seja prejudicada nos
seus objectivos.
O sentido quinestésico ou sentido das atitudes e dos
movimentos é constituído por um conjunto de sensações relativas
a -posição e deslocações do corpo e dos membros e
-esforço exigido pelos nossos movimentos e atitudes.
O dispositivo receptor é constituído por corpúsculos
tácteis distribuídos pelos órgãos motores -músculos, tendões,
articulações -, de onde os nomes sucessivos de tacto profundo,
sensações musculares, tendinosas, articulares, dados também ao
sentido e às sensações quinestésicas. Os estímulos quinestésicos
são pressões e tracções exercidas sobre o dispositivo receptor
(corpúsculos tácteis), e articulações -onde esses corpúsculos
estão situados. Se fecharmos os olhos, sabemos quando estamos
sentados ou de pé (atitude), podemos comer (movimento),
deslocamos um móvel (esforço), etc. Em qualquer dos casos, somos
intruídos pelo sentido quinestésico, pelo que se compreende que
esta modalidade sensorial, juntamente com a táctil e a auditiva,
seja fundamental para as pessoas cegas, sendo-o igualmente para
todas as actividades e profissões para que se requeira precisão
de movimentos, cálculo de esforço, atitude orgânica conveniente.
O estímulo das sensações cinestésicas (também denominadas
viscerais e orgânicas) é o natural funcionamento dos órgãos,
encontrando-se as células cinestésicas distribuídas pelos vários
órgãos, sobretudo pelos aparelhos digestivo, respiratório,
circulatório, muscular, parecendo as respectivas impressões
transmitir-se ao cérebro através do sistema neurovegetativo,
sendo este sistema considerado como o órgão fundamental da
cinestesia.
O elemento comum a todas as sensações cinestésicas é o seu
carácter indefinido, difuso, a sua difícil localização. O nome
do nervo “vago”, dado pneumogástrico (o mais importante do
parassimpático) parece filiar-se precisamente neste tipo de
sensibilidade difusa, queéoda cinestesia.
As sensações cinestésicas têm aspecto predominantemente
afectivo e traduzem as impressões agradáveis ou desagradáveis
resultantes do funcionamento dos órgãos, sendo as mais conhecidas a fome e a sede, o enfartamento, o cansaço, a falta
de ar, a debilidade e a força, o bem e o mal-estar orgânicos. A
cinestesia representa para nós uma enorme importância, sendo por
seu intermédio que conhecemos as nossas necessidades e as
podemos satisfazer, dependendo dela, em primeira instância, o
nosso equilíbrio orgânico.
É claro que, sobretudo para as pessoas cegas, o auxílio
treinado (para além dos já enunciados) de outros sistemas
sensoriais -como o térmico, o álgico, os sentidos de equilíbrio
e orientação -ajudam a consubstanciar, numa acuidade
extraordinariamente desenvolvida e consolidada, um complexo
dispositivo sensorial alternativo à modalidade visual,
garantindo a certos indivíduos cegos uma ampla (por vezes
inimaginável) perceptibilidade dos seus sentidos.
Quanto ao sistema vestibular, Herbert L. Pick sustenta que
é este o sistema sensorial (não visual) mais importante para a
orientação, em relação à gravidade e para as mudanças de posição
no meio circundante.
O aparelho vestibular é uma parte do labirinto membranoso
localizada no lobo temporal, no ouvido interno, constituído por
canais semicirculares, o utrículo e o sáculo.
George Sage afirma que este aparelho é sensível a dois
tipos de informação -a posição em que a cabeça se encontra
(acelerações rectilíneas); a qualquer espécie de mudanças na
direcção do corpo e da cabeça (acelerações angulares). A função
principal deste aparelho respeita à manutenção do equilíbrio do
corpo e ao preservar, no mesmo plano, a posição da cabeça.
Executa-a, fundamentalmente, de duas maneiras -pela modificação
da tensão muscular; pela fixação do olhar. O utrículo e o sáculo
fornecem uma informação permanente sobre a posição da cabeça em
relação à gravidade. O funcionamento do aparelho otalítico é
avaliado pelo número de graus de rotação dos olhos em relação à
cabeça, quando esta se inclina lateralmente, tendo os olhos
ainda uma função reflexa sobre os centros superiores que
condicionam a postura.
Para Stanley Suterko (1974), a informação obtida através do
sistema vestibular refere-se ao retorno à vertical após uma
inclinação lateral ou antero-posterior do corpo, quando o
indivíduo se encontra de pé.
Quando o sistema vestibular actua isoladamente, não é capaz
de fornecer uma noção clara relativa à posição do corpo no
espaço, necessitando assim de informações adicionais dos
proprioceptores do pescoço e da transmissão através das conexões
nervosas existentes entre ela e os músculos motores do globo
ocular, pois existe uma interligação dos receptores
proprioceptivos e visuais no que respeita à manutenção da
postura e do equilíbrio, a uma boa orientação, ajustamento e
coordenação de movimentos, mantendo-se assim o organismo
informado da posição da cabeça, tronco e membros.
Sabemos que (e isso parece ser indiscutível) socialmente o
ouvido escorreito representa para o indivíduo um factor
indispensável para se relacionar com o seu semelhante e não
ficar isolado numa comunidade em que, para chegar à compreensão
do mundo que o envolve, necessita da “sensibilidade, da
audibilidade e da inteligibilidade que só o complexo mecanismo
da audição lhe permite adquirir.”.
O sentido da audição está intimamente ligado à
personalidade humana em relação com as funções psíquicas do
indivíduo e, fundamentalmente, ligado à perceptibilidade das
coisas, dos objectos que emitem sons próprios (ou quando caem
no chão, ou quando os tocamos), dos ruídos, da palavra que se
ouve e se profere e, por vezes, da intuição ou capacidade experienciada para se perceberem as subtilezas ou as intenções
do interlocutor ou interlocutores, informação que a matéria da
palavra proferida (o som da fala ou a voz) veicula, a substância
(ou manifestação da forma na matéria) numa dimensão
glossemática.
“Todo o indivíduo que sofre de cegueira congénita ou
adquirida conhece por experiência própria o valor que a voz
humana tem como meio de interpretação de determinados caracteres
psicológicos e até fisiológicos.”.
A primeira impressão colhida, conscientemente ou não, no
contacto que uma pessoa cega estabelece pela primeira vez com
uma outra pessoa (seja cega ou normovisual) tem a mais alta
importância na atitude que a pessoa cega toma para com o novo
indivíduo (a pessoa que passa a conhecer ou que passa a ouvir
falar) e influencia, muitas vezes de forma decisiva, quaisquer
mudanças que essa mesma atitude (a da pessoa cega) venha a
sofrer no decurso de uma convivência mais prolongada.
É sobretudo para aqueles que se dedicam às profissões
liberais, em que o conhecimento da personalidade do indivíduo
com quem se trata entra como factor essencial na determinação do
modo como se devem regular palavras e actos, que a interpretação
de caracteres psicológicos por meio da voz assume capital
valor.(Albuquerque e Castro, 1938). E não só esse aspecto, mas,
principalmente, intenções ou disposições passageiras que tantas
vezes se consubstanciam e se revelam na voz, o que se traduz, na
generalidade, para as pessoas que vêem, nos gestos diversíssimos
(da cabeça, das mãos, corroborados pela expressividade dos
olhos), nos movimentos do corpo, nos sorrisos, na forma de
olhar, nos trejeitos da face, nas alterações do semblante e da
face (mais ou menos rubicunda), etc., elementos que, atentamente
visualizados (nos gestos) e escutados (na voz e, por vezes, nos
rumores adicionais desses gestos ou movimentos, mesmo odores),
fornecem apreciáveis indicadores de carácter, quer para as
pessoas normovisuais, quer para as pessoas cegas.
A pessoa cega, mais do que a normovisual, pode exercer com
proveito esta espécie de actividade psico-analítica, porque é
sobretudo com sensações auditivas que ela enforma os seus
conhecimentos e porque a necessidade de substituir a vista pelo
ouvido e o uso constante e atento que deste sentido faz lhe dão,
em determinadas circunstâncias ou contextos situacionais, uma
notável hipersensibilidade. Nesta acepção, não hesitamos em
fazer uma clara apologia do ouvido, visto que, para as pessoas
cegas, a cultura da audibilidade, a cultura da escuta, pode
proporcionar-lhes um mundo maravilhoso de convivialidade e
inexaurível de descobertas.
Citados por Albuquerque e Castro, dois exemplos curiosos de
Thomas D. Cutsforth, no seu livro “El Ciego en la Escuela y en
la Sociedad: Estudio Psicológico” (referenciado no capítulo
anterior), podem ilustrar a nossa inequívoca convicção.
Primeiro exemplo:
Um indivíduo, acompanhado dum filho de treze anos, cego,
entrou num estabelecimento e perguntou ao empregado:
-Tem uvas-passas sem grainha?
-Sim senhor, tenho-as chegadas ontem mesmo. Deseja dessas ou
prefere das maiores com grainha?
Servido conforme os seus desejos, o indivíduo saiu e foi
logo interrogado pelo filho acerca do motivo que levara o
empregado a não querer vender-lhe as uvas pedidas. O pai
estranhou a observação do filho, visto que o caixeiro nada tinha
dito por onde pudesse inferir-se que não quisera vender as uvas.
Contudo, na primeira vez que voltou ao estabelecimento, falou no caso e foi então informado de que, efectivamente, aquelas uvas
estavam cheias de insectos. Apesar do grande desejo que tinha em
vendê-las rapidamente, o empregado hesitara em servir com elas
um dos melhores clientes da casa. Foi esta hesitação que o jovem
cego percebeu na pergunta “deseja dessas ou prefere das maiores
com grainha?”.(J. de Albuquerque e Castro, 1938).
A significação especial daquela frase “deseja dessas ou
prefere das maiores com grainha?” tirou-a o jovem, não das
palavras, mas da voz (num tom impregnado de um determinado
laconismo) com que proferiu as palavras, cuja entoação
particular escapara ao pai.
Segundo exemplo:
De outra vez, um cientista, depois de apresentar um
trabalho seu a um grupo de indivíduos não especializados na
matéria que versava, encontrou uma pessoa cega que tinha
assistido à sua conferência e perguntou-lhe se havia gostado. A
pessoa cega respondeu que o trabalho, sem dúvida, era bom, mas
que o tinham interessado mais as mudanças de atitude emocional
do orador do que o discurso propriamente. E explicou que,
durante a exposição, o conferencista havia experimentado cinco
estados de espírito diferentes a respeito do seu trabalho e do
auditório. O cientista ficou extremamente admirado, tanto mais
que, na verdade, tinha consciência de que havia passado
efectivamente pelas transições indicadas pela pessoa cega. Mas,
convencido como estava de que ninguém, senão aquela pessoa cega,
podia conhecer as aludidas transições, insistiu com o seu
interlocutor para que lhas descrevesse. E a resposta foi esta:
“Primeiro, o senhor sentiu-se contente pela oportunidade de
apresentar o seu trabalho perante aquela assistência e desejoso
de que ela o compreendesse. Segundo, o senhor teve dúvidas tanto
sobre a clareza da sua exposição como sobre a capacidade de
compreensão dos ouvintes. Terceiro, o senhor animou-se da
esperança de que, se eles não apreciassem os conceitos
científicos, poderiam gostar dos pormenores e dos exemplos
concretos. Quarto, o senhor abandonou esta esperança e decidiu
que mais nada havia a fazer senão suportar aquela gente até ao
cabo. Isto durou quase até ao fim, em que, finalmente, o senhor
-e seria o quinto aspecto -se retraiu e sentiu que perdia o
seu tempo tanto a instruir como a divertir auditório tão mal
preparado”.(J. de Albuquerque e Castro, 1938).
Como facilmente se depreende, na impossibilidade de
observarmos com os olhos as variações de expressão traduzidas
pelos gestos, atitudes, contracções faciais, etc., a pessoa cega
faz recair todo o seu poder de análise, toda a sua faculdade
intuitiva ou com um carácter mais probatório de
perceptibilidade, a sua capacidade psico-analítica, sobre a
natureza da voz de quem lhe fala. É que o ouvido facilita a
comunicação e, no caso das pessoas cegas, este sentido é um
indispensável veículo de comunicabilidade e de sociabilidade,
numa dimensão que se pretende que seja de verdadeira interacção,
permitindo-lhes integrar-se num determinado contexto social,
captando receptividade ou repulsa pela sua tentativa (por
hipótese) de inserção num certo grupo, apercebendo-se
inequivocamente de todo um conjunto de características de índole
psicossocial e cultural, de uma forma globalizante, por exemplo
do meio sócio-intelectual, pedagógico-didáctico, etc., em que se
encontra.
A pessoa cega recebe, através do ouvido, informação,
selecciona e equaciona as correspondentes respostas ou processos
de interacção. O acto comunicacional é também a interacção da
perceptibilidade (consubstanciada nas sensações e informações do
conjunto dos restantes sentidos, exceptuando a vista) com a emissão e recepção de dados ou informação. Para haver
comunicação é imprescindível que haja emissão de qualquer
mensagem e recepção dessa mensagem de forma descodificada,
entendível, perfeitamente compreensível. O ouvido (associado a
outros sistemas sensoriais e a inúmeros ingredientes sensoriais)
é o sentido social por excelência das pessoas cegas, assim como
a vista o é para as pessoas normovisuais.
Todas as características da voz humana, intensidade,
modulação, timbre, modificações de entoação, mesmo as mais
subtis, são outros tantos elementos de apreciação que permitem à
pessoa cega determinar alguns dos principais traços psicológicos
do seu interlocutor, às vezes com extraordinária precisão.(J. de
Albuquerque e Castro, 1938. Augusto Deodato Guerreiro, 1996,
1997).
A determinação, por parte da pessoa cega, de alguns dos
principais traços psicológicos do seu interlocutor incide apenas
nos caracteres mais gerais e está longe de constituir sistema
regular e infalível de interpretação da personalidade através da
voz(Albuquerque e Castro, 1938). Tal interpretação escapa muitas
vezes ao controlo da razão e surge mais como síntese espontânea
e intuitiva do que como análise fundamentada e criteriosa.
Mas a capacidade de observação e, sobretudo, a experiência
acumulada possibilitam ao indivíduo cego aperceber-se, quase ao
primeiro contacto auditivo com a voz de qualquer pessoa, de um
ou outro dos seus principais caracteres psicológicos.
Efectivamente, a voz humana traduz certas atitudes morais
ou determinados estados de espírito transitórios, por vezes
melhor ainda do que através do olhar e com menor poder de
dissimulação.
A lealdade, a franqueza, a astúcia, a volubilidade, a
hipocrisia e, em especial, todas as exaltações ou depressões
momentâneas do ego, revelam-se, nitidamente, através da voz
humana. A interpretação dos traços psicológicos é mais exacta e
mais regular.(Albuquerque e Castro, 1938).
Poderíamos citar alguns casos pessoais de interpretação
deste género, em que caracteres mais restritos, como a timidez,
a subserviência, o entusiasmo, a inclinação para a mentira, são
postos em foco logo ao primeiro contacto. E até, em casos pouco
frequentes aliás, nos tem sucedido receber de chofre, ao ouvir
falar determinadas pessoas pela primeira vez, a impressão de que
elas são altas ou baixas (o que facilmente se pode detectar com
a sua proximidade de nós), gordas ou magras (o que igualmente se
detecta pela proximidade e, em regra, a voz é mais arrastada nas
pessoas obesas), usam bigode (em regra, as sílabas labiais saem
ligeiramente sibilantes), têm lábios finos ou grossos (em regra,
as sílabas, sobretudo as labiais, saem ligeiramente com mais
volume dos lábios grossos), cabelo crespo ou liso (por enquanto,
só por adivinhação), etc.
Esta espécie de cinestesia, que permite a formação de
“imagens visuais” por intermédio de sensações auditivas, é
inteiramente automática e refractária a qualquer estudo
preparatório da sua efectiva percepção, da sua
eclosão.(Albuquerque e Castro, 1938. Augusto Deodato Guerreiro,
1996, 1997).
Todas as vezes que, ao ouvirmos falar um indivíduo
desconhecido, perguntamo-nos logo que características
fisiológicas, fisionómicas, se nos afiguram serem as suas e, de
algum modo, pretendemos determiná-las, ficamos, nalguns casos,
quase sempre muito próximos da realidade e, noutros, muito longe
da realidade. A interpretação dos traços psicológicos por
intermédio da voz é mais exacta e mais regular, sendo muitas
vezes até possível extrair essa interpretação do exame atento dos diversos elementos que constituem a estrutura da voz, de
modo que ela deixa já de ser a resultante da primeira impressão,
para se transformar em instrumento consciente e voluntário de
apreciação. (J. de Albuquerque e Castro, 1938. Augusto Deodato
Guerreiro, 1996, 1997).
A voz humana tem para a pessoa cega, sobretudo para a
detentora de cegueira total, o mais alto valor, visto que é
através da voz humana que recebe uma grande parte das impressões
que a ligam ao mundo exterior, à comunidade envolvente,eéa
voz humana que mais directamente lhe faculta as intenções e as
atitudes dos que vivem à sua volta e com quem dialoga.(Augusto
Deodato Guerreiro, 1996, 1997).
Não é às palavras em si, mas à sua inflexão, ao timbre, a
pequenas subtilezas de expressão, que cada um caracteriza a seu
modo, e que seriam difíceis de integrar num tipo comum, que a
pessoa cega vai buscar os elementos de interpretação de qualquer
intenção ou disposição do seu interlocutor. Por isso, certas
palavras de estímulo ou de consolação, que são dirigidas à
pessoa cega, produzem nela, com frequência, as mesmas reacções
hostis que frases de piedade ou de lástima, imprudentemente
ditas na sua presença. A voz, normalmente, trai sempre o
indivíduo que diz o que não sente.
As palavras podem ser outras (criteriosamente
seleccionadas), evidenciando ou simulando estímulo de vida, mas
(desde que o que se diga não confira com o que se sente) a
expressão que as envolve, a voz que as materializa, é
precisamente a mesma que veicula (noutras circunstâncias ou
situações) lástima ou piedade.
Na realidade, esta faculdade interpretativa constitui um
interessantíssimo problema tiflo-sócio-comunicacional, raras
vezes estudado e que, todavia, guarda o segredo de alguns
insucessos por parte de pessoas cegas que, lançadas na luta pela
sobrevivência quotidiana, nem sempre procuraram orientar a sua
conduta pelos estados psicológicos individuais ou colectivos do
meio ambiente, da sua comunidade envolvente.
Não é fácil, por enquanto, estabelecerem-se princípios e
regras para o estudo sistemático, com uma certa credibilidade
científica, deste aspecto da voz humana, mas cabe efectivamente
à tiflologia (mais exactamente à tiflopedagogia e
tiflopsicologia) chamar para esta questão a atenção das crianças
cegas, pais e educadores, para que não percam, mas cultivem tão
valioso elemento de penetração num mundo que, à primeira vista,
lhes poderá parecer vedado ou inacessível, mas que reúne o cerne
da problematicidade da pessoa cega, no que se refere à sua
capacidade para comunicar e socializar-se, para se autonomizar
aos mais diversos níveis e interagir na sociedade.
Há pois que exercitar ou cultivar a apreensão das coisas,
dos objectos, dos espaços, dos ruídos diversos (incluindo
naturalmente os musicais), das distâncias, da diversidade de
comportamentos humanos, das características de determinadas
expressões da voz humana, de determinados gestos, de
circunstâncias e espaços envolventes... Há que treinar esta
faculdade nas crianças cegas desde o berço, rendibilizando-lhes o conjunto dos restantes sistemas sensoriais (com preponderância
especial para as modalidades auditiva, gustativa e táctilcinestésica),
nunca perdendo a oportunidade de lhes mostrar na
mão o que é possível tangibilizar. Há coisas que são
visualizáveis, mas que não são tangíveis. Aqui impera, da parte
de quem vê, uma capacidade expositiva e um ser capaz de traduzir
por palavras o que só os olhos podem alcançar.
Se tudo isto for feito meticulosamente, com proficiência e
sistematização, o processo tiflo-sócio-comunicacional e tiflo-interactivo atinge, seguramente, amplitude em determinados
domínios igual ao processo sócio-comunicacional e interactivo
das pessoas normovisuais.
A palavra e a percepção do seu todo (carga hipoteticamente
emocional, de apatia, etc.) captadas por um ouvinte treinado
constitui a base fundamental de um excelente processo de
comunicabilidade e de sociabilidade para qualquer pessoa cega.
Daí que se imponha, cada vez mais, a ampliação da
utensilagem mental, a formação intelectual e profissional das
pessoas cegas.
Na ausência da formação intelectual e profissional,
sustenta J. Pecegueiro, “Não admira que o vulgo imagine o cego
como inválido. De um lado, pela constatação do próprio facto
quotidiano de que a cegueira traz a invalidez; do outro, porque
parece teoricamente evidente que a ausência do sentido da vista
dificulta, se não impede, a perfeita formação profissional e
intelectual.”.
“Ora, a verdade é o contrário: a ausência do sentido da
vista -adianta J. Pecegueiro -não impede a formação
profissional nem muito menos a intelectual; o cego tem
possibilidades realísticas de ser, como qualquer outro
indivíduo, útil à sociedade. Mais: está plenamente demonstrada a
igualdade profissional do não vidente em muitos mesteres e os
caminhos que se lhe abrem são cada vez mais latos. Henry Ford
empregou-os na suas fábricas e verificou a eficiência do seu
trabalho. O mesmo fizeram as fábricas Peugeot, em França. O
facto repetiu-se em alguns países, como a Inglaterra e a América
do Norte, onde existem centenas de tarefas que os cegos efectuam
nas fábricas mais variadas.”.(J. Pecegueiro, 1957).
“Claro que, pedagogicamente, não é o problema da orientação
profissional o primeiro na ordem lógica. A educação profissional
é resultado e não ponto de partida. Ponto de partida deve ser,
antes de tudo, o problema da formação intelectual do
invidente.”.(J. Pecegueiro, 1957).
Sublinha ainda J. Pecegueiro, no seu artigo referenciado em
nota, que, pela escrita braille, a pessoa cega pode, como se
sabe, “entrar em contacto com a Literatura, a Arte e a Ciência.
É esse o veículo material que possibilita a sua educação. É por
aí também que pode transmitir o seu pensamento, assimilar os
conhecimentos humanos e colaborar no progresso desses
conhecimentos ou exprimir-se como artista.”.
Importava, portanto, há quarenta anos atrás e conforme
sustentava J. Pecegueiro, “dar possibilidades de educação a
todos os que não vêem.”. A sua formação intelectual revestia-se
até à década de 50, quase exclusivamente de aspecto mais ou
menos primário, a que se juntava, como estudo complementar, o
ensino das línguas e da música. “A verdade, porém, é que a
educação do cego -acrescentava J. Pecegueiro -pode atingir
níveis tão elevados como os que se ministram nas escolas
superiores. Nem se julgue que tal educação tenha, no entanto, de
ser restringida aos estudos essencialmente literários; a cultura
científica pode e deve ser assimilada do mesmo modo.”.
O autor em referência já tinha consciência de que, sem
dúvida, haveria que resolver muitas dificuldades técnicas para
poder pôr ao serviço das pessoas cegas o material didáctico que o ensino das ciências exige. “Mas -esclarecia -não devem
confundir-se dificuldades materiais com impossibilidades
teóricas.”.
“A tarefa mais importante consiste, por isso, em estudar a
didáctica adequada aos diferentes ramos do conhecimento. Serão
mais complexos os processos de aprendizagem em domínios
científicos onde o recurso ao método experimental se fizer com relevância da «observação», pois nela é predominante a de
natureza visual.”.(J. Pecegueiro, 1957). Mas é certo que não
será de todo impossível, na experimentação, fazer corresponder à
observação visual a táctil ou a auditiva. Ainda que admitindo a
impossibilidade, sabemos que a investigação laboratorial pode
fazer-se em cooperação com indivíduos normovisuais, embora, por
vezes, isto restrinja o âmbito e a natureza da actividade do
investigador cego, restrição que, em nossa opinião, apenas se
pode verificar ao nível prático e técnico, mas nunca ao nível
teórico.
Curiosamente (entre outros exemplos dignos de nota em
Portugal, nos domínios da matemática pura e da física), o
biólogo Vítor Almada é cego congénito, o que não o impediu de se
doutorar nesse domínio, na especialidade de comportamento de
peixes com elevada classificação, pela Universidade de Lisboa,
sendo, presentemente, professor e investigador no Instituto
Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), onde também coordena uma
equipa de investigação na área da etologia. Poderíamos mencionar
inúmeros outros exemplos em actividade nos vários domínios da
ciência, cuja acessibilidade é aparentemente impensável para
pessoas cegas, mas que, de facto, têm dado provas de inequívoca
eficiência, funcional e operacional, em diversos pontos do
mundo, com especial incidência na Europa e nos Estados Unidos.
“Acresce ser verdade epistemológica -afirma ainda J.
Pecegueiro no seu artigo -que todo o facto é essencialmente
teoria. Cada vez mais, no domínio da Física, o experimentador
não vê aquilo que observa; o teórico explica aquilo que nunca
viu: é aí tão cego como o próprio cego. Nem interessa que veja,
porque certamente nada haverá que ver. Melhor: o próprio desejo
de querer ver prejudica a verdadeira intelecção dos fenómenos.”.
“A intelecção científica -conclui o mesmo autor - não é do
nível sensorial. Os sentidos fornecem apenas dados sem
conexidade, caóticos sentires. A realidade científica não se
estampa na mente pelos sentidos. O nível percepcional dá-nos a
conhecer o mundo das coisas materiais com que lidamos todos os
dias, das coisas que vemos, palpamos, cheiramos, ouvimos. Mas o
conhecimento dessas coisas não é conhecimento científico. A
Ciência não estuda coisas, estuda objectos inteligíveis. Por
isso, cientificamente, nada perde o cego em não percepcionar as
coisas como os outros as percepcionam. Isto é, em as não ver.
Perde, sem dúvida, no sentido pragmático e estético, mas não no
sentido científico. Porque nada daquilo que no mundo se vê é
realmente como se vê.”.
Furtando-se a uma explicação epistemológica das suas afirmações,
J. Pecegueiro aponta, no entanto, a tese, e com ela os
fundamentos doutrinários, em que assenta a afirmação de que “a
cultura intelectual científica é inteiramente acessível aos
indivíduos privados de sensações visuais.”.
II.4 - A Perceptibilidade dos Sistemas Sensoriais como Garante
da Comunicabilidade, Sociabilidade, Mobilidade,
Autonomia e Interacção das Pessoas Cegas
A rendibilização e uso dos sistemas sensoriais alternativos
ao da vista colocam-nos, normalmente, face ao conceito de visão
e, neste contexto, na perspectiva do nativismo e do empirismo.
Derivando de tradições filosóficas estabelecidas, dois temas
dominaram a investigação inicial sobre a visão. Havia, por um
lado, a ideia originária dos filósofos empiristas britânicos dos séculos XVII e XVIII, sobretudo Locke (1632-1704), Berkeley
(1685-1753) e Hume (1711-1775), de que todo o nosso conhecimento
se baseia essencialmente nos sentidos, sendo as sensações
elementares os blocos construtores do conhecimento, sendo tudo o
resto secundário e apenas influenciado, designadamente, pelo
hábito, pela suposição, pela memória. Estes factores iriam
ajudar a criar a nossa representação do mundo
(“construtivismo”), sendo os elementos primários do conhecimento
dados através das simples sensações “nuas e cruas”.
Em oposição estava o nativismo, ramo do racionalismo do
filósofo francês Descartes (1596-1650), que afirmava que os
sentidos eram falíveis, tornando-se, por isso, necessário que
todo o verdadeiro conhecimento se baseasse no pensamento puro,
na razão e na capacidade inata de ordenar e interpretar as
mensagens dos sentidos.
A opositividade destas teorias ainda se reflecte nas
actividades teóricas e práticas dos psicólogos actuais, mas já a
partir de 1830 dominavam o campo da investigação. Por um lado,
Hermann von Helmholtz (1821-1894), o grande fisicista e
psicólogo, sustentava que todo e qualquer estímulo sensorial é
basicamente ambíguo e que a verdadeira percepção exigia a
participação activa do observador para se tornar real
(“inferência inconsciente”). No outro extremo, encontrava-se o
psicólogo Ewald Hering (1834-1918), defendendo que a compreensão
dos fenómenos psicológicos dependia essencialmente da
investigação da actividade neuronal que os despoletava, tendo
por isso uma base inata.
Na actualidade, seria difícil encontrar um apoiante de
qualquer destas posições na sua expressão mais pura, contudo,
mesmo assim, ainda subsistem como os pólos, tal como no passado,
do espectro de certas posições teóricas que os psicólogos da
percepção adoptam.
Observemos alguns factores perceptivos implicados na
mobilidade e no conhecimento espacial que, de algum modo,
ficaram esbatidos nos pontos anteriores do presente capítulo.
Quando um indivíduo se desloca num determinado meio, está a
ser receptor de um conjunto múltiplo de informações ambientais,
que capta através dos diferentes sistemas sensoriais de que
dispõe. São, efectivamente, estes dados perceptivos, se forem
suficientemente completos e especificados, que permitem a esse
mesmo indivíduo deslocar-se. Além disso, essa informação
perceptiva, ao capacitar-nos para o conhecimento de pontos de
referência do meio, necessários para não nos perdermos,
possibilita a elaboração de uma recordação, de uma representação
mais ou menos precisa desse meio. Esta representação ou
recordação é o que torna possível, no futuro, podermos percorrer
esse lugar ou outro semelhante. Desta forma, é muito importante o papel desempenhado pela informação perceptiva na mobilidade e
na orientação espacial, pois, quando falta algum canal para
recolha de informação (especialmente o visual), por vezes
colocam-se grandes dificuldades tanto à movimentação como a
recordação do espaço.
Não pretendemos repetir dados enunciados anteriormente, mas
temos em mente as possibilidades que possuem as diferentes
modalidades sensoriais de que dispõe o ser humano para perceber
a informação espacial, desempenhando a “antecipação perceptiva”
uma importante função no âmbito da percepção ambiental.
Quando falamos de antecipação perceptiva, estamos a
referir-nos a uma propriedade que possuem algumas modalidades
sensoriais, a qual permite ao indivíduo conhecer com antecipação
(antes de ter contacto directo com os objectos), a disposição, o
tamanho e o tipo de objectos que se encontram num determinado espaço. Assim, a antecipação perceptiva torna possível, numa
deslocação, prever os obstáculos que se encontram no caminho e
detectar pontos de referência a uma certa distância, ajudando,
simultaneamente, a corrigir e a guiar a marcha. O sistema
sensorial visual é a modalidade perceptiva que maior antecipação
proporciona e a que, em consequência, permite ao indivíduo
realizar outras actividades enquanto caminha, como por exemplo,
conversar com alguém, reflectir sobre certos acontecimentos,
ouvir música, observar o céu plúmbeo ou o arco-íris, contemplar
uma paisagem, etc. Nesta abrangente perspectiva, as pessoas
cegas não possuem uma capacidade de antecipação perceptiva tão
ampla e completa como as normovisuais. No entanto, por
experiência própria e em conversas com outros indivíduos cegos
(de diferentes nacionalidades, de níveis etários e de
conhecimento igualmente diversos), constatamos a existência
inequívoca de experiências eficazes de mobilidade em meios que
apresentam um grande número de obstáculos naturais, sem recurso
a qualquer tipo de ajudas de orientação e mobilidade (conforme o
já expresso no ponto dois deste capítulo), o que nos remete,
também, para a existência de aspectos que permanecem ainda algo
desconhecidos, tanto no que respeita à recolha de informação
espacial por parte das modalidades sensoriais alternativas à
vista, como no que concerne às relações que se estabelecem entre
a antecipação perceptiva e a antecipação cognitiva.
De facto, na ausência do sentido da vista ou quando este se
encontra muito debilitado, o indivíduo tem de recorrer a
modalidades sensoriais que recolhem a informação de forma mais
lenta e fragmentária, o que coloca maiores dificuldades na
antecipação da informação. Para além disso, a falta do sistema
sensorial visual impõe à pessoa cega a utilização, com maior
frequência do que a pessoa normovisual, de recursos de memória,
representação espacial, tomada de decisões e outras habilidades
de carácter cognitivo. Tudo isto, em determinadas ocasiões, pode
ocupar a capacidade funcional do sistema cognitivo da pessoa
cega, pelo que deve pôr todos os seus recursos atencionais à
tarefa de caminhar.
Como sabemos, a capacidade máxima de antecipar
perceptivamente a informação em deslocação, para uma pessoa
normovisual, é de cerca de setenta e seis metros, correspondente
à distância que a mesma percorre, normalmente, em um minuto.
Pelo contrário, uma pessoa cega que caminhe com o auxílio de uma
bengala, só consegue antecipar um metro ou um metro e meio a sua
informação, correspondendo esta distância a cada varrimento
executado com a bengala. Assim, para se aproximar da média
temporal de antecipação perceptiva de uma pessoa normovisual, a
pessoa cega deverá realizar um varrimento em cada 0,8 segundos, o que, desde logo, é totalmente impossível. Ainda que, por
hipótese, conseguisse executar varrimentos com a bengala a uma
tal velocidade, não poderia perceber todo o campo perceptivo (à
volta dos setenta e seis metros), mas sim de uma forma
fragmentária, tendo que relacionar mentalmente, de forma
contínua, essa série de varrimentos, se porventura não pudesse
socorrer-se da informação fornecida pelos outros sistemas
sensoriais, designadamente a audição.
No que concerne às possibilidades funcionais de cada
sistema sensorial na interacção espacial com o meio, é sabido
que, ao longo da história, se tem considerado a vista como o
sistema perceptivo espacial por excelência, concepção que,
actualmente, permanece válida, atendendo a que a vista, em
contraposição a outros sistemas sensoriais, permite perceber
simultaneamente um amplo sector do meio. Para que exista
percepção visual, não é exigido o contacto físico com o objecto, porque a capacidade de antecipação perceptiva da vista é muito
ampla. Em condições normais, uma pessoa normovisual pode
perceber um objecto, como por exemplo uma estátua, que se
encontra a muitos metros de distância, o que lhe permite ter
tempo para não ir contra ela. É que este sistema sensorial
permite conhecer facilmente a forma, a distância e a posição de
todo o conjunto de pontos e objectos ambientais e,
consequentemente, a percepção visual permite ao indivíduo
organizar o espaço de forma rápida, global e estável.
De facto, durante muito tempo pensou-se que construir a
imagem do espaço era um privilégio que cabia exclusivamente ao
sentido da vista. Contudo, o avanço do conhecimento permitiu
equacionar a interligação sensorial e a percepção háptica como
forma alternativa para a construção dessa imagem. Nesse sentido,
a preocupação das investigações neste domínio não se prende
somente com a caracterização das diferenças de desenvolvimento e
forma de apreensão do espaço geográfico, mas também com a forma
de lhes fornecer mais informação do meio circundante, através da
construção de mapas tácteis, conforme o atestam Fletcher
(1980), Hollyfield e Foulke (1983), entre outros.
Logo que o estudo da mobilidade começou a dirigir-se
igualmente às crianças, passou a conferir-se importância à
necessidade de se estabelecer uma orientação espacial adequada,
pelo que os estudos relativos à mobilidade da criança cega
começaram a ser influenciados pela linha piagetiana, em que os
seus defensores mais representativos -Stephens e Grube
(1982), Ochaíta (1984) e Birns (1986) -se têm
preocupado com os problemas que possam surgir ao nível
conceptual, cujo enfoque advém da importância que Piaget confere
à íntima relação entre a interacção que a criança estabelece com
as pessoas e os objectos que a rodeiam e o desenvolvimento
conceptual. Seguindo uma linha funcionalista/reabilitativa,
autores como Leonard (1969), Siegel e Murphy (1970), já
vinham defendendo que só a partir da postura e do equilíbrio se
deve estudar a mobilidade.
Mas o facto de se conhecer o espaço através de modalidades
sensoriais alternativas à da vista implica que a recolha de
informação se efectue de forma sequencial e fragmentária, razão
por que Fletcher (1981) ou Slator (1982) consideram que,
sem a modalidade sensorial visual, é impossível organizar,
coordenada e globalmente, o conteúdo das representações
espaciais, o que significa (sendo válida a hipótese) que as
pessoas cegas veriam limitadas as suas possibilidades na
exploração e percepção de espaços desconhecidos, no
estabelecimento de novos percursos e no que respeita a
inferências espaciais.
Todavia, segundo os resultados obtidos por Ochaíta e
Huertas (1988), Huertas (1989), Espinosa, Ochaíta e
Huertas (1991), sobre o desenvolvimento e a aprendizagem do
conhecimento espacial nas pessoas cegas, permitem-nos manter
posturas mais optimistas, podendo afirmar-se, com base nas suas
investigações, que alguns adolescentes e adultos cegos, quando
possuem experiência suficiente de um determinado espaço, podem
chegar a organizar as suas representações de forma
configuracional, assim como relacionar, coordenadamente entre
si, todos os pontos de um espaço, quer se trate da representação
de um meio conhecido e relativamente simples, como o recinto
exterior de uma escola, quer se trate de outro tão vasto e
complexo como uma cidade, sempre que se utilizem procedimentos
adequados que permitam às pessoas cegas objectivar e comunicar
essas representações.
Outro exemplo claro de que os adolescentes cegos, incluindo
os que nunca tiveram experiência visual, conseguem organizar o
espaço de modo configuracionaléode que, uma vez aprendido um
novo percurso num espaço relativamente complexo e formado por
sete elementos, ordenados sempre na mesma sequência, esses
adolescentes foram capazes de seguir novos percursos,
relacionando esses elementos espaciais numa ordem diferente da
que tinham aprendido, o que, sustentam os mesmos autores,
implica uma organização configuracional. Isto significa que, ao
menos em circunstâncias semelhantes (com um número de elementos
não muito elevado, com adequados procedimentos de
externalização, na ausência de factores perigosos ou de stress),
os indivíduos cegos, em função dos seus próprios interesses,
conseguem relacionar, de forma abstracta e coordenada, as
relações espaciais que se podem estabelecer entre um conjunto de
elementos ambientais e inferir os possíveis traçados e caminhos
que os unem (Huertas, 1989).
Por outro lado, as representações espaciais contêm
informação sobre as distâncias existentes entre os diversos
elementos de um meio, assim como sobre a direcção ou direcções
desses elementos, razão por que alguns autores se dedicaram ao
estudo dos aspectos localizacionais da representação espacial
nos indivíduos cegos, analisando as suas capacidades para
estimar distâncias e direcções.
O método geralmente adoptado para aferir a capacidade das
pessoas cegas para estimarem distâncias consiste em pedir-lhes
que avaliem ou julguem a distância que separa uns objectos de
outros, num meio determinado. As investigações de Hermelin e
O'Connor (1975, 1982) vieram demonstrar que as pessoas
cegas apresentam maior dificuldade na estimação de distâncias do
que na localização de objectos no espaço e que eram muito menos
precisas e eficazes nessas estimações, quando comparadas com os
normovisuais, facto que não significava, para os mesmos autores,
que os indivíduos cegos fossem incapazes de estimar distâncias,
já que podiam realizá-lo (embora com menor precisão),
baseando-se, sobretudo, em informações cinestésicas,
proprioceptivas e temporais.
No que respeita à audição, afirma-se, pelo contrário, que é
um sistema sensorial equipado para a análise de padrões
temporais, para conhecer a sequência e o tempo de duração de um
estímulo de natureza ambiental. Tal como a vista, o sentido da
audição não requer um contacto físico com o objecto ou com o
ambiente, pelo que proporciona uma antecipação perceptiva
suficiente, mas inferior, nalguns casos, à proporcionada pela
vista. As possibilidades de antecipação perceptiva do sistema
auditivo são limitadas pelo facto de serem diminutos os
estímulos ambientais úteis para a mobilidade e conhecimento
espacial, que podem ser percebidos acusticamente. Com esta
modalidade sensorial, é possível identificar todo um conjunto de
elementos sonoros, ainda que para isso se necessite de uma certa
aprendizagem intencional, conforme temos vindo a defender. No
entanto, a audição apenas permite obter informação sobre a forma
e o tamanho dos estímulos ambientais. A capacidade dos seres
humanos para estimar distâncias e direcções, recorrendo a esta
modalidade sensorial, é limitada e depende, em grande medida, da
localização da fonte sonora e do contexto em que se insere.
Segundo as investigações de Rieser, Guth e Hill, realizadas
em 1982, as pessoas cegas localizam com maior facilidade a
direcção de onde provenha um som, mais quando a fonte sonora se
encontra em frente ao sujeito do que quando ela se situa na sua
rectaguarda. Defendem que a audição possui escassa capacidade
para a percepção ou discriminação selectiva, tendo em conta que, para o ouvido humano não é fácil escutar uns sons excluindo
outros que se produzam na mesma amplitude e intensidade
acústica. Além disso, em relação à modalidade visual, a
modalidade auditiva é mais vulnerável a interferências de
estímulos irrelevantes, como, por exemplo, o som da água a
escorrer de uma fonte pode ser facilmente mascarado pelo som do
tráfego automobilístico de média intensidade.
Embora os sentidos táctil, proprioceptivo e cinestésico
possuam receptores e vias nervosas diferentes, podemos afirmar
que operam, de forma conjunta, na percepção espacial. A
modalidade sensorial háptica depende de receptores que se
excitam pela estimulação mecânica da pele e pelas repercussões
cinestésicas ou de movimento que se produzem, quando esta entra
em contacto com os objectos. Por outro lado, a propriocepção
depende, em geral, da transmissão interna de sinais cinestésicos
e de equilíbrio. Estas modalidades sensoriais proporcionam
informação sobre formas, tamanhos, superfícies, posição relativa
dos objectos, assim como do movimento destes. Talvez a
informação mais importante que estes sentidos fornecem à pessoa
cega, quando se desloca, seja a relativa à textura, composição e
contorno das superfícies, nas quais caminha. Mas, para que
exista percepção com estas modalidades sensoriais deve,
necessariamente, ocorrer contacto físico entre aquilo que produz o estímulo e o receptor sensorial, o que supõe que o campo
perceptivo disponível, a antecipação perceptiva, seja
consideravelmente reduzida. Para além disso, quando os objectos
têm grandes dimensões, a percepção e reconhecimento dos mesmos
realiza-se de forma fragmentária.
Utilizando o tacto e a propriocepção, é necessário realizar
percepções seriais e sucessivas dos elementos ambientais que, só
posteriormente, podem integrar-se e organizar-se de forma
conjunta.
Todavia, não devemos conferir apenas limitações às
capacidades perceptivas destes sistemas sensoriais, pois que,
tanto o esforço como a lentidão com que o indivíduo é obrigado a
recolher informação, torna-os úteis para a realização de certas
percepções selectivas da realidade, nas quais eles são quase
mais necessários do que a vista. Muitos detalhes dos objectos
que passam quase imperceptíveis à vista, conseguem, com o tacto,
ser identificados e, de algum modo, permanecer durante mais
tempo na memória, por exemplo, a forma como normalmente
conhecemos a textura dos objectos.
Apesar disso, a maior parte dos investigadores que se
debruçaram sobre este tema, entre os quais Hermelin e O'Connor
(1982), mantêm a hipótese de que a percepção háptica apenas
permite aos indivíduos organizar o espaço parcialmente, dando
origem a representações de carácter subjectivo e egocêntrico.
Talvez em maior número de ocasiões do que supomos, usamos o
olfacto para distinguir e conhecer certos elementos do espaço,
encontrando ou reconhecendo um estabelecimento determinado, uma
padaria ou uma perfumaria por exemplo, através do odor que
exalam, pelo que, quando associamos a um elemento ambiental um
odor determinado, a recordação costuma perdurar. Não obstante, o
número de estímulos que se pode perceber pelo olfacto é escasso,
pois o pequeno alcance da sua percepção, assim como a pouca
precisão que, por seu intermédio, se obtém na localização dos objectos e na estimação das distâncias, fazem com que esta
modalidade sensorial desempenhe uma função de reduzida
importância no respeitante à percepção espacial.
Mas de Michel Jacquin, cego e enquanto responsável pela
investigação e pelo desenvolvimento da Associação Valentin Haüy
em França(1989), quando algumas vezes lhe perguntavam quais as necessidades das pessoas cegas, uma resposta simplista podiam
obter: “Vista”. Ou melhor: “Poder fazer o que as pessoas que
vêem fazem com a vista”. Para ser mais preciso, diria: “Poder
fazer o que necessitamos fazer e não podemos fazer sem vista”.
Na verdade, sustenta Jacquin, “grande parte das imagens que as
pessoas com vista recebem são absolutamente irrelevantes para
tomar decisões na vida quotidiana: Quando caminho sobre uma
passarela, não tem qualquer importância saber a cor e o tipo do
carro que se aproxima de mim, mas sim a sua posição e velocidade
relativamente a mim, para decidir se devo avançar rapidamente ou
retroceder, para não ser atropelado.”.
E adianta que “seria sem dúvida um prazer apreciar o pôr-do-sol ou uma paisagem, gravuras ou fotografias. Mas isso não
teria nenhuma aplicação imediata na determinação da nossa
conduta perante «os actos essenciais da vida de todos os dias».
Deste ponto de vista, provavelmente só uma parte muito pequena
das imagens que as pessoas com vista recebem são verdadeiramente
úteis.”.
Retrocedendo no tempo, Pierre Villey -cego, notável
investigador, professor universitário e Secretário-Geral da
Associação Valentin Haüy, entre outros cargos que acumulava sustenta,
numa das suas obras sobre a psicologia dos cegos e
citado por Matoso da Fonseca(1934), que, “reflectindo bem,
verifica-se que a vista não é necessária à função do pensamento.
Se o mal que a destruiu, se limitou aos olhos e às suas
imediatas dependências, se não atingiu o cérebro, a integridade
da inteligência está salva. No espírito do homem, muito poucas
são as noções que o cego (de nascença) não possa atingir, porque
raras são as que nos chegam unicamente pela vista.”. E, mais
adiante, afirma: “A faculdade de ouvir representa para o homem a
aquisição espontânea, involuntária, da linguagem e,
consequentemente, de uma parte da experiência humana. É a
linguagem, com efeito, que exalta o nosso espírito à concepção
das ideias gerais e abstractas. O nosso progresso na ordem das
abstracções, não pode fazer-se senão acompanhando os progressos
paralelos, na assimilação da linguagem. Graças ao ouvido o
espírito da criança é, por assim dizer, batido desde a sua
primeira idade, de ideias abstractas, elaboradas pela
consciência comum, que procuram invadi-lo e enriqucê-lo.”.
Reportando-nos de novo a Michel Jacquin, este já previa a
“vista artificial” quando, no seu artigo em referência,
escrevia: “Mas ainda não estamos suficientemente avançados no
campo da inteligência artificial para obter o que é
verdadeiramente útil. Se estivéssemos, podíamos certamente
tentar uma espécie de «vista artificial»”.
Mesmo quando essa “vista artificial”ou “olho biónico”
puder corresponder à eficácia real padronizada da sua
utilização, continuaremos a investir e a acreditar também
(porque o experienciamos) nas potencialidades das outras
modalidades sensoriais, consoante a tipologia dos estímulos que
as impressione. O som, como fonte de informação e fenómeno
tiflo-sócio-comunicacional, é uma questão fundamental e
integrante da perceptibilidade dos sistemas sensoriais
alternativos ao da vista.
Nesta acepção, vamos reflectir, de forma muito concisa, a
questão do som enquanto fonte de informação e, consequentemente,
como elemento ou fenómeno facilitador da comunicabilidade, da
sociabilidade, da orientação e mobilidade autonómicas e da
interacção social das pessoas cegas.
Sabemos, antes de mais, que uma das componentes intrínsecas
às relações comunicacionais tem a ver com os quadros que lhes
conferem sentido e que são definidos a partir da nossa experiência pessoal acumulada e utilizada. Para a constituição
desses quadros, contribui a história vivida por nós e pelos
interlocutores, história que está situada no tempo e no espaço
da vida e da língua comuns, das coisas a que dão valor, porque
lhes dão prazer ou desprazer, que lhes agradam ou lhes
desagradam, que desejam ou odeiam.
O som constituiu desde sempre uma inexaurível e
imprescindível fonte de informação para todo o ser biológico e
também de experiência para o ser humano.
Os seres vivos, para sobreviverem, são dotados de
dispositivos instintivos que lhes permitem percepcionar
sensorialmente os sinais que o mundo à sua volta emite,
interpretá-los correctamente e responder-lhes de maneira
adequada, de acordo com as funções biológicas indispensáveis à
manutenção, à protecção e à reprodução da vida. Graças a estes
dispositivos instintivos, os seres vivos são, portanto, dotados
de uma competência específica que os habilita à transacção, não
só com o mundo físico que os rodeia, mas também com outros seres
vivos que coabitam no mesmo “nicho ecológico”.(Adriano Duarte
Rodrigues, 1994). Os seres humanos estão obviamente
apetrechados, como os seres vivos, sustenta o mesmo autor, com
dispositivos instintivos de transacção com o meio ambiente: “a
percepção sensorial dos sinais do mundo envolvente também gera
estímulos que vão desencadear no homem as respostas adequadas
indispensáveis à manutenção, estruturação e reprodução do
indivíduo e da espécie.”. Mas, no caso do homem, as respostas
concretas e actuais a dar aos estímulos que recebe do meio
ambiente não são naturalmente determinadas, não se encontram de
maneira actualizada, mas virtual. É por isso que, no homem,
seguindo o mesmo autor, não se pode falar de instintos, mas de
pulsões. Por pulsão entendemos, portanto, “uma modalidade
específica da maneira como o apetrechamento instintivo se
encontra no homem, a sua modalidade virtual que exige a
concretização cultural. É por isso que o homem não se relaciona
com o mundo à sua volta através de respostas comportamentais
imediatas aos sinais que os estímulos do meio ambiente veiculam;
possui a capacidade de se relacionar com o mundo à sua volta,
com os seus semelhantes e consigo próprio, através de signos
culturais que ele próprio concebe e elabora, de acordo com uma
lógica própria, diferente por conseguinte das leis que regem o
comportamento animal.”.(Adriano Duarte Rodrigues, 1994. Augusto
Deodato Guerreiro, 1997).
O som também constitui elemento de informação para os seres
vivos, sendo-o para o ser humano de forma naturalmente mais
elaborada e exercitável, com vista a “uma maior potenciação do
seu rendimento”. Como sabemos, o estímulo sonoro é constituído
por vibrações mecânicas transmitidas por um meio elástico,
geralmente o ar, e para que o estímulo sonoro seja eficaz, tem
que obedecer, como o luminoso, a condições de duração,
intensidade e frequência. O dispositivo receptor ou estimulável
pelo som situa-se no ouvido interno, nas chamadas células
auditivas ou de Corti, onde se gera o influxo nervoso que é
transmitido ao cérebro pelo nervo auditivo. As vibrações chegam
às células auditivas depois de extremamente intensificadas na
passagem da membrana do tímpano para a passagem da janela oval,
por intermédio dos ossículos do ouvido médio. Os dados imediatos
da audição são os ruídos e os sons, sendo os sons sensações
distintas (e geralmente agradáveis) produzidas por vibrações de
frequências regulares, e os ruídos sensações confusas
(geralmente desagradáveis), produzidas por vibrações de
frequências irregulares. Um som define-se por três propriedades,
como já ficou enunciado: intensidade, altura e timbre.
- A intensidade do som (sons fortes ou fracos) depende da
amplitude das vibrações (sendo a amplitude a distância entre
duas posições extremas do corpo vibratório) e da frequência.
Depende da amplitude, porque quanto maior esta for, maior será o impulso comunicado ao meio transmissor. Depende (em certos
limites) da frequência, porque, quanto maior for o número de
vibrações por unidade de tempo, maior será a pressão exercida
nas membranas do tímpano. Esta a razão por que as pessoas
surdas ouvem melhor os sons agudos do que os graves, bem como
a razão por que o funcionamento dos dois ouvidos dá uma
audição precisamente dupla do funcionamento de um só.
- A altura (sons agudos ou graves) depende da frequência,
pois, quanto maior esta for, mais agudo ou elevado será o som.
A nota musical lá no chamado diapasão normal (com que se
afinam as vozes e instrumentos musicais) corresponde à
frequência de 870 vibrações por segundo e a voz humana parece
oscilar entre 160 e 3.000 vibrações.
- O timbre é a propriedade que permite reconhecer sons
originados por diferentes agentes, sendo pelo timbre que
distinguimos, designadamente, a voz das pessoas (e as
individualizamos e reconhecemos pelo timbre da sua voz -temos
uma representação auditiva em vez de visual), o som dos
instrumentos, o toque dos metais, etc.
Para o ser humano, as frequências audíveis variam entre 20
e cerca de 20.000 vibrações por segundo. Os infra-sons (ou sejam
as frequências abaixo de 20) e os ultra-sons (as frequências
superiores a 20.000) não excitam o ouvido humano. Os ultra-sons
são, no entanto, audíveis por certos seres vivos, como por
exemplo o cão e o rato, que captam para cima de 20.000 vibrações
por segundo, e o morcego que as capta acima de 40.000. E é
graças aos ultra-sons que emitem e lhes são devolvidos pelos
obstáculos (reflexão) que os morcegos se orientam no escuro.
Isto remonta-nos à concepção do «sentido dos obstáculos» (que
para nós se apresenta como perceptibilidade das modalidades
sensoriais nos indivíduos cegos), uma faculdade que se
desenvolve em especial pelas pessoas cegas (para minorar os
problemas causados pela ausência do sistema sensorial visual),
descrita e analisada (já com bastante rigor) por Albuquerque e Castro, o insigne tiflólogo que, como atrás dissemos, pela
primeira vez em Portugal, abordou sistematicamente esta
importante questão psicotiflológica.
Em conclusão deste capítulo, reforçaremos a nossa posição
sustentando que, na realidade, se atribui a todas as pessoas
cegas, ou às que, de algum modo, sofrem de anestesias sensoriais
mais ou menos profundas, a posse de um extraordinário
desenvolvimento das funções que não foram afectadas e as
compensam daquelas que lhes faltam. Era frequente, e ainda hoje o é, no senso comum, interpretar o desenvolvimento dos sentidos
não afectados à luz de um propósito providencial de
reestabelecimento do equilíbrio ou de reparação da injustiça que
parece representar o facto de muitos indivíduos se encontrarem
privados, sem culpa sua, de algum dos sentidos mais
indispensáveis ou das funções mais úteis.
Sempre que o homem manifesta a intuição de fenómenos que
lhe não são revelados directamente pelos órgãos dos sentidos ou
não decorrem da sua actividade mental, quer isso provenha
realmente de funções especiais que a psicologia não pôde ainda
determinar experimentalmente com precisão, quer resulte de
simples coincidências (ou quando se trata de ser possível «ver» o mundo, recorrendo a sistemas sensoriais alternativos ao da
vista), diz-se logo, e irreflectidamente (porque nunca houve a
oportunidade de se experienciarem outras potencialidades e
capacidades humanas), que ele possui um «sexto sentido». “A
observação e a experiência podem e devem restringir
drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de
outro modo não haveria ciência.”.
Hoje falamos em percepção dos sistemas sensoriais, ou seja,
de uma capacidade desenvolvida e ampliada dos nossos sentidos,
atenção, intuição e observação, sensibilidade aumentada,
acuidade perceptiva. Mas o que é indiscutível é que uma boa
parte de pessoas totalmente cegas têm realmente a capacidade de
percepcionar obstáculos à sua volta, de se aperceberem da
aproximação desses obstáculos, conforme o já enunciado no ponto
dois deste capítulo, sendo esta faculdade, para uns
investigadores, resultante da acção independente ou conjugada de
alguns dos sentidos ordinários; para outros uma capacidade
especial do organismo localizada em qualquer parte do corpo;
outros admitem a possibilidade de ser o ouvido o sentido que
adverte o indivíduo da proximidade ou da presença de obstáculos,
mediante as refracções das ondas sonoras que produzem
modificações de timbre e de intensidade, manifestadas pela voz,
pelo ruído dos passos (e nós acrescentamos: pelo marulhar das
águas e pelo sibilar do vento nas ramagens das árvores a alguma
distância, vagidos de variadíssima natureza, etc., etc. -«acção
acústica»); outros, ao contrário daqueles, excluem a hipótese da
intervenção do ouvido e pretendem que a razão do fenómeno se
radique na «acção mecânica» e outros ainda na «acção
térmica».
Para nós, o som tem uma indiscutível função na
concretização desta importante e impressionante faculdade de
toda a gente, mas em especial das pessoas cegas. Basta
observarmos os resultados na detecção dos obstáculos, quando
batemos com mais intensidade com a bengala no chão, ou quando
não tocamos com ela no chão. Basta procedermos a análise
idêntica, quando usamos calçado de borracha ou de sola, em
lugares intensamente sonorizados (ruidosos pelo tráfego
automóvel ou por outros ruídos que nos obrigam a falar alto para
nos fazermos ouvir), soprados por ventos fortes, ou em lugares
absolutamente em silêncio... lugares silenciosos... do estilo
anecoico, ou quando sentimos necessidade de emitir estalidos com o bordo superior da língua no céu da boca, não na perspectiva
dos bosquímanes (é a sua forma de expressão), mas para nos
certificarmos da proximidade de uma qualquer referência. O som é
nestes termos fundamental e imprescindível às pessoas cegas
ouvintes, mas indissociável, obviamente, de um bom sentido de
audição e da global perceptibilidade dos sentidos.
Conforme o sustentado no ponto três deste capítulo,
socialmente, o ouvido escorreito representa para o indivíduo um
factor indispensável para se relacionar com o seu semelhante e
não ficar isolado na sua comunidade, necessitando, para tal, da
sensibilidade, da audibilidade e da inteligibilidade que só o
complexo mecanismo da audição lhe permite adquirir. Conforme
também referimos no primeiro capítulo, já Aristóteles sustentava
que é pelo ouvido que melhor se aprende de um mestre. Sócrates,
como sabemos, ensinava através do diálogo e Aristóteles
comunicava o seu saber, conversando com os seus alunos, enquanto
passeava com eles (ensino peripatético).
Merleau-Ponty sustenta (1994) que “O real deve ser
descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer que não
posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do
juízo, dos atos ou da predicação. A cada momento, meu campo
perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões
táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao
contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no
mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada
instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objectos
ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto,
e todavia eles não se misturam ao mundo, eles estão adiante do
mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade de minha
percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das
«representações», ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado
às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada momento
desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos
aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele. Não é nada
disso. O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos
para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar
nossas imaginações mais verossímeis. A percepção não é uma
ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição
deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam
e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual
possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o
campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas
percepções explícitas. A verdade não «habita» apenas o «homem
interior», ou, antes, não existe homem interior, o homem está no
mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a
partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência,
encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.”.
Mas a investigação no domínio do áudio-virtual tem ajudado
os próprios investigadores (o que afirmamos sem reservas) a
sedimentar conhecimentos na questão da representatividade dos
sons (como se estivésemos a tocar com as mãos ou a visualizar o
que os origina), ao experienciarmos com êxito, no mundo real,
esta indiscutível possibilidade e a consciencializarmo-nos de
que o conceito clássico dos cinco sentidos já não parece ter
sentido, sustentando Christopher Currell, a propósito, que
temos, pelo menos, cinquenta e cinco sentidos.
Este investigador demonstrou a sintetização da realidade,
como um conceito de peso, e asseverou que a realidade não é um
simples jogo de vídeo. “La gente cree que sólo tenemos cinco
sentidos, vaya tontería. Por lo menos tenemos cincuenta y cinco. Si no sabemos cuántos tenemos, cómo vamos a entender sus
interrelaciones para poder sintetizarlos luego? Entendiéndolos, podremos intercalarlos de forma creativa, y
si disponemos de los elementos clave podremos engañar a los
demás sentidos.”.
Na verdade, com a tecnologia do áudio-virtual, a
possibilidade de escutar selectivamente mantém-se, o que se
traduz numa importância fundamental para a meditação e relaxe,
segundo este investigador.
Um astronauta, muito tempo encerrado, vê-se sujeito ao
stress mental e à claustrofobia. Com o áudio-virtual, alguns
destes aspectos mentais adversos podem ser eliminados. Pode-se
então criar um espaço alternativo para o astronauta, o que
ajudará a diminuir a sua claustrofobia.
Fazendo Sentidos
Sarah Drew e Sirius sentaram-se no centro de uma sala de
espera do Heyday Records com os olhos tapados, para
experimentarem o sistema de som tridimensional de Christopher
Currell. Os sons começaram e apareceram em várias partes da
sala. “Alguém passa ao meu lado abrindo um rebuçado enquanto
anda”, constatou Sirius. Será que o envólucro de papel do
rebuçado produz um ruído próprio, inconfundível, relativamente
ao ruído provocado, em idênticas circunstâncias, por papel
igual, ao desembrulhar-se um outro objecto com dimensão igual ao
do rebuçado? Claro que o ruído será igual. O que nos pode levar
a concluir que se trata indiscutivelmente de um rebuçado que
está a ser aberto será a intelecção de um conjunto de factores:
por exemplo, o aroma inconfundível exalado pelo rebuçado e o
ruído característico produzido pelo acto de abrir e de fechar a
boca de quem se prepara para comer o rebuçado. Tocou o telefone,
tocou a campainha, tornou a tocar. Entraram mais pessoas. Alguém
pôs o aspirador a funcionar. “Levante as pernas, por favor!”
disse uma voz clara tão perto de Sirius que o inquietou.
Questionou-se Sirius: “Será possível que estejam a passar o
aspirador junto às minhas pernas enquanto me submetem a uma
experiência sonora?!”
Na realidade, nada disto aconteceu:
Mas do que não restam dúvidas aos sentidos, é que “a
campainha da porta soou exactamente onde está a porta real, os
passos ouviram--se pela sala e pude seguir o seu movimento e o
rumor da sua roupa. Todos os movimentos no espaço foram fluidos,
exactamente como deviam ser na realidade.”, sustentou Sirius.
Currell diz que, com o áudio-virtual, uma pessoa consegue
sentir coisas extraordinárias: alguém a respirar ao pé da nossa
cara, ou a puxar-nos o cabelo etc., sensações que nos podem
levar a arrepiar-nos.
A grande descoberta científica, neste caso, consiste na
similitude entre o áudio-real e o áudio-virtual, a possibilidade
de se transferir com uma precisão extrema o que se pode observar
no espaço real com o ouvido, em articulação com outros sentidos
ou sistemas sensoriais, para o espaço virtual. Trata-se de um
contributo científico que veio ajudar a comprovar e a
desmistificar, no domínio empírico, certezas individuais
dispersas e concepções, cuja defensabilidade se restringia,
quase exclusivamente, às pessoas cegas. Mas para que uma pessoa
cega atinja este desiderato com rigor, torna-se absolutamente
indispensável a essa pessoa possuir uma utensilagem mental tão
desenvolvida quanto possível, alicerçada, naturalmente, num
sentimento humano fundamental: a vontade. Da mesma forma que
podemos identificar coisas, circunstâncias e comportamentos
anteriormente vistos, também podemos reconhecer essas coisas,
circunstâncias e comportamentos anteriormente ouvidos, tangibilizados, saboreados, cheirados... memorizados pela
audição ou pela articulação sincronizada do conjunto dos
sistemas sensoriais alternativos ao da vista. E quantas vezes
vemos também com o coração?!... A propósito (e numa linha não
tão ficcionista como, na generalidade, possa imaginar-se),
Saint--Exupéry afirma que “só se vê bem com o coração. O
essencial é invisível para os olhos”.
No que respeita à audição, já referimos que esta modalidade
sensorial está intimamente ligada à personalidade humana em
relação com as funções psíquicas do indivíduo e,
fundamentalmente, ligada à perceptibilidade dos objectos ou
situações do meio envolvente. Mas é claro, para nós, que não
tomamos consciência seja daquilo que for, sem que, para
atingirmos esse estado de consciência, o nosso organismo accione
naturalmente, para o efeito, vários sistemas sensoriais, e não
apenas um isolado de outros. A consciência dá-nos
simultaneamente testemunho da nossa multiplicidade -sob a forma
de um fluxo constante de factos psíquicos (designadamente
percepções, volições, sentimentos, lembranças) -e da nossa
unidade -sob a forma de um “eu”,o“eu-sujeito”, ao qual todos
esses factos se reportam ou se referem. Quando escrevemos,
coordenamos o melhor que podemos as nossas ideias, de forma a
torná-las inteligíveis não só a nós mesmos como aos outros,
actuando neste contexto as funções inibidora e coordenadora da
nossa consciência, representando a atenção, deste modo, a
actividade da consciência no seu mais alto nível de selecção e
de síntese. Quando nos sentamos em frente a uma máquina
(integrada por hardware e software), munida de teclado e de ecrã
electrónicos, com a qual podemos escrever, percepcionamos nela
um computador, não apenas porque o identificamos através do
tacto, mas também porque nos damos conta, pelo ouvido, de
determinados rumores característicos da energia eléctrica que o
põe em movimento, dos cliques electrónicos que o mesmo emite,
por vezes até do odor que exala resultante da sua actividade ou
mesmo dos seus componentes. Identificando-o como um computador,
sabemos para que serve, percebemo-lo imediatamente, como um só
objecto, na unidade da sua estrutura que integra uma variedade
de aspectos. Quando cheiramos um perfume, não é necessário vê-lo
ou tocá-lo para nos certificarmos de que se trata de um perfume,
não obstante associarmos ao seu aroma outros ingredientes ou
elementos que outras modalidades sensoriais nos trazem
espontaneamente à nossa consciência -reminiscências, lembranças
de natureza diversíssima, experiências reflectidas ou não,
aspectos configuracionais, ambientais, espacio-temporais. Quando
sentados à mesa num determinado jantar ou almoço de uma qualquer
cerimónia, percepcionamos o prato com os talheres e o
guardanapo, os copos da água, dos vinhos branco e tinto, a
toalha, bem como todos os convidados em torno da mesa, actuando
na perceptibilidade de um tal ambiente designadamente os
sistemas sensoriais táctil-cinestésico, quinestésico, gustativo,
olfactivo, auditivo, dando-nos a percepção nítida (sem vermos)
do ambiente de bem-estar, de indiferença ou de mal-estar em que
nos inserimos. Curiosamente, Ami Tan fala-nos de cem sentidos
secretos que são o resultado da mistura da vista, do ouvido, da
memória, entre outros, que levam alguém a sentir a verdade no
seu coração.
Mas sustenta Merleau-Ponty, no capítulo “O Sentir” de “O
Mundo Percebido” (segunda parte do seu livro “Fenomelogia da
Percepção” que temos vindo a referenciar), que “não é nem
contraditório nem impossível que cada sentido constitua um
pequeno mundo no interior do grande, e é até mesmo em razão de
sua particularidade que ele é necessário ao todo e se abre a este.”. E adianta que “a experiência sensorial é instável e é
estranha à percepção natural que se faz com todo o nosso corpo
ao mesmo tempo e abre-se a um mundo intersensorial.”. E refere
mais adiante: “Assim como a experiência da qualidade sensível, a
experiência dos «sentidos» separados só ocorre em uma atitude
muito particular e não pode servir para a análise da consciência
direta.”. “Em relação ao tacto, encontra um eco em mim, se ele
concorda com uma certa natureza de minha consciência, se o órgão
que vem ao seu encontro está sincronizado com ele.”. É que,
precisa ainda, a unidade e a identidade do fenômeno tátil não se
realizam por si só, as quais só podem ser tocadas eficazmente se o fenômeno, por uma síntese de recognição do conceito, estiver
fundado “na unidade e na identidade do corpo enquanto conjunto
sinérgico.”.
Levar-nos-ia muito longe (e modificaríamos,
substancialmente, toda a estrutura deste livro) se nos
encaminhássemos, de forma exaustiva, para esta especificidade
fenomenológica de Merleau-Ponty, em que integraríamos
necessariamente, entre outros eméritos pensadores, Austin e Serres.
Michel Contudo (pelas leituras feitas e pelo
interesse que as mesmas nos suscitaram), encaramos a hipótese
de, noutras circunstâncias e oportunamente, podermos vir a
ocupar-nos de tal matéria.
Mas, sem nos perdermos em exaustividades, sabemos que a
capacidade de percepção dos nossos sistemas sensoriais ou
sentidos, incluindo evidentemente o da audição em especial,
constitui um sistema complexo e abrangencial de horizontes
perfeitamente acessíveis às pessoas cegas (é naturalmente a sua
aposta para, em muitas circunstâncias, substituir a vista),
desde que devidamente alertadas, industriadas, exercitadas a
partir do nascimento (no caso de serem cegas congénitas) ou a
partir da altura em que cegam. As pessoas que iniciam esta
preparação em pequenas (ou têm o privilégio de poderem treinar
devidamente as diversas modalidades sensoriais), adquirem um
grau de percepção incomparavelmente superior ao das pessoas que
cegam na idade adulta.
Adquirimos conhecimentos sob a forma de sensações e
percepções que têm origem na actividade sensorial, sendo as
sensações e as percepções a base do nosso conhecimento do real.
Pela percepção, conhecemos objectos e situações, pela sensação
conhecemos pormenores, ou aspectos dos objectos e das situações.
Segundo a psicologia clássica, a realidade primeira é a sensação
e a percepção mais não é do que uma síntese de sensações. Porém,
as psicologias da estrutura vieram mostrar que os processos
elementares, que são as sensações, nunca aparecem isolados, mas
sempre integrados em complexos psíquicos ou percepções.
Posteriormente, a psicologia genética piagetiana veio dar o
indispensável relevo aos factores subjectivos da percepção, ou
seja, os que respeitam à personalidade do sujeito, considerada
em função da sua experiência.
A percepção não depende só do objecto ou só do sujeito, mas
é uma relação do sujeito ao objecto. O objecto existe, mas é o
sujeito que o apreende. E nesta apreensão projectam-se a sua
maneira de ser, os seus interesses e, enfim, toda a sua
experiência, pessoal e social. O nosso conhecimento perceptivo
transita continuamente de uma percepção sincrética (ou
indiscriminada) para uma percepção sintética, ou percepção em
que os elementos, ao mesmo tempo distintos e articulados, são
apreendidos, na sua unidade orgânica, pelo sujeito. Cientes,
nesta perspectiva, da interdependência do sujeito e do objecto
na percepção, podemos entender a percepção como o acto pelo qual um indivíduo toma consciência do real, sob a forma de estruturas
ou totalidades, que, para ele, se revestem de significação.
A percepção, entendida como perceptibilidade dos sistemas
sensoriais, como intelecção de dados e de circunstâncias do meio
envolvente, como recurso referencial, comunicacional, de
sociabilidade, de orientação e mobilidade autonómicas e de
interacção social, constitui, pois, uma faculdade humana
imprescindível e determinante da capacidade tiflo-sóciocomunicacional,
o que se traduz no desenvolvimento e
proficuidade próprias (com independência) da comunicabilidade e
sociabilidade das pessoas cegas.
No que respeita ao usufruto dos espectros audíveis, os
normovisuais ouvintes estão, naturalmente, em desvantagem
relativamente às pessoas cegas ouvintes. Mas por exemplo, se se
tratar de dois melómanos (um normovisual e um cego), há uma
certa similitude na fruição, na intimidade do quarto de um,
quando ouvem (um e outro) um disco compacto concebido e gravado
em estúdio (com a perfeição de sofisticados sintetizadores
electrónicos), um e outro conseguem ter uma percepção mais
perfeita e mais real da execução musical e do ambiente de uma
sala de concerto do que se estivessem a assistir ao vivo, numa
das melhores salas de concerto. Claro que, numa dessas salas
maiores de concerto, há, por vezes, a vantagem para a pessoa
normovisual de desfrutar com a vista todo o movimento da
orquestra. Mas também há quem feche os olhos para interiorizar
mais profundamente os sentimentos e as impressões por meio dos
sons da diversidade instrumental. Bem, Beethoven não precisava
de ouvir para compor maravilhosas páginas de música na surdez
completa da fase final da sua vida. Bach continuou a compor,
apesar da perda total da vista nos seus últimos anos de vida.
Arturo Toscanini, também apesar da sua deficiência visual, foi
um dos maiores maestros do nosso século.
Nada melhor, para a compreensão do significado do som como
fonte de informação e fenómeno propulsor e sedimentador da
comunicabilidade e sociabilidade, para interiorizar e reflectir
estas questões, do que as partilhar com os mais diversos
intelocutores. Quisemos enriquecer esta reflexão, conferindo-a
com auditórios muito heterogéneos, proferindo (aceitando para o
efeito vários convites de instituições) conferências sobre o
tema em Portugal e no estrangeiro, em cuja assistência se
encontravam, por vezes, muitas pessoas que já experienciaram
muito do que lhes procurava transmitir. Chegámos a distribuir
antes e depois das conferências questionários pela assistência
para serem preenchidos (uns antes da conferência e outros depois
da mesma) em cerca de quatro ou cinco minutos cada. Os
resultados da análise desses questionários revela dados que
muito ilustrariam este livro. Porém, considerando o timing para
a elaboração desta investigação, comprometemo-nos a apresentálos
oportunamente na forma de livro.
Já afirmámos no capítulo I que temos que ver, vendo com a
inteligência, com o coração e com todos os recursos sensoriais e
motores, com saber aprofundado, e não com uma simples olhadela
ou suposição, sem outros adicionais ou integrantes de observação
que nos permitem a intelecção real de tudo aquilo que nos
rodeia, das pessoas, das estruturas sociais, do espaço e do
contexto em que nos inserimos. E os sons de tudo têm um valor
informativo indiscutível para as pessoas cegas. Os sons dos
corpos (biológicos e inanimados), os sons de nós mesmos-avoz
humana -que traduzem certas atitudes morais ou determinados
estados de espírito transitórios, melhor ainda do que o olhar e
com menor poder de dissimulação, especialmente todas as
exaltações ou depressões momentâneas do ego. Os sons dos actos de fala, das palavras, dos diálogos, os sons de actos muito
diversificados, de circunstâncias e do meio ambiente, os sons da
natureza, os sons da música, os sons da vida. Nesta perspectiva, o som constitui, indiscutivelmente, um universo de
comunicabilidade e sociabilidade de todo o ser humano, sobretudo
das pessoas cegas, funcionando para estas (em substituição do
sentido da vista) como recurso referencial aos mais diversos
níveis, proporcionando-lhes e refinando-lhes o desenvolvimento
da percepção (que deve consubstanciar-se na informação dos
sentidos táctil, auditivo, olfativo, gustativo, térmico, álgico,
cinestésico e nos sentidos de equilíbrio e de orientação, bem
como no sentido quinestésico, o qual, em conjunto com o do tacto
e o da audição é fundamental para as pessoas cegas). A pessoa
cega que consiga cultivar esta forma de percepção,
rendibilizando ao máximo os sentidos ou sistemas sensoriais, não
terá dificuldade na conquista da sua independência intelectual,
independência sócio-intelectual e sócio-profissional, autonomia,
intercompreensão e interacção na sociedade humana. Já
Aristóteles tinha compreendido perfeitamente esta natureza
cultural da interacção específica do homem com o mundo, ao
defini-lo como “o animal dotado de razão”. E é efectivamente a
razão que tem que fazer triunfar em pleno esta verdade, a
capacidade que as pessoas cegas têm para comunicar e apreender
conhecimentos, numa natural interacção social, através dos
sistemas sensoriais alternativos à modalidade sensorial visual.
A implantação das novas tecnologias da informação (que
coincide com o termo dos processos de descolonização e com o fim
da guerra fria, como veremos no quarto capítulo) veio enformar
mais ainda esta questão, permitindo manter hoje a humanidade
inteira em contacto quotidiano permanente e vertiginoso (em
especial através do som), ocupando os dispositivos mediáticos da
informação um lugar central, não só na delimitação e no
desempenho da nossa experiência individual e colectiva, mas
também na encenação das visões do mundo e das razões que
pretendem fundamentar legitimamente o discurso e a acção do ser
humano. Temos vindo a estudar, desde há muito, a questão da
acessibilidade das pessoas cegas à informação e à cultura, no
sentido mais amplo que possamos conceber, mediante recurso à
perceptibilidade dos sistemas sensoriais, à tiflografia
(sobretudo nos domínios do braille e da braillo-informática) e
às vantagens da tecnologização deste profícuo instrumento
intelectossocial, bem como a partilhar os avanços na
investigação desta realidade tiflológica (contribuições e
convicções empíricas, dados experienciais e intelectuais), num
contributo para acordarmos as consciências com a
incontestabilidade de potencialidades e capacidades das pessoas
cegas (adormecidas ou ocultas pela cómoda ignorância ou pela
ausência de inteligibilização) e, ainda, para preencher uma área
a descoberto nas Ciências da Comunicação -o recurso a
modalidades sensoriais alternativas ao sentido da vista, como
outro processo de “vermos” o mundo, de comunicarmos, de nos
socializarmos e de interagirmos no mundo de todos.
Procuramos, desta forma, estimular e dinamizar um novo
olhar sobre a inequivocidade de potencialidades e modalidades
sensoriais do ser humano que, compelidas ao cumprimento das suas
funções adormecidas mercê da hipervalorização da vista, tornam
as pessoas cegas mais interactivas e naturalmente profícuas e
integrantes de toda a sociedade humana, mediante uma reflexão
sobre a emergência de uma nova interpretação do homem privado da
vista, como ser igualmente humano (com defeitos e virtudes) como o dotado daquele sistema sensorial. Uma abordagem, que a
prudência aconselha modesta, mas que, não obstante (e de uma
forma também modesta), põe em causa toda uma estrutura teórica
anterior baseada no paradigma mecanicista geral, de origem
cartesiana -um convite à reflexão e à construção de uma nova
realidade na área da perceptibilidade dos sistemas sensoriais do
ser humano “em busca do mais ser.”.
Citando ainda Anna Maria Feitosa(1993), nesta “busca
infatigável de luz e de uma linguagem inteligível, que nos
permita a comuncação inequívoca e minimamente
tranquilizante”, temos “ânsias de voos”, mas reconhecemos “a
insegurança do tempo” e então aconselhamo-nos “prudência”, tendo
presente a definição de Boaventura de Sousa Santos de que “a
prudência é a insegurança assumida e controlada”.
A QUESTÃO DA TIFLOGRAFIA
NUM CONTEXTO
COMUNICACIONAL E HISTÓRICO-CULTURAL
"Glória a Carlos Barbier!
Mas glória maior ainda a Luís Braille!"
J. de Albuquerque e Castro
"Quem não lê, não quer saber;
quem não quer saber, quer errar"
Padre António Vieira
No alargamento da comunicação e da cultura das pessoas
cegas, bem como da consequente ampliação da sua utensilagem
mental para agir e interagir com independência na sociedade,
assume preponderância vital a tiflografia como indispensável
instrumento intelectossocial que, desde as mais ancestrais
tentativas tiflográficas até à braillografia e brailloinformática,
muito tem contribuído para a emancipação sócio-intelectual daqueles cidadãos e consagração da igualdade de
oportunidades em relação aos normovisuais.
Já contam séculos as primeiras tentativas conhecidas para
dotar as pessoas cegas de um “sistema de letras ou sinais
sensíveis ao tacto que lhes facultasse a leitura de tudo quanto
a sua curiosidade apetecesse ou a necessidade da sua cultura
impusesse. Sem falar nos antigos processos de gravar letras em
tábuas enceradas e outros, sabe-se que já em 1517 o espanhol
Francisco Lucas, de Saragoça, aparelhou uma série de letras
sobre placas de madeira que, mais tarde, por volta de 1575, o
italiano Rampansetto, de Roma, procurou aperfeiçoar, gravando-as
de preferência em baixo relevo e com maiores dimensões.”.
Diz-nos J. de Albuquerque e Castro(1903-1967), no artigo
referenciado em nota(1936), que, “em 1640, o notário parisiense
Pedro Moreau, fabricou letras móveis de chumbo, ao passo que, na
Alemanha, Schönberger, de Königsberg, as usava feitas de
estanho. Outros pioneiros se lhes seguiram, como Jorge
Harsdorffor, de Nuremberg, e Padre Terzi, o primeiro
pretendendo, em 1651, fazer ressurgir o velho processo de gravar
letras com estilete em tábuas cobertas de cera e o segundo
inventando, cerca de 1676, uma espécie de código cifrado, para o
que utilizou uma série de nós dados em cordas ou um sistema de
pontos dispostos de vária forma. Um século depois, “Le Notre du
Puisseau”, em Paris, experimentou a fundição de letras metálicas
que, como as anteriores, eram muito duras e incómodas para o
tacto.”. Como facilmente se depreende, estes sistemas tinham uma
difícil aplicabilidade prática, pelo que depressa iam sendo
postos de parte pelos seus utilizadores.
Dá-nos conta também J. de Albuquerque e Castro(1936) de que muitas outras
tentativas isoladas se fizeram ainda, quase podendo dizer-se que cada pessoa
cega que “se instruía o fazia por diferente modo, servindo-se de meios mais
ou menos engenhosos conforme as circunstâncias.”. Neste sentido, Diderot, em
“Letres sur les Aveugles” refere-se a M.lle de Palignac, nascida em 1741,
que lia com a ajuda de letras recortadas em papel.
E Maria Teresa von Paradis(1759-1824), “de quem Valentin
Haüy tanto estímulo recebeu, foi instruída -sustentam Pierre
Henri e Albuquerque e Castro -por meio de alfinetes pregados em
almofadas.”. Citado pelos mesmos autores, Best, na sua
importante obra «The Blind», relata ainda outros casos, como o
de Tiago Bernouilli, que usou o sistema do Padre Terzi, bem como
letras gravadas em madeira, para ensinar um cego em Genebra em
1711. Mas foi Valentin Haüy quem pela primeira vez se lembrou de
escrever livros em relevo.”.
Essa ideia foi sugerida a Haüy pela ocorrência de dois
factos sucessivos (que observou), um grotescamente encenado (que o indignou profundamente) e outro ocasional (que o determinou
decisivamente), aos quais aludiremos mais adiante, mas que, em
conjunto, impulsionaram Haüy, de forma irreversível, a partir de 1784, a produzir livros em relevo linear, que as pessoas cegas
pudessem ler, e a ocupar-se da sua instrução. “Logo se fizeram
experiências com tipo, mas as antigas dificuldades de ler com os
dedos subsistiram. A via, pela qual se devia chegar ao sistema
Braille, estava porém aberta, e é justo assinalar os precursores
do grande cego de Coupvray”, merecendo uma especial, de entre
eles, o capitão de artilharia e depois também insigne tiflófilo
Charles Barbier de la Serre, sem cujos trabalhos (a sua
sonografia, como referiremos adiante) Louis Braille (ele próprio o confessa) jamais teria realizado o seu genial sistema
tiflográfico.
O nome de Barbier, com os de Valentin Haüy e Braille,
“compõem a brilhante trilogia redentora dos invisuais.”.
Nesta sucessão de passos histórico-culturais para a
constituição de um sistema de leitura e de escrita ajustado ao
sentido do tacto, como veículo de cultura em analogia com os
sistemas de leitura e de escrita para as pessoas normovisuais,
impõe-se concentrar-nos aprofundadamente no fulcro do nosso
objecto de estudo, que são os resultados da árdua tarefa da
nobre tríade formada por Valentin Haüy-Charles Barbier de la
Serre-Louis Braille, abordando a questão da tiflografia num
contexto comunicacional e histórico-cultural, outras iniciativas
tiflográficas (goradas) como alternativa ao Sistema Braille
(alfabetos Moon e Mascaró), critérios de produção e de
publicação em braille, materiais braillográficos e serviços de
produção e de utilização em Portugal, não deixando de referir
também as publicações em série portuguesas para as pessoas
cegas, de forma a, no quarto capítulo, podermos evidenciar
razões que nos levam a enumerar vantagens da tecnologização da
tiflografia, como inigualável contributo para a informação,
formação, interacção social e independência sócio-intelectual
das pessoas cegas.
III.1 - Génese da tiflografia
Os mais variados processos de se representarem caracteres
acessíveis ao tacto inventados ao longo da História e anteriores
a Valentin Haüy, a Barbier de la Serre e a Louis Braille sempre
se revelaram absolutamente ineficazes, o que justifica a sua
efemeridade. A verdadeira génese da tiflografia encontra-se, em
nossa opinião, nos valiosos e sequenciais contributos da tríade
francesa supra-enunciada, pelo que se nos afigura de relevante
interesse para esta investigação a inferência de significativos
passos tiflográficos, histórico-culturais e, mesmo,
biobibliográficos da tríade em referência.
III.1.1 - Valentin Haüy
O cidadão francês (normovisual) Valentin Haüy -o primeiro
dos geniais precursores de Louis Braille e o pai da
institucionalização da educação das pessoas cegas no mundo
inteiro -nasceu a 13 de Novembro de 1745, em Saint-Juste-en-Chaussée (Oise) e faleceu a 19 de Março de 1822.
De entre as múltiplas ocupações de que dependia para
sobreviver, foi poliglota, paleógrafo e perito na decifração de
escritas e códigos secretos, professor de línguas, trabalhando (para além do grego, do latim e do hebraico) com mais dez
línguas vivas, tendo sido também, durante mais de trinta anos,
tradutor e intérprete em entidades privadas e públicas do seu
País.
Dotado de uma aguda sensibilidade aos infortúnios humanos e
impulsionado por uma inamovível vontade de contribuir para o seu
alívio, possuído de uma implacável determinação, de uma enorme
capacidade de entrega e de uma extrema generosidade, Valentin
Haüy surgiu em França como a pessoa mais indicada para responder
definitivamente, no plano prático, à preocupação social pelo
estado psico-social, sócio-económico e cultural das pessoas
cegas.
E, a nosso ver, teria sido a ocorrência de um grotesco
episódio, perante os seus olhos, que o teria incentivado,
definitivamente, para a materialização de livros em relevo
linear que pudessem ser lidos por pessoas cegas. Dizem-nos
Maurice de la Sizeranne(1916) e F. P. Oliva(1984) que foi
um episódio, grotesco e chocante, que teria levado Valentin Haüy
a agir. Em Setembro de 1771 ou 1782 (surpreendentemente o
próprio Valentin Haüy situa o facto nestas duas datas separadas
por onze anos), aproveitando a feira de Santo Ovídio em Paris,
um empresário sem escrúpulos e ávido por atrair clientela “fez
exibir -seguindo textualmente F. P. Oliva(1984) -num café da
praça de Luís XV, mais tarde Praça da Concórdia, dez indivíduos
cegos mendigos como fantoches, que empunhavam desajeitadamente
um instrumento de música pela via pública, sendo apresentados
num estrado, grotescamente enfarpelados em trajes ridículos, com
compridos barretes pontiagudos nas cabeças e grandes óculos de
cartão (inclusive as lentes) nos narizes, diante de estantes com
músicas exuberantemente iluminadas, fazendo ouvir em uníssono e
à oitava uma monótona melodia, aparentemente dirigidos por um
maestro, também cego, enfeitado com o penteado de Midas e uma
cauda de pavão.”. Prossegue F. P. Oliva: “Espectáculo tão
repugnante, concebido para provocar hilaridade nos
circunstantes, desgostou profundamente Valentin Haüy e suscitou
nele uma viva indignação. Assim, ao choque produzido por um tal
espectáculo sucedeu a formação de propósitos verdadeiramente
tiflófilos”, o que, de acordo com Maurice de la Sizeranne(18571924)
e reproduzido por F. P. Oliva(1984), o próprio Valentin
Haüy expõe nos seguintes termos: “Por que foi que a ideia duma
cena tão vergonhosa para a espécie humana não terá morrido logo
no momento em que foi concebida? Por que foi que o divino
ministério da poesia e da gravura foram postos ao serviço da
divulgação duma tal atrocidade? Ah! foi sem dúvida para que o
quadro reproduzido diante dos meus olhos, enchendo-me o coração
duma aflição profunda, me excitasse o engenho. E assim, tomado
dum nobre entusiasmo, disse para comigo: porei a verdade no
lugar desta farsa ridícula, farei ler os cegos e colocarei nas
suas mãos livros impressos para eles próprios. Eles traçarão os
caracteres e lerão a sua própria escrita. Finalmente, farei com
que sejam capazes de interpretar música decentemente. Sim, baal
atroz, quem quer que sejas, porei na tua cabeça as orelhas de
burro com que quiseste degradar a daquele infeliz”.
Porém, um acontecimento fortuito veio reforçar,
decisivamente, a grande ambição de Valentin Haüy, levando-o a
iniciar a actividade docente. Assim, em 31 de Maio de 1784, ao
sair da igreja depois da celebração da festa de Pentecostes,
deitou, como esmola, uma moeda de prata na caixa de um mendigo
cego, de nome François Lesueur e com a idade de 17 anos, o qual
chamou imediatamente Haüy para lhe dizer que se havia enganado,
visto que lhe tinha dado uma moeda em prata em vez de um soldo.
Surpreendido, Haüy perguntou-lhe como se tinha apercebido disso, ao que Lesueur respondeu que havia sido pelo ouvido e pelo
tacto.
Referem Maurice de la Sizeranne(1916) e F. P. Oliva(1984)
que, “impressionado por esta capacidade e estimulado pelo ar
inteligente de Lesueur, Haüy convidou-o a aprender a ler.”. Os
dados estavam, pois, lançados e, vencida a resistência dos pais
de Lesueur, que não podiam prescindir do produto das esmolas
recebidas pelo filho (e depois de, para o efeito, o próprio Haüy
se ter decidido entregar essa importância aos pais), professor e
aluno passaram a trabalhar diariamente em casa do primeiro.
Servindo-se de caracteres móveis, Lesueur aprendeu a conhecer as letras e
algarismos, a combinar os caracteres para formar palavras e números e a
construir frases. Mas um dia, quando apalpava papéis que estavam sobre a
secretária de Haüy, Lesueur encontrou um cartão de visita em que a impressão
apresentava algum relevo e identificou logo um “o”. Excitado com a
descoberta, apressou-se a participá-la ao mestre, o qual, não menos
entusiasmado, com o bico do cabo da sua pena, gravou no papel diversas
letras, que Lesueur reconheceu sem qualquer hesitação. E assim surgiu a
ideia da impressão em relevo, que Valentin Haüy concretizaria pouco depois,
“fazendo fundir caracteres adequados e concebendo ainda um dispositivo
especial para tintagem dos relevos, o que tornava os livros facilmente
utilizáveis também pelos videntes. Com a produção destes livros pretendia
dar a cada um dos seus alunos a possibilidade de constituirem a sua própria
biblioteca e, por outro lado, esperava também que os cegos pudessem
dedicar-se ao ensino de crianças videntes.”.
Nesta acepção, fundou em 1784 a primeira escola para cegos
no mundo, a qual funcionou a princípio na sua própria residência
e sendo transferida, em 1786, para instalações alugadas,
reunindo-se escola e oficinas no mesmo estabelecimento e sendo
Haüy encarregado pela Sociedade Filantrópica da educação das
pessoas cegas, nascendo assim a “Institution des Enfants
Aveugles” (mais tarde “Institution Nationale des Jeunes
Aveugles”), mas cuja oficialização só veio a consumar-se em 1791.
Neste contexto, escreve F. P. Oliva(1984): “Em pouco tempo
a actividade educativa de Haüy conhecia um crescimento notável.
O número de alunos atingia várias dezenas; as lições eram
transferidas da casa de Haüy para instalações alugadas; a
Academia das Ciências, de que o irmão de Haüy era membro, e o
Gabinete Académico das Escritas, de que era membro o próprio
Haüy, ofereciam o benefício da sua influência; a Sociedade
Filantrópica encarregava Haüy da educação dos seus protegidos;
escola e oficinas eram reunidas no mesmo estabelecimento, em
1786, dando assim origem ao nascimento da “Institution des
Enfants Aveugles”, que viria a evoluir mais tarde para a
“Institution Nationale des Jeunes Aveugles”; no mesmo ano, pelo
Natal, na continuação duma extensa série de demonstrações com a
dupla finalidade de impressionar a opinião pública e de angariar
auxílios financeiros, 24 alunos da escola de Haüy apresentavam- se perante a Família Real e a Corte, no palácio de Versalhes,
pondo à prova a sua capacidade na leitura, realização de
operações matemáticas, utilização de mapas geográficos,
interpretação musical, composição e revisão tipográfica,
execução de outras tarefas oficinais, etc.; em 1786 era editado o primeiro ensaio sobre a educação dos cegos e dois anos depois
editava-se uma notícia histórica sobre a “Institution des Enfants Aveugles”;
em 1789 alunos da instituição eram admitidos como músicos da capela real.”. Nesta perspectiva tiflopedagógica, Haüy veio,
merecidamente, a ser consagrado pela História como o fundador da
primeira escola para cegos no mundo, como o responsável pelos
primeiros materiais em relevo e utilizados nessa escola
(nomeadamente letras, algarismos, mapas), como o adaptador da
tipografia à impressão em relevo, como o criador das primeiras
oficinas para cegos, em suma, como o pioneiro que desbravou o
caminho para o histórico feito de Barbier de la Serre e para a
monumental descoberta e invenção de Louis Braille.
Valentin Haüy provou que o problema essencial na educação
das pessoas cegas consistia em transformar o “visível”em
“tangível”,(F. P. Oliva, 1984).
Contudo, a vida de Valentin Haüy não se resumiu a um mar de
rosas: foi também um oceano de espinhos e assanhados. Isto
porque, com a eclosão da Revolução Francesa, a sua actividade
tiflófila (que sempre se debatera com enormes dificuldades
económicas) defrontou-se com múltiplas dificuldades agravadas
juntamente com os efeitos de inúmeras vicissitudes político-sociais, conduzindo a escola quase à extinção. Nestas
conturbadas circunstâncias, em que as difererenças da cena
política e até religiosa (mesmo as mais influentes) mal deixavam
aquecer os lugares, Haüy, não obstante, procurava mover-se no
seu meio. E não tardou que a sua versatilidade (sempre em favor
das pessoas cegas) o fizesse confrontar com nefastas
consequências, que vieram a impor-lhe o abandono da direcção
administrativa das suas actividades tiflófilas e
tiflopedagógicas.
A carência de recursos financeiros conduziu -seguindo
Pierre Henri(1952) e F. P. Oliva(1984) -à instalação da Escola
para Cegos e da Escola para Surdos-Mudos num só edifício, o que
veio a provocar sérios desentendimentos entre Haüy e Sicard, o
sucessor do Abade de L'Épée na Escola para Surdos-Mudos. Cabe
aqui salientar que o Abade de L'Épée havia fundado em Paris, em
1760, a primeira escola para surdos-mudos e inventou o alfabeto
manual.
Mais tarde, a Escola para Cegos foi integrada no Hospício
dos “Quinze-Vingt” e Haüy é afastado definitivamente da sua
direcção administrativa. Haüy combateu vigorosamente estas
medidas, a sua imagem, quer no plano político, quer no
religioso, afundou-se, foi preso duas vezes e, inerme, desistiu
da contenda em 1802, doente e cheio de desgostos. Mas apesar do
seu estado de abatimento, em termos de saúde física, psíquica e
espiritual, ainda conseguiu reunir forças para abrir, neste
mesmo ano, uma pequena escola privada, à semelhança da já
existente, a que deu o nome de “Le Musée des Aveugles”, onde
recebeu um pequeno número de indivíduos cegos franceses e
estrangeiros abastados. Esta Escola, a despeito das enormes
carências de recursos, ainda conseguiu formar bons alunos, facto
que, graças às favoráveis informações dos alunos provenientes de outros países levadas para o estrangeiro, fez com que,
simultânea e paradoxalmente, a imagem de Valentin Haüy
granjeasse prestígio internacional.
Menosprezando alguns detalhes contextuais episódicos,
convém referir que Haüy foi obrigado a partir para a Rússia em
Maio de 1806, a convite do próprio Imperador, para aí fundar uma
Escola para Cegos. Porém, antes de chegar a S. Petersburgo, na
sua passagem pela Alemanha, aconselha neste país alguns
príncipes no sentido de ser melhorada a situação das pessoas
cegas nos seus Estados, de cujo trabalho resultou a criação, por
parte de August Zeune, da primeira Escola para Cegos em Berlim,
em 1806, a qual constituiu modelo para as que nos anos subsequentes vieram a ser criadas neste país.(F. P. Oliva, 1984).
O trabalho de Valentin Haüy na Rússia, contrariamente às
suas expectativas, veio a ser malogrado e coroado de infame
insucesso, ficando profundamente decepcionado e abismado pela
estranha ausência de cooperação das autoridades para a criação
da invocada Escola para Cegos na Rússia. Todavia, permaneceu
onze anos neste país e deu algum sentido à sua deslocação,
optando por abrir uma Escola para Surdos-Mudos.
Regressou ao seu país em 1817, velho, doente e funestamente
marcado pelas desilusões. Chegado a França, para cúmulo dos
desaires, foi-lhe negada autorização para entrar na escola que
ele próprio fundara, a então “Institution Royale des Jeunes
Aveugles”, visto pairarem ainda nalguns espíritos recordações
das suas actividades políticas e religiosas nos anos da
Revolução. Só em 1821, poucos meses antes da sua morte, o novo
Director da “Institution Royale des Jeunes Aveugles” o recebeu
na escola e organizou em sua honra uma sessão solene, em que
alunos lhe prestaram emocionante homenagem, como reconhecimento
e consagração do seu mérito na actividade tiflófila, o que,
provavelmente, o terá de algum modo compensado das inúmeras
incompreensões e injustiças anteriores de que fora vítima.
Inquestionavelmente, Haüy abriu o caminho para a formação
da Tiflologia, pugnou pela promoção das pessoas cegas através da
educação e da habilitação para o trabalho, numa época em que
estas se encontravam numa situação de verdadeira sub-humanidade.
Os métodos e os instrumentos que utilizou há muito que não se
usam, mas foram fonte inspiradora dos muitos que hoje possuímos.
O conceito de cegueira, para Valentin Haüy, estava
impregnado de alguns vícios, embora tenha sido a partir da sua
concepção que começou a demonstrar-se quanto a concepção da
sociedade, a esse respeito, estava errada. E a actividade de
Haüy, em favor da emancipação sócio-intelectual das pessoas
cegas, foi de tal ordem significativa e relevante, que só isso
explica a razão por que em França (pátria de Louis Braille) se
tenha atribuído o nome de Valentin Haüy à primeira Associação de
Cegos aí constituída, fundada por Maurice de la Sizeranne em
1889 e que integra (nas suas instalações) o Museu Louis Braille
(excepto os móveis, que ficaram no antigo Museu em Coupvray),
onde pudemos observar (utilizando o tacto) magníficos exemplares
únicos dos primórdios da tiflografia, acervo tiflológico mudial
cuja recolha e iniciativa se devem a Edgar Guilbeau(1850-1930),
em 1886.
“C'est en 1886 qu'un professeur d'histoire et géographie de
l'Institut National des Jeunes Aveugles, Edgar Guilbeau «aveugle
d'enfance», décide de créer une exposition permanente à la fois
historique, didactique et technique du matériel mis à la
disposition des aveugles.”.
“C'est en 1889 que Maurice de la Sizeranne, ayant perdu la
vue accidentellement à l'âge de neuf ans, crée l'Association
Valentin Haüy pour le bien des aveugles. Il confie alors à l'AVH
les premiers objets en tous genres recueillis tant en France
qu'à l'étranger et classés par Edgar Guilbeau: spécimens
d'écriture en relief, tablettes pour écrire le braille, guidesmain
pour ceux qui écrivent en “noire”, cartes de géographie,
figures de géométrie, travaux exécutés par des aveugles, etc...”.
[Extraímos este conteúdo de um folheto informativo, da Associação Valentin
Haüy e Museu Louis Braille, o qual exibe uma fotografia do grotesco episódio que muito
indignou Haüy]
III.1.2 - Barbier de la Serre
Nicolas
Marie Charles Barbier de la Serre, mais vulgarmente
conhecido por Barbier de la Serre, nasceu em 1767, em
Valenciennes (norte de França), e faleceu em 1841, em Paris.
Cabe-lhe, no contexto tiflográfico, uma referência muito
especial como o mais genial precursor de Louis Braiile, tendo sido um notabilíssimo tiflófilo (mais do que
tiflólogo, provavelmente só foi tiflófilo por acaso) que veio a
revelar-se na história da tiflologia como o inicial (e, em certa
medida, fundamental) detonador de barreiras psico-sociais e
culturais que enclausuravam intelectualmente as pessoas cegas,
constituindo o seu evento o princípio-base da emancipação destas
pessoas na leitura e na escrita, incomparavelmente de forma mais
acessível do que o sistema criado pelo seu antecessor Valentin
Haüy.
O seu contributo para as pessoas cegas baseia-se no facto de,
como capitão de artilharia nas conturbadas conquistas
napoleónicas, em que os oficiais em campanha necessitavam de
sigilosamente transmitir e de receber mensagens durante a noite,
inventou um sistema de escrita por meio de pontos que podia ser
lido às escuras.
Há a notícia de que, como oficial do exército, teria,
inicialmente, abandonado a carreira militar e partido para a
América, onde permanecera durante alguns anos. Regressado a
França, ter-se-ia dedicado com ardor ao estado de sub-humanidade
das pessoas cegas, estudando a forma de amenizar os seus
infortúnios, principalmente no domínio da escrita e da leitura.
Primeiramente, seguindo Albuquerque e Castro(1936) e Matoso da
Fonseca(1936), ter-se-ia ocupado da telegrafia e idealizou o método de
escrita por meio de pontos supra-referido, que veio a ser designado por
“escrita nocturna” por oferecer a possibilidade de poder ser lida pelos
combatentes às escuras. Este processo evoluiu até se tornar num verdadeiro
código cifrado, criptográfico, próprio para guardar o segredo militar. Ao
que parece, fora já numa fase muito adiantada do seu método que lhe ocorrera
pô-lo ao serviço das pessoas cegas e fazer sentir aos educadores as enormes
vantagens nele contidas, visto que vinha substituir, no plano funcional da
sua utilização (mais fluência na escrita e na leitura), o processo de
escrita e de leitura das letras do alfabeto latino em relevo linear,
propositadamente de grandes dimensões para melhor se identificarem através
do tacto, o que, paradoxalmente, diminuía a velocidade de leitura. Sustenta
Albuquerque e Castro(1936) que Barbier se baseou “em princípios fonéticos e
não ortográficos, o que dava à estrutura dos caracteres grande complexidade
e dificultava a determinação exacta do significado de cada um. Por outro
lado, perdia-se muito espaço, em virtude das grandes dimensões dos
caracteres, ao passo que o dedo se via forçado a ziguezaguear sobre o papel
em vez de percorrê-lo horizontalmente. Estes inconvenientes, acrescidos da
impossibilidade de se ler com rapidez, tornara o sistema pouco prático e
condená-lo-iam como os outros se Luiz Braille o não modificasse, baseando-o
em princípios ortográficos e reduzindo a metade o número de pontos de cada
fila.”.
Também há a notícia de que Barbier teria procurado que o seu método
se pudesse destinar também aos surdos-mudos e, de certo modo, aos iletrados.
Este sistema veio a consagrar-se na história como «Sonographie Barbier»:
sonografia, porque é formada por sinais representativos de sons, sendo
constituída, portanto, por trinta e seis sinais que representavam os sons
mais frequentemente usados na língua francesa. Estes trinta e seis sinais
distribuíam-se por seis linhas, contendo cada uma seis sinais, formando
igual número de colunas. Na evolução da sua sonografia, conforme o quadro
sonográfico expresso na página seguinte. Barbier de la Serre, que era muito
dedicado aos estudos da matemática, parece ter tido, afirma Albuquerque e
Castro no artigo em referência, uma intuição daquelas que estão na base de
muitas das mais significativas e importantes descobertas ou invenções da
humanidade. A de Barbier teria consistido em designar as coordenadas dos
seus símbolos sonográficos por um certo número de pontos, indicativos da
abcissa e da ordenada, isto é, da linha e da coluna a que o símbolo
pertencia.
Cada símbolo resultava da simples combinação de doze pontos
(dois no mínimo e doze no máximo), colocados em duas filas
verticais e paralelas, contendo cada uma no máximo seis pontos.
Por exemplo: o sinal que se encontrasse no cruzamento da quinta
linha e da terceira coluna seria representado por cinco pontos
na fila vertical esquerda e por três pontos na fila vertical
direita, correspondendo ao símbolo “N”. O sinal que estivesse na
última posição na sexta linha indicar-se-ia por seis pontos na
fila vertical esquerda e por seis pontos na fila vertical
direita, correspondendo ao som IEU, e assim sucessivamente. Este
sistema sonográfico formado por pontos em relevo justapostos
veio a possibilitar às pessoas cegas a leitura táctil
incomparavelmente mais rápida do que pelos processos anteriores,
permitindo-lhes ainda escrever com mais facilidade.
Barbier inventou mesmo um autêntico arquétipo da actual régua
Braille, instrumento através do qual, com o auxílio de um
estilete (a que hoje chamamos punção), era possível gravarem-se
no papel todos os símbolos do seu sistema, o que podemos atestar
porque tivemos a oportunidade de (em Março de 1997) observar todo esse material no Museu Louis Braille localizado na
Associação Valentin Haüy.
Barbier de la Serre sustentava que, com estes trinta e seis sinais, poderiam as pessoas cegas “dar conta dos seus negócios,
consignar no papel as suas ideias, recolher as dos outros, ler a
sua própria escrita, sem que se seja obrigado a ensinar-lhes a
forma das letras, o uso da pena e as regras da ortografia, nem
as dificuldades de soletrar”.
Interessando-se pela tiflografia, ao que consta desde 1819,
teria apresentado este seu sistema à Academia das Ciências, que
muito o felicitou, à Universidade de Paris, onde encontrou um
frio acolhimento, e à Institution Royale des Jeunes Aveugles, onde, a partir de 1821, o seu método foi muito experimentado até
1826 pelos alunos da escola, com grande interesse e por todos
considerado como um elevado e sem igual benefício em seu favor
até então, tendo sido também utilizado, diz-nos Albuquerque e
Castro(1936), como sistema de abreviaturas tiflográficas até
1882.
Imprimiu-se um livro para ensinar as pessoas cegas a ler este
sistema criptográfico (o que também pudemos observar no Museu
Louis Braille na data atrás referida) e, curiosamente, com base
no aludido arquétipo por ele concebido, chegou a confeccionar
pautas e réguas de mesa e, até, de algibeira para produzir este
sistema sonográfico (talvez mais morfemográfico) que veio a
funcionar como meio tiflográfico.
Contudo, este sistema tiflográfico era apenas fonético e, por
isso mesmo, não satisfazia as necessidades de alunos e de
professores. Tinha, é certo, a inédita e já prodigiosa vantagem
de poder ser utilizado pelos indivíduos cegos, mas as
circunstâncias impunham adequá-lo às exigências da ortografia.
Simultaneamente, não obstante, era difícil aos indivíduos cegos
ler este sistema com a fluência desejável (embora com mais
rapidez do que os sistemas anteriores), em virtude do excessivo
número de pontos e da necessária grandeza dos símbolos por eles
formados.
Este processo de escrever, devido à quantidade de pontos que era
necessário combinar para se formar um sinal fonético, também era
demasiado lento. Mas o que é certo é que Barbier tinha,
efectivamente, efectuado uma descoberta, sem igual significado e
importância anteriores: descobriu que o ponto em relevo, e não o
traço, era o elemento adequado à polpa do dedo, adequado à
percepção táctil no processo de leitura.
Barbier achava (e com razão) que era difícil às pessoas cegas
traçarem letras que os seus dedos pudessem identificar
fluentemente. E, nesta perspectiva, teve a feliz inspiração de
que o dedo, ao contrário dos olhos, analisa melhor os pontos do
que as linhas. Porém (e erradamente), acreditava que este seu
processo fonético seria o suficiente, como meio de comunicação,
para os indivíduos cegos poderem ler e escrever, sendo-lhes
inútil a ortografia. Mas o que não resistimos a sustentar é que
(com profunda e entusiástica gratidão), Barbier havia descoberto
a base da grande revolução tiflográfica, a qual eclodiu
retumbantemente: o ponto, o elemento tangível que mais se ajusta
à modalidade perceptiva do tacto, estava finalmente encontrado.
Louis Braille tinha a primeira pedra lançada para poder basear- se e erigir o seu fabuloso, imponente, inexpugnável e
insubstituível monumento tiflográfico e tiflológico universal,
que é o alfabeto Braille.
O nome de Barbier de la Serre, por muito estranho que pareça,
foi caindo no esquecimento. Sabia-se que o seu corpo se
encontrava no cemitério de Père-la-Chaise, de Paris, mas
ignorava-se o local exacto onde jazia. Só muito mais tarde, um
seu admirador e membro da Association Valentin Haüy conseguiu
descobrir o seu túmulo e, imediatamente, esta Associação tomou a
iniciativa de o reedificar, de forma a poder-se, condignamente,
comemorar a personalidade do homem que tão elevados préstimos
legou (por acaso) à educação das pessoas cegas.
A propósito, J. de Albuquerque e Castro(1959) refere que: “Sem
Carlos Barbier, não teria talvez existido para Luís Braille a
imortalidade. Mas, sem ele, o sistema de escrita em relevo,
inventado por Barbier, não teria talvez ultrapassado o seu
autor, porque nenhum outro, senão Luís Braille, saberia
transformá-lo e fazer dele o modelo de lógica, de simplicidade e
de polivalência que todos conhecemos.”.
E escreve ainda: “Glória a Carlos Barbier! Mas glória maior
ainda a Luís Braille!”.
III.1.3 - Louis Braille
Louis Braille nasceu a 4de Janeiro de 1809 na aldeia de Coupvray, situada a cerca de quarenta quilómetros a leste de
Paris, e faleceu a 6 de Janeiro de 1852, em Paris. Era o filho
mais novo do casal Simon René Braille e Monique Baron e tinha
mais três irmãos: um rapaz e duas raparigas. O pai era correeiro
e o pequeno Louis costumava ir, com frequência, brincar para a
sua oficina, onde, num certo dia (já com três anos), ao tentar
cortar uma correia com a faca que o pai habitualmente usava (há
quem refira a sovela em vez da faca), teria ferido um dos olhos,
que infectou, propagando-se a infecção rapidamente ao outro olho
e acabando a criança por ficar completamente cega em pouco tempo.
O pequeno Louis frequentou a escola primária da sua terra natal,
adquirindo alguns conhecimentos, conquanto não pudesse ler nem
escrever, e, em casa, ocupava-se do arranjo de arreios,
actividade que lhe proporcionara excelente destreza manual.
Tendo em conta uma série de condicionantes próprias da época,
era natural que o pai tivesse preocupações e dúvidas quanto ao
futuro deste filho. E tinha-as na verdade. Mas um belo dia soube
da existência da escola fundada por Valentin Haüy, Institution
Royale des Jeunes Aveugles, em Paris, na qual veio a internar o
filho, já com dez anos, em 15 de Fevereiro de 1819, ano em que
Barbier de la Serre se começara a interessar, afincadamente,
pela tiflografia, baseada no seu sistema sonográfico.
A princípio, o pai de Louis Braille teria manifestado algumas
reservas quanto ao internamento da criança naquela escola,
provavelmente porque se localizava num bairro sujo e insalubre,
porque as instalações eram exíguas e a alimentação muito
deficiente, porque as crianças (do sexo masculino e feminino)
tinham um aspecto pálido, doentio, e porque, em suma, se
inteirara (nós hoje procederíamos exactamente assim) das
péssimas condições em que as crianças viviam na escola, não
obstante as denúncias, sem êxito, lavradas em relatórios por
médicos que as visitavam muito de longe em longe.
O ensino aí ministrado abrangia, na realidade, muitas matérias,
embora de forma bastante superficial, e os livros utilizados
pelos professores e alunos eram, nesta altura ainda, muito
volumosos, impressos no relevo linear de Valentin Haüy,
reproduzindo ampliadamente as letras a tinta, para mais
facilmente poderem ser identificadas pelo tacto, o que se traduzia, obviamente, numa leitura morosa e cansativa para as
crianças cegas e, mesmo, para os próprios adultos.
No que se referia à possibilidade das pessoas cegas escreverem,
essa dificuldade era bem mais acentuada e quase que se podiam
contar pelos dedos as que conseguiam escrever com a pena,
embora, a partir de 1821, se começasse a abandonar a pena em
favor do estilete (hoje denominado punção) com o qual se
escrevia por meio de pontos a “Sonographie Barbier”, que veio a
ser utilizada na escola e pelas pessoas cegas até 1882, como
atrás referimos.
Mas reportando-nos a Louis Braille, existem informações escritas
que atestam, fundamentadamente, que era bom aluno, distinguindo-se quer nos trabalhos manuais, quer nas matérias de índole
intelectual, revelando grande clareza de ideias e um elevado
poder de as transmitir concisamente.
Esta enorme capacidade levou-o a somar à condição de aluno, as
funções de contramestre (de 1823 a 1827), passando a ensinar
trabalhos manuais aos alunos mais novos. Tendo sido bem sucedido
neste exercício, em Agosto de 1827 foi nomeado monitor, ficando
com o encargo de oito classes: gramática, história, geografia,
aritmética, álgebra, geometria, violoncelo e piano. A actividade
de monitor era-lhe, de facto, extremamente gratificante, embora
mal remunerado e com regalias quase imperceptivelmente melhores
do que as dos alunos. Como não podia deixar de ser, veio a
tornar-se professor, sustentando Pierre Henri que as suas aulas
eram muito apreciadas, porque não divagava em futilidades e
expunha, concisa e objectivamente, apenas o que era essencial.
Por outro lado, e contrariamente ao que era habitual na época,
aplicava poucos castigos aos alunos. Escreveu diversos tratados
de história e de aritmética, dos quais se destaca o “Petit
Mémento d'Arithmétique à l'Usage des Commençants...”, um método
de musicografia e outro de livros didácticos.
Foi também um exímio organista em várias igrejas de Paris, tendo
a última sido a Capela dos Lazaristas, onde encontrou o ambiente
propício às suas meditações religiosas.
Gostava de jogar xadrez, era de resto o único jogo que o
motivava. Era inteligente e sensível, tinha muitos amigos e
muitos procuravam-no e seguiam os seus conselhos. Foi, cerca de
um mês antes da sua morte, acometido de uma violenta hemoptise
que o levou à cama para não mais se levantar, debilidade que
vinha a afectá-lo desde os 26 anos.
Foi sepultado na sua terra natal que, em 1882, veio a edificar,
em sua memória, um curioso monumento que representa Louis
Braille a ensinar uma criança a ler o seu alfabeto e, em 1952,
na comemoração do Primeiro Centenário da sua morte, os seus
restos mortais foram trasladados para o Panteão Nacional, nos
Inválidos, em Paris, ficando apenas as mãos em Coupvray.
Contudo, o fundamental monumento tiflológico universal de Louis
Braille (para que deste aparente metaforismo não resultem
equívocos) é, na realidade, bem mais vivo e profícuo -o meio de
comunicação vital entre as pessoas cegas (o alfabeto braille) e,
ao mesmo tempo, o demolidor de barreiras sócio-intelectuais,
culturais e sócio-profissionais que lhes abriu as portas do
maravilhoso mundo do saber, o móbil da emancipação sócio-intelectual das
pessoas cegas de todo o mundo.
Efectivamente, Louis Braille, apesar de intensificar toda a sua
actividade (incluindo a docência), nunca deixou de investigar,
de estudar, de amadurecer ideias para conceber e materializar o
sistema que tomou como designação o seu último apelido (Braille)
e que veio a celebrizá-lo na História dos Homens com
maiúscula.
Escrevia J. de Albuquerque e Castro(1938): “O ano passado marcou o termo de notável período na história da tiflologia: o da
invenção, aproveitamento e consagração da escrita em relevo que
os cegos usam. Foi em 1837 que ela recebeu de Luiz Braille a sua
forma definitiva; durante um século inteiro todos os povos
civilizados a adoptaram progressivamente, sem que nenhuma
modificação lhe fosse introduzida, e, finalmente, em 1937, os
cegos franceses tomaram a iniciativa de consagrá-la, perpetuando
em monumento condigno a memória do seu autor.”.
Todas as entidades tiflológicas francesas manifestaram
imediatamente o desejo de colaborar na grandiosa homenagem, de
modo que, pode dizer-se, essa iniciativa não pertence a este ou
àquele indivíduo mas a todos os cegos de França. Por seu turno prossegue
J. de Albuquerque e Castro -, “desde o Chefe de
Estado, que aceitou a presidência de honra da comissão
encarregada de levar a cabo a justíssima consagração, até aos
administradores locais, todas as autoridades da França
garantiram com o seu poderosíssimo concurso o êxito desta
homenagem.”. Mas Louis Braille, adianta o mesmo autor(1938), pelo carácter
universal da sua obra, não é apenas “uma glória da França” ou um “benemérito
dos privados de vista”, pois a sua escrita é utilizada pelos cegos de todo o
mundo e, como eles não constituem de modo algum classe fechada, à qual
alguém possa ter a certeza de nunca vir a pertencer, por si ou pelos seus,
não é hiperbólico afirmar que “Braille pertence a toda a humanidade e é um
dos seus maiores beneméritos. Como Galileu, como Pasteur, como Ling, como
Dumont, como tantos outros, êle trabalhou para o género humano. Os cegos,
que, antes dêle, só difícil e raramente conseguiam compensar pela luz do
espírito as trevas em que viviam, viram-se subitamente, graças à sua
maravilhosa tiflografia, na posse do mais forte, do mais eficaz elemento de
cultura intelectual e de preparação profissional. Braille é o seu
emancipador. O seu genial invento foi clarão que para sempre dissipou a
sombra que os envolvia. O “ceguinho”, transfigurado por êle, desapareceu
para dar lugar ao “homem”. Que proveito tirariam os cegos dos princípios
morais do Cristianismo ou das doutrinas sociais da Revolução Francesa se
Braille lhes não desse o meio de compreendê-los? Braille é o seu redentor, o
seu 1789!”.
III.2 - Institucionalização do Braille como Instrumento Intelectossocial de Tiflografia Universal
III.2.1 - Da Escrita Sonográfica de Barbier de la Serre à
Escrita Fonográfica e Alfabética de Louis Braille
Bem, mas... que mérito se deve atribuir a Louis Braille, uma vez
que os sinais em relevo ponteado estavam inventados e que o
instrumento para os produzir o estava também?...
A primeira transformação da “Sonographie Barbier”, operada por
Louis Braille, foi “dividir ao meio”, no sentido da altura, o
rectângulo formado pelos doze pontos (seis em cada fila) -como
podemos observar na convergência da sexta coluna com a sexta
linha do Quadro da Sonografia Barbier adaptado à Escrita dos
Cegos atrás apresentado -, concebido por Barbier, ficando cada
sinal (a célula braille) a ocupar um rectângulo formado apenas
por seis pontos (três em cada fila, enumerados de 1 a 6, de cima
para baixo e da esquerda para a direita, sendo a fila esquerda
representada pelos pontos «123» e a fila direita pelos pontos
«456») -como podemos observar no quadro signográfico e Alfabeto
Braille apresentados nas três páginas seguintes, clarificando a
diferença entre a «Sonographie Barbier» e o alfabeto Braille,
bem como as potencialidades signográficas deste sistema.
Isto porque Louis Braille reconhecera, desde logo, que os
símbolos com mais de três pontos em cada fila eram inabrangíveis
num só contacto pela parte mais sensível do dedo e, por
consequência, a percepção imediata de um sinal representativo de
um determinado caracter era impossível. Estava finalmente
inventada a dimensão ideal do carácter representado por pontos
ajustados à percepção táctil.
A este propósito, Pierre Villey(1879-1933) -cego, outra
referência de grande envergadura, professor universitário,
historiador e crítico, cujos ensaios sobre Montaigne e sobre a
psicologia e a pedagogia dos cegos não foram ainda alterados classifica
de “prodígio do alfabeto Braille” o facto de o seu
símbolo genético se compor apenas de seis pontos, que não
excedem o campo da tactilidade e no entanto satisfazem todas as
necessidades da sua utilização. Mas a Barbier também Pierre
Villey se refere, equiparando-o a outros precursores que, de
nenhum modo, se encontram no caminho de Louis Braille.
Nós não hesitamos em sustentar que, sem a «Sonographie Barbier»,
não teríamos (conforme já o afirmámos) o Braille de hoje. Com
Louis Braille, cada sinal passou então a corresponder a uma só
letra, a um só algarismo, a um só sinal de pontuação. Existem
informações escritas de que este primeiro trabalho de Louis
Braille fora pensado, aturadamente, e já de algum modo
realizado, numas férias quando tinha apenas dezasseis anos. A
partir da multiplicidade das combinações que seis pontos
originam, extraiu uma série de caracteres metodicamente
dispostos e consequentes uns dos outros com uma lógica e uma
simplicidade tais, que hoje nos deixam perplexos, sobretudo se
pensarmos que o objectivo de Louis Braille foi atingido logo na
primeira edição da sua obra (tinha ele vinte anos de idade),
onde expõe o seu novo método de escrita e de leitura, que
permite escrever, não só palavras e números, mas também música e
cantochão.
Este sistema era constituído por noventa e seis sinais que
resultavam não só da combinação de pontos, mas também da
combinação de pontos com sinais. Rompeu com a concepção fonética, em que os símbolos representavam sons silábicos, e deu
ao seu processo fundamento ortográfico e alfabético, o que o
consagrou na História da Humanidade como o inventor de um
alfabeto inultrapassável para as pessoas cegas.
Bastante influenciado por métodos de escrita e,
fundamentalmente, de leitura anteriores, esta primeira edição
ainda era permeável à adopção de elementos do relevo linear.
Curiosamente, de entre as aplicações sui generis do próprio
braille, uma das quais chegou a assentar numa célula de três
verticais por duas horizontais, em vez de duas verticais por
três horizontais, persistiram nos Estados Unidos até à segunda
década do século XX, “tendo o seu abandono e a adopção do
braille padrão ficado a dever-se aos empenhados esforços de
Helen Keller que, também para esse fim, conduziu uma das suas
muitas cruzadas.”.
Durante oito anos Braille não deixou de trabalhar no seu sistema
e de o aperfeiçoar. A partir de 1830 os alunos passaram a usá-lo
para escrever nas aulas. E essa utilização ajudou Luís Braille a
resolver problemas de ordem prática. Para exemplificar vejamos o
que se passou com a pontuação. “Em princípio esses sinais eram
representados pelos 10 primeiros caracteres sublinhados por um
traço. Como esse traço fosse difícil de fazer, os alunos
começaram a deixar de o pôr e a escrever esses caracteres na
parte inferior do rectângulo. Assim criaram 10 novos sinais que
Luís Braille adoptou definitivamente para representar as pontuações”, conforme o expresso no quadro das pontuações
e sinais acessórios atrás apresentado.
Conquanto o uso deste sistema de Louis Braille já estivesse generalizado entre
os alunos (com indiscutíveis vantagens relativamente a todos os
sistemas anteriores), continuavam, por absurdo que isso pareça, a
imprimir-se livros em relevo linear.
Mas em 1837, ano da 2.ª edição da sua obra, após oito anos de
experiências e de ajustamentos com a colaboração de muitos dos
seus camaradas, o sistema de Louis Braille apresentou-se quase
exactamente como hoje o conhecemos (com sessenta e três sinais,
alcançando rapidamente forma definitiva e uma expressão tão
perfeita que, não obstante as modificações que outros procuraram
introduzir-lhe, é presentemente o único processo tiflográfico (devidamente
elaborado) usado pelas pessoas cegas de todo o mundo.
Louis Braille conseguiu contemplar, na edição do seu notável
sistema em 1837, representar distintamente quase todos os sinais
utilizados na escrita em caracteres comuns, mas o Sistema
Braille só foi oficializado em França em 1854 (dois anos depois
da morte do seu autor),em toda a Europa em 1870, sendo
recomendada a sua adopção como sistema internacional para o
ensino de alunos cegos, o que só veio a concretizar-se em 1978
(conforme o refere M.ª de Los Angeles Soler no Seminário de
Iniciação à Tiflologia organizado pela ONCE e realizado em
Madrid em 1976), tendo a sua ascensão à universalidade sido
muito lenta e repleta de tais vicissitudes, que, podemos dizer,
a sua assunção triunfante só veio a verificar-se em pleno século XX.
Mas retomando à 2.ª edição do Sistema Braille, acresce salientar
que Louis Braille fixou o alfabeto, os algarismos, a pontuação e
outros sinais ortográficos, bem como os sinais aritméticos e
algébricos (que posteriormente sofreram diversas modificações),
um sistema estenográfico (quase totalmente modificado) e um
código de notação musical que constitui, no essencial das suas
linhas, a actual musicografia braille universal. Bom, a este
respeito, quanto à escrita da música, nenhuma das formas
adoptadas no mundo, até então, satisfazia as necessidades dos
estudantes e profissionais cegos. Coube a Louis Braille
solucionar também este problema: e foi graças ao seu espírito
científico, à sua capacidade analítica e à sua perseverança, que
descobriu uma forma de representar os sinais musicográficos
capaz de reproduzir com exactidão os textos musicais escritos a
tinta, proporcionando às pessoas cegas, deste modo, a
possibilidade de, decidida e confiadamente, enveredarem pela
exploração da música, itinerário que, na época, lhes sorria
irrecusavelmente, transbordante de promessas.
A música, seja como arte (exprimindo sentimentos ou impressões
por meio de sons), seja como ciência, começou a estar,
progressivamente acessível e ao inteiro alcance das pessoas
cegas.
De notar que esta forma de representar os sinais musicográficos
foi imediatamente adoptada, o mesmo não sucedendo com outras
representações da escrita braille. Um exemplo desta afirmação é
a existência no Museu Luís Braille (na Associação Valentin Haüy)
de um livro de hinos, em que o texto musical está escrito em
braille e os poemas em relevo linear, o qual também tivemos a
oportunidade de observar.
Cabe aqui salientar que também encontrámos neste Museu o livro
“Précis sur l'Histoire de France Divisée par Siècles...”, de
dois autores que se assinam apenas com as iniciais L. C. e F. P.
B., em francês, escrito em braille (segundo o mesmo processo
manual que foi utilizado para a materialização do Sistema de
Louis Braille), original que os franceses atestam (mesmo autores
portugueses) ter sido o primeiro livro impresso no mundo. Ora, a
verdade é que se trata (isso sim) do segundo livro (porque o
primeiro foi o Sistema de Louis Braille) escrito em braille
(tendo sido utilizada a pauta braille para o efeito) e não
impresso. O primeiro livro impresso em braille no mundo éem
português (encontrando-se também no aludido Museu), conforme o
expresso no ponto 6.1 deste capítulo, consentindo a França em
meados do século XIX, contrariamente ao que tem vindo a ser
defendido por diversos autores), que não fosse sua a obra a
merecer a honra da primeira impressão mundial em braille.
III.2.2 - A Problemática da Constituição e da Assunção do
Sistema Braille como Instrumento Intelectossocial Específico
Mas retomando ainda a adopção imediata da musicografia braille,
num procedimento bem diferente relativamente ao resto do novo
sistema de escrita, facto insólito é que, de 1840 a 1850 (durante uma década), o alfabeto braille foi banido da Institution
Royale des Jeunes Aveugles, continuando apenas a usar-se na representação da
notação musical. Esta espécie de eclipse do braille deveu-se à substituição
do Senhor Pignier pelo Senhor Dufau, o novo director daquela instituição. Só
às escondidas os alunos podiam usar o Sistema Braille, situação que,
naturalmente, seria bem penosa para Louis Braille, mas que viria a cantar o
hino de glória ao seu inventor em 1854.
A partir do momento em que as pessoas cegas já podiam corresponder-se
entre si, era necessário inventar-se uma nova forma de se escreverem os
caracteres a tinta, que facilmente lhes permitisse corresponderem-se também
com os normovisuais, sem que estes fossem obrigados a aprender o Sistema
Braille. Louis Braille “pensava que isso era possível, desde que os
contornos dos tipos de letra, maiúscula ou minúscula, dos algarismos, da
pontuação, fossem rigorosamente determinados”, tendo efectuado várias tentativas, mas sem êxito. E foi um
antigo aluno da Institution Royale des Jeunes Aveugles,
François-Pierre Foucault(1797-1871), quem conseguiu inventar um
aparelho que possibilitava às pessoas cegas escreverem para os
normovisuais. Trata-se do “rafígrafo”, que foi utilizado
pelos indivíduos cegos durante cerca de trinta anos, que se usou
no seu ensino, e que constava de uma série de dez teclas com a
extremidade terminada em agulha, com o qual se gravavam as
letras num papel previamente estendido sobre uma peça metálica
horizontal. Foi a primeira vez na História que se criou um
processo mecânico para que os indivíduos cegos pudessem escrever
para pessoas normovisuais, através da rafigrafia, que é a arte
de traçar os caracteres, nomeadamente latinos, com ponteiro ou
agulha, também como meio para ensinar às pessoas cegas a escrita comum.
Mais tarde, um aluno de Louis Braille, Victor Ballu(1829-1907),
baseando-se na rafigrafia, criou um processo de escrita mais
simples, que permitia escrever a letra de imprensa através de
pontos, utilizando-se réguas e punções próprios (processo análogo ao da
escrita do braille), que ficou a conhecer-se pela designação “Ballu”, o
apelido do seu inventor. Este sistema de escrita foi imediatamente adoptado
pelas pessoas cegas, como meio de comunicação gráfica com as pessoas
normovisuais, havendo mesmo quem o utilize, ainda hoje, em vários países,
incluindo Portugal.
III.3 - Outras Iniciativas Tiflográficas como Alternativa ao
Sistema Braille
Outros processos de escrita táctil foram sucessivamente criados,
alguns bem curiosos, quer acompanhando as vicissitudes por que
passou o Sistema Braille, no seu processo moroso de expansão,
até se universalizar, quer mesmo depois da sua assunção como
sistema vital de comunicação para as pessoas cegas. Isto porque
havia uns que estavam demasiadamente presos à rotina e não lhes era nada fácil aceitar novas fórmulas, pois que não podiam
admitir que alguém diferente deles fosse o criador de um
processo de escrita que, apesar de tudo, eram obrigados a
reconhecer como insubstituível e inultrapassável. Outros também
pretendiam ser inventores de métodos de escrita em relevo, não
sendo difícil, depois de Barbier e de Braille, com alterações e
adaptações meramente acidentais, imaginar outros processos, e
não se dispunham a colocar de lado tipos de escrita a que
estavam habituados e já integravam a sua estrutura mental. De
resto, sempre assim é, quando alguém sacode ideias estagnadas ou
contraria hábitos inveterados, abalando posições que,
obstinadamente, não querem perder-se, vaidades não dispostas à
subordinação, soberbas incompatibilizáveis com a humildade.
Tivesse havido outra trajectória da tiflografia ponteada e,
provavelmente, ninguém falaria hoje de Louis Braille. Mas, na
realidade, não houve outra, e Braille triunfou.
Com a evolução da braillografia, outras iniciativas (umas mais
efémeras, outras mais resistentes) foram tomadas, das quais (por
as acharmos bastante curiosas) destacamos o alfabeto Moon e o
alfabeto Mascaró.
III.3.1 - Alfabeto Moon
O alfabeto Moon foi inventado por William Moon(1818-1894), de
Brighton, em 1847. Moon, que mantinha um resíduo visual desde a
infância, acabou por ficar cego aos 21 anos de idade e bem
depressa dominou todos os outros sistemas de leitura em relevo
que, na altura, eram conhecidos. Rapidamente percebeu que eram
muito poucos os indivíduos cegos que conseguiam usar esses
sistemas com eficácia, o que o levou a inventar o seu próprio
alfabeto, a que conferiu o seu apelido como denominação: Moon.
Este sistema conserva, numa forma simplificada, letras do
alfabeto latino, compondo-se com nove caracteres, cujo
significado se determina pela posição em que são utilizados,
conforme o que nos mostra o quadro na página seguinte. As letras
colocam-se entre parêntesis, para facilitar a leitura, e os
sinais estenográficos são reduzidos ao mínimo.
No mesmo ano de 1847, Moon edita o seu primeiro folheto,
impresso na sua própria casa, numa imprensa manual de madeira,
e, logo a seguir, começou a imprimir partes da Bíblia, tarefa
que o leva a aperfeiçoar uma matriz em chapa de zinco, onde se
fixavam caracteres de arame de cobre executados com ferramentas
especiais, o que possibilitava a tiragem do número de exemplares
necessário. A sua imprensa de madeira veio, mais tarde, a ser substituída
por uma em ferroeaar comprimido e, a partir de 1923, o Moon passa a ser
impresso por meio de uma composição tipográfica. Utilizam-se tipos
quadrados, cujos caracteres se obtêm mediante a posição em que se colocam os
tipos, usam-se outros tipos mais estreitos que representam cada um dois
caracteres ou apenas um, representa-se o alfabeto com 14 tipos e
representam-se as pontuações e sinais estenográficos com 12 tipos.
Para termos uma ideia do espaço ocupado pela mancha tipográfica
deste processo, uma página, e do tempo necessário à sua
composição, devemos deixar aqui expresso que numa página em
Moon, com as dimensões de 30,48cm por 25cm, em que os tipos são
colocados à mão, pode haver cerca de novecentas letras e
espaços, trabalho que é efectuado em meia hora por um tipógrafo experiente.
Dá-nos também conta F. P. Oliva de que o papel era previamente
humedecido, como precaução para não se rasgar ao ser impresso em
relevo e, depois de impressas as páginas, estas eram levadas a
um secador mecânico de ar quente.
Numa notícia publicada em “Ponto e Som”, tomámos conhecimento
de que, em 1984, três jovens estudantes da Sevenoaks School,
próxima de Londres, inventaram uma máquina que permite às
pessoas cegas e às que conservam resíduos visuais ler e
escrever, utilizando os símbolos Moon. Até esta data, a única
forma de se escrever no Sistema Moon (que é consideravelmente
mais simples do que o Braille para os indivíduos cegos tardios)
era usando aquela impressão especial em relevo. Agora, já há a
possibilidade de os indivíduos cegos ou deficientes visuais
poderem dactilografar em Moon numa máquina equipada com este
tipo de teclado, que se situa entre a máquina estenográfica e a
máquina de escrever, que é portátil e pouco mais cara do que as
comumente utilizadas.
Este processo de leitura e de escrita é recomendado para iniciar
os indivíduos adultos, que cegam tardiamente, na prática da
leitura táctil, visto que a maior parte das pessoas que perdem a
vista já para além da meia idade se revela incapaz de dominar o
braille, cujos pontos se lhe afiguram demasiadamente pequenos,
embora, na generalidade, muitos deles, depois de aprenderem o
moon, acabem por vir a dominar também o braille, que é
inquestionavelmente um sistema de longe mais elaborado, o
alfabeto que mais recursos oferece às pessoas cegas.
Apesar de a produção no Sistema Moon ser muito mais lenta do que
no Sistema Braille, há muito menos literatura neste sistema, não
obstante se ter vindo a publicar uma gama razoavelmente ampla de
livros, que são emprestados gratuitamente pela Biblioteca
Nacional para Cegos de Inglaterra. Edita-se e distribui-se,
também sem quaisquer encargos, um semanário que compreende um
suplemento sobre futebol durante a época, e editam-se quatro
revistas mensais, cobrando-se por elas uma pequena assinatura
anual. Também se imprimem em moon cartas de jogar e outros
jogos. A versão autorizada da Bíblia encontra-se integralmente
editada, estando ainda a ser publicadas algumas secções da nova
Bíblia inglesa. Os livros a adquirir por compra são solicitados
ao Royal National Institute for the Blind (Moon Branch) em
Inglaterra, que satisfaz pedidos, fornecendo inclusivamente
catálogos impressos a tinta ou em relevo, de qualquer ponto do mundo.
William Moon, profundamente religioso, animado por uma fé
evangélica que diríamos quase ingénua, decidiu fazer, desde
muito cedo, do bem-estar das pessoas cegas o objectivo
fundamental da sua vida. Começou por sobreviver a ensinar as
pessoas cegas a ler, mediante um dos processos de leitura em
relevo na altura existentes. E depressa verificou que a maior parte dos seus alunos era incapaz de decifrar os caracteres e
memorizar uma série de sinais estenográficos, razão que o levou a conceber o
seu próprio sistema. Para justificar a eficácia do seu sistema exemplifica
no seu diário que “um rapaz, que em vão se tinha esforçado ao longo de cinco
anos por aprender a ler através dos outros sistemas, foi capaz, em dez dias,
de ler frases fáceis”.
A sua fé evangélica levou-o a trabalhar intensamente para as
missões, o que motivou a adaptação do Sistema Moon a outras
línguas, podendo os missionários utilizá-lo em 1880 em 194
línguas. De 1847 até 1880, estereotiparam-se em Moon 13.000
matrizes e imprimiram-se cerca de 125.000 volumes. Por volta de
1955, as estatísticas indicavam que cerca de 450 línguas
utilizariam o alfabeto moon. Presentemente, encontra-se
confinado quase exclusivamente à Inglaterra, em termos de
utilização.
III.3.2 - Alfabeto Mascaró
Outro sistema de escrita e de leitura veio a ser criado, desta
vez em Portugal, por Aniceto Mascaró(1842-1906), médico
oftalmologista espanhol.
A título sucintamente biográfico, Mascaró nasceu em Lladó
(Gerona, na Catalunha) em 1842 e faleceu em Lisboa, em Abril de
1906. Fez os estudos médicos em Barcelona, especializando-se em
oftalmologia. Partiu para a América, alcançando grande êxito na
sua profissão nos Estados Unidos e em Cuba e, em 1870, veio para
Lisboa, aqui fundou uma clínica de oftalmologia, onde, ao que
consta, realizou curas prodigiosas, ampliando sempre os seus
estudos. Fixou residência na Rua do Alecrim, nº 201, morada em
que veio a fundar o Instituto Médico-Pedagógico para Cegos, em
1889, cuja placa ainda hoje lá se encontra. E foi neste seu
Instituto que Mascaró ministrou benéficos tratamentos aos
indivíduos cegos, elaborou o seu método de leitura e de escrita
para pessoas cegas e normovisuais e se dedicou à habilitação de
professores para ensinarem o seu método. Em 1898, o Instituto
passa a editar também uma publicação periódica, designada por
“Revista Mascaró para Cegos e Videntes”, cuja duração,
periodicidade e quantidade de números publicados se
desconhecem.
O Método de Mascaró, para poder ser utilizado por pessoas cegas
e por pessoas com vista, é gizado com duas componentes: uma
componente visual, que consiste na acomodação das formas das
letras maiúsculas ao espaço do rectângulo braille (como sabemos,
de seis pontos); e a componente táctil, que é constituída por
conjuntos de pontos do Sistema Braille, conjuntos estes que têm
uma relação de tipo figurativo mais ou menos estreita com as
letras que representam, conforme podemos observar no quadro da
página seguinte, no qual está expressa a diferença entre o
alfabeto Braille e o alfabeto Mascaró. Preside à constituição
deste sistema uma poderosíssima sugestão de forma conseguida por
um conjunto de pontos que definem no essencial o contorno dos caracteres latinos, umas vezes representando apenas o princípio
e o fim dos caracteres, outras vezes marcando somente as
extremidades dos traços ou assinalando nos caracteres pontos
convencionalmente escolhidos. Mascaró representava por este
processo o alfabeto, os sinais de pontuação, de algarismos, de
matemática e a simbologia musical. Sabe-se que algumas pessoas
aprenderam música em livros escritos em mascaró, mas não há
conhecimento até hoje de que tenham chegado aos nossos dias
quaisquer textos musicais escritos nesse sistema.
O Sistema Mascaró, também através de pontos registáveis nas
pautas e nas máquinas mecânicas actuais, é constituído por uma
maior quantidade de pontos, numa percentagem que ultrapassa os
22% da quantidade de pontos necessários no Sistema Braille.
F. P. Oliva salienta, no seu artigo em referência, duas
desvantagens do alfabeto mascaró relativamente ao alfabeto
braille: uma maior lentidão na escrita dos textos mascaró nas
pautas, que eram os instrumentos de escrita por meio de pontos
mais utilizados, e a redução da velocidade de leitura, devido ao
maior número de caracteres constituídos por quatro pontos, e
mesmo mais, que dificultam o reconhecimento e identificação
rápidos dos símbolos tácteis.
No que respeita à bibliografia mascaró existente, há apenas
conhecimento de umas espécies escritas: uma segunda edição de um
número, que parece ser o primeiro, da “Revista Mascaró para
Cegos e Videntes”, de Janeiro de 1898, e um «Recueil de
Prières», num volume de 57 páginas, que teria sido escrito em
1891 por Maria da Madre de Deus Pereira Coutinho.
Este processo de escrita chegou a merecer favorável acolhimento
em congressos internacionais, embora não tivesse passado de mais
uma curiosa tentativa para possibilitar às pessoas cegas e
normovisuais a leitura de textos, podendo aqueles utilizar o
tacto e estes os olhos. Isto porque, provavelmente na sequência
das preocupações de há séculos, pois, como se sabe, os esforços
desenvolvidos ao longo de tantos anos, para que os indivíduos
cegos pudessem ter a possibilidade de ler e de escrever,
subordinaram-se quase sempre à dominante preocupação de se
adoptar um sistema utilizável simultaneamente por pessoas cegas
e normovisuais.
O certo é que este sistema teve, afinal, também uma curta e
efémera duração. O seu autor, por incrível que pareça, quando
fazia a apresentação deste seu método num congresso
internacional que decorria em Lisboa, em Abril de 1906, foi
acometido mortalmente por uma apoplexia. Com a fulminante morte
de Mascaró, que era condecorado pelo governo francês com o grau
de “Oficial da Ordem da Instrução Pública”, finou-se também o
seu Instituto Médico-Pedagógico para Cegos, que funcionou na sua
própria casa, na Rua do Alecrim, nº 201, em Lisboa, desde 1889
até à data da sua morte.
III.4 - A Tiflopedagogia de Branco Rodrigues e o Acesso das
Pessoas Cegas ao Ensino Público
No contexto tiflopedagógico e, mesmo, tiflossocioprofissional
não podemos deixar de referir um emérito tiflólogo, uma
personalidade notabilíssima a que os indivíduos cegos
portugueses muito devem, o tenaz, perseverante e generoso José
Cândido Branco Rodrigues(1861-1926), também consagrado na
toponímia de Lisboa, existindo uma rua com o seu nome (Rua Prof.
Branco Rodrigues), uma placa evocativa do seu nascimento no nº 5
da Rua Luz Soriano e uma inscrição tumular no Cemitério dos
Prazeres, atestando que os seus restos mortais ali se encontram
depositados.
Trata-se de uma figura de primeiro plano na tiflologia portuguesa e, paradoxalmente, ainda no desconhecimento da maioria das
pessoas cegas, mais ainda, bem entendido, das pessoas com vista.
Branco Rodrigues nasceu em Lisboa a 18 de Outubro de 1861, no
seio de uma família da alta burguesia lisboeta -no 2º andar do
nº 5 da Rua Luz Soriano, prédio da esquina desta rua com o Largo
do Calhariz, em cuja entrada (no lado direito) se encontra a
supra-referida placa evocativa em caracteres comuns e em braille
descerrada em 18 de Outubro de 1991 pela Câmara Municipal de
Lisboa e pela ACAPO (sob proposta desta Associação, também como
homenagem ao “fundador das escolas portuguesas para cegos” -,
tendo falecido em S. João do Estoril, em 1926, curiosamente
também no dia 18 de Outubro, no dia em que fazia 65 anos de
idade. Jaz no Jazigo nº 2056, Rua 21 do Cemitério dos Prazeres,
com a seguinte legenda: “Jazigo de José Rodrigues avô de Branco
Rodrigues e sua família”.
Não é vulgar, numa só pessoa, confundirem-se duas efemérides
desta natureza, coincidindo o dia em que a vida desabrochou com o dia em que a vida (na acepção biológica do termo) terminou.
Referimo-nos aqui à vida biológica, porque há os que vivem ou
vegetam uma vida inteira anónimos, amorfos, sem nada legarem à
posteridade, e há também os que viveram uma vida bio-sóciocultural,
de tal ordem interventiva na desmistificação de
concepções erróneas e no progresso da humanidade, que a História
imortaliza, como é o caso de Branco Rodrigues, cidadão
normovisual, paladino dos cegos portugueses e que, em favor da
causa destes, investiu a sua fortuna pessoal.
Branco Rodrigues estudou primeiro em Lisboa e depois em Coimbra,
em cuja Universidade cursou Filosofia, mas, não chegando a
diplomar-se devido a uns certos desaguizados que teve com um
lente, dedicou-se ao magistério, que exerceu com notável
competência, e com tal qualificação, que veio a ser nomeado pelo
Governo português, em 1895, membro da comissão encarregada de
regulamentar a Lei que reorganizou os Serviços da Instrução
Primária.
Desde muito cedo começara a revelar grande propensão para o
ensino, abeirando-se com frequência de analfabetos das suas
relações e procurando motivá-los para a aprendizagem da leitura
e da escrita, de cuja actividade se encarregava sempre. O futuro
professor dava já os primeiros passos. A verdadeira finalidade
da vida de Branco Rodrigues (a luta para o estabelecimento de
condições que tornassem possível a preparação profissional e
intelectual dos indivíduos cegos e a sua emancipação social)
parece ter origem no facto do seu avô, José Rodrigues, que viveu até à provecta idade de 105 anos, ter sido vítima de um ataque de cataratas
que lhe provocou a cegueira total em 1885, mas podendo recuperar a vista dois anos depois, operado por
Aniceto Mascaró. Esta experiência fora-lhe
extraordinariamente reveladora, sensibilizando-o profunda e
definitivamente para os problemas da cegueira e dos portadores
dela.
Seguindo J. Nunes Pinto, Matoso da Fonseca e F. P. Oliva, nos
artigos em referência, Branco Rodrigues, sentindo-se vocacionado
para a causa das pessoas cegas, abraçou-a e votou-lhe a sua vida
inteira, incluindo a maior parte dos seus vastos recursos
económicos, quer para pagamento de todas as despesas ocasionadas
com as inúmeras viagens de estudo que efectuou por quase toda a
Europa, quer com a manutenção do Instituto de Cegos Branco
Rodrigues (por si fundado em 1913 em S. João do Estoril) durante
os anos mais difíceis da Primeira Grande Guerra. O Instituto
Branco Rodrigues surge na sequência dos resultados obtidos na
publicação do “Jornal dos Cegos”, criado por Branco Rodrigues em
1895 e que foi editado até 1920. O produto da venda desta
publicação destinou-se sucessivamente à Associação Promotora do
Ensino dos Cegos (que ajudou a fundar em 1888, com a
responsabilidade de ensinar aos indivíduos cegos portugueses,
para além de outras incumbências, o Sistema Braille), às
Oficinas Branco Rodrigues (que fundou em Castelo de Vide) e à
Escola “Jornal dos Cegos”. Esta Revista tornou-se rentável, a
partir da altura em que os trabalhos de impressão começaram a
fazer-se na Imprensa Nacional a expensas do Estado, mas, por
vicissitudes diversas, as receitas acabaram por vir a reverter
só a favor da instituição Escola “Jornal dos Cegos” e, por
consequência, do próprio Instituto Branco Rodrigues.
O “Jornal dos Cegos” foi o instrumento de que Branco Rodrigues
se serviu para informar e esclarecer a sociedade portuguesa
sobre a dignificação dos indivíduos cegos através da educação,
do trabalho e da assunção das suas responsabilidades pessoais,
familiares e outras.
Nas instituições que pôde fundar, incluindo o Instituto S.
Manuel no Porto, procurou introduzir bibliotecas, conseguindo,
em parte, motivar as pessoas para a transcrição voluntária e
adquirindo publicações impressas em instituições estrangeiras,
nomeadamente francesas.
No seguimento de toda esta actividade promoveu também as
primeiras impressões em braille no nosso país, fazendo imprimir,
mediante caracteres móveis, na Imprensa Nacional, em 1898 e
1899, respectivamente, um número especial do “Jornal dos Cegos”
comemorativo do 4º Centenário do Descobrimento do Caminho
Marítimo para a Índia e um “Método Estenográfico para a Língua
Portuguesa”, de sua autoria. A primeira destas espécies é a
primeira impressa em Portugal (em cinco línguas: português,
francês, italiano, inglês e alemão) e, nessa qualidade, foi
distribuída por 368 instituições tiflológicas europeias e
americanas e enviada a reis e a presidentes da república de bastantes países.
Branco Rodrigues viveu uma vida extremamente interventiva na
desmistificação de concepções erróneas no que respeita às
potencialidades e capacidades das pessoas cegas, investindo quase toda a sua fortuna pessoal neste domínio, tendo-o a
História imortalizado no plano da tiflologia.
A propósito de publicações em braille no nosso país, o primeiro
livro impresso neste sistema foi trazido de França pelo poeta
João de Deus, o que teria levado, em 1951, os fundadores da ex-Liga de Cegos João de Deus (hoje integrada na ACAPO) a elegê-lo
como patrono daquela instituição. O Sistema Braille teria
chegado a Portugal pouco antes de 1890 e a oficialização do
ensino das pessoas cegas no nosso país foi decretada pelo
Governo, por intermédio do ministro João Franco, em 22 de
Dezembro de 1894, sob insistentes (como sempre acontecia)
propostas de Branco Rodrigues.
Nesta breve abordagem muito nos fica por dizer do professor, do
jornalista, da personalidade de homem(com H maiúsculo) homem que
teve a coragem de colocar, na sua luta, todas as suas
capacidades e aptidões, numa entrega devotada e total, para
arrancar as pessoas cegas à condição de sub-humanidade em que se
encontravam no nosso país, o que o tornou digno do venerador
respeito quer das pessoas cegas quer das pessoas que vêem, por
ter contribuído para o desmoronamento de barreiras sociais e
culturais, por ter aberto caminhos, iniciando e desenvolvendo a
preparação profissional e intelectual dos indivíduos cegos, e
pelo progresso social a que deu origem, propugnando por que os
mesmos passassem a ser considerados como indivíduos capazes de
contribuir para a vida da comunidade. Esforçou-se, de forma notável, pela
sensibilização e correcção da opinião pública, estendendo e organizando o
ensino intelectual, fomentando e iniciando a preparação profissional,
desenvolvendo uma não menos apreciável acção assistencial, realizando o
primeiro recenseamento dos cidadãos cegos portugueses (havia cerca de 7.281,
cujos resultados foram publicados no “Jornal dos Cegos” em 1903), apontando
indispensáveis cuidados no âmbito da profilaxia da cegueira e lutando,
incessantemente, contra a indiferença e a inacção dos poderes públicos. Os
cidadãos cegos portugueses e a cidade de Lisboa inauguraram nesta capital
uma rua com o seu nome em 1976, na ocasião das comemorações do
cinquentenário da sua morte. Eis um pouco do perfil de um exemplo tão vivo
do muito que pode conseguir-se com inteligência, com tenacidade, com
persistência, com boa-vontade e com uma abnegada e desmedida generosidade!
-o grande tiflopedagogo português José Cândido Branco Rodrigues.
III.5 - Critérios de Produção e de Publicação em Braille
Conforme já
referimos no primeiro capítulo, tal como a escrita vulgar, também o Sistema
Braille tem vindo, desde a sua invenção e acompanhando a evolução das várias
notações gráficas da linguagem, a registar inovações de natureza signográfica, contemplando novos símbolos, notações e convenções que
correspondem a necessidades específicas nos códigos braille aplicáveis às
diversas especialidades do saber.
Em Portugal (e supomos não sermos diferentes dos outros países),
por acção dos transcritores ao adoptarem (na transcrição de
textos) soluções de improvisada emergência que têm acabado por
ganhar curso (“sem garantias de unicidade quanto aos sinais
utilizados, nem de uniformidade quanto aos critérios da sua
aplicação”) -afirmação expressa na Introdução à nova “Grafia
Matemática Braille” com a qual concordamos -, temos vivido
períodos de profunda anarquia na aplicação do Sistema Braille à
língua portuguesa, bem como, designadamente, à matemática,
química, física, geometria, fonética e música, critérios que têm
norteado, em muitos casos, a produção e, implicitamente, a
publicação de monografias, publicações em série e outros tipos
de documentação escrita em braille.
Porém, no nosso país, com o objectivo de se potencializar o
Sistema Braille para reproduzir com clareza, tanto quanto
possível, a enorme diversidade de modos de escrever que
actualmente ocorrem nas publicações impressas em caracteres
comuns, não tem sido esta matéria desprovida de atenção entre
nós, pelo que (embora sujeita a períodos de longa
inoperacionalidade) tem merecido o estudo criterioso e a
sistematização aprofundada por parte de grupos de trabalho
(alguns dos quais tivemos a grata satisfação de integrar) de
reconhecida idoneidade no domínio da braillologia.
No sentido da normalização e da imposição de disciplina quanto
aos processos de conversão em braille, nos diversos subcódigos,
dos textos em caracteres comuns, desempenharam função relevante
na história da braillografia e da braillologia em Portugal,
nomeadamente Branco Rodrigues, Albuquerque e Castro, a “Comissão
Permanente de Braille” e a “Comissão de Braille”, que não
tiveram apenas responsabilidade na grafia braille da língua
portuguesa, mas também nas grafias científicas e na estenografia
braille da língua portuguesa.
Como todos os instrumentos que normalizam e disciplinam a
aplicação e a utilização dos diferentes códigos Braille até
agora publicados entre nós têm sido considerados contributos
inacabados por não acompanharem o ritmo vertiginoso das mutações
da notação gráfica a tinta, torna-se premente a atenção e labor
constantes de equipas que permanentemente possam preparar e
emitir, em conformidade com o expresso no Prefácio à 2ª edição
do “Compêndio de Grafia Braille da Língua Portuguesa”, normas
destinadas a “evitar ambiguidades e a assegurar à leitura a
necessária espontaneidade, contribuindo, assim, para o
enriquecimento da perspectiva gráfica dos leitores e, ao mesmo
tempo, para os estimular a atingir um elevado grau de agilidade
na leitura”.
O problema da estenografia braille é “um assunto que tem
merecido a nível internacional investigação e rigoroso estudo na
sua aplicação e utilização. Em Portugal, também esta questão tem
vindo a ser vigorosamente discutida numa perspectiva intelectual profícua e saudável, o que nos move a felicitar vivamente os
polemistas, cujas reflexões e a decorrente ampliação do
horizonte informacional nos conduz necessariamente ao
conhecimento de novas vertentes, de novos dados e a
consciencializarmo-nos, perante um discurso novo, da importância
que representa a estenografia, em determinadas circunstâncias, na leitura táctil. Nesta acepção, não podemos deixar de nos
congratular em termos profissionais, quer como investigadores e
interventores na aplicação do sistema estenográfico à língua
portuguesa, quer como utilizadores do mesmo sistema.”.
Não temos dúvidas em sustentar que a estenografia (desde que se
domine) facilita inquestionavelmente a leitura táctil. Mas
também não temos dúvidas em afirmar que as publicações impressas
em Braille integral são lidas por uma maior e incomparável
percentagem de leitores (facultando a permuta internacional) do
que as estenografadas (constituindo inacessibilidade, por vezes,
a bibliografia em idiomas diferentes). Todas as alterações aos
diversos códigos braille devem efectuar-se (permita-se-nos a
opinião), tendo sempre presente (e parafraseando um pouco Marcel
Cohen no seu livro «A Escrita») que “a escrita é a grande
invenção social e instrumento intelectual que consiste numa
representação visível (e nós acrescentamos: tangível e audível)
e perdurável da linguagem, que por este meio se torna
transportável e conservável.”.
No que concerne a determinados imperativos na apresentação do
texto em Braille (não obstante se encontrarem consignados na 2ª
edição do “Compêndio de Grafia Braille da Língua Portuguesa”),
impõe-se-nos ainda referir o seguinte:
Em comparação com a impressão a tinta, “o Braille imprime-se num
suporte mais rígido, o que é aconselhável para a leitura táctil
e ao mesmo tempo para garantir uma maior duratividade do ponto.
Através do tacto é, na realidade, muito mais difícil perceber a
disposição de um texto numa página, a configuração de um esquema
em relevo, ou ainda de saltar do texto para as notas
infrapaginais, notas de rodapé, ou do texto para um esquema. O
leitor de Braille, principalmente quando se trata de obras com
especial complexidade, deverá remeter-se às «convenções» para
compensar a sua incapacidade de obter uma rápida visão de
conjunto de uma página. Deverá poder certificar-se de que as
páginas estão sempre numeradas no mesmo sítio e que a legenda de
esquemas e mapas está sempre colocada no mesmo local em relação
àquelas. Simultaneamente, é necessário que os índices,
bibliografias e outras fontes referenciais de orientação e de
pesquisa estejam sempre dispostos da mesma forma, como as
legendas dos esquemas, obedecendo à normalização internacional e
ao regulamentado em Portugal. Em suma, uma obra em Braille
deverá ser apresentada de forma a limitar, na medida do
possível, a necessidade de proceder a uma procura ou de fazer a
ligação entre as diferentes partes do texto. Em regra (e segundo
a indicação de Barry Hampshire em «La Pratique du Braille»),
aconselha-se a respeitar, o mais fielmente possível, a
disposição da edição original em tinta. Os pontos em que é
necessária uma atenção particular por parte do responsável pelo
enquadramento da página são as ilustrações (nomeadamente
figuras, esquemas, fotografias), quadros, prefácios, prólogos,
introduções, numeração de páginas e palavras estrangeiras.”.
O texto e a imagem, conquanto criteriosamente reflectidos e
adaptados para a respectiva reprodução em braille, admitimos que
nunca (ou muito dificilmente) proporcionarão aos leitores cegos
(sobretudo aos congénitos) “a estreita simbiose entre o
imaginário e o mundo da linguagem. Mas se existe uma estreita simbiose entre o
imaginário e o mundo da linguagem, de onde advirá então a ideia de
que existe uma oposição entre o mundo do texto e o mundo das
imagens?” A este propósito, Adriano Duarte Rodrigues defende
no seu livro que: “É muito difícil responder de maneira cabal a esta
pergunta, porque esta oposição não tem apenas uma, mas várias,
complexas e intricadas razões. Podemos, no entanto, descortinar a
existência de uma longa e arreigada tradição ocidental que associa o
texto escrito ao domínio racional da lucidez, das coisas sérias, e
relega o domínio das imagens para a esfera do irracional, do
emotivo, para o domínio confuso das coisas que escapam ao nosso
controlo consciente”.
Na realidade, quando lemos um texto com os olhos (ou com os
dedos) não podemos prescindir da percepção das imagens que as
palavras formam na superfície lisa do papel ou de qualquer outro
suporte, tal como não podemos deixar de conceber imagens mentais
correspondentes às sugestões que a leitura de um texto desperta
em nós. E Adriano Duarte Rodrigues, nesta acepção, sustenta que,
sem estes dois tipos de imagens, “a que a escrita forma no papel
e a que o texto sugere à nossa imaginação, não há leitura
possível; para podermos ler um texto temos de ter, ao mesmo
tempo, a capacidade de percepcionar a sua imagem escrita e a
competência para realizar imagens mentais adequadas àquilo que o texto sugere”.
A informação comunicada através da escrita, imagem ou som,
“ocupa um lugar preponderante na sociedade moderna, em
permanente e acelerada mutação. As pessoas cegas não devem alhear-se desta verdade. Devem, sim, perspectivar e assegurar os
necessários ajustes às suas limitações.”.
Na firme convicção de que o comportamento táctil não é estático,
mas antes preponderantemente dinâmico porque em múltiplas
circunstâncias tem que substituir a vista (muito em especial na
ausência deste sentido), “somos apologistas de que os critérios
estético-pedagógicos que têm regido a disposição do texto
Braille -infundindo-nos já uma sensação de obsolência
inconformista com a apresentação dos elementos normalmente
centrados, oferecendo-nos imagens sempre com idêntica
configuração e sem a introdução de inovações que estimulem a
curiosidade, a imaginação e o gosto pela leitura -devem ser (e
já começaram a ser) repensados com vista a um certo
redimensionamento pragmático do conceito de textualidade e de
texto em Braille, nunca esquecendo a necessidade de exploração
das potencialidades e as limitações do sentido do tacto na
apreensão gráfica e na identificação da máxima diversidade de
objectos.”.
Somos da opinião de que não devemos menosprezar “a necessidade
de incluir o Sistema Braille nas normas «ISO». Não estão
normalizadas as dimensões dos elementos-base do Sistema Braille:
ponto, distâncias entre pontos, entre células e entre
linhas.”.
É urgente que se fixe naquelas normas o Sistema Braille tal
como, inspiradamente, o concebeu Louis Braille e considerando o
sustentado por Barry Hampshire(1980) , por F. P.
Oliva(1995) e nós mesmos(1996) .
Hampshire, na sequência de
estudos experimentais efectuados, aponta, para estes elementos base, dimensões preferíveis para a leitura táctil: o ponto
deverá ter a altura de 0,43mm e o diâmetro da base 1 a 1,52mm, a
distância entre pontos deverá ser de 2,29mm, a distância entre
células deverá ser de 3,12mm e a distância entre linhas deverá
ser de 5,59mm. “Isto independentemente das subartificialidades
que a nossa imaginação nos sugerir para fantasiarmos,
circunstancialmente, o revolucionário instrumento intelectual
que Louis Braille legou aos cegos de todo o mundo, havendo
sempre o cuidado de não tergiversarmos o Sistema, em profunda e
gratificante homenagem ao seu autor.”.
Tal como a longevidade da escrita vulgar -conforme o afirmado
no nosso artigo em referência -“tem vindo a ser acautelada
tecnicamente, também a sobrevivência do ponto na escrita Braille
(sobretudo em suporte papel) tem que ser durativizada e
preservada, não obstante as garantias oferecidas pela respectiva
tecnologização. Estamos na era da tecnologização da escrita e da
linguagem integrada.”. Conquanto retomemos a questão da tecnologização da
braillografia ou (numa dimensão mais ampla) da tiflografia no quarto
capítulo, não podemos deixar de reconhecer mais uma vez o Contributo de
Louis Braille, sem o qual jamais as pessoas cegas “se integrariam e
«surfariam» nas infindas universalidades da informação, da comunicação, da
cultura.”.
III.6 - Passos Histórico-Culturais dos Materiais de Leitura para
as Pessoas Cegas em Portugal
Na realidade, sob a fugacidade do progresso, os cidadãos cegos
portugueses já podem desfrutar, na sua língua, de uma
significativa «gota de água» do incomensurável «oceano» da
comunicação, da cultura, das ideias. O seu universo cultural tem
vindo a redimensionar-se e a ampliar-se numa perspectiva de
grande acessibilidade, mercê das novas tecnologias da
informação, mas é ainda reduzidíssimo em relação ao dos normovisuais.
Sobre este diminuto horizonte bibliográfico e bibliofónico (bem
como, mais recentemente, em suporte informático) faremos um
curto historial, abrangendo, com especial destaque, as
publicações em série, com enfoque na imprescindibilidade da
cultura (como complexo experiencial e intelectual, aglutinador e
evolutivo), indispensável ao saudável progresso e legitimação do
sentido de toda a sociedade humana.
Assim, no âmbito das publicações para as pessoas cegas em
Portugal, também a área das publicações periódicas não tem sido
menosprezada, apresentando já um conjunto de vinte e seis
títulos que têm vindo a aparecer desde 1898 até Junho de 1995,
uns que sucumbiram à nascença, outros menos efémeros e outros
ainda que têm conseguido sobreviver às intempéries sobretudo de
natureza sócio-económica e sociopolítica.
III.6.1 - Materiais Braillográficos e Serviços de Produção e de
Utilização em Portugal
Supomos que não constituirá surpresa para ninguém relacionado
com esta problemática que, após a invenção do profícuo e
revolucionário instrumento intelectossocial que veio
proporcionar às pessoas cegas de todo o mundo o acesso à
comunicação e à cultura -o Sistema Braille -, começaram a
surgir em todos os países os livros escritos em Braille, a
princípio por processos manuais (utilizando-se a régua ou a
pauta braille) e mais tarde por processos mecânicos (utilizandose
a máquina dactilográfica braille) e informatizados, de acordo
com a evolução das técnicas braillográficas profundamente
redimensionadas e ampliadas pelo contributo das novas
tecnologias.
Os primeiros livros escritos em Braille surgiram (claro está) em
França, mas o primeiro livro impresso em braille no mundo foi um
livro de leitura em português mandado imprimir por Francisco
Xavier Sigaud, médico do Imperador do Brasil D. Pedro II, para
uma filha sua, que era cega -Adéle Marie Louise Sigaud, cuja
irmã, Victoriane Sigaud Souto (normovisual e casada com um
português) veio a fundar (com Branco Rodrigues, João de Deus,
Fernando Pereira Palha e outros) a Associação Promotora do
Ensino dos Cegos no nosso país, em 1888. O supra-referido
original encontra-se no Museu “Louis Braille”, na Associação
Valentin Haüy, impresso (materialização que foi paga) em 1854,
ano da oficialização do Sistema Braille em França. Albuquerque e
Castro sustentou esta tese numa das suas aulas do 1º Curso de
Especialização para Professores e Educadores de Crianças e
Adolescentes Portadores de Deficiência Visual, ministrado pelo
Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Pessoal do então
Ministério da Saúde e Assistência, em 1966, não obstante, as
dúvidas, durante algum tempo, de alguns autores portugueses (nós
inclusivamente), perante certa relutância da França em permitir
que não fosse sua a obra a merecer a honra da primeira impressão
na história da braillografia. Agora também temos a certeza
(certificámo-nos disso in loco em Março de 1997) de que a língua
portuguesa foi a primeira a surgir em texto braille impresso na
história da tiflografia. O título exacto do livro está expresso
naquele original em francês, lendo-se na capa “Méthode de
Lecture Portugaise, imprimé en 1854 à L'Institution Impériale de
Paris, pour l'Institution Impériale des Jeunes Aveugles de Rio
de Janeiro Brasil”, com 76 páginas impressas em ambos os lados
de cada folha.
De facto, foi em França que surgiram os primeiros livros em
braille, mas escritos à pauta e não impressos, conforme o já
referido no presente capítulo.
Como também já afirmámos ao longo deste capítulo, só começaram a
aparecer livros escritos em Braille no nosso país pouco antes de
1890. Para além de outra documentação elucidativa existente,
cabe aqui referir que o poeta João de Deus (o primeiro professor
de cegos no nosso país) -afirma-o Joaquim Guerrinha – “mandara
vir de Paris, em 1884, os primeiros livros em Braille”, e que,
em 24 de Abril de 1889 se publicava no jornal «O Distrito de Viseu» que «eram já trinta e três os professores que no Porto, em
Coimbra, Braga, Serpa, Lagos e em outras cidades do reino» ensinavam Braille
a pessoas cegas através do Método de Branco Rodrigues, sendo habilitados
para o efeito pelo próprio Branco Rodrigues, a maior parte das vezes por
correspondência. Estavam, pois, criadas algumas condições para que o espólio
tiflográfico começasse a surgir e a avolumar-se, empenhando-se (imbuídos da
necessária voluntariedade) professores e alunos na árdua tarefa de
transcrever livros em caracteres comuns para Braille, contendo os primeiros
essencialmente matérias do ensino primário elementar e de religião. Neste
contexto, registamos aqui a nota curiosa de que a relação de João de Deus
(marco da poesia portuguesa no século XIX e comparado a Camões por Antero)
com a tiflopedagogia e a tiflografia fora a razão por que os fundadores da
ex-Liga de Cegos João de Deus (hoje integrada na Associação dos Cegos e
Amblíopes de Portugal -ACAPO) deram àquela instituição o nome do poeta,
preiteando-o desta forma com vivo reconhecimento, indissociando-o assim,
muito justamente, da tiflologia portuguesa. Seguindo o artigo em
referência, o fim do século XIX deu às pessoas cegas de Portugal (devido em
especial à propugnante influência do seu paladino Branco Rodrigues) sinais
de inquestionável preocupação e até de avanço nos domínios socioprofissional
e sócio-educativo: entre outros acontecimentos, frisamos que nasceu em 1888
a já mencionada Associação Promotora do Ensino dos Cegos (a primeira do
género no nosso país, depois do malogrado Instituto Real dos Meninos Cegos e
Surdos-Mudos fundado em Lisboa no ano de 1823 por D. João VI), que se
decretou em 22 de Dezembro de 1894 a oficialização do ensino dos cegos em
Portugal (éramos a única nação da Europa onde ainda se reclamava esse
direito) e que, nos dois últimos anos do século, se produziram na Imprensa
Nacional as primeiras impressões em Braille, mediante a utilização de
caracteres móveis, processo este também da responsabilidade do eminente
tiflólogo e professor José Cândido Branco Rodrigues. Assim, em 1898
imprimiu-se em Braille integral um número especial do «Jornal dos Cegos», em
português, francês, inglês, alemão e italiano (comemorativo do 4º Centenário
do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia), e, em 1899, imprimiu-se
em Braille um «Método Estenográfico para a Língua Portuguesa», da autoria de
Branco Rodrigues. A propósito da estenografia, recordamos que Louis Braille,
na concepção definitiva do seu sistema, também criou um método
estenográfico, certamente ainda inspirado pelo sistema sonográfico de
Barbier de la Serre (Sonographie Barbier), que foi usado como estenografia
pelos cegos em França (simultaneamente com o Sistema Braille) até 1882.
Tendo sido aquele número especial do «Jornal dos Cegos» (publicação esta
também da autoria do Prof. Branco Rodrigues) a primeira impressão em Braille
feita no nosso país, foi, exactamente nessa qualidade, distribuída por 368
instituições de cegos da Europa e da América e enviada a reis e a
presidentes da república de vários países, esforço que, infelizmente, não
obteve da parte das entidades oficiais da altura o apoio que assegurasse a
sua continuidade.
Igual sorte teve a primeira revista impressa em Braille no nosso
país, a «Revista dos Cegos», sob a direcção de Matoso da Fonseca
e propriedade da Associação Promotora do Ensino dos Cegos, de
que se publicaram, de forma irregular, em Braille integral e a
tinta (em caracteres comuns também na versão inglesa) trinta e
três números, desde Maio de 1933 a Outubro de 1948. Esta
iniciativa ficou a dever-se à American Braille Press, que
ofereceu àquela associação uma estereotipadora e uma impressora
manual. Com este equipamento completo de impressão em Braille
também se imprimiu outro tipo de documentação, nomeadamente a
«Estenografia Braille da Língua Portuguesa», do emérito
tiflólogo e professor José de Albuquerque e Castro, em 1937. Mas
faltaram à Associação Promotora do Ensino dos Cegos os meios
necessários para a continuidade do funcionamento deste
equipamento, pelo que, mediante protocolo, veio a ser cedido, em
finais de 1960, ao então Centro de Produção do Livro para o
Cego, que providenciou devidamente a sua recuperação, repondo-o
a funcionar em 1972, onde ainda hoje se encontra em perfeita
laboração.
Claro que, entretanto, outras iniciativas editoriais (efémeras)
tinham surgido: nos princípios dos anos 30, João Joaquim de
Jesus (cego), com a total colaboração de seu irmão Américo de
Jesus (normovisual) fundou no Funchal -Caminho da Achada,
Quinta Ernestina -um Instituto para Cegos com o nome «Luz nas
Trevas», do qual foi professor, e onde criou ainda a publicação
«Revista Branco Rodrigues», de que se publicaram alguns números
em Braille mediante a utilização de uma impressora manual
concebida pelo próprio irmão, sustentam familiares seus ainda
vivos. Este instituto chegou a ter oito alunos de ambos os sexos
e vivia de donativos.
Em 1947, também os alunos do Instituto Branco Rodrigues, em S.
João do Estoril, criaram uma curiosa publicação: «Despertar:
Semanário Publicado aos Domingos», cujo padrinho fora Carlos
Jorge Prata Ramalho. Durante 1947 publicaram-se cinco ou seis
números (asseverado por Vítor Coelho) sob a direcção de José
João de Sousa Ribeiro, interrompeu-se durante o ano de 1948 e
recomeçou em 1949 até Julho de 1951 sob a direcção de Vítor
Manuel Rodrigues Perfeito Bordalo Coelho. Era um semanário com
vinte páginas, escrito à pauta em dois exemplares, sendo um em
papel de menor gramagem para circular e outro em papel de melhor
qualidade para arquivar.
Só a partir de meados da década de 50 começaram a imprimir-se,
regularmente, livros em Braille no nosso país pelo Centro de
Produção do Livro para o Cego (fundado por iniciativa de
Albuquerque e Castro em Agosto de 1956 e que a partir de Janeiro
de 1972 passou a denominar-se Centro Prof. Albuquerque e Castro
-Edições Braille), única imprensa Braille portuguesa,
localizada no Porto e pertença da Santa Casa da Misericórdia
desta cidade. Esta imprensa começou por imprimir livros
estritamente escolares (não contemplando ainda o ensino
superior) e um reduzido número de títulos na área da literatura.
As publicações em série também estavam consagradas no seu
projecto editorial, passando a publicar mensalmente as revistas
«Poliedro» e «Rosa-dos-Ventos»: o primeiro número experimental
de «Poliedro: Revista Mensal de Vulgarização, Tiflologia e Recreio» saiu em Setembro de 1956, tendo o complemento do título
sido alterado em Janeiro de 1967 (Nº 104) para a actual
especificação «Revista de Tiflologia e Cultura». O primeiro
número de «Rosa-dos-Ventos: Revista Infantil» saiu em Janeiro de
1968, tendo o subtítulo sido alterado em Novembro de 1974 (Nº
69) para a actual especificação «Revista Infanto-Juvenil»,
alargando o âmbito a uma maior amplitude etária. O primeiro
Director de «Poliedro» foi, obviamente, o seu fundador, José de
Albuquerque e Castro, e o primeiro Director de «Rosa-dos-Ventos»
foi Pilar R. de Albuquerque e Castro (viúva de Albuquerque e
Castro), que veio a ser também Directora de «Poliedro», tendolhes
sucedido as direcções de Fernando da Silva, José António
Baptista, Rita Ferreira Borges (que dirigiu «Rosa-dos-Ventos» no
mesmo período em que José António Baptista dirigiu «Poliedro»),
Fernando Teixeira Malheiros (que dirigiu ambas as publicações)
e, actualmente, Lucília Moreira Soares da Cunha Pacheco (que
dirige as duas publicações). Até 1993 (com particular incidência
na década de 80, em que algumas vezes a produção Braille anual
excedeu os duzentos volumes com uma média de cento e vinte
páginas cada), o Centro Prof. Albuquerque e Castro aumentou
substancialmente a sua capacidade produtiva, estendendo a
produção, designadamente, ao ensino universitário e a matérias
gerais. Muito desejamos que o Centro Prof. Albuquerque e Castro
retome a intensa actividade que vinha desenvolvendo até àquela
data em favor do progresso cultural dos cegos portugueses.
Para responder à necessidade de materiais de leitura nos vários
formatos, têm os diversos serviços de produção e de utilização
portugueses envidado esforços significativos dentro das
possibilidades de envolvência estrutural dos meios nacionais
disponíveis. Para além do Centro Prof. Albuquerque e Castro,
apraz-nos enumerar, entre outros, o Gabinete de Referência
Cultural da Câmara Municipal de Lisboa (pólo interactivo de
recursos especiais), cuja origem remonta a 1963 (ano em que
surgiu, sob a égide da Câmara Municipal de Lisboa, como a
primeira Biblioteca Pública para Cegos em Portugal), a Área de
Leitura Especial da Biblioteca Nacional, a Biblioteca Sonora da
Biblioteca Pública Municipal do Porto, o Centro de Produção de
Material do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale
do Tejo, o Centro de Recursos do Departamento de Educação Básica
do Ministério da Educação.
Presentemente, inspira-nos muita esperança (no que concerne à
definição de critérios para a produção e utilização de
publicações para deficientes visuais) o envolvimento nesta
matéria das dezassete entidades públicas e privadas (incluindo o
Gabinete de Referência Cultural) que outorgaram, em 24 de
Fevereiro de 1994, o protocolo de colaboração que criou a
“Comissão de Leitura para Deficientes Visuais” -instrumento de
coordenação das actividades das entidades outorgantes (bem como
daquelas que vierem a outorgar protocolos adicionais) para as
áreas da produção e da utilização de materiais de leitura para
pessoas cegas e amblíopes -, a qual já se encontra em funções e
está sediada no Centro de Investigação Maria Cândida da Cunha do
Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das
Pessoas com Deficiência que lhe proporciona os meios de apoio
necessários ao seu funcionamento.
No plano dos recursos especiais, também a Câmara Municipal de
Lisboa, através do Gabinete de Referência Cultural (GRC), tem
vindo a oferecer um excelente e profícuo contributo.
A Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito do Pelouro da Cultura,
criou o GRC, que funciona como espaço cultural polivalente e
biblioteca especializada em tiflologia, deficiência em geral e
gerontologia (numa perspectiva antropocientífica), para além da
diversidade de áreas do conhecimento, destinando-se a pessoas
portadoras de deficiência (pessoas cegas em especial), idosas,
doentes (com qualquer incapacidade funcional temporária, que
estão acamadas em estabelecimentos hospitalares ou nas
respectivas residências) e à generalidade dos cidadãos,
amplitude esta que lhe confere a especificação de Pólo
Interactivo de Recursos Especiais, com repercussões, nalguns
casos, a nível internacional.
O GRC -como equipamento municipal interactivo de acção local,
nacional e, em certos aspectos, internacional -foi inaugurado
no dia 8 de Junho de 1994 e, em conformidade com o publicado na
“Agenda Cultural” da Câmara Municipal de Lisboa de Agosto de
1994, por determinação do então Vereador da Cultura Dr. João
Soares, tem os seguintes objectivos e atribuições principais:
-organiza, fomenta e apoia a realização de iniciativas científico-culturais no âmbito das atribuições do Pelouro da
Cultura em colaboração com outras entidades públicas e privadas,
visando a integração e/ou reinserção sócio-intelectual e
pedagógico-didáctica dos cidadãos com deficiência,
proporcionando-lhes acessibilidade à informação, formação,
investigação, cultura, desporto e lazer, facultando-lhes
materiais de leitura em Braille, áudio e demais material
não-livro, caracteres comuns e/ou ampliados e em suporte
informático, -produzidos neste Gabinete ou requisitados às
diversas fontes de informação cooperantes com a sua actividade,
nomeadamente centros de investigação e universidades portuguesas
e estrangeiras;
-proporciona leitura de presença e domiciliária, com especial
destaque para a leitura domiciliária, assegurando a entrega e a
recolha de publicações (nos diversos formatos e suportes) nas
residências ou nos locais de emprego dos munícipes com
dificuldades de visão e/ou de mobilidade, bem como aos cidadãos
com qualquer problema visual ou motor temporário em
estabelecimentos hospitalares na Cidade de Lisboa, alargando o
empréstimo a nível nacional apenas para as pessoas cegas;
-produz e difunde “Dinamização Cultural: Revista Áudio da
Câmara Municipal de Lisboa”, publicação eclética já de renome e
de reconhecida heterogeneidade cultural, edição mensal do
Pelouro da Cultura / GRC, com distribuição gratuita em cassete a
nível nacional e internacional;
-proporciona aos utilizadores (pessoas individuais deficientes
e não deficientes -e entidades públicas e privadas) o acesso
ao Serviço de Referência com atendimento personalizado no local
ou através do telefone,
ao Sistema Informático Integrado que permite a leitura de
publicações no local ou à distância por via telemática,
ao Serviço Permanente de Atendimento e Informações (audiotexto);
-estimula o gosto pela leitura e promove a edição e/ou
divulgação de biobibliografias e da obra significativa de
autores nacionais e estrangeiros com um grau de incapacidade
igual ou superior a 50%;
-fomenta e apoia actividades de investigação com associações de
e para deficientes, centros de investigação, estabelecimentos
universitários e outros no âmbito do estudo das problemáticas da
deficiência em geral e da gerontologia, bem como das apropriadas
tecnologias de compensação;
-organiza congressos, seminários, colóquios, exposições... a
propósito das mais diversas problemáticas e sempre numa
perspectiva de integração sócio-intelectual das pessoas
portadoras de deficiência.
Na continuidade da atenção que a Câmara
Municipal de Lisboa tem vindo a dedicar no plano da cultura aos cidadãos com
diferença, foi criado este equipamento, sem barreiras arquitectónicas e
dotado com excelentes meios tecnológicos para permitir a estes cidadãos, com
dificuldades específicas, o acesso à informação e à cultura, numa
perspectiva de integração na sociedade de todos nós. Com a criação do GRC,
preenche-se uma área a descoberto em Portugal, incidindo particularmente na
cidade de Lisboa, onde o número de potenciais utilizadores ronda os 100.000
e onde o actual executivo municipal investe fortemente numa política
cultural eivada de uma dinâmica de solidariedade cultural activa, para que,
de uma vez por todas, deixe de haver munícipes de 1ª classe e munícipes de
2ª classe.
III.6.2 - Publicações em Série para as Pessoas Cegas em Portugal
Para completarmos a informação sobre os resultados da
investigação que efectuámos a propósito da realidade editorial
portuguesa para as pessoas cegas, enumeramos, por ordem
cronológica, as publicações em série (incluindo as que atrás já
nos mereceram especial destaque) no quadro seguinte:
LISTA DAS PUBLICAÇÕES EM SÉRIE PARA AS PESSOAS CEGAS EM PORTUGAL
“Jornal dos Cegos”, sob a direcção e propriedade de Branco
Rodrigues, um número especial e único, em cinco línguas,
publicado em Braille integral em 1898, mediante a utilização de
caracteres em Braille móveis na Imprensa Nacional.
“Revista dos Cegos”, sob a direcção de Matoso da Fonseca e
propriedade da Associação Promotora do Ensino dos Cegos,
publicada em Braille integral e em caracteres comuns desde Maio
de 1933 a Outubro de 1948.
“Revista Branco Rodrigues”, sob a direcção e propriedade de João
Joaquim de Jesus, de que se publicaram alguns números em Braille
nos princípios dos anos 30.
“Despertar: Semanário Publicado aos Domingos”, em Braille
produzido à pauta, inicialmente sob a direcção de José João de
Sousa Ribeiro e sendo uma curiosa iniciativa de alunos do Instituto Branco Rodrigues, em S. João do Estoril, que teve uma
vida irregular desde 1947 a 1951.
“Poliedro: Revista de Tiflologia e Cultura”, sob a actual
direcção de Lucília Moreira Soares da Cunha Pacheco e
propriedade do Centro Prof. Albuquerque e Castro, edição mensal
em Braille, cujo primeiro número saiu em Setembro de 1956.
“Rosa-dos-Ventos”, sob a actual direcção de Lucília Moreira
Soares da Cunha Pacheco e propriedade do Centro Prof.
Albuquerque e Castro, edição mensal em Braille, cujo primeiro
número saiu em Janeiro de 1968.
“Revista da Imprensa Diária”, sob a direcção de Filipe Pereira
Oliva, edição sonora do então Serviço para Cegos da Biblioteca
Nacional (hoje Área de Leitura Especial da Biblioteca Nacional),
publicação que sobreviveu de 1971 a 1972, de periodicidade
semanal e constituída a partir de artigos seleccionados (durante
a semana) num matutino e num vespertino de maior tiragem.
Cabe aqui anotar, a propósito, que o registo de informação em
formato áudio se iniciou nos Estados Unidos nos princípios de
1930 e que essa prática só chegou a Portugal cerca de trinta
anos mais tarde.
“Ponto e Som”, sob a direcção de Filipe Pereira Oliva, boletim
trimestral bibliográfico e bibliofónico e de informação
tiflológica em geral, propriedade da actual Área de Leitura
Especial da Biblioteca Nacional, cujo primeiro número saiu em
Abril de 1974, em Braille estenografado e encontrando-se,
presentemente, também disponível em Braille integral.
“Cassete da Semana”, sob a direcção do Padre Abílio Martins e de
Isidro da Eira Rodrigues, edição sonora do ex-Centro de Cultura
para Cegos e da ex-Liga de Cegos João de Deus, publicação que
sobreviveu desde a Primavera de 1976 até ao Inverno de 1977 e
que era elaborada a partir de artigos, considerados de
interesse, retirados de revistas especializadas impressas a
tinta.
“Maranata: Revista Evangélica de Cultura e Recreio”, sob a
direcção de Eugénio Martins da Silva e propriedade da Associação
Luz nas Trevas (Obra para Evangelização e Ajuda Espiritual aos
Cegos), editada em Braille integral, cujo primeiro número saiu
em Janeiro de 1980.
“Cassete-Europa”, edição sonora, em português, do Gabinete para
a Acção em Prol dos Deficientes, órgão da Comissão da então
Comunidade Económica Europeia, tendo chegado à Área de Leitura
Especial apenas cinco números (do número 2 ao número 6), desde
Fevereiro de 1986 a Dezembro de 1987.
“Galáxia: Revista Sonora Vocacionada à Difusão Cultural entre os
Deficientes Visuais”, sob a direcção de Isidro da Eira
Rodrigues, edição da ex-Liga de Cegos João de Deus e cuja vida
se traduziu em apenas seis números, publicados desde Março de
1986 a Setembro de 1988.
“Elo”, sob a direcção de Patuleia Mendes, Jornal da Associação
dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), cujo primeiro número
em formato áudio (correspondente ao número 148 do 12º ano de
publicação a tinta) saiu em Outubro de 1986, sendo a produção
áudio da responsabilidade do Centro de Produção de Material do
Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo.
“Página Braille”, sob a direcção de José Adelino Guerra, boletim
trimestral de informação bibliográfica e cultural regional da
Secção para Deficientes Visuais da Biblioteca Municipal de
Coimbra, edição em Braille integral produzida pelo Centro Prof.
Albuquerque e Castro, cujo primeiro número saiu em Maio de 1988.
“O Independente”, revista mensal em Braille integral produzida
pelo Centro Prof. Albuquerque e Castro sob a coordenação de
Fernando Ribeiro da Cruz, por prestimosa iniciativa do semanário
“O Independente”, compreendendo os textos considerados de valor
informativo mais estável e menos dependente da circunstancialidade quotidiana publicados no semanário em cada
mês, cujo primeiro número saiu em Maio de 1988.
“Som da Vida: Revista de Cultura e Entretenimento do Tempo
Livre”, sob a direcção de Carlos Araya Severino e propriedade da
Associação Luz da Vida para a Evangelização e Ajuda Espiritual
dos Cegos, edição sonora, cujo primeiro número saiu em Setembro
de 1988.
“A Espiga”, sob a direcção de Assis Milton, boletim trimestral
da Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais
(APEDV), publicado em Braille integral, em formato áudio e a
tinta, cujo primeiro número saiu em Julho de 1990. Publica
essencialmente artigos de natureza tiflológica e muito em
especial trabalhos da responsabilidade dos formandos desta
Associação.
“Dinamização Cultural: Revista Áudio da Câmara Municipal de
Lisboa”, sob a direcção de Augusto Deodato Guerreiro e produzida
a matriz no Centro de Produção de Material do Centro Regional de
Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, edição mensal do
Pelouro da Cultura e do Gabinete de Referência Cultural, uma
publicação caracterizada por um amplo eclectismo, com especial
destaque para a olisipografia e história de Portugal, para as
problemáticas da deficiência em geral e da gerontologia, para a
actualidade científica, técnica e cultural, e com distribuição
gratuita em cassete a nível nacional e internacional, cujo
número zero saiu em Novembro de 1990.
“Luís Braille: Revista Oficial da ACAPO”, sob a direcção de José
Adelino Guerra e propriedade da Associação dos Cegos e Amblíopes
de Portugal, cujo primeiro número (com título diferente) saiu em
Abril de 1991. Trata-se de uma publicação que, por imperativos
institucionais, teve de alterar o seu título inicial “Traço-de-União: Órgão Oficial da ACAPO” para “Luís Braille: Revista
Oficial da ACAPO”, sendo editada trimestralmente em Braille
integral, formato áudio, caracteres comuns e, a partir de
Janeiro de 1995, também em disquete.
“Grande Reportagem”, edição sonora, sob a coordenação de
Francisco Lopes, da Secção para Deficientes Visuais da
Biblioteca Municipal de Abrantes, cujo primeiro número saiu em
Novembro de 1991.
“Revista Clube Universon”, publicação sonora vocacionada para
assuntos de natureza metafísica, editada e dirigida por Jorge
António da Silva Tavares Teixeira, em Matosinhos, fonocopiada e
distribuída pelo Gabinete de Referência Cultural da Câmara
Municipal de Lisboa, cujo primeiro número saiu em Janeiro de
1994.
“Jornal de Notícias”, um bimensário de cultura e informação em
Braille integral, produzido pelo Centro Prof. Albuquerque e
Castro sob a coordenação de João Ogando, que resulta da selecção
da informação tida como mais significativa deste matutino
portuense em cada dois meses e um pouco à semelhança do critério
adoptado pelo semanário “O Independente”, tendo o primeiro
número saído em Maio de 1994. Trata-se de uma meritória
iniciativa do próprio “Jornal de Notícias” integrada na
comemoração do seu 106º aniversário. Esta empenhada preocupação
com o acesso da generalidade dos cidadãos à informação e à
cultura conferiu também a este órgão de comunicação social a
dimensão de “jornal electrónico” que, a partir de 25 de Julho de
1995, se encontra diariamente disponível na rede Internet (com
duas actualizações por dia, uma às zero e outra às dezassete
horas), acessível a toda a gente, incluindo as pessoas cegas que
dispuserem da tecnologia informática específica. A este novo
suporte multimedia da informação, em formato electrónico, outras
publicações periódicas portuguesas têm vindo a afluir, como por
exemplo “o Público”, disponível na Internet desde 22 de Setembro
de 1995, o “Expresso”, disponível desde Janeiro de 19 de Julho
de 1997, e outros que se lhe têm seguido.
“Máxima”, revista feminina numa edição especial em Braille
integral, sob a coordenação de Augusto Hortas, impressa no
Centro de Produção e Formação Profissional da ACAPO por
iniciativa e a expensas da própria revista “Máxima”, tendo o
primeiro número saído em Outubro de 1994.
“Espiral: Revista de Divulgação Cultural”, sob a direcção de
José Adelino Guerra e propriedade da ACAPO, de periodicidade
trimestral, tendo o primeiro número (correspondente a Janeiro-Março) saído precisamente em Janeiro de 1995. Trata-se de uma
publicação impressa em Braille integral, em formato áudio e
também disponível em disquete, baseada fundamentalmente na
recolha de textos em publicações especializadas impressas a
tinta. É mais uma “Espiral” a juntar, designadamente, à
“Espiral: Cadernos de Cultura: Movimento das Áreas Culturais de
Língua Portuguesa” de António Quadros, à “Espiral” de Aguiar e
Dias e à “Espiral” da Associação Amigos Shalom.
“Integrar”, sob a Direcção de António Charana e propriedade do
Instituto de Emprego e Formação Profissional e do Secretariado
Nacional de Reabilitação, disponível em caracteres comuns e em
disquete e, a partir de Junho de 1995, também publicada em
Braille integral, sendo o Centro de Produção e Formação
Profissional da ACAPO o responsável pela impressão, neste
suporte, de todos os números, incluindo os já publicados.
Presentemente, os cerca de 15.000 indivíduos cegos portugueses
(em que a elevada percentagem de analfabetismo é confrangedora)
dispõem apenas de perto de 12.000 títulos (monografias,
publicações periódicas e outro tipo de documentação nos vários
suportes e formatos), o que os distancia, na realidade editorial
portuguesa, por vezes, de forma quase abismal dos normovisuais.
Basta termos em atenção que, só em Portugal, existem à volta de
dois milhões de títulos em caracteres comuns na Biblioteca
Nacional, nos Estados Unidos cerca de quarenta milhões na
Biblioteca do Congresso (para além dos biliões -do papiro ao
CD-ROM -no mundo inteiro) e que, neste momento, estão
disponíveis no nosso mercado livreiro cerca de 50.000 títulos
(para além dos milhões a nível mundial).
Neste contexto de quase asfixiante desvantagem das pessoas cegas
em relação às pessoas com vista, no acesso à informação e à
cultura, muito nos congratulamos e exultamos sempre que se abrem
às pessoas cegas mais canais de comunicação com esse inesgotável
universo. É claro que a ausência do sentido da vista (o órgão
mais absorvente que possuímos) impõe aos indivíduos cegos
limitações profundas no acesso à informação, mas cuja sensação
dessa premente e nalguns casos confrangedora realidade tem que
ser, graças à estrutura intrínseca de cada um, absolutamente insuficiente e impotente para compelir as pessoas cegas (como se
se encontrassem sem alternativas) a cruzar os braços e a vegetar
na exclusão social, sendo imperioso diversificar e
acessibilizar-lhes informação e esclarecimento.
Sem pretendermos ser redundantes na matéria, mas sim tão claros
quanto possível no seu enquadramento e inteligibilização, já
afirmámos, no primeiro capítulo, que é pela cultura que o ser
humano se realiza plenamente como pessoa e contribui para o bem
da comunidade, pelo que, como consequência, é naturalmente pela
cultura (no seu sentido mais amplo) que a sociedade humana
encontra a sua significação e legitima o seu sentido, como
produto profícuo (nas mais diversas vertentes) resultante da
acessibilidade à informação e ao esclarecimento, da actividade,
do labor e do pensamento dos homens.
Estamos cientes de que ainda é impossível acessibilizar à
generalidade das pessoas cegas (assim como não é possível às
pessoas normovisuais fruírem toda a informação disponível no
universo editorial) tudo o que se publica no mundo (Marshall
MacLuhan, por acaso, deve ter descoberto a chave e a Internet já
constitui um colossal resultado), “mas também estamos cientes de
que tem sido sobretudo por negligência e ausência de
generosidade sócio-política (falta de vontade política) que
escasseia a informação e a cultura a que as pessoas cegas possam
aceder com independência.”.
“A nossa proposta de solução alternativa imediata (dentro do
quadro comunicacional por enquanto vigente e acessível) é que
devem orientar os seus interesses de forma sistematizada para
uma estruturada e inteligente gestão dos recursos
comunicacionais existentes acessíveis ao infinito mundo da
informação e disponíveis em variados suportes, que podem com
bastante eficácia contribuir para a ampliação e rendibilização
das também (inequivocamente) inesgotáveis potencialidades das
pessoas cegas. Saber Braille, ser capaz de ler fluentemente para
mais facilmente sentir prazer na leitura, complementar a
informação disponível em Braille com o já vasto espólio
existente em formato áudio e em suporte informático, atentar nas
programações da radiodifusão e da radiotelevisão em toda a sua
amplitude (os media, os multimedia), possuir a tecnologia
adequada e a necessária preparação para «surfar» e usufruir da
recente rede de redes de computadores, unidas por um conjunto de
telefones, fibras ópticas, satélites e cabos submarinos, ligando
simultaneamente redes de universidades, de governos, de empresas
e já cerca de 45 milhões de utilizadores individuais em todo o
mundo.”.
Felicitamos vivamente todas as iniciativas editoriais (em
suporte permanente e/ou evolutivo) de qualidade que “venham
colmatar áreas lacunares do conhecimento, contribuindo para a
acessibilidade a novos horizontes culturais e para um mais amplo
apetrechamento intelectual das pessoas cegas, facilitando-lhes,
por consequência, a integração na sociedade aos mais diversos
níveis.”.
“Cabe aqui -afirmamos ainda no artigo em referência -uma nota
de especial reforço, no sentido de que se continue a privilegiar o livro e a sua utilização, não como objecto cultural ligado ao
passado e condenado ao desaparecimento (na opinião de alguns
mais incrédulos e menos perscrutadores de postulados a que o
futuro sempre terá que obedecer e de que nunca se indissociará),
mas como o resultado sistemático e durativo (imorredouro) do
fecundo instrumento sócio-intelectual -a Escrita -, em luta,
como sempre esteve ao longo da sua própria história.
Inicialmente, o grande combate do livro foi travado contra a
ignorância e a intolerância. À medida que a ignorância diminuía, o livro resfolegava e progredia, passando das mãos dos letrados
e clérigos e por fim para as do povo e, consequentemente, para
as mãos das pessoas com dificuldades específicas no acesso à
leitura, em especial os deficientes visuais. Ao mesmo tempo, a
intolerância -religiosa, política, económica... -cedia ao
vertiginoso progresso das ideias, de que o livro sempre foi, e
continuará a ser, o excelente e indispensável veículo. Desde o
papiro ao CD-ROM, o livro mudou de forma e de suporte,
disseminou-se com a sua produção industrializada, mas continua o
mesmo, o inconfundível e nobre lugar dos signos onde se elucida
o sentido do mundo.”.
O frágil ecrã de papel branco é perfeitamente compatibilizável
com o rígido ecrã de vidro audiovisual ou informático e, neste
momento, “já se complementam ergonomicamente bem. E dentro de
meio século é certo que os nossos sucessores terão especializado
determinadas informações que conservarão num suporte permanente
(o livro de forma actual) e outros que consultarão informação
num suporte evolutivo, de que o CD-ROM oferece um modelo. A
história do livro do futuro inscreve-se, portanto, na história
do livro de ontem.”.
Um pouco em analogia com o que acabamos de escrever, “os
deficientes visuais, tal como o livro (numa acepção pedagógicodidáctica),
não podem perder a batalha no acesso à informação e
à cultura. As novas tecnologias da informação estão aí
propugnantes a ajudá-los e a incentivá-los nessa luta tenaz, mas
há que investir incomensuravelmente mais na exploração das suas
incalculáveis (e até nos apetece dizer mágicas)
potencialidades.”.
O binómio leitura-cultura -já o afirmámos também no primeiro
capítulo -constitui “um direito de todos os cidadãos
(diferentes ou não), sendo, desde sempre, uma prerrogativa
humana integrante e determinante do progresso da sociedade
humana em todos os domínios. A ausência de leitura e de cultura
(ou a sua inacessibilidade) traduz-se em apatia, pobreza
espiritual, excrescência vegetante na sociedade alegadamente
«escorreita», em involução.
A plena integração dos deficientes
visuais na sociedade é possível e impõe-se, sobretudo, pela
utensilagem mental que evidenciem e pela sua militância sócio-intelectual, de forma segura e determinada, nunca perdendo a
oportunidade de esclarecer a sociedade, numa postura pedagógicodidáctica
e cultural sólida e clarividente.
De facto (e em
sintonia com Luís Archer), é a cultura que conduz o ser humano à
sua realização plena como pessoa, levando-o a contribuir para o
bem da comunidade e de toda a sociedade humana, sendo pela
cultura, no seu sentido mais amplo, que a sociedade humana
encontra a sua significação e legitima o seu sentido.”.
Retomando alguns aspectos já enunciados no primeiro capítulo,
sentimos poder afirmar que, “da mesma forma que assimilamos conceitos, adquirimos e cultivamos saber e preferências -por
mera comunicação em convívio social, por aprendizagem, treino,
teorização, por puro raciocínio -, também as pessoas cegas (mais
ou menos apetentes para alargar os seus conhecimentos), para
sentirem vontade de adquirir e cultivar saber, para sentirem
independente liberdade na viabilização dos seus gostos e opções
com o objectivo de legitimarem o seu sentido de vida na
sociedade humana, necessitam, antes de tudo, de independência
económica. Emprego, desporto, lazer... tal como os demais
cidadãos. E venham, em simultâneo, inúmeros livros, revistas,
jornais (nunca serão demais!) e as sofisticadas tecnologias
propulsionadoras da acessibilidade à informação e à comunicação
e dissemine-se entre as pessoas cegas o mais fecundo dos
veículos para a sua almejada integração (ou, nalguns casos,
reinserção) na sociedade que é de todos nós, na sociedade
convivial que todos nós somos.
A Cultura é um complexo
amplamente aglutinador e evolutivo de questões experienciais e
intelectuais que constitui o móbil sócio-educativo e sócio-cultural detonador de barreiras psicossociais e culturais e
propulsor do progresso aos mais diversos níveis. As pessoas
cegas já não são seres amorfos carregados e miserabilizados pelo
«progresso», mas são seres igualmente dotados de sensibilidade e
coragem, tenacidade, persistência e boa vontade, de capacidade
intelectual e física para interagir, promover a proficuidade
sociocultural e até liderar no progresso em geral. Basta que as
deixem ser iguais (com a sua diferença) aos demais cidadãos,
actuar e propugnar livremente em favor da objectivização e
consolidação dos seus ideais, basta que não impeçam a sua
ascensão às funções que, com inquestionável independência, podem
desempenhar plenamente, basta, em suma, que sejam encaradas (sem
reservas) como pessoas intelectualmente úteis e iguais às
pessoas alegadamente «normais» e que não se tergiversem (por
ignorância ou com base em falsos paradigmas) as suas
potencialidades e que se reconheçam as suas capacidades,
maximizadas com o contributo do novo universo cultural
disponibilizado e acessibilizado pela informática e decorrentes
novas tecnologias da informação, proporcionando aos cegos de
todo o mundo uma revolução sócio-intelectual em muito comparável
à revolução tiflográfica de Louis Braille no século
passado.”. Escreveu Guizot que “O estudo é a valorização da mente ao
serviço da felicidade humana”. Estudemos, pois, e tenhamos todos a
felicidade de contribuir para que o progresso (o novo mundo da cultura vivo
e livre) contemple todas as mentes. Que não falte aos cegos a persistência
para «devorarem» a totalidade da informação que já existe disponível em
Portugal e que não lhes falte também a imaginação para ultrapassarem todos
os condicionalismos à sua avidez de cultura. Cícero dizia que «uma casa sem
livros é um corpo sem alma». Leia-se, pois, tudo o que há para ler e sejamos
corpo e alma em favor de um concertado itinerário conducente à
consciencialização dos que vêem e dos que não vêem, de forma a que a chave
(que já possuímos) abra definitivamente a carapaça e a inteligibilidade das
mentalidades condicionantes da tão aludida e debatida «integração plena».”.
As vantagens da tecnologização da tiflografia, como enunciaremos
no quarto capítulo deste livro, evidenciam claramente a
incontestabilidade do que acabamos de expor, mercê, sobretudo,
da evolução da tiflografia sistematizada, do braille à brailloinformática
e da informação analógica à informação digital
estruturada.
AS VANTAGENS DA TECNOLOGIZAÇÃO DA TIFLOGRAFIA
E DA ACESSIBILIDADE DA INFORMAÇÃO ÀS PESSOAS CEGAS
"A promoção social dos cegos depende da cultura
e da preparação
técnica de que disponham. Desenvolvê-las é seu dever e seu direito"
J. de Albuquerque e Castro
“A ciência fornece-nos uma visão da realidade segundo a
perspectiva da razão”, “uma visão poderosa, formal e austera,
mas estranhamente silenciosa a respeito de muitas das questões
que nos preocupam profundamente.”. Acreditamos, no entanto,
que, de entre as “muitas questões que nos preocupam
profundamente”, muitos dos esforços, empíricos e científicos,
que têm vindo a ser desenvolvidos sobre a tiflologia, nos irão
ajudar (em futuro muito próximo) a solucionar (com eficácia cada
vez mais aprimorada) prementes problemas que ainda condicionam
as pessoas cegas na acessibilidade (com independência) à
informação e à cultura.
A tiflologia não se nos apresenta propriamente como uma
ciência, mas como uma posição plurifacetada, traduzida numa
actividade multidisciplinar, em que convergem disciplinas do
âmbito de diversas ciências (designadamente “oftalmologia e
outras especialidades da ciência médica, psicologia, pedagogia,
sociologia, engenharia, arquitectura, acção social,
direito”), com o objectivo de se compreender integralmente “o
déficit funcional motivado pela deficiência visual em todas as
suas implicações intrínsecas e extrínsecas ao deficiente e
procurar, na medida do possível, reduzir ou eliminar essas
implicações.”. Esta preocupação já tornou possíveis um leque
de conquistas, das quais merecem destaque as seguintes:
-Reconhecimento de uma configuração tipológica justificativa da separação da deficiência visual de outras deficiências, com as quais a princípio andou misturada, como a surdez e a mudez;
-definição do conceito de deficiência visual, determinação dos seus graus e tipificação dos quadros da sua ocorrência;
-desenvolvimento de métodos, técnicas e ajudas tiflotécnicas, especialmente no âmbito de actividades de índole tiflopedagógica e tiflolaboral;
-reconhecimento do direito à orientação e mobilidade em segurança na via pública e nos transportes públicos;
-distinção e caracterização do segmento da hipovisão, com a adopção de técnicas e equipamentos apropriados;
-direito ao acesso à informação, ao esclarecimento, à fruição de bens culturais e artísticos, à prática desportiva, ao apoio à terceira idade, à preparação familiar, ao enquadramento legislativo sectorial, etc.
“A razão sonha com um império do conhecimento, uma mansão
da mente. Contudo, por vezes acabamos por viver numa choupana ao
lado da mansão.”. Ignora-se a “mansão” ou aspectos dela
integrantes que em muito poderiam contribuir para o nosso
esclarecimento, fundamento da razão e do sonho. “O futuro, como
sempre, é dos sonhadores.”. A razão mergulha-nos nesse “império do
conhecimento” e o sonho impele-nos à descoberta, não nos esquecendo de que
deve ser o Homem a manter-se como “medida de todas as coisas”, porque,
estamos convictos, nada poderá jamais substituir as suas capacidades
criadoras, a sua inteligência e a sua sensibilidade.
A capacidade criadora, a inteligência e a sensibilidade do
Homem constituem o móbil e a inexpugnabilidade da evolução do
mundo e do progresso a todos os níveis, do redimensionamento e
da ampliação de potencialidades e capacidades humanas, da
transformação das mentalidades. E aí temos a ciência e a técnica
informáticas a ajudar a operacionalizar com mais eficácia e
rapidez a vida das sociedades, das pessoas com dificuldades
específicas, por exemplo no acesso à informação e à cultura,
sendo as pessoas cegas as que mais têm sentido e sofrido essa
inacessibilidade, lacuna que, sobretudo desde o século passado,
tem vindo a ser progressivamente colmatada, primeiro com a
criação do Sistema Braille, depois com o fabuloso contributo da
informática e das tecnologias dela decorrentes.
Assistimos neste momento a novas (e até há poucos anos
inimagináveis) possibilidades proporcionadas às pessoas cegas
baseadas no contributo da informática, nas vantagens da
tecnologização da tiflografia e da consequente acessibilidade da
informação, pelo que desenvolveremos este último capítulo
conferindo especial relevo à importância das novas tecnologias
para as pessoas cegas, pois que, do braille à brailloinformática
e da informação analógica à digital (em que o
específico equipamento informático de leitura e de escrita cada
vez mais se tem vindo a ajustar às necessidades especiais), as
perspectivas actuais da acessibilidade da informação, no plano
informático-tecnológico, preparam, para as pessoas privadas da
sensibilidade visual, um futuro de maior e independente
acessibilidade à informação e à cultura, de uma maior e
eficiente autonomia e interacção, de uma mais ampla
comunicabilidade e sociabilidade, de uma mais profícua
actividade sócio-cultural e sócio-profissional, satisfazendo,
presentemente, naturais exigências pessoais e sociais, mas cujo
progresso dependerá sempre das permanentes actualização e
adequação da operacionalidade e funcionalidade informático tecnológicas às pessoas cegas, tendo em conta a predominante
tendência para se privilegiar, cada vez mais, a imagem.
IV.1 - As Novas Tecnologias para as Pessoas Cegas
Baseando-nos na evolução
sistemática do instrumento intelectossocial acessível às pessoas cegas, a
escrita (da vulgar tiflografia à braillo-informática e a outras tipologias
de informação tecnologizada, da analógica à digital estruturada), podemos
realçar, com inequívoca fundamentação, que, nos nossos dias, “nenhum
deficiente visual que trabalhe na área intelectual, seja ele um professor,
um jurista, um investigador ou tenha qualquer outra profissão em que careça
de rápida actualização”, sustenta José Bento(1993), “poderá ficar unicamente
encostado ao Sistema Braille ou ao gravador e tem de ir o mais fundo
possível na obtenção destas novas tecnologias de leitura.”.
A expressão “novas tecnologias” generalizou-se de uma tal forma,
sobretudo desde os finais da década de 60, que, hoje em dia, a ouvimos e
lemos por toda a parte, nos órgãos de comunicação social, nos empregos, em
conferências, podendo dizer-se que, cada vez mais, tudo é produzido,
comercializado ou mesmo adquirido através de “novas tecnologias”: a
embalagem de produtos, a utilização de computadores para facturação e
controlo de stocks, o próprio terminal ATM, uma infinidade de possibilidades
e de acessibilidades que a informática proporciona, fazem parte do nosso
dia-a-dia que, progressivamente, exige do utilizador uma constante
actualização, de modo a não deixá-lo ultrapassado. Imediatamente, também
começaram a surgir nos horizontes das novas tecnologias produtos
informáticos para potenciar e compensar as pessoas portadoras de
deficiência, contemplando, em especial, as pessoas cegas, tendo vindo o
mundo da reabilitação, desde há uma dúzia de anos, “a receber as aplicações
práticas dessas novas tecnologias.”.
Contrariamente ao que, na generalidade, acontece com as
tipologias das outras deficiências, a problematicidade da
cegueira tem sido encarada “como problemas que podem ser
resolvidos com a ajuda da tecnologia.”, sustentando J. M. Gill(1990) que,
até agora, “as pessoas cegas têm beneficiado pouco nos avanços tecnológicos
nos últimos vinte anos.”.
“Nos anos 60 -afirma J. M. Gill(1990) -pensou-se, com
optimismo, que estaria para breve o aparecimento de um auxiliar
electrónico para a área da mobilidade que a maior parte das
pessoas cegas poderia usar para se deslocar a pé sem
necessidades de ajuda. Um dos primeiros sensores do espaço
circundante foram os «Óculos Ultrassónicos Ay», que «mostram» em
estereofonia o espaço envolvente através de representações
sonoras variáveis. Embora tenham sido lançados alguns outros
aparelhos concebidos segundo critérios muito semelhantes, é
muito pequeno o número dos que hoje em dia estão a ser
utilizados. Isto parece resultar de estes aparelhos terem sido
concebidos sem se ter compreendido suficientemente as
necessidades de informação de uma pessoa cega quando se desloca
a pé sozinha e o melhor processo de apresentar essa informação
numa forma não visual. Hoje em dia investiga-se pouco,
infelizmente, sobre este importante aspecto da mobilidade dos cegos.”.
Por vezes, tiram-se (com fundamentação parcial e fruste)
ilações sem consistência real e assumem-se posições e
resoluções, cuja aplicabilidade, no que respeita à compensação
visual (nalguns casos) e à ampliação das potencialidades e
capacidades das pessoas cegas, não resulta ou, então, só em
parte resulta. Precisamos de, em relação à problematicidade da
cegueira, ter um contacto muito íntimo e reflectido com as
diferentes vertentes desta questão, havendo mesmo, nalgumas
circunstâncias, necessidade de se criarem artificialidades que
nos levem a vestir, virtualmente, a pele dos problemas que
pretendemos solucionar.
Nesta acepção, um dos resultados do trabalho que conduziu
ao aparecimento dos sensores do espaço circundante foi a
realização posterior do avisador electrónico de obstáculos (o
que vem reforçar o por nós expresso em relação ao “sentido dos
obstáculos” no segundo capítulo), aparelho que indica apenas a
presença de um objecto dentro de uma distância pré-determinada.
Afirma o autor em referência que um novo progresso “foram os
aparelhos que se situam entre os sensores do espaço circundante
e os avisadores de obstáculos”, pois os novos aparelhos
apresentam, na generalidade, “um dispositivo que indica a
distância do objecto mais próximo numa forma simplificada, por
exemplo, cinco notas musicais que indicam cinco distâncias prédeterminadas.”.(Gill, 1990).
Transportando estes contributos para o domínio da
tiflografia, a concepção de aparelhos que permitam às pessoas
cegas ler e escrever atraiu sempre um interesse público
considerável e, nalguns casos, apoio financeiro. Não obstante os
importantes fundos atribuídos por algumas instituições para a
investigação e fabrico, poucos aparelhos de leitura e escrita se
encontram à disposição dos interessados a um preço razoável, mas
incrivelmente elevados em relação aos destinados às pessoas sem
problemas ao nível da modalidade sensorial visual. Na história
da tiflografia electrónica (acessibilidade à informação
manuscrita e impressa), um dos primeiros destes aparelhos a
surgir foi o “Optofone”, que representava os caracteres
impressos por modelos compostos por notas musicais, embora
poucas pessoas cegas tivessem sido capazes de o utilizar com
êxito. Temos esta convicção e o autor em referência também o
atesta no seu artigo.
“O progresso mais significativo que se seguiu -sustenta J. M. Gill(1990) -foi o «Optacon», que representa os caracteres
impressos -e nós acrescentamos: e também manuscritos -num
pequeno mostrador de vibradores tácteis.”. Este aparelho, que
foi um sucesso comercial, foi substituído recentemente por um
novo modelo que incorpora tecnologia actual e que converte
automaticamente (na placa táctil) a letra normal impressa para
braille. A vantagem em confiar ao leitor o reconhecimento dos
caracteres consiste em que o aparelho não fique limitado a um
reduzido conjunto de tipos.
Outra aplicação consiste no reconhecimento de caracteres e
na apresentação da informação correspondente numa forma não
visual, como o braille ou a voz sintética. Estes aparelhos com
OCR (optical character recognition) incorporado aperfeiçoam-se
cada vez mais em fiabilidade, rapidez e variedade de tipos
gráficos que podem reconhecer. Os sistemas melhor conhecidos são
os de Kurzveil Computer Products, mas há já no mercado muitos
sistemas menos caros. Estes não se têm popularizado entre as
pessoas cegas, porque a maior parte dos aparelhos se apresenta
demasiado limitadas quanto à fiabilidade e à variedade de tipos
gráficos reconhecíveis. Prevê-se, todavia, sustenta J. M.
Gill(1990), que o seu funcionamento possa ser aperfeiçoado nos anos subsequentes, “atendendo ao advento dos algoritmos
aplicados à investigação sobre inteligência artificial.”.
Conforme daremos conta, ao longo do presente capítulo,
muitos aparelhos para o armazenamento digital de braille têm
sido produzidos nos últimos anos, desde discos maleáveis a cassetes, até à fixação nos actuais suportes informáticos
comuns, para apresentação da informação num “display” ou
mostrador de braille efémero, também designado por braille
electrónico. Estes sistemas, muitas vezes também designados por “braille
sem papel”, têm sido usados por pessoas cegas nos seus empregos,
funcionando o aparelho algumas vezes ligado, como um terminal, a
um sistema informático. Contudo, não obstante numerosas
previsões em contrário, os sistemas conhecidos como “braille sem
papel” não regrediram nem tornaram a ser encarados como
substituíveis pelo braille em papel. Às vezes, no entanto, põem-se-nos problemas de ordem funcional e de fluência de leitura por
uma certa inoperacionalidade dos dispositivos informáticos (que
têm vindo a ser adequados à tiflografia) na selectividade de um
texto com dez ou vinte linhas (ou com diversos segmentos de
texto) em vez de, apenas, oferecerem uma só linha do texto que
se pretende ler. Isto no que respeita aos terminais de leitura
em braille, não no que se refere aos terminais em voz sintética,
pois que, com estes é possível obter-se uma ideia global do
ecrã, percorrendo-o, rapidamente, na totalidade, nos ambientes
DOS e WINDOWS, estando este ambiente também já acessível através
do braille mediante (tal como a voz sintética) a utilização de
software especiais de comunicação que substituem o mouse.
A diminuição do preço dos computadores pessoais (bem como,
de algum modo, dos software de comunicação especiais) encorajou
o uso dos sintetizadores de voz (incomparavelmente mais baratos
do que os terminais braille), permitindo generalizar a aplicação
do processamento de palavra e de texto. Embora já haja
sintetizadores de voz para algumas línguas, ainda não há nenhum
sistema que se possa modificar facilmente para produzir outras
línguas. Na Europa, o português já se encontra incluído nas
trinta e seis línguas sintetizadas electronicamente. “Muitas
vezes os fonemas são diferentes, e isso constitui um problema
delicado. Os sons básicos do coreano, por exemplo, não podem ser
reproduzidos por um sintetizador concebido para produzir os sons
do inglês.”.
Na realidade, esta é uma área a exigir urgente atenção,
domínio que impõe investigação, para que as pessoas cegas dos
países em vias de desenvolvimento não sejam relegadas mais ainda
para último plano no que se refere à utilização dos novos
produtos proporcionados pelas novas tecnologias.
Apesar de muitos fabricantes de aparelhos de alta
tecnologia para pessoas cegas estarem a fabricar novos produtos,
muitos destes produtos não passam de novos modelos que
incorporam variantes retiradas de outros fabricantes, tal como
na indústria automóvel. No entanto, há muito tempo que a
tendência é fabricar aparelhos mais fáceis de usar, destinados
às pessoas cegas de capacidade média. A formação dos
utilizadores dos aparelhos é, muitas vezes, deixada ao cuidado
de organizações não lucrativas, mas alguns fabricantes estão a
melhorar os seus serviços de apoio para formação e manutenção.
Os progressos dirigidos às pessoas normovisuais sucedem-se
incomparavelmente muito mais depressa do que os destinados às
pessoas cegas. Nos sistemas computadorizados, o uso crescente de
WIMPs (windows icons, menus, pointers) cria mesmo problemas
complicados aos utilizadores cegos. Contudo, é no campo dos
periféricos de redes de serviços instalados para uso do público em geral que se fará sentir o maior impacto. Por exemplo, as máquinas
de venda de bilhetes para diferentes destinos e a utilização de portas
sujeitas a sistemas de controlo complicarão ainda, durante algum tempo, a
vida às pessoas cegas. No entanto, já é possível (mesmo recorrendo a uma
tecnologia barata) atenuar alguns destes problemas. “Uma proposta, designada
«REACT» sustenta GILL(1990) -, consiste em proporcionar às pessoas cegas um
telecomando do tamanho aproximado de um cartão de crédito que pudesse ser
usado para indicar que se está perto de: uma passagem para peões com
semáforo, onde poderia activar o sinal sonoro e aumentar o tempo para a
travessia; uma entrada com acesso controlado, onde poderia activar um sinal
sonoro para localizar o botão de abertura; telefones públicos, onde poderia
activar um sinal localizador; obras no pavimento, onde poderia activar um
avisador sonoro da alteração; transportes públicos, onde poderia activar
anúncios sonoros da paragem seguinte.”.
É este tipo de tecnologia, relativamente barata, que parece poder trazer
maiores benefícios à maioria da população de deficientes visuais activos nos
países desenvolvidos e, na verdade, alguns destes dispositivos electrónicos,
adaptados a pessoas cegas, já se encontram a ser utilizados com alguma
eficácia (uns mais do que outros), inclusivamente em Portugal,
designadamente priorizando-se (tanto quanto possível) a pedonalização de
ruas e praças, numa óptica de eliminação de barreiras, os avisadores sonoros
nalgumas das mais centrais e complexas passagens pedonais da via pública em
Lisboa.
O que é certo é que, com mais ou menos abnegação na
perspectiva do desenvolvimento científico, tecnológico e
cultural (o caso da UNESCO), com mais ou menos intensidade no
fito de lucros comerciais naqueles domínios, a tecnologia
informática e telemática tem vindo a proporcionar às pessoas
cegas uma fantástica igualdade de oportunidades no acesso à
informação e à cultura.
Mediante o contributo informático-tecnológico, o Sistema Braille tem
vindo a ser profundamente potenciado e redimensionado, desenvolvendo-se
software de comunicação especiais que permitem a transposição de textos em
caracteres comuns para braille e vice-versa.
Cabe aqui anotar, com profundo agrado, que a UNESCO se tem
preocupado e tem investido, proficuamente, em projectos que em
muito têm contribuído para o conhecimento e divulgação do
Sistema Braille como meio vital de comunicação para as pessoas
cegas de todo o mundo.
De resto, o interesse da UNESCO pelas dificuldades que se
levantam às pessoas atingidas por qualquer inferioridade não é
novo e tem-se traduzido em estudos diversos relativos a aspectos
diferentes da educação especial, cujo objectivo é preparar os
jovens portadores de deficiência para se integrarem plenamente
na vida da sua comunidade.
Assim como as pessoas cegas dependem de um alfabeto
constituído por pontos em relevo, aqueles cuja visão se
apresenta consideravelmente reduzida têm também necessidades
específicas em matéria de leitura e de escrita. Nesta
perspectiva, em 1949, a UNESCO tomou a iniciativa de proceder a
um estudo com vista a uniformizar o sistema braille no mundo,
solicitando, nesse sentido, à Clutha Mackensie (Nova Zelândia)
para redigir um projecto universalmente aceitável para aplicar a
escrita braille a todas as línguas, realizando assim as
esperanças de Louis Braille.
Em 1954, a UNESCO publicou o resultado destes trabalhos
numa obra intitulada L'Écriture Braille dans le Monde, atitude
retomada, de forma mais elaborada, em 1990, numa outra publicação. Esta obra, que foi editada em inglês, francês e
espanhol, constituiu um acontecimento para as pessoas cegas do
mundo inteiro e fez sair o braille numa multidão de códigos
pontográficos para o justificar de forma irreversível, mais uma
vez, como meio de comunicação tiflográfica universal.
Os progressos que desde então se têm registado neste domínio, e que
merecem ser conhecidos, levaram a UNESCO a efectuar um estudo sobre a
escrita braille enquanto meio de comunicação, no qual, à luz dos
conhecimentos proporcionados pela investigação, se trata da utilização do
braille, da selecção, produção e difusão de obras em braille, da produção do
braille, dos códigos braille, da leitura, aprendizagem e do ensino do
braille. Este estudo conduziu ao aparecimento, nos princípios de 1981, de um
livro intitulado “La Pratique du Braille: Le Braille comme Moyen de
Communication”, também editado em inglês, que se ocupa ainda das imprensas e
bibliotecas braille, dos fabricantes de materiais, das fontes de informação
relativas ao braille, dos centros de investigação e do braille electrónico.
Em “La Pratique du Braille” vemos analisada a situação dos
deficientes visuais em relação ao braille, considerado como meio
de comunicação. A referida publicação deverá interessar não
somente a esta categoria de deficientes, mas também aos
educadores, aos profissionais da produção do texto braille, a
todos os que lidam com pessoas que sofrem de perturbações da
visão e a todos aqueles que se preocupam com o problema dos
meios de comunicação destinados às pessoas cegas.
A responsabilidade pela redacção e pelo aprontamento desta
obra coube principalmente a Barry Hampshire (Inglaterra) que, na
altura, trabalhava para a Associação de Deficientes Visuais da Suécia. Walter
Cohen, do Conselho Nacional para Cegos da África do Sul, e John Jarvis, do
Royal National Institute for the Blind (Inglaterra), bem como Jan-Ingvar
Lindstrõm, da Federação Sueca de Deficientes, redigiram também alguns
artigos, tendo muitos outros peritos contribuído amavelmente, por diversas
formas, para a realização deste estudo.
“A UNESCO expressou o seu muito apreço pelo trabalho levado a cabo por
Barry Hampshire e seus colaboradores, muito embora as opiniões emitidas
sejam as dos autores e não reflictam necessariamente o ponto de vista da
Organização.”.
A imprensa diária e não diária tem dado, de algum modo e
desde 1981, a sua contribuição para o desenvolvimento telemático
e informatizado da produção de braille.
Assim, em Abril de 1981, durante uma visita que efectuou
aos Estados Unidos, Leif J. Andersson, editor-director do jornal
sueco “Gõteborgs-Posten”, declarou no National Library Service
que “no seu jornal tinha sido concebido um projecto para
distribuir uma edição diária daquele periódico, completa, em
braille integral. Este projecto consiste em utilizar fita
gravada com a edição diária produzida pelo computador- compositor,
convertê-la em braille electrónico e difundi-la em FM, num raio de 130km,
através duma estação emissora de rádio. Diz Leif J. Andersson que a
transmissão teria lugar entrea1e as 2h da madrugada, hora a que,
habitualmente, as composições telegráficas são enviadas às máquinas de
impressão.”.
Um receptor, em casa do assinante, captaria a emissão e
gravá-la--ia automaticamente em disco ou fita, gravação essa que
poderia ser lida depois, a qualquer hora. “Utilizando um
terminal de leitura de cassete braille, o assinante poderá
encontrar facilmente qualquer assunto no jornal, em qualquer
secção, incluindo as classificadas, e a programação da rádio e da TV.”.
Na realidade, este projecto demonstrava que era possível
distribuir um jornal diário em braille (como veio a verificar-se
posteriormente de forma indiscutível), embora o elevado preço de
um terminal de leitura (cerca de 10.000 dólares na altura) não
permitisse a aplicação do projecto, enquanto não fosse
conseguida uma significativa redução dos custos tecnológicos.
Eis, pois, uma outra área de desenvolvimento, em que a
utilização de nova tecnologia pode ser concebida para uso geral,
mas possuindo potencialidades para poder ser usada, de forma
diferente, pelos deficientes visuais, sendo um bom exemplo disto o projecto sueco, que utiliza as máquinas de telefax para um
serviço de leitura a distância destinado a deficientes visuais,
incluindo os que tenham outras deficiências. Neste sistema, uma
pessoa cega dispõe de uma máquina de telefax equipada apenas com
a função expedição, da qual se serve para transferir documentos
para um escritório central, a partir do qual esses documentos
lhe são lidos pelo telefone, um processo telemático funcional e
traduzido numa aplicação muito simples da tecnologia moderna,
bem demonstrativa de como as novas tecnologias também podem
ajudar as pessoas cegas de mais idade (que não sabem ou não
podem ler por qualquer circunstância), as pessoas idosas já sem
a acuidade visual suficiente para a leitura, as pessoas
afectadas temporariamente por qualquer incapacidade ou disfunção
sensorial ou mesmo motora e, porque não, os próprios analfabetos
funcionais.
Isto porque pensamos que a investigação tecnológica, a este
nível, deve centrar-se em alternativas tecnológicas para o
preenchimento das lacunas sentidas pelas populações deficitárias
no acesso à informação, ao esclarecimento e à cultura.
Um outro desenvolvimento interessante, também de origem sueca (a cuja
origem já nos referimos anteriormente) e já implementado em França e noutros
países (também já envidámos esforços, sem êxito, para o implantar em
Portugal), é o projecto RATS, segundo o qual o texto de um jornal é
transmitido, digitalmente, pela rádio, podendo as pessoas cegas ter acesso à
informação em braille ou em voz sintética.
“Embora este esquema piloto seja caro, ele já indica um
sentido possível para uma nova forma de prestação de
serviços.”.(J. M. Gill, 1990) No campo da reprodução áudio, o
advento dos discos compactos (e os discos CD-I de duração mais
longa) e a fita digital prometem uma espantosa variedade de
recursos, que há longo tempo vêm sendo reclamados pelas pessoas
cegas, o que já está eficazmente implementado sobretudo nos
Estados Unidos e em Inglaterra.
Todavia, o simples facto de uma qualquer realização ser
tecnologicamente possível não significa que essa realização
possa tornar-se num equipamento utilizável pelas pessoas cegas a
preços razoáveis ou acessíveis aos bolsos de pessoas que, à
partida e na generalidade, terão, obviamente, mais carências
económicas. Os equipamentos que empregam tecnologia moderna
geram um interesse considerável, mas um baixo volume de vendas
(o que os encarece), pelo que, a maior parte das pessoas cegas
em todo o mundo não tem, muito provavelmente, acesso a estes
equipamentos. Para esta maioria é essencial o desenvolvimento de
equipamento novo, barato, fácil de utilizar ou “amigável” e bem
concebido. Há também necessidade de mais colaboração
internacional (sensibilização através da Associação Mundial de
Cegos junto de determinadas organizações internacionais UNESCO,
Microsoft, por exemplo -e das Associações de Cegos de
todos os países junto dos respectivos governos) para que os
recursos, que são limitados, não sejam dispendidos em
duplicações desnecessárias e para que o fabrico do mesmo equipamento possa ser feito em vários países, empregando os
materiais adequados de cada um.
O equipamento educativo apropriado para uso em escolas
especiais de pessoas cegas e amblíopes (que têm vindo a
desaparecer mediante a criação de uma alternativa fruste)
constitui uma área de preocupação, visto que, em muitos dos
países onde esse equipamento se produz, se adoptou um processo
de educação integrada no ensino regular, o que exige uma
concepção muito diferente de equipamento, tendo em conta,
sobretudo, a facilidade comunicacional que deve existir, sem
obstáculos, entre professor e aluno. A área educativa, em
particular, está a beneficiar do abaixamento de preço dos
sistemas para produção em pequena escala quer de braille quer de
caracteres ampliados. Isto significa que muitas escolas podem
agora, mesmo em Portugal, produzir o material didáctico
necessário em vez de dependerem do fornecimento dos manuais
escolares em braille vindos do exterior, chegando às mãos dos
alunos, em regra, no fim do ano lectivo.
O equipamento para ajudar as pessoas a usar melhor o seu
resíduo visual teve um aumento muito grande do volume de vendas
nos últimos anos. Na maior parte dos casos trata-se de
equipamento óptico convencional em que se introduziram ligeiras
melhorias, tais como materiais novos para o fabrico das lentes.
A venda dos auxiliares de leitura com circuito fechado de
televisão também aumentou, muito embora os seus componentes
básicos já existam há mais de uma década.
A tecnologia para produção de caracteres ampliados mudou
radicalmente com o aparecimento das impressoras por laser eda
alta qualidade da sua impressão, o que reduziu
significativamente o custo da produção de pequenas quantidades
de textos em caracteres ampliados. O emprego desta tecnologia
permitiu, por exemplo, obter rapidamente e a baixo custo os
extractos de contas em caracteres ampliados (o que a Caixa Geral
de Depósitos e a EDP já praticam também em Portugal, remetendo
aos clientes cegos informação impressa em braille).
Muitas pessoas idosas dizem que a perda da privacidade é a
maior privação causada pela cegueira. Pensamos que, nesta
tipologia de informação, a tecnologia áudio poderá contribuir
com soluções alternativas funcionais e acessíveis.
As expectativas, resultantes do contributo das novas tecnologias (que são
inúmeras e, inexplicavelmente, sujeitas a prorrogações sucessivas), para as
pessoas cegas mais crentes nas potencialidades da informática e ciosas de
uma autonómica acessibilidade à informação e à cultura geram, quase sempre,
alguma ruína intelectual e desesperos, embora a esperança (num contexto de
sabedoria popular) seja a última centelha de cada um de nós a morrer. Afirma
J. M. Gill(1990) que “os avanços tecnológicos recentes têm sido para os
cegos uma bênção carregada de contradições. Se forem atribuídos a esta área
recursos suficientes, o resultado final pode ser benéfico; todavia, se pouco
mais se fizer do que falar dos problemas, as pessoas cegas encontrarão
dificuldades cada vez maiores em participar plenamente do mundo dos que
vêem”, realçando que “é insensato procurar soluções estritamente
tecnológicas para os problemas humanos.”.
É que, por vezes, as maiores dificuldades não têm a sua
origem na atitude dos governantes, a fraternidade e a
solidariedade não se decretam, mas brotam espontaneamente em
todas as pessoas sensíveis à criação de oportunidades para
todos. Porém, a sensibilidade tem a ver com um complexo conjunto
de factores, tão diferentes e tão iguais, que se juntam nesse
“caldo de pedra que dá pelo nome de cultura”, o que significa que a sensibilidade também se cultiva e educa, não se conferindo
ao vocábulo “cultura”, portanto, apenas o sentido livresco que
em geral se lhe atribui. Os contributos da nova tecnologia para
compensar a ausência da vista não se encontram mais
desenvolvidos porque o universo de interesses, ao nível
fiduciário e monetário, ainda continua a impor-se sobre a força
(também humana) dos conceitos de fraternidade e de
solidariedade, apesar de reconhecida, inequivocamente por todos,
a sua importância e imprescindibilidade no progresso de toda a
sociedade humana.
IV.2 - Do Braille à Braillo-Informática
Procuraremos sintetizar neste ponto os novos aspectos de
que se reveste actualmente o Sistema Braille, quer na leitura
quer na escrita, e as novas aplicações que se lhe oferecem,
sobretudo, no plano da informática e das novas tecnologias.
O Sistema Braille, com o contributo informáticotecnológico,
tem vindo a ser profundamente potenciado e
redimensionado, passando dos sessenta e três sinais simples e da
multiplicidade de sinais compostos (conforme a versão definitiva
de Louis Braille em 1837 e algumas alterações signográficas
posteriormente introduzidas no seu Sistema) para duzentos e cinquenta e
seis sinais simples e uma inumerabilidade de sinais compostos na
braillo-informática.
Inicialmente, a escrita braille fazia-se (como hoje ainda,
quer como exercício de destreza manual e da motricidade fina,
quer por imperativos de natureza económica) ponto por ponto (na
régua ou na pauta braille) ou, nos princípios do século XX,
letra por letra (na máquina dactilográfica braille). A escrita
nas réguas ou nas pautas braille mais correntemente usadas faz-se da direita
para a esquerda, de forma a que, ao retirar-se e ao voltar-se o papel
(previamente encaixado num daqueles dispositivos), a leitura se efectue da
esquerda para a direita. “A posição relativa dos pontos fica então
invertida: os pontos 1,2e3,que se escrevem junto à margem direita do
rectângulo, aparecem do lado esquerdo; os pontos 4,5e6,que se escrevem junto
à sua margem esquerda, surgem do lado direito.”.
Escreveu F. P. Oliva(1981) que “há muito que a escrita braille deixou de
ser necessariamente uma laboriosa tarefa, em que os caracteres tinham que
ser formados ponto a ponto. Esta tarefa tornava-se por vezes numa actividade
verdadeiramente penosa, devido à má qualidade do material de escrita
utilizado. Infelizmente, esta situação continua a verificar-se ainda hoje,
com alguma frequência.”.
A máquina de escrever braille veio simplificar
consideravelmente a escrita, com a possibilidade de se escrever
letra a letra e reduzindo assim o esforço no acto de escrever.
Nas máquinas dactilográficas braille utilizadas com mais
frequência, as teclas correspondentes aos pontos 1, 2 e 3 ficam
à esquerda do espaçador, e à direita ficam as correspondentes
aos pontos 4, 5 e 6, contando-se as teclas do centro para os
extremos e batendo-se ao mesmo tempo as que forem necessárias à
formação de cada sinal, aparecendo a escrita voltada para cima,
em posição de ser lida imediatamente.
O aparecimento de máquinas electrificadas, de equipamento
electrónico para registo do braille em fita magnética e, mais
recentemente, de sofisticado equipamento informático que permite
escrever e ler braille veio simplificar e acessibilizar ainda mais a operação de escrever e ler, imprimindo à escrita uma
qualidade caligráfica excelente, quer nos terminais quer nas
impressoras. Além disso, as máquinas electrónicas e os novos
recursos informáticos tornaram o processo de escrever braille
praticamente silencioso, sendo possível escrever o braille
rápida e comodamente, com um esforço mínimo.
Além disso, o texto em braille já não tem de se apresentar
necessariamente sob a forma daqueles volumosos livros, por vezes com um
excessivo número de volumes. Recordamos, por exemplo, que a 7ª edição
corrigida e actualizada da “História da Literatura Portuguesa”, de António
José Saraiva e Óscar Lopes, publicada num volume pela Porto Editora em 1955,
com 1222 páginas, corresponde a 22 volumes em braille estenografado (a
estenografia poupa à volta de 25%), num total de 2998 páginas. Remontando ao
registo do braille em fita magnética, este processo “veio tornar possível
-sustenta F. P. Oliva(1981) uma redução tão grande de espaço, que o texto de
um volume em formato de bolso, com 100 páginas, pode agora ser fixado numa
só cassete de 90 minutos.”.
Assim, aqueles leitores que até àquela altura tinham de se
deslocar às bibliotecas por diversas vezes para requisitarem os
vários volumes de um só título, passaram, quando aquele processo
de algum modo se generalizou (nunca em Portugal), a poder
requisitar várias obras numa só deslocação à biblioteca. É
evidente que houve dificuldades muito importantes (sobretudo de
natureza funcional e económica) a superar, para que a utilização
generalizada daquelas máquinas viesse a ser uma realidade, o que
chegou a acontecer de uma forma muito efémera na Suécia, França,
Alemanha... porque entretanto também outras inovações e outros
equipamentos mais completos surgiam nestes e noutros países.
Razão por que, simultaneamente, se tem vindo também a
investigar e a investir na adequada compatibilização
informático-tecnoló-gica, desenvolvendo-se hardware e software
de comunicação especiais que permitem a transposição de textos
em caracteres comuns para braille e vice-versa. Curiosamente, em
França, “um grupo de cientistas da Universidade Técnica de
Toulouse apresentou em 1981, durante uma conferência promovida
no âmbito do AID, um aparelho portátil apto a efectuar a
transcrição de negro para braille.”. Este aparelho compunha-se de uma
minicâmara, de um microprocessador e de uma linha braille, tendo os
responsáveis por esta invenção, no Ano Internacional do Deficiente,
declarado que a produção comercial deste aparelho poderia ter início dentro
de um ano aproximadamente.
Sucessivamente, grandes e significativos progressos se
deram neste domínio, surgindo computadores e terminais que
apresentam à leitura uma linha em braille, com vários
comprimentos, até 80 caracteres, não tendo ainda sido possível
aos fabricantes, mais por razões económicas do que técnicas (a
nosso ver), produzir display braille com uma secção de texto com
dimensões razoáveis que nos permitam mais rápida e
eficientemente tomar consciência do conteúdo de um texto.
Contudo, desde que possuamos o equipamento necessário e nos
possamos socorrer dos software de comunicação adequados e de um
modem-fax, a acessibilidade à informação e à cultura torna-senos
francamente fácil, incluindo o acesso à Internet.
Nas actuais circunstâncias, a diversidade de equipamentos e
de oportunidades de acesso a estes equipamentos, já trouxeram às
pessoas cegas, sobretudo no campo profissional, novas
possibilidades e oportunidades de emprego, tornando possível o
acesso a carreiras não apenas como operadores, mas também como programadores e até como analistas, podendo socorrer-se já de um
significativo acervo bibliográfico sobre informática.
Todavia, não obstante a inegável melhoria introduzida nos processos de
escrita e de leitura e das promissoras potencialidades quanto ao material de
leitura, “tem vindo a constatar-se nos últimos anos, um pouco por toda a
parte, uma redução apreciável do número de utilizadores do braille e um
preocupante abaixamento de qualidade no braille utilizado. Esta situação é
habitualmente explicada por uma acentuada diminuição de crianças e de jovens
cegos e um considerável aumento destes deficientes a partir da meia idade,
sobretudo na terceira idade, já com poucas ou mesmo nenhumas aptidões
favoráveis à aprendizagem e utilização do Sistema Braille; por um aumento
considerável de cegos portadores de outras deficiências, apresentando
perturbações mais ou menos graves nas suas capacidades sensoriais e/ou
intelectuais; pela redução do número de indivíduos total ou praticamente
cegos e pelo aumento do de deficientes visuais com possibilidades de se
servirem de caracteres ampliados; pelo facto de as crianças terem deixado de
viver em estabelecimentos de tipo asilo, consagrando ao braille a maior
parte do seu tempo, e terem passado a frequentar escolas comuns ou
especiais, onde recebem uma preparação de tipo geral e um apoio específico;
pelas dificuldades inerentes ao próprio braille e pela generalização do uso
do livro gravado.”.
No entanto, as razões que acabamos de enumerar não nos
parecem ser suficientes para explicar, só por si, a acentuada
desbraillização a que, cada vez mais, temos vindo a assistir.
Apoiando-nos em conceituados estudiosos e investigadores, como J. M. Gill, L. L. Clark e F. P. Oliva, que nos ajudam a
completar o quadro de condicionantes do uso deste meio de
comunicação, afiguram-se-nos importantes mais as seguintes:
• o aumento em flecha dos custos de produção, que só em
muito poucos países não terá tido efeitos restritivos;
• a exiguidade dos fundos em braille disponíveis, com risco
de não responderem satisfatoriamente aos interesses dos
utilizadores, tornando-se assim factor de desmotivação para
a leitura do braille;
• o ensino de qualidade irregular, devido, principalmente,
à utilização de métodos não adequados e de tempos lectivos
insuficientes;
• a discrepância entre a capacidade de tiragem dos meios de produção de
braille tradicionais -grandes quantidades ou um só exemplar -, e as
necessidades mais correntes dos leitores -3 a 20 exemplares. Acrescenta F. P.
Oliva(1981) que “uma larga faixa de profissionais ligados a estes problemas
por responsabilidades administrativas, técnicas e educativas, tem utilizado
e interpretado estes factores em sentido negativo, a nosso ver, e expendido
um ponto de vista, segundo o qual o Braille é uma causa perdida. Cremos que
a explicação para o radicalismo desta posição terá que ser procurada,
fundamentalmente, numa incapacidade natural, acompanhada mesmo por vezes de
falta de vontade, para sentir e compreender os problemas do Braille.”.
Felizmente que a esta posição se opõe a daqueles que, muito
embora reconhecendo a complexidade e os problemas delicados que
a questão envolve, acreditam que, se forem tomadas as medidas
adequadas, muitos destes problemas poderão ser solucionados e o
braille voltará a ser uma componente muito importante do sistema
de leitura e de escrita para as pessoas cegas. J. M. Gill e L. L. Clark(1979) sustentam esta tese, afirmando que “if more
braille materials were available, the use of braille would
increase. Similarly, if braille was easier to learn, was taught better, and was supported by technological innovation, it would penetrate
the everyday world of work and leisure and its use would increase.”.
Na realidade, também pensamos que o recurso ao Sistema
Braille aumentaria, desibernaria mesmo (nalguns casos) e
ganharia uma renovada plenitude, uma nova e mais rentável
utilização, se houvesse mais informação disponível nesse
formato, se a sua aprendizagem fosse mais fácil, se (sobretudo)
fosse melhor ensinado e servido por novas e adequadas ajudas
tecnológicas, o que o levaria a ser mais cómoda e proficuamente
acolhido por todos os que dele necessitam em todos os domínios e
oferecendo, aos que sabem servir-se dele, possibilidades que nem o livro em formato áudio nem os modernos equipamentos para ler
podem proporcionar. É que, por vezes, estes meios são
apresentados, não como alternativas nem como complementaridade
do braille, mas como substitutos, relegando-o para uma total
exclusão, como têm pretendido algumas pessoas com muita
responsabilidade na área da educação. Defendemos, pois, que o
recurso àqueles equipamentos e ao Sistema Braille deve ser
encarado, consoante as circunstâncias e necessidades de cada
leitor, num plano de alternativa (quando, por exemplo, se
desconhece o braille, ou por qualquer impedimento funcional, ou
a informação desejada existe apenas num dos formatos) ou numa
perspectiva de complementaridade (quando, por exemplo, se
pretende reaver rapidamente o conteúdo de uma determinada
publicação recorre-se geralmente ao formato áudio ou, quando é
necessário confirmar uma determinada passagem para citar,
recorre-se ao texto em braille). São, efectivamente, componentes
de um sistema em que todos têm uma função a desempenhar, de
acordo com as necessidades de cada utilizador, mas onde o
braille continuará a ser um meio comunicacional privilegiado e
vital para quem o conhecer e o souber utilizar.
Isto porque o braille, como já anteriormente afirmámos, é o
único sistema que permite às pessoas cegas escrever e ler aquilo
que escrevem. Mas se reduzirmos a questão apenas ao plano da
leitura, também aí teremos que reconhecer que as vantagens
proporcionadas pelo braille são verdadeiramente notáveis, face a
certas limitações dos meios comunicacionais sonoros,
encontrando-se as aludidas vantagens distribuídas por dois
campos: o da comunicação das ideias e o do manuseamento do
suporte. Nestes dois campos, os que lêem permanecem livres,
activos e senhores duma vontade capaz de influenciar a leitura,
enquanto os que ouvem ficam dependentes, passivos, e a sua
vontade queda-se muitas vezes impotente perante a indiferença
mecânica dos aparelhos. Os primeiros, desde que disponham de
livros, trazem permanentemente consigo a possibilidade imediata
de ler (em casa, nos transportes, num café enquanto se espera
por alguém, numa sala de espera, etc.), estão em contacto
directo com a forma gráfica escolhida para expressar o
pensamento do autor, podem imprimir à leitura o ritmo que a
natureza do texto determine, podem compulsar facilmente um
volume e localizar rapidamente uma passagem desejada. Os
segundos precisam de um aparelho reprodutor com a alimentação
conveniente, comunicam com o pensamento do autor através da
interpretação de um intermediário e escapam-lhes, em larga
medida, as intenções de realce que os recursos gráficos
possibilitam, não contactam com a realidade ortográfica da
língua, têm de submeter-se ao ritmo da leitura gravada (o que já
não acontece mediante o recurso à voz sintetizada) e, como o
texto se encontra registado numa sequência rigorosamente linear,
só por acaso conseguem localizar facilmente qualquer passagem
que desejem voltar a ouvir, sendo em geral obrigados a várias tentativas de localização, excepto se se utilizarem dispositivos
electrónicos de informação estruturada.
Os elevados custos da produção e a exiguidade dos materiais em braille,
em comparação com as enormes massas documentais postas todos os anos à
disposição dos leitores normovisuais, poderão ser consideravelmente
atenuados, em princípio, pela computadorização da produção de braille, já
capaz de produzir, com alta qualidade, braille também estenografado. Ainda
graças à computadorização, “a primeira edição braille obtida directamente em
bandas gravadas das editoras comuns, possibilidade que se apresentava ainda
um tanto problemática em Abril de 1972, foi já exibida em Boston, em Junho
de 1980, durante o congresso comemorativo do I centenário do nascimento de
Helen Keller.”.
Mas a qualidade do ensino do braille constitui uma das mais
complexas questões, apresentando-se como condição decisiva para o êxito de todas as campanhas de promoção da leitura e
merecendo, por si só, que lhe seja dedicado um extenso
seminário, como o afirma F. P. Oliva(1981). Fundamentos
pedagógicos, técnicos e materiais, didácticos, desenvolvimento
do tacto, higiene e ergonomia da aprendizagem, utilização das
mãos, treino de leitura com objectivos de velocidade e de
compreensão, técnicas de leitura rápida, formação de
professores, seriam temas que, secundando F. P. Oliva(1981),
juntamente com outros, bem poderiam integrar o temário desse
seminário. É que, para se usufruir, com a eficácia e o
rendimento desejados, das potencialidades informático-tecnológicas
oferecidas ao sistema sensorial do tacto, torna-se
imprescindível, antes de tudo, dominar o Sistema Braille.
O ensino do braille não tem conseguido mais do que suscitar, de forma
crescente, uma atitude que J. M. Gill e L. L. Clark(1979) classificam de
“bem intencionada negligência”, sobretudo a partir da altura em que começou
a aumentar o número de funcionários normovisuais directamente ligados a
estes problemas, em especial no campo do ensino. “É sabido que sustenta F.
P. Oliva(1981) -a aprendizagem e utilização do braille oferece muitas
dificuldades aos indivíduos que perderam a vista já quando adultos; mas
também não pode ignorar-se que o ensino desses indivíduos continua a ser
feito de forma inteiramente rotineira, com pouquíssimas possibilidades de os
motivar para os objectivos desse ensino. Nenhum esforço sério foi feito
entre nós, até hoje, para encontrar novas formas, novos métodos e materiais
de ensino aptos a enfrentar as dificuldades próprias do Braille; por isso,
ninguém poderá afirmar, com autoridade, que estão esgotadas as
possibilidades de melhorar esse ensino.”.
As preocupações expendidas desde então, com especial
incidência na Inglaterra e nos Estados Unidos (onde estes
problemas vêm sendo cuidadosamente estudados e equacionados),
bem como a premente necessidade de se acessibilizar, tanto
quanto possível, o braille (não menosprezando outros meios de
comunicação) às pessoas cegas de Portugal, têm-nos movido, não
por sentimentos de braillomania ou braillofobia, mas animados de
um espírito verdadeiramente braillológico.
Como eco imediato (na década de 80) de preocupações com
questões fundamentais para a promoção da leitura entre as
pessoas cegas de Portugal, a então denominada Área de
Deficientes Visuais (hoje Área de Leitura Especial) da
Biblioteca Nacional, com a colaboração de outras entidades
portuguesas (públicas e privadas) de e para deficientes visuais,
organizou umas «Jornadas Braille», que decorreram de6a10de
Abril de 1981, no anfiteatro da Biblioteca Nacional e no
auditório do Centro de Medicina e Reabilitação, em Alcoitão.
Neste evento, mais de uma centena de participantes professores,
profissionais de bibliotecas e de serviços produtores de materiais em
braille, representantes das associações de cegos e alguns utentes -, entre
os quais cerca de quarenta pessoas cegas, vindas de vários pontos do país,
incluindo as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, ocuparam-se de
alguns dos aspectos mais prementes da problematicidade do braille, em cujos
temas discutidos e recomendações efectivamente também participámos, o que
transcrevemos a seguir.
JORNADAS BRAILLE
Temas Discutidos e Recomendações
I -DESENVOLVIMENTO E CONSERVAÇÃO DE UM BOM SENTIDO DO TACTO
1) Estimulação da curiosidade táctil, quer através duma
acção directa dos educadores sobre os educandos, quer
através duma acção sensibilizadora do meio social que os
rodeia;
2) Preparação do uso do tacto com vista à aprendizagem do
braille, quer com exercícios tendentes a levar os educandos
a reconhecerem posições relativas de pontos, quer com
treinos que visem a leveza das mãos a fim de tornar possível
uma leitura mais rápida;
3) Elaboração de programas e instruções para uso dos
orientadores, com vista ao treino de identificação de formas
e volumes, detecção de movimentos, reconhecimento aproximado
de temperaturas, distinção de texturas, sentido de
orientação, etc.;
4) Promoção de investigações, principalmente nos campos
médico e profissional, com vista a preparar documentação
relativa a cuidados a ter com a preservação do tacto.
II -PEDAGOGIA DO BRAILLE
1) Dinamização de cursos regulares, com currículo adequado,
para formação e reciclagem de professores e educadores de
cegos;
2) Inclusão nos cursos de formação de professores do ensino
regular de material que os prepare para a eventualidade de
virem a ter deficientes visuais nas suas aulas;
3) Elaboração de pequenos manuais que contenham o
fundamental sobre a estrutura do braille para informação dos
professores do ensino regular;
4) Implementação de estruturas de apoio a professores e
alunos (serviços de reprodução de textos, bibliotecas, etc.)
que sirvam as escolas frequentadas por alunos cegos, e
intensificação dos contactos entre estes e os professores
apoiantes;
5) Apresentação o mais cuidada possível dos textos, que
devem ter escrita nítida e regular e conteúdo atractivo,
sobretudo os destinados a alunos principiantes, não devendo,
neste caso, utilizar-se papel plástico nem quaisquer outros
materiais desaconselháveis;
6) Motivação das crianças e dos adultos para a aceitação do
braille, alertando para as vantagens da leitura táctil em
confronto com o emprego de meios auditivos;
7) Iniciação da aprendizagem do braille, logo que a criança
atinge um nível de suficiente desenvolvimento físico,
intelectual, emocional e social;
8) Atribuição ao ensino do braille do tempo necessário à sua
aprendizagem;
9) Orientação tendente a levar os educandos a um melhor
aproveitamento das mãos na leitura.
III -REFLEXÃO SOBRE A FUNCIONALIDADE DOS SISTEMAS
ESTENOGRÁFICOS
1) Estudo do anterior sistema estenográfico com vista a uma
revisão que o torne mais funcional;
2) Elaboração de manuais e prontuários de estenografia, em
braille e a tinta, que delimitem claramente o âmbito da
função abreviativa do sistema;
3) Inclusão da estenografia no ensino do braille, com a
adopção de programas uniformes e metodologia adequada,
durante o tempo necessário ao seu domínio integral pelos
alunos;
4) Criação de cursos de especialização e reciclagem
destinados aos professores que tenham de ensinar
estenografia e aos interventores na produção de textos em
braille.
IV -SERVIÇOS PRODUTORES DE MATERIAIS AUDIOTÁCTEIS
1) Redimensionamento e racionalização dos serviços de
produção e divulgação de materiais audiotácteis, tendo em
conta os estudos já realizados, e criação de mecanismos de
articulação, de modo a evitar duplicações dispersões, em
ordem a possibilitar uma melhor resposta às carências dos
utentes;
2) Divulgação completa e atempada dos materiais existentes e
disponíveis nos diversos serviços;
3) Alargamento da produção de livros de estudo a áreas e
níveis até agora não contemplados;
4) Estudo de medidas conducentes a uniformizar tanto quanto
possível, em cada ano lectivo, a escolha do material
didáctico a adoptar nas escolas que tenham deficientes
visuais;
5) Adaptação dos textos a transcrever para braille que
contenham figuras, esquemas, gráficos e tabelas de estrutura
inadequada à apreensão pelo tacto.
V - PROBLEMÁTICA DOS INTERVENTORES NO ENSINO DO BRAILLE E NA
PRODUÇÃO DE MATERIAIS EM BRAILLE
1) Definição dos perfis e das qualificações exigíveis para
os diferentes níveis de intervenção na produção e
dificuldade do braille e regularização dos casos que se
revelem desajustados, salvaguardando a situação dos
funcionários já em exercício;
2) Dinamização dum movimento associativo de carácter
profissional que abranja os interventores na educação e
reabilitação dos deficientes visuais;
3) Contacto com a subcomissão criada no âmbito da Comissão
Executiva do A.I.D., que se destina a um levantamento
global, em termos de presente e de futuro, da problemática
dos profissionais da educação e reabilitação.
VI - NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DUMA AUTORIDADE BRAILLE
1) Reactivação da Comissão Permanente de Braille, criada em
1966;
2) Reexame das finalidades, estruturas, funcionamento e
inserção mais adequada no aparelho de Estado da Comissão
Permanente de Braille.
Considerando a necessidade de motivar os utentes do braille
para a prática da estenografia e com a produção de braille
estenografado através de computadores, o Secretariado Nacional
de Reabilitação, a Área de Deficientes Visuais da Biblioteca
Nacional e a Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário
organizaram um seminário sobre o assunto, o qual decorreu nas
instalações do Secretariado Nacional de Reabilitação, nos dias
27 a 29 de Janeiro de 1988, cujo programa e recomendações
transcrevemos em seguida. As exigências informáticas para a
produção computadorizada de braille estenografado levaram a
Comissão Organizadora do aludido seminário a convidar Michel
Jacquin, engenheiro informático, investigador e, na altura,
vice-presidente da Associação Valentin Haüy, a participar no
evento, formalização que foi aceite e, cientificamente, bem
correspondida, o que podemos atestar, já que também estivemos
presentes e colaborámos na matéria científica daquele seminário.
SEMINÁRIO SOBRE ESTENOGRAFIA BRAILLE
TEMAS DISCUTIDOS
1.
A estenografia como instrumento destinado a facilitar a
leitura.
2.
Exigências informáticas para a produção computadorizada
de braille estenografado.
3.
Ajustamento do sistema estenográfico em função da
prospecção da frequência de vocábulos e da avaliação de
efeitos redutores em material estenográfico.
4. O ensino da estenografia.
RECOMENDAÇÕES
1.
Adopção de medidas que propiciem um bom conhecimento do
braille integral.
2.
Transformação da estenografia num sistema facilitador da
leitura e da escrita. Para isso dever-se-á:
a) criar um sistema simplificado de estenografia, que
constituirá o 1º grau, destinado à maioria dos leitores,
incluindo os estudantes a nível da escolaridade
obrigatória;
b)
manter o sistema actual, mais disciplinado e
eventualmente mais abreviativo, que constituirá o 2º grau.
3.
Realização de trabalhos que permitam aferir da validade
dos dados apresentados sobre o grau de frequência das
abreviaturas e a economia de espaço, com vista ao
estabelecimento do 1º grau de estenografia.
4.
Concepção e aplicação de programas de formação em
estenografia para os interventores no ensino e na produção
do braille.
5.
Integração de técnicos deficientes visuais competentes
nas equipas, para as apoiar e ensinar a estenografia.
6.
Colaboração estreita entre a Comissão de Braille e os
serviços de produção, de forma a aumentar a capacidade de
resposta dos meios humanos e materiais existentes.
7.
Efectivação da competência da Comissão de Braille para
recorrer à colaboração interdisciplinar nos domínios da
psicologia, pedagogia, linguística, etc.
8.
Conveniência da divulgação de informação sobre a
utilização do braille.
9.
Formação urgente de técnicos, no domínio das novas
tecnologias ao serviço da produção de braille, incluindo o
braille estenografado.
10. Promoção de iniciativas destinadas
ao aproveitamento de
experiências de outros países, na área das novas
tecnologias, ao serviço do braille.
11. Criação urgente das condições adequadas à investigação
com vista à utilização, entre nós, de meios tecnológicos
apropriados.
A propósito da produção informatizada de braille
estenografado, é sabido que a automatização dos meios de
produção não poderia excluir a estenografia, havendo já um bom
par de anos que esta operação é executada através de
instrumentos informáticos. Em alguns países (designadamente
França e Inglaterra), os meios utilizados permitem mesmo obter,
de acordo com as conveniências, versões estenografadas ou em
braille integral do mesmo texto. Em Portugal, só muito
recentemente nos iniciámos nesta matéria, tendo ficado para a
história, como o primeiro documento em braille estenografado que
se produziu no nosso país por meio de estenografagem
informática, o nº 83 de “Ponto e Som”, correspondente a Outubro de 1994, data a partir da qual este boletim informativo da Área
de Leitura Especial (na altura Área de Deficientes Visuais) da
Biblioteca Nacional passou a ser editado em estenografia ou em
braille integral, consoante o interesse dos leitores.
Não se trata ainda de um meio para aplicação generalizada,
mas tão só de um programa que corre apenas em WS7, desenvolvido por José Luís de Almeida (Técnico da Área de Leitura Especial da
Biblioteca Nacional). Em 1996, Maria da Conceição Romano Santos
(Técnica do Gabinete de Referência Cultural da Câmara Municipal
de Lisboa) e José Miguel Santos (também Técnico na Área de
Leitura Especial da Biblioteca Nacional) criaram e desenvolveram
um outro utilitário de estenografagem braille, que corre em
ambiente DOS na versão WP6.0. Entretanto, sabemos que técnicos
de um outro serviço estão também envolvidos numa diligência
similar, mas que proporcionará uma utilização mais generalizada,
visto que se trata de um programa destinado a correr em ASCII.
Estes são, sem dúvida, passos que já estão a marcar o
presente e que, seguramente, muito virão a influenciar também o
futuro próximo. Note-se que, enquanto noutros países estas
soluções resultaram do trabalho conjunto de serviços e
universidades, entre nós ficam a dever-se a iniciativas de
pessoas deficientes visuais e à colaboração de amigos que,
abnegadamente, puseram à disposição deste desiderato a sua
capacidade no domínio da informática.
Temos, portanto, diante de nós um cenário diferente daquele
que até agora nos era familiar. A estenografagem informática já
é uma realidade, por enquanto aplicável apenas numa situação
particular, mas, dentro de algum tempo, já em condições de poder
ser aplicada de forma mais geral. Possam também ser dados em
breve passos semelhantes no domínio do ensino, e ficarão
praticamente reunidas entre nós as condições que permitirão à
estenografia afirmar-se como a ferramenta de utilização corrente
e de utilidade reconhecida que pode ser, a despeito da
polemização a propósito das vantagens e desvantagens argutamente
sustentadas, no que se refere, por um lado, a questões de
ergonomia, maior fluência na leitura e economia de espaço, e,
por outro lado, a aspectos de natureza linguística, complicando o processo de aprendizagem do braille e a acessibilidade à
informação nesse código signográfico, contribuindo, juntamente
com outras circunstâncias, para a desbraillização, sobre cujo
assunto já expendemos, no terceiro capítulo, a nossa posição. -
Volvido um ano, no que respeita à introdução da
estenografagem informatizada do braille na supra-referida
publicação em série (disponibilizando-a em braille estenografado
e em braille integral, de certo modo para se aferir a afluência
ou não de leitores do braille integral), supunha-se que muitos
leitores teriam solicitado “Ponto e Som” em braille integral,
mas apenas quatro o fizeram (conforme refere F. P. Oliva em
1995), o que nos pode levar a reforçar a ideia de que os bons
leitores de braille (podemos afirmar que, infelizmente, poucos)
preferirão, por uma questão de fluência e rapidez, o braille
estenografado.
Mas quanto à produção informatizada do braille integral, a
possibilidade de utilização pessoal do “display” braille (ou
ecrã para a pessoa cega) e das impressoras braille é ainda muito
restrita devido, essencialmente, ao seu elevado custo, ficando
assim mais acessíveis sobretudo às entidades tiflológicas, as
quais, no intuito de ampliar a capacidade produtiva de espécies
bibliográficas em braille, têm vindo a criar centros de produção
informatizados, aproveitando as potencialidades dos
processadores de texto comerciais, bem como de programas
específicos de tratamento de texto, criando tabelas informáticas
para a representatividade da simbologia braille (tão icónica
quanto possível) e de sinais exclusivos da escrita braille.
A produção braillográfica por processos electrónicos de
textos já existentes em processadores de texto (podendo já ter
sido utilizados na produção em caracteres comuns) torna-se,
desta forma, muito mais rápida, visto que a produção
braillográfica de documentos não informatizados exige, ao
processo de produção, a necessidade da introdução do texto. A
alternativa à digitação manual de textoéada utilização de
sistemas de leitura óptica (através da scannerização) em
conjunto com programas de reconhecimento de caracteres (OCR - Optical Character Recognition), apresentando-se a sua utilização
ainda com algumas limitações na língua portuguesa, devido à
ausência de versões que reconheçam, nalguns casos, os caracteres
específicos da nossa escrita.
No sentido de aprofundarmos um pouco mais a
computadorização do braille, sabemos que, primeiro surgiram os
volumosos computadores centrais inacessíveis ao grande público,
depois os minicomputadores que possibilitaram uma maior
descentralização, mas enfermando ainda da necessidade de
software transportável e de muitas restrições de comunicações e,
só por último, com o aparecimento do microprocessador foi
possível a actual proliferação de microcomputadores.
De facto, a standardização conseguida e as preocupações de
compatibilidade entre os diversos fabricantes de
microcomputadores, são vantajosas para a generalidade das
pessoas e, ainda mais, para as pessoas cegas, abrindo-se a estas
novas perspectivas de vida, evidenciando, no entanto, o seu
horizonte informático vantagens e também algumas limitações.
Para que a pessoa cega possa aceder à informação (não
gráfica) processada no computador, basta complementar o monitor
visual com um periférico adequado, que pode ser um “display”
constituído por doze, vinte, quarenta ou mesmo oitenta células
braille, cujos pontos são actuados por dispositivos
electromagnéticos ou com os mais eficientes piezoeléctricos. Os
equipamentos com “display” braille comercializados no mercado
mundial estão já sujeitos a uma razoável concorrência e dentro
da classe em que concorrem, definida essencialmente pelo número
de células braille que equipam o “display” e que fundamentalmente determinam o seu preço, tentam suplantar-se
através de versões de software cada vez mais potente e
funcional. As vantagens daí decorrentes nem sempre podem ser
aproveitadas por um utilizador cego, pelo menos sem um
determinado tempo de aprendizagem, uma vez que as versões
portuguesas nunca são contempladas devido à exiguidade do nosso
mercado. Como a simbologia braille apenas é comum entre os
diversos países no alfabeto, as dificuldades são evidentes.
Já referimos a inacessibilidade da pessoa cega à informação gráfica, a
não ser que a mesma seja susceptível de se configurar em texto, o que também
já é possível através de um novo software de comunicação, o Window-Bridge.
Introduz-se cada vez mais informação gráfica nas sucessivas versões de
aplicações informáticas. Estando vedada a informação gráfica à pessoa cega,
da mesma forma lhe está vedado o acesso a múltiplas aplicações informáticas,
incluindo processadores de texto que operem com fontes de caracteres
gráficos. “O horizonte actual não se pode dizer que seja promissor quanto a
ultrapassar esta dificuldade. Imagine-se um écran táctil constituído por
200x320 pixéis mecânicos que actuados de forma semelhante aos pontos dos
caracteres Braille não teriam como estes apenas duas posições mas N para ser
possível a percepção táctil de N níveis de intensidade ou em alternativa a
distinção de um conjunto de cores. Esta ideia já foi passada ao papel por um
investigador húngaro de Budapeste mas dificuldades tecnológicas levantadas
essencialmente pela mecânica de precisão necessária e o preço astronómico a
que chegaria desencoraja a sua realização prática. Basta referir que uma
única célula Braille piezoeléctrica, aplicada em diversos equipamentos há já
vários anos, custa entre 100 e 150 dólares americanos.”.
Porém, as limitações que apontámos não devem obscurecer o
panorama optimista aberto às pessoas cegas com a utilização de
computadores, pois, a diversidade de documentos elaborados em
processadores de texto estão indiferentemente acessíveis às
pessoas normovisuais e às pessoas cegas. As pessoas cegas acedem
a esses documentos de duas formas, como qualquer indivíduo
normovisual, lendo-os em “display” braille (as pessoas cegas
socorrem-se também da voz sintética) ou em papel impresso numa
impressora braille. A troca de grandes quantidades de informação
entre as pessoas normovisuais e as pessoas cegas pode resumir-se
à entrega de uma disquete, à transferência de informação através
de modem-fax, facilidade de comunicação que, na realidade, abre
novas perspectivas na promoção cultural, científica e
profissional das pessoas cegas.
Contudo, as vantagens são bem mais inúmeras, pois o
“display” braille e/ou de voz sintetizada (terminais braille
e/ou de voz sintética) ligados ao computador veiculam também a
informação dos actuais sistemas de teletexto, facultando às
pessoas cegas o acesso a uma vasta gama de informações (conforme o já expresso no ponto 1 deste capítulo), como, entre outras
informações, horários de comboios, cinemas e teatros, notícias,
vantagens estas que se alargam ainda aos sistemas de telebanco e
outros que a telemática tem vindo a tornar possível.
Todavia, no plano da transposição de texto e de imagem para o Sistema Braille, alguma complexidade (por vezes
inultrapassável) continua a dificultar (às vezes mesmo a
impedir) a efectiva realização de tal operação, a despeito da
exigência aos técnicos, para o efeito, dos necessários
requisitos, designadamente uma preparação e uma acuidade
específicas. No que se refere à transcrição-adaptação dos livros
escolares, raramente se pode transcrevê-los textualmente em
braille devido a duas razões: uma que reside no carácter essencialmente visual da impressão de livros didácticos e outra,
menos perceptível, que consiste na diferença de alinhamento
entre os dois tipos de impressão.
Isto porque os livros didácticos em caracteres comuns são
concebidos e realizados a pensar nos leitores normovisuais,
embora reconheçamos poder haver solução (com um certo prejuízo
para a largueza de imaginação) no caso de os autores aceitarem a
recomendação no sentido de darem aos livros um carácter tão
concreto quanto possível. Se abrirmos um manual escolar,
particularmente do quinto ano do ensino básico, verificamos que
todos os ingredientes que o caracterizam lhe conferem um aspecto
visual agradável: caracteres gráficos variados, cores múltiplas,
quadros, setas, desenhos, bandas desenhadas, disposições
tipográficas originais... Todos os recursos da tipografia
moderna se empregam para atrair o olhar do leitor e reter a sua
atenção.
Ora o Sistema Braille, devido à sua estrutura rígida, não
permite reproduzir com fidelidade todos os aspectos desta
tipografia, não sendo possível, por isso, nalguns casos, partir
dos discos de fotocomposição ou efectuar a introdução com
“scanner” para submeter em seguida a totalidade dos textos em
tinta a um programa de transcrição automática. De facto, só é
possível introduzir certas passagens lineares com um “scanner” e
transcrevê-las com um programa automático, podendo ser
transcritas manualmente, por meio do programa ETEXTC (programa
concebido por B. Messéant e J. Sagot e desenvolvido no CENFEI de
Suresnes), outras passagens mais complexas. A dificuldade reside
no ajustamento, de maneira simples, destes dois tipos de
passagens, em braille, sem solução de continuidade, tendo o
problema sido colocado, mas ainda sem solução.
Quanto à utilização de processos multimedia, raramente as
figuras do texto podem representar-se em relevo e só
determinados desenhos cujas formas geométricas são simples e bem
definidas, podem ser reproduzidos. Na grande maioria dos casos, o transcritor limita-se a assinalar a existência da figura e a
transcrever a sua legenda, não podendo pensar-se em descrevê-la
sob pena de alongar desmesuradamente o texto em braille, cabendo
à equipa optar pela descrição.
O desejável é que, sempre que haja descrições a fazer,
sejam efectuadas pelo próprio transcritor e gravadas na disquete
que contém a transcrição em braille, sendo (original ou cópia)
enviada ao utilizador, proporcionando a este a faculdade de
ouvir a descrição no momento oportuno e tantas vezes quantas as
necessárias. Podemos encarar a extensão deste processo a outras
partes dum texto, como por exemplo, a leitura das remissivas,
dos comentários, de determinadas notas infrapaginais ou à
margem...
No que se refere ao uso de programas de ajuda ao desenho em relevo, nos
casos em que “os ensaios de traçado das figuras por deformação térmica não
resultassem, poderia estudar-se um sucedâneo por ponteado através de máquina
de costura com comando electrónico.”.
É particularmente importante insistir no facto de estas
construções originais serem muitas vezes aproveitadas para
esclarecer o sentido do texto, sugerir analogias ou fios
condutores, indicar a apresentação dos resultados dos
exercícios. Daqui se depreende que, para além da transcrição das
obras literárias que deve ser textual, a transcrição de
numerosas passagens dos livros didácticos deve sofrer uma
adaptação. “Se, então, estas transcrições-adaptações não
respeitam a «letra» do texto, elas devem, em contrapartida,
respeitar escrupulosamente o «espírito». Isto exige que os «copistas» que efectuam este trabalho tenham conhecimentos extensos
sobre a matéria de que trata o livro, assim como uma certa familiaridade com
a leitura táctil, mesmo que eles próprios a não pratiquem.”.
Daqui resulta que a introdução dum livro escolar -sustenta J. Ble1ze -“deve efectuar-se, pelo menos em parte, através do
teclado de uma máquina de escrever braille ou dum computador.
Tendo em conta esta necessidade, a introdução efectua-se em
geral totalmente em braille. Os copistas devem, pois, praticar correntemente esta escrita. É ainda de notar que a rapidez de
introdução em braille é superior à da dactilografia corrente
praticada por uma pessoa pouco treinada.”.
Um texto em braille ocupa mais espaço do que o seu
equivalente em tinta, traduzindo-se, em média, a transcrição de
uma página em caracteres comuns em três páginas braille,
dependendo esta correspondência, obviamente, do formato do livro
em tinta e da sua tipografia. A transcrição dum volume médio de
trezentas páginas em caracteres comuns corresponde, normalmente,
a novecentas páginas braille, que, depois de divididas em
adequados conjuntos encadernados, originam uma dezena de volumes
de noventa páginas cada, tendo em conta que os volumes em
braille, para serem facilmente manuseáveis, deverão comportar
oitenta a cem páginas.
Mas a transcrição-adaptação de um livro didáctico não é uma
operação simples, devendo o texto transcrito em braille ser
sempre lido e comparado com o texto originário em caracteres
comuns, sendo corrigidas as falhas, condições em que a produção
de braille raramente ultrapassa as quatro ou cinco páginas por
hora, significando que a transcrição dum livro com cerca de
trezentas páginas em caracteres comuns, ou novecentas páginas em
braille, levará pelo menos duzentas horas de trabalho. No caso
de esta operação ser efectuada por técnicos remunerados, o custo
da transcrição ultrapassará (de acordo com os preços praticados
em França) trinta mil francos.
Esta diferença de escala tem várias consequências:
- folhear um livro em tinta para lá encontrar um
esclarecimento pode ser muitas vezes uma operação banal, quase
impossível numa transcrição, se a sua estrutura estiver
desprovida de pontos de referência que saltem aos olhos
(considerando a sua capacidade de síntese), não saltando,
naturalmente, à sensibilidade táctil (que actua na apreensão
de texto e na identificação de objectos e de texturas de forma analítica). É indiferente, para a pessoa normovisual, colocar
a resolução dum exercício na proximidade do mesmo ou no fim
dum texto ou duma monografia em tinta, mas uma pessoa cega
apreciará, pelo contrário, a vizinhança destas relações.
Dispor um glossário, notas, informações gerais no princípio, no meio ou no fim duma obra em tinta não tem grande
importância, o que já não pode observar-se, porém, na sua
transcrição para braille. A propósito da utilização de novas tecnologias de
transcrição, a Associação Le Livre de l'Aveugle, em França, que
assegura o fornecimento de obras didácticas aos jovens cegos há
cerca de 80 anos, passou do estádio da pauta e do punção ao da
máquina dactilográfica braille e, finalmente, ao do computador.
A referida associação comporta “uma rede de 70 copistas
voluntários -todos eles conhecem o braille abreviado francês e
metade são especialistas na transcrição das línguas clássicas ou
modernas ou de textos científicos -e uma Repartição Central de
10 pessoas voluntárias que asseguram as relações com os copistas
(formação, distribuição do trabalho), as relações com os utilizadores cegos, a duplicação das transcrições, a expedição dos
volumes, a gestão do fundo de biblioteca, etc.”.
É curioso que, designadamente em França e em Inglaterra, o
recrutamento de voluntários para este tipo de tarefas não
levanta qualquer dificuldade, os quais assumem a sua missão e
manifestam viva decepção sempre que lhes falta trabalho.
Mais de metade dos transcritores trabalham em casa com
computador (aumentando o seu número regularmente) e os restantes
continuam a utilizar a máquina dactilográfica Perkins.
O programa utilizado (ETEXTC) é um programa de ajuda à
transcrição, escrevendo o transcritor em braille utilizando o
teclado do seu computador. À medida que vai escrevendo, o texto
aparece no ecrã (em braille ou em caracteres comuns, conforme o
gosto do transcritor), sendo assim possível fazer tratamento de
texto em braille, da mesma forma que em tinta. Os caracteres
surgem no ecrã, no lugar exacto e com a disposição necessária à
ulterior e definitiva impressão.
Os transcritores que praticaram o processo da transcrição
assistida por computador e o processo da escrita à máquina
dactilográfica braille são unânimes em reconhecer a enorme
superioridade do primeiro processo sobre o segundo, aumentando a
velocidade de escrita vinte por cento, pelo menos, e sendo a
impressão (em máquinas electrónicas) cerca de dez vezes mais
rápida do que a termoformagem das matrizes transcritas à máquina
braille.
IV.3 -Da Informação Analógica à Informação Digital Estruturada
Deve-se aos Estados Unidos o aparecimento, para as pessoas
cegas, dos primeiros livros e publicações em série em suporte
sonoro, acontecimento que, no início dos anos 30 do século XX,
viria a influenciar profundamente a produção deste tipo de
material não-livro. O Congresso Norte-Americano aprovou nessa
altura uma lei, incumbindo a Biblioteca do Congresso de tomar as adequadas providências para aumentar o número de livros
destinados às pessoas cegas, afectando também os meios
financeiros necessários à investigação e implementação das
estruturas, modelos e produtos mais apropriados, ficando-lhe
ainda confiada a responsabilidade do planeamento e gestão dos
programas, surgindo entre eles o livro em formato áudio.
Das investigações destinadas a possibilitar a gravação de mais texto em
menos espaço, desenvolvidas no âmbito deste programa, resultaram os discos
de longa duração, que nunca chegaram a ser utilizados em Portugal, mas que,
não temos dúvidas, inúmeras horas de prazer teriam proporcionado (como ainda
hoje) aos utentes da informação áudio.
Na Conferência sobre o Braille ocorrida em Madrid em 1978,
Evgueny Agueev, um representante da então União Soviética e
citado por F. P. Oliva(1995), referia-se ao efeito da execução
deste programa, afirmando que: “O aparecimento do livro sonoro
significou para os cegos, pela primeira vez depois da criação do
genial Sistema de Luís Braille, a abertura duma segunda via que
lhes ofereceu a possibilidade de trabalhar independentemente com
um livro”, continuando assim o braille a ser o único sistema
de escrita para as pessoas cegas, mas deixando de ser o único
meio de leitura.
O uso do livro em formato áudio, quer em discos ou cassetes
especiais (estas utilizáveis apenas em máquinas de leitura
também especiais, que tiveram o seu curso em Portugal em finais da década de 70 e princípios da de 80), quer em cassetes
normalizadas (utilizáveis em aparelhos de leitura comuns),
começou a disseminar-se e a estender-se a uma faixa
significativa de utilizadores, tendo sido a generalização do uso
da cassete normalizada que definitivamente contribuiu para fazer
chegar o livro sonoro às mãos de, praticamente, todas as pessoas
cegas. E o avassalador poder deste formato de informação foi de
tal ordem que fez mesmo muita gente admitir (inclusive,
incrivelmente, responsáveis pela educação de crianças cegas) que
a acessibilidade ao livro sonoro tornaria o braille
desnecessário, elemento, infelizmente de grande peso, que em
muito contribuiu para a progressiva desbraillização ultimamente
vivida em Portugal.
No intuito de se moderar este excesso, muito se tem escrito
e recomendado nesta matéria, mesmo (e o bastante) em Portugal,
tendo o próprio Evgueny Agueev, na sua comunicação à Conferência
de Madrid, em 1978 -já referida e citada por F. P. Oliva(1995)
-, escrito a dado passo:
“Longe de nós a ideia de que o Sistema criado por Luís
Braille tenha completado a sua missão histórica. Não, não se
trata dum estreito sentimento conservador mas duma profunda
convicção que nos obriga a declarar: está-se ainda longe de ter
esgotado as possibilidades deste Sistema; ele só será património
da História, quando a própria cegueira desaparecer”. Estavam já
reunidas, pois, como demonstra este testemunho, as condições que
geraram a asserção -o braille como meio natural de leitura e de
escrita dos deficientes visuais -, que aquela Conferência
inscreveu no seu programa e que serviu de título ao artigo em
referência de F. P. Oliva.
Mas a duplicação de formas de publicação (braille e áudio)
pode ter, em princípio, o objectivo de adequar, o melhor
possível, a leitura aos diferentes tipos e graus da capacidade
de apreensão sensorial dos utilizadores, embora, infelizmente, a
opção pelo livro em formato áudio dependa, muitas vezes, apenas
da maior rapidez e dos menores custos de produção do livro.
Contudo, não pretendemos, com esta trajectória de
pensamento, negar a utilidade do formato sonoro dos livros e das
publicações em série, até porque as publicações naquele formato
constituem o único meio de acesso independente à leitura para as
pessoas cegas que não podem recorrer ao braille (por falta de
domínio do Sistema ou por qualquer incapacidade funcional), não
obstante o braille continuar a ser o meio mais apropriado para
permitir-lhes escrever e ler o que escrevem.
Mesmo que reduzamos a questão ao plano da leitura (uma vez
que, na generalidade, se lê muito mais do que se escreve),
também neste aspecto reconhecemos que as vantagens tornadas
possíveis pelo braille são verdadeiramente notáveis em relação a
certas limitações dos suportes áudio, pois, conforme o
enunciado no ponto anterior deste capítulo, distribuímos as
aludidas vantagens do texto em braille relativamente ao texto
áudio por dois domínios: o da comunicação das ideiaseodo
manuseamento do suporte de leitura.
A Conferência Internacional sobre o Braille, que reuniu em Madrid em
1990, por iniciativa da Comissão para os Assuntos Culturais da União
Europeia de Cegos, no âmbito do Ano Mundial da Alfabetização, considerou que
o braille continua a ser o meio natural para a pessoa cega atingir o máximo
de independência, sendo o texto braille o melhor meio de informação para os
deficientes visuais, mas devendo o acesso aos livros ser mais facilitado,
não se devendo poupar nenhum esforço para deter o declínio do número de
leitores de braille.
A questão da tecnologia áudio e as exigências duma máquina “leitora”
para publicações sonoras, com base na gravação digital, tem sido um dos
assuntos principais em debate nas reuniões internacionais de alguns dos
organismos mais significativos e de maior credibilidade científica
destinados a pessoas cegas e amblíopes, designadamente o Instituto Canadiano
para Cegos, o Conselho Nacional para Cegos da Irlanda, o Instituto Nacional
Real para Cegos de Inglaterra, o Serviço Nacional de Bibliotecas para Cegos
e Deficientes Físicos da Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos,
instituições estas que reuniram em Dublin, em Abril de 1992 e, em Toronto,
em 1994, para estudarem a configuração de um “leitor” para livros sonoros
baseado na gravação digital. O grupo concordou que “era necessário um modelo
comum para o intercâmbio internacional de informação e que, melhor do que a
gravação analógica, a gravação digital de livros e demais informação
proporcionaria flexibilidade capaz de permitir a qualquer instituição fazer
frente à presente e futura complexidade e variedade de modelos de
equipamento.”.
Em 1987, o Royal Institute for the Blind iniciou um
projecto para gravação digital de publicações sonoras, depois de
haver estudado três suportes possíveis, tendo em conta,
sobretudo, gravações de longa duração, atendendo a que o seu
acervo bibliofónico é principalmente constituído por registos
integrais das publicações em caracteres comuns. Foram estudadas
“a cassete vídeo de 8 mm. (só som), a cassete digital áudio de
cabeça rotativa (RDAT) e o disco compacto (CD).”. A cassete vídeo “possui
seis canais estéreo de 2 ou mais horas cada, os quais podem utilizar-se
facilmente como 12 canais mono, dando um tempo de leitura potencial de 24
horas a partir de uma cassete pouco maior que uma cassete áudio. Todavia,
este formato apresenta importantes desvantagens: tratando-se de uma fita
magnética, está sujeita aos mesmos danos mecânicos das fitas das cassetes
áudio; porque se trata de uma cassete vídeo, a fita magnética utilizada não
está preparada para cópias em alta velocidade e, sendo assim, a reprodução
das obras exigiria um grande banco de máquinas a trabalhar em paralelo;
depois de ouvir uma pista é sempre necessário rebobinar a cassete para ouvir
a seguinte, dado que a gravação áudio nestas cassetes é feita em paralelo.”.
Na altura em que o Royal Institute for the Blind iniciou o
seu projecto digital, principiavam as cassetes áudio, de alta
qualidade para gravação digital, a sua comercialização, havendo,
presentemente, cassetes de diversas dimensões (sempre pequenas)
e bastante manuseáveis. No entanto, este tipo de suporte parece
não estar desenhado para os prolongados tempos exigidos pelas
gravações dos livros sonoros, porque, continuando a ser uma fita
magnética, também está sujeita à possibilidade dos mesmos danos
mecânicos referidos para a fita vídeo.
O disco compacto parece ser a opção mais aconselhável,
atendendo a que o seu formato satisfaz o requisito de longa
duração do livro falado, além de trazer importantes melhorias na
qualidade do som, permitindo o CD-I “armazenar simultaneamente
uma combinação de áudio, texto, gráficos e dados, funcionando
todos eles num formato interactivo”, podendo um CD-I “conter até 18 horas
áudio, 7000 imagens a cor, 150.000 páginas mecanografadas ou qualquer
combinação dos três suportes.”.
Na realidade, o livro falado (apesar de limitações já
apontadas) tem vindo a desempenhar uma função extremamente
positiva no plano da educação e formação de pessoas cegas e, se
não fossem as restrições legais relacionadas com a protecção dos
direitos autorais, poder-se-ia (na generalidade dos países) alargar o círculo dos destinatários deste tipo de publicações,
contemplando também pessoas com sérias dificuldades em compulsar o livro impresso, as disléxicas, as acamadas, uma questão que
não nos preocupa em Portugal (desde que as referidas publicações
se destinem a pessoas deficientes visuais e sem intuito
lucrativo), conforme o disposto no artigo 80º do Código do
Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto- Lei 63/85, de
14 de Março, alterado pela Lei 45/85,de17de Setembro. E foi a razão da
salvaguarda dos direitos autorais que levou o Royal Institute for the Blind
a abandonar o CD-I e (mantendo um sistema fechado) a optar pelo disco em
modo 2 CDROM, forma 1/2, impossibilitando assim a leitura dos livros falados
por equipamentos comerciais de CD-I e pela generalidade dos leitores de CD
usados nos computadores.
Conforme o já afirmado, desde há anos que diversas empresas
e instituições interessadas na implementação do livro falado têm
vindo a avançar com projectos neste domínio, tendo o Royal
Institute for the Blind, como também já ficou expresso,
escolhido o CD-ROM como suporte que melhor satisfaz as
necessidades de reprodução de livros falados e como garante da
protecção dos direitos autorais, definindo -também sustentado
por José Adelino Guerra(1996) -as seguintes características
para o seu equipamento de leitura:
a) Reprodução de livros falados em formato CD-ROM;
b) reprodução de discos compactos normalizados de música;
c) selecção de títulos em ambos os formatos;
d) possibilidade de marcas electrónicas pessoais (até 99) para discos de livros falados;
e) controlo de leitura/pausa;
f) controlos de avanço e retrocesso de títulos;
g) controlo de busca em avanço e retrocesso;
h) memória não dissipável alimentada por pilha;
i) leitura em sentido contrário sem ejectar o disco;
j) selecção de títulos a partir do teclado para discos com vários títulos;
k) saída para auriculares (mono);
l) ao retirar um disco da máquina, esta memoriza o ponto de retirada e volta a encontrá-lo ao introduzir de novo o disco, começando a leitura num ponto 30 segundos imediatamente antes do ponto de retirada.
Isto tendo sempre em conta que a qualidade dos livros e das
publicações em série em formato áudio/digital continuará a
depender, tal como no passado e no presente, da qualidade da
leitura efectuada pelo leitor no estúdio de gravação, visto que
uma boa narração é a primeira exigência técnica, indissociada da
técnica de gravação (digital), do suporte da gravação (CD) e do
equipamento de leitura. Desta forma, a “nova geração de livros
falados”(José Adelino Guerra, 1996) arrastará consigo vantagens
como:
a) Uma qualidade de som superior;
b) um suporte mais manuseável e com maior perdurabilidade;
c) um suporte com grande capacidade de armazenamento;
d) possibilidade de utilizar suportes interactivos;
e) maior flexibilidade na pesquisa e localização da informação;
f) maior protecção dos direitos de autor.
No momento actual diversos países têm já um enorme trabalho de investigação e reflexão efectuado nesta área. Não há
necessidade -e talvez não seja isso vantajoso – de se copiarem
soluções, até porque a realidade não é igual em todos os países.
Como se viu, no Reino Unido a protecção dos direitos de autor condicionou a selecção do suporte para as gravações digitais dos
livros falados, o que, em Portugal, como já observámos, se
encontra extremamente simplificado e acautelado em termos
legais.
Contudo, secundando José Adelino Guerra(1997), devem ser
garantidas as compatibilidades possíveis e necessárias à
continuidade e incremento da permuta internacional, pelo que se
propõem os passos seguintes:
a) Levantamento da situação em diversos países, nomeadamente
Reino Unido, Espanha e França;
b) estudo dos diversos suportes possíveis (dentro da
variedade dos discos compactos) e adopção do mais indicado;
c) definição do fluxograma das operações lógicas a efectuar
pela máquina de leitura e a ter em consideração na fixação
da gravação em CD;
d) desenvolvimento duma máquina para reprodução com
características adequadas, com base nos protótipos já
existentes ou com base na adaptação de máquinas já
comercializadas;
e) início da conversão analógica/digital dos livros já
existentes;
f) início das gravações digitais de novos livros falados com
a possibilidade de os serviços continuarem a fornecer
cópias em cassetes comuns enquanto não se generalizarem os
leitores de CD.
A informação em formato áudio também mereceu no nosso país, de 12 a 13 de Dezembro de 1996, especial relevância no âmbito
informático-tecnológico, traduzindo-se num evento técnico-científico e cultural (a já aludida Conferência Nacional “O Som
e a Informação”), organizado pela Câmara Municipal de Lisboa /
“Dinamização Cultural” / Gabinete de Referência Cultural.
Com a organização desta Conferência Nacional, a Câmara
Municipal de Lisboa pretendeu assinalar o 6º Aniversário da sua Revista Áudio “Dinamização Cultural” e conferir àquele evento
uma maior proficuidade nacional relativamente aos anos
anteriores, fomentando - com o contributo de todos os
participantes (entidades produtoras, investigadores e
utilizadores da informação áudio) - a aferição e a promoção de
medidas normalizadoras da produção áudio em Portugal, conforme
os seguintes objectivos:
a) Fazer o enquadramento da realidade da informação áudio em
Portugal;
b) fomentar o levantamento a nível nacional dos critérios de
produção áudio e de narração utilizados pelas entidades
produtoras deste material informativo destinadas a
deficientes visuais;
c) estabelecer um conjunto de normas que justifique o
cumprimento de qualidade de som, de narração, de informação
e da necessária normalização de critérios de produção de
qualidade, por parte das mesmas entidades;
d) reflectir sobre os aspectos fundamentais de que se deve
revestir a qualidade (forma e conteúdo) das publicações
sonoras e estabelecer as bases em que devem assentar a
metodologia e as técnicas de produção áudio, bem como da
adequada narração;
e) contribuir para a definição e aprovação duma política de
produção áudio nacional que possa garantir às pessoas
deficientes visuais as mesmas oportunidades de acesso à
informação e à cultura que são oferecidas às pessoas
normovisuais;
f) aferir a importância do “som” como fonte de informação e
fenómeno de comunicabilidade, de sociabilidade e de interacção para as pessoas cegas, mesmo surdocegas, bem
como a “visualização” de zonas do cérebro envolvidas em
certas tarefas cognitivas e perceptivas;
g) avaliar a importância do som e informação em multimédia
para as pessoas cegas;
h) apresentar e avaliar equipamentos informáticos
sonorizados, incluindo o Sistema Dixi, que é um
sintetizador de fala a partir de texto, desenvolvido de
raiz para o português europeu, sem necessidade de hardware
adicional em computadores pessoais e com sistema operativo
Windows 95.
Nesta acepção, e no âmbito da metodologia e técnicas de produção áudio e da adequada narração, da difusão e impacto da
informação áudio, da informação áudio (analógica ou digital)
como alternativa e complementaridade da informação em braille,
bem como da acessibilidade à informação mediante o contributo
das novas tecnologias, a Comissão de Resoluções/Recomendações da
Conferência elaborou, a partir das comunicações apresentadas e
dos debates havidos, as resoluções/recomendações que a seguir
transcrevemos.
RESOLUÇÕES/RECOMENDAÇÕES
1. Que
se defina e se aprove uma política de produção áudio
(analógica ou digital), que possa garantir às pessoas
deficientes visuais as mesmas oportunidades de acesso à
informação e à cultura que são oferecidas às pessoas
normovisuais.
2. Que
se proceda ao levantamento a nível nacional dos
critérios de produção áudio e de narração que estão a ser
utilizados pelas entidades destinadas a deficientes visuais e
se adoptem os válidos requisitos básicos em uso para a
produção de um bom original em áudio.
3. Que
se promova, a nível nacional, a realização de cursos
especializados para formar operadores-sonorizadores cegos.
4. Que
se reflicta sobre os aspectos fundamentais de que se
deve revestir a qualidade (forma e conteúdo) das publicações
sonoras, para se estabelecerem as bases em que devem assentar
a metodologia e as técnicas de produção áudio, bem como da
adequada narração.
5. Que
se adoptem, mediante recurso a idóneo aconselhamento
técnico, os suportes que melhor garantam a sobrevivência da
informação em formato áudio, até à futura substituição da
actual cadeia electroacústica pelos sistemas informáticos
interactivos e multimédia.
6. Que
se proceda à selecção de narradores, tendo sempre em
conta, nomeadamente, o nível dos conhecimentos do narrador a
importância que o tom da voz tem (e adquire) na relação e na
comunicação com o outro, ao tornar-se o único veículo para a
transmissão de mensagens ou imagens, de forma a que a
qualidade da voz e da narração (com os factores entoação,
dicção e emoções) se torne fundamental para estimular o
ouvinte a saborear um texto e o valor das palavras que o
formam, o estilo de narração, consoante as matérias a
disponibilizar em formato áudio, atendendo a que ler (em
Braille ou recorrendo a softwares especiais para leitura) é
mergulhar num texto e ficar imerso no pensamento do autor
para lhe captar o conteúdo e a forma, enquanto que ouvir ler
é ler em segunda mão, pelo que deve o narrador proceder a uma
leitura atractiva, no mínimo sem barreiras, através de um
desempenho rigoroso, elegante e motivador.
7. Que
se sensibilizem, através das instituições de e para
cegos e dos próprios órgãos do poder, as empresas produtoras
de equipamento e software de comunicação para o estudo
criterioso de soluções que visem a adaptação e/ou criação de
equipamento informático específico de acesso à informação
visualizável e adaptação de estúdios auto-operados para
permitir às pessoas deficientes visuais o independente
desempenho das suas funções, viabilizando a operacionalidade
e funcionalidade de equipamento e manuseamento adequados para
acesso à informação sem barreiras.
8. Que
a verba de cinquenta mil contos disponibilizada para
apoio à edição de obras para deficientes visuais, anunciada
na abertura da Conferência pelo Senhor Secretário de Estado
da Inserção Social, passe a ter regular anuidade e profícuo
aproveitamento, no sentido da ampliação do acervo
bibliográfico e bibliofónico destinado às pessoas cegas de
Portugal.
9. Que seja dotado
o GRC com os recursos necessários para a
sua permanente actualização e renovação em favor da ampliação
da utensilagem mental dos utilizadores deficientes visuais,
conforme determinação do Senhor Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa expressa na abertura da Conferência e de
acordo com as carências culturais evidenciadas pelos
participantes no mesmo evento.
10.
Que, dentro ou fora da “Comissão de Leitura para
Deficientes Visuais” (para se materializarem estas
recomendações), as entidades produtoras de publicações
sonoras e a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal
(ACAPO) criem entre si um mecanismo de articulação, visando o
estudo aprofundado de equipamentos, suportes e técnicas de
produção áudio, bem como a definição e a aplicação de normas
para recrutar narradores e para disciplinar a narração, no
sentido de se conseguir uma melhoria substancial da qualidade
destas publicações.
Estas resoluções/recomendações foram unanimemente acolhidas
pela Comissão de Leitura para Deficientes Visuais, a qual neste
momento já integra vinte e três membros (entidades públicas e
privadas a nível nacional), tendo sido constituído, no âmbito da
mesma, um Grupo de Trabalho -formado pela Área de Leitura
Especial da Biblioteca Nacional, Associação dos Cegos e
Amblíopes de Portugal, Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública
Municipal do Porto, Centro de Produção de Material do Centro
Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo,
Departamento de Educação Básica do Ministério da Educação e
Gabinete de Referência Cultural da Câmara Municipal de Lisboa para
as implementar no nosso país. O Grupo de Trabalho já reuniu
na Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto
para se inteirar mais aprofundadamente do statu quo
informacional áudio português, no que se refere à produção de
livros em formato áudio e à utilização dos mesmos, de forma a
poder redimensionar-se e ampliar-se (desde que com os
necessários recursos financeiros, informático-tecnológicos e
humanos) a acessibilidade das pessoas cegas à informação neste
formato, cujo suporte se pretende que seja suficientemente
perdurável de modo a garantir, na História, a sobrevivência da
informação nele contida. -
Mas a questão do “desempenho do narrador na perspectiva do
utilizador” (que ressalta nas resoluções-recomendações supra-transcritas), título que deu conteúdo a uma comunicação
apresentada por F. P. Oliva naquela Conferência Nacional, é
matéria que muito nos começa a preocupar depois de já estar
implementada designadamente nos Estados Unidos. Isto porque – estando nós cientes do que é ler em segunda mão. “Do responsável pela
leitura para ser ouvida, o «narrador», espera o ouvinte, o «utilizador», uma
leitura atractiva, no mínimo sem barreiras, através de um desempenho
rigoroso. Ler é mergulhar num texto e ficar imerso no pensamento do autor
para lhe captar o conteúdo e a forma. Ouvir ler é ler indirectamente,
elegante, motivador.”.
Versando de forma científica a questão da narração de um
livro sonoro, chegou um documento à Área de Leitura Especial da
Biblioteca Nacional no fim de 1995 ou princípio de 1996,
proveniente dos Estados Unidos, mais exactamente do National
Library Service for the Blind and Physically Handicapped, que é o departamento da Biblioteca do Congresso responsável pelo
sistema através do qual se presta serviço de leitura às pessoas
deficientes visuais naquele país.
Conforme já afirmámos, desde princípios da década de 30
deste século XX que muitas organizações deram início a programas
de produção do livro em formato áudio, tendo umas sido bem sucedidas,
ficando-se outras por níveis muito elementares e outras
falhando completamente.
As capacidades e tecnologias necessárias à obtenção de
altos níveis de qualidade técnica e artística na produção de
publicações em formato áudio são denominadas “ciência e arte do
livro sonoro.”. Muitos elementos, tais como pessoal qualificado,
equipamento e instalações, são de importância determinante para a qualidade
do produto final, mas o mais importante ainda “é compreender e aplicar bem
os princípios da ciência e arte do livro sonoro.”.
Logo na introdução do aludido documento de Billy R. Wist, este autor
abrange três vertentes: uma enquadrando tudo o que se considera
imprescindível à formação do pessoal (o narrador, o monitor e o revisor),
todos dependentes do director do estúdio, sendo as outras duas dedicadas ao
equipamento para gravação sonora a empregar e às instalações em que as
gravações devem ser realizadas.
O autor dá particular destaque à “arte de comunicação na
produção do livro sonoro” (em que a narração é comunicação), a
“componentes principais da narração” (voz, discurso, língua e
narração de qualidade), a “factores de aprimoramento da
narração”, à “correcção da pronúncia e da narração”eà
“avaliação da narração”.
No que concerne à “arte de comunicação na produção do livro
sonoro” (em que a narração é comunicação), deixa o autor
transparecer que se diz muitas vezes que narrar um livro sonoro
é uma arte. A narração é uma forma de arte que se relaciona com
a capacidade de representar e a interpretação oral, mas não é
nem uma nem outra.
Trata-se, antes, de um espaço das artes de interpretar em que se misturam
alguns elementos de ambas. Em termos ideais, a narração consiste na
transferência da palavra escrita para palavra falada, de modo que esta
traduza, o mais fielmente possível, a intenção do autor. A narração é, pelo
menos, tornar a palavra escrita em palavra oral, de modo que esta se
apresente inteligível e agradável ao ouvinte. Refere Wist que a tarefa de
ler em voz alta com a finalidade de gravar uma matriz original de um livro
sonoro se denomina narração, e aquele que se ocupa dessa tarefa designa-se
narrador, sendo os narradores também vulgarmente chamados leitores porque,
além do mais, o seu papel consiste em ler em voz alta.
Salienta Billy R. Wist que o falecido William Arthur
Deacon, no seu papel de narrador, crítico literário em Toronto,
procurava converter-se “num painel de vidro através do qual o leitor pudesse ver o livro como se o tivesse nas suas próprias mãos.”.
E acrescenta Wist que ler em voz alta, como cantar, é
uma coisa que muitas pessoas fazem, mas apenas algumas fazem
bem, visto que as duas actividades exigem uma boa voz, talento
para a usar e uma aptidão natural para aplicar eficazmente esse
talento. A arte da narração pode ser ensinada apenas a quem
tenha talento para esta arte, mas o seu ensino não vai além de
técnicas e orientações de base. Se houver talento ele pode ser
melhorado, mas não existindo não pode ser ensinado. E refere o
autor que uma boa narração é uma combinação de quatro
componentes principais e vários factores de aprimoramento.
No que respeita a estes “componentes principais da
narração” (voz, discurso, língua e narração de qualidade),
sustenta Wist:
Voz
Relativamente à narração, os atributos mais importantes da voz são a acústica, a força e a resistência, obedecendo aos seguintes princípios:
- A voz deve ser muito nítida e não deve apresentar quaisquer características acústicas que possam desviar a atenção.
-
Deve ser suficientemente vigorosa para gerar os volumes
de som necessários para aparecer nítida e limpa nas
gravações.
-
A resistência deve ser suficiente para suportar uma
sessão de gravação sem que se notem indícios de fadiga
ou perdas de qualidade da narração.
-
Tão importante como qualquer destes atributos é saber
emitir, modular e dominar perfeitamente a voz e a
aptidão para aplicar esse saber.
Discurso
- No que respeita à narração, os atributos mais
importantes do discurso são as suas características acústicas,
devendo o discurso ser claro, facilmente compreensível e não
apresentar quaisquer elementos que possam desviar a atenção. Tão
importante como qualquer destes atributos é saber emitir,
modular e dominar perfeitamente o discurso e a aptidão para
aplicar esse saber.
Todo o discurso corrente apresenta, em alguma medida,
tonalidades regionais e culturais, assim como uma tonalidade que
é característica do indivíduo. Habitualmente estes factores não
causam problemas na compreensão entre pessoas de discurso com
idênticas tonalidades, mas a compreensão pode ser afectada, se
alguma tonalidade apresentar diferenças substanciais.
Entre os extremos dessas tonalidades situa-se uma área de
coincidência do discurso facilmente compreendida pela maioria
das pessoas. Esta área de coincidência que enquadra as tonalidades
mais vulgares do discurso corresponde à forma do discurso
dominante, conservando tonalidades mas não a ponto de interferir
na capacidade de compreensão. As misturas no discurso dominante
podem ser ricas na variedade das tonalidades e conservar clareza
e fluência que tornam a compreensão fácil e natural.
Língua
- Relativamente à narração, os atributos mais
importantes da língua são o conhecimento profundo e a fluência
na língua em que o texto está impresso, sendo tão importantes o conhecimento da língua e a aptidão para aplicar esse
conhecimento como o é qualquer atributo da voz e do discurso.
Narração de qualidade
- Como noutras artes, uma narração de
qualidade compreende muitos elementos. Entre eles aparecem em
primeiro lugar uma grande sensibilidade ao sentido das palavras
e frases e a aptidão para traduzir os matizes e subtilezas da
palavra escrita. Estes elementos básicos são os mais necessários
para se conseguir uma boa narração e são insubstituíveis. Entre
os elementos essenciais de uma boa narração estão o talento para
usar a voz, o discurso e a língua e a aptidão natural para combinar esse talento com a sensibilidade à língua. Para se
conseguir uma narração de qualidade, a estes elementos juntam-se
também contributos da experiência, do treino e da educação.
O conhecimento das artes do discurso e a aptidão para aplicar esse
conhecimento constituem o cimento que consolida voz, discurso e língua no
desempenho verbal. Uma narração de qualidade exige a capacidade de atingir
um nível de desempenho verbal que transmita ao ouvinte o estilo, a
atmosfera, a dinâmica e o sentido do texto. Igualmente importante é
conseguir manter a consistência do estilo da narração ao longo de uma sessão
de gravação e manter a continuidade dessa consistência de sessão para
sessão.
Quanto a “factores de aprimoramento da narração”,
classifica-os Wist em três categorias: físicos, mentais e
artísticos, conforme os exemplos que se seguem:
-
Um exemplo de factor de aprimoramento físico é uma boa
coordenação dos músculos que controlam o varrimento da
página pelos olhos.
- Um exemplo de um factor de aprimoramento mental é a
facilidade de reter de memória a última linha do texto de uma
página, capacidade esta que ajuda a manter a continuidade na
narração ao mudar de página.
- Um exemplo de factor de aprimoramento
artístico é uma boa pontuação verbal. A pontuação impressa, destinada a ser
vista, torna inteligível e coerente o texto impresso, da mesma forma que a
pontuação verbal, destinada ao ouvido, dá inteligibilidade e coerência ao
texto falado. Na realidade, “as componentes principais e os factores de
aprimoramento têm variantes que se combinam e repercutem no desempenho do
narrador.”.
No que se refere à “correcção da pronúncia e da narração”,
as deficiências apontadas com mais frequência na revisão das
gravações das matrizes originais dos livros sonoros são erros de
pronúncia e de narração. O texto falado deve ser uma tradução,
palavra por palavra, do texto impresso, e nunca é demais
salientar a importância do rigor da pronúncia e da narração.
A pronúncia correcta num livro gravado é o equivalente à
ortografia correcta num livro impresso. A pronúncia deve ser
adequada ao estilo e ao período do texto e à natureza das personagens.
Os nomes próprios, as palavras estrangeiras e as frases
numa língua estrangeira devem ser pronunciadas correctamente e
proferidas naturalmente, sem quebrar o ritmo da narração.
O pessoal da produção do livro sonoro deve ter à sua
disposição um vasto conjunto de meios de referência de
confiança. Para exigências especiais, devem ser utilizadas obras
de referência especializadas (música, direito, medicina, etc.).
Se as pronúncias necessárias não se encontrarem nas obras
publicadas, deve proceder-se a investigações complementares até
ser possível determinar as pronúncias correctas.
As deficiências respeitantes ao rigor da narração referidas com mais
frequência são erros que fazem com que o texto falado não corresponda ao
texto impresso, erros de narração que mudam o sentido do texto impresso e
narração que impõe tendências pessoais na apresentação do texto impresso.
A propósito da “avaliação da narração”, quando se avalia a
gravação de uma matriz original de um livro sonoro, pensa-se, de
entre os muitos elementos que podem ser considerados, que os
mais importantes são os seguintes:
- Ao longo de toda a obra a narração transmite fielmente ao
leitor o sentido, incluindo o plano emocional e outros
elementos adequados às necessidades do texto.
- A narração distingue o texto em forma narrativa do texto
em diálogo, e as personagens umas das outras, empregando sempre oportuna e adequadamente ritmo, acentuação, ênfase, inflexões e outros recursos próprios da arte do discurso; e entre as vozes de todas as personagens e a voz no texto em forma narrativa mantém-se a mesma naturalidade, fluxo e plano vocal.
- Na narração não se encontram entoações exageradas, inconsistentes, ambíguas ou tensas, nem dialectos nem interpretação de personagens.
- A narração apresenta-se em estilo de conversação, sem
modelos de locução repetitivos, monótonos, mecânicos ou afectados, que não sejam justificados pelas necessidades do texto.
- A narração está efectuada num andamento adequado às
necessidades do texto.
As pessoas cegas que apenas possam socorrer-se da
informação sonorizada através da voz humana (seja por qualquer
um dos processos analógico ou digital) nunca desfrutarão de um
bom original em formato áudio sem que se observem, para a sua
perfeita materialização, o rigor científico que acabamos de
enunciar baseados nos excelentes contributos de Billy R. Wist e
de F. P. Oliva.
Mas o empenho de certas entidades na aproximação dos
leitores cegos do mundo dos “multimedia” parece começar a
apresentar nos nossos dias alguns resultados considerados
interessantes, o que podemos atestar a partir das duas soluções
seguintes, estando uma já disponível no mercado e a outra ainda
em projecto, embora já na fase de teste internacional.
Para o efeito, seguimos um “dossier” distribuído pela TPB
(a Biblioteca do Livro Sonoro e do Livro Braille da Suécia) em
Agosto de 1997, na Dinamarca, onde teve lugar a última
Conferência Geral da IFLA, cuja divulgação em Portugal ficou a
dever-se a F. P. Oliva durante a sua comunicação que apresentou
no Colóquio Nacional Informática e Leitura Especial em Portugal:
Novas Acessibilidades para as Pessoas com Deficiência promovido
e organizado pela Câmara Municipal de Lisboa / “Dinamização
Cultural” / Gabinete de Referência Cultural no dia 19 de
Novembro de 1997.
A primeira solução -DAISY (Digital Audiobased Information System)-éum
projecto que visa um modelo de livros sonoros da “chamada nova geração”, com
base na gravação digital da “informação sonora estruturada”, estruturação
esta que pretende possibilitar a utilização do livro sonoro em condições
idênticas às oferecidas pelos livros em caracteres comuns, proporcionando a
leitura selectiva e a regulação da velocidade de leitura.
“Este projecto nasceu na Suécia, há já uma boa meia dúzia
de anos, mas está hoje internacionalizado e assumido por um
consórcio criado em Maio de 1996 em Estocolmo, o Consórcio
DAISY, a que estão vinculadas muitas das mais prestigiadas
instituições de e para cegos da Alemanha, Austrália, Dinamarca,
Espanha, Estados Unidos, Holanda, Japão, Nova Zelândia, Reino
Unido, Suécia e Suíça.”. Com o estatuto de membros associados
estão também ligadas ao “DAISY instituições do Canadá,
Finlândia, Holanda, Noruega e Suécia”. Este Consórcio tem a colaboração de
empresas da especialidade, estando a ser testado “na Alemanha, Argentina,
Austrália, Bélgica, Canadá, Chile, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estados
Unidos, Finlândia, Holanda, Islândia, Itália, Japão, Malásia, Noruega, Reino
Unido, República Checa, Rússia, Suécia, Suíça, Tailândia e Uruguai.”.
A já grande amplitude assumida por este envolvimento
internacional é bem demonstrativa da importância que se
reconhece ao Projecto “DAISY” e justifica, quanto a nós em
absoluto, as esperanças nele depositadas.
Para atingir as principais finalidades do “DAISY” (leitura selectiva e
regulação da velocidade de leitura), foi desenhado um software para
estruturar a gravação sonora em CD-ROM, podendo a duração deste ir até 50
horas. Em resultado desta estruturação, os livros sonoros, quer sejam
utilizados em computador quer no “PLEXTALK (um leitor específico japonês),
aparecem providos de um sumário apresentado ao leitor logo no primeiro passo
da leitura. Graças ao software de utilização, várias opções se oferecem ao
leitor, podendo “ouvir na íntegra o sumário; ouvi-lo saltando de um título
ou subtítulo para outro, em qualquer direcção, logo que se considere
informado pelo segmento escutado; pesquisar por palavra ou grupo de
palavras; saltar directamente para o texto correspondente a qualquer título
ou subtítulo.”.
O leitor, perante o texto, pode simplesmente ouvi-lo ou
explorá-lo, saltando em qualquer direcção de parágrafo em
parágrafo ou de alínea em alínea, podendo ainda movimentar-se no
texto, chamando pelo número qualquer página que desejar, ou
saltando para marcas por si colocadas no texto. Também já está
prevista a integração numa próxima versão da possibilidade de o
leitor poder sublinhar e anotar passagens do seu interesse e de
as utilizar também como pontes de acesso.
A nosso ver, a regulação da velocidade de leitura ainda
precisa de ser muito melhorada. Assenta na imutabilidade do tom
da voz, como convém. Para aumentar a velocidade da leitura, de
forma a ouvir-se mais texto no mesmo tempo, não há qualquer
aceleração. “Tão-somente se recorreu ao encurtamento das pausas, o que corresponde à aplicação de um conceito conhecido por «time
compression».”. Mas o efeito, não obstante o software
integrar já quatro velocidades (normal, animada, alta e turbo),
“quase não é notado, com a agravante de, quando em turbo, deixar
ouvir um ruído desagradável.”.
O software do “DAISY” corre em ambiente WINDOWS, embora
possua também uma versão para DOS, sendo facultado sem encargos
pela TPB aos interessados na sua instalação ou na construção de aparelhos de leitura específicos ou, ainda, na criação de um
sistema de produção de publicações sonoras.
Temos ainda a informação de que o “DAISY” pode
complementar-se com outros “media”, sendo adaptável a novas
tecnologias de armazenamento e distribuição de informação e,
também, à transferência das velhas gravações em fita para
formato digital.
Os responsáveis pelo Projecto “DAISY” apresentam-no dotado de “enormes
potencialidades para aplicação imediata e para futuros desenvolvimentos, e
sugerem a sua adopção como sistema privilegiado para produção e circulação
de livros sonoros à escala mundial.”.
A nosso ver, a adopção deste sistema em Portugal depende da
possibilidade de se apetrecharem as placas de som de forma a que
as mesmas possam reproduzir claramente a língua portuguesa,
sendo necessário, para o efeito, abordar urgentemente esta
questão com a determinação mais adequada à sua resolução em
favor da ampliação das potencialidades das pessoas cegas do
nosso país no aceso à informação e à cultura.
Um outro projecto que se encontra ainda em fase de teste
internacional é o “TEXTVIEW”, um software propriedade da TPB que
se destina a possibilitar o acesso e a exploração de edições em
formato electrónico, sendo este acessível através de um terminal braille, de um sintetizador de voz ou de um sistema ampliador
dos caracteres comuns.
Neste tipo de edições os textos apresentam uma organização
semelhante à dos livros em caracteres comuns e as possibilidades
de utilização assemelham-se às do “DAISY”, estando igualmente o
programa disponível em DOS ou em WINDOWS, mas apenas podendo ser
fornecido nas línguas inglesa ou sueca.
Curiosamente, na versão em WINDOWS som e imagem podem ser
usados em complemento do texto, fazendo também parte do “pacote”
um simples “screen reader” que foi concebido principalmente para
os leitores normovisuais.
“O uso do TEXTVIEW -sustenta F. P. Oliva no artigo ora em
referência -apresenta-se seriamente afectado pelos direitos de
autor. A organização que protege estes direitos na Suécia impôs
à TPB, para a autorizar a produzir livros em texto electrónico,
um acordo que obrigou a licenciar os programas cadeando os
livros que não ostentem o mesmo número de licença.”. Além disso, o que
também vem alterar hábitos de uma grande generalidade de pessoas cegas na
aquisição de materiais de leitura, “a preparação destes livros exige um
pacote de utilitários especiais em que cada programa é vendido ao preço de
500 SEK.”.
IV.4 -Equipamento Informático de Leitura e de Escrita para Pessoas Cegas
No que se refere aos equipamentos informático-tecnológicos que,
progressivamente e com enorme vantagem, têm vindo a proporcionar às pessoas
cegas a acessibilidade à informação e à cultura, desde a década de 70 que
começaram a surgir em Portugal, designadamente, máquinas de leitura
próprias, sendo a primeira o Optacon, cujo primeiro exemplar foi adquirido
por uma pessoa cega em Setembro de 1973 pelo montante de noventa mil
escudos.
O Optacon é um aparelho que torna possível às pessoas cegas
a leitura de textos impressos em quaisquer caracteres
tipográficos (mesmo manuscritos) usados pelas pessoas
normovisuais, derivando a designação deste transformador ópticotáctil
(“Optacon”) da forma abreviada que resulta da articulação
das sílabas iniciais das palavras que constituem o nome completo
do aparelho: “optical-to-tactile converter”.
O Optacon (cuja origem se deve ao português Jaime Filipe,
mas que é oficialmente tida como norte-americana devido a falta
de apoio financeiro para o registo da patente em Portugal e no
mundo) compõe-se de três partes: uma pequena câmara formada por
várias células fotoeléctricas, uma secção de conversão
electrónica e um mostrador ou placa táctil. Para utilizar o
Optacon, o leitor segura a câmara com a mão direita e fá-la
percorrer as linhas que deseja ler, conservando o indicador da
mão esquerda pousado no mostrador (placa táctil), para
identificar as letras em relevo que, uma a uma, aí se vão
sucedendo, regulando-se o tamanho da letra, a espessura do seu
traço e a intensidade vibratória, rodando-se mais ou menos cada
um dos dois botões à direita da placa táctil com o polegar da
mão esquerda.
O uso deste processo de leitura reveste-se, porém, de uma
grande complexidade, visto que o rápido reconhecimento dos
caracteres implica um elevado grau de desenvoltura táctil e,
além disso, como no mostrador só se verifica o aparecimento de uma letra de cada vez, a nossa memória tem de estar devidamente
exercitada na retenção dos caracteres até ser possível a
elaboração da síntese representativa das unidades vocabulares.
Assim, para se atingir um rendimento satisfatório no uso do
Optacon é necessária longa e intensa aprendizagem seguida de
prática continuada, sob pena de se perder facilmente a destreza
obtida na frequência de um curso específico. A título de
curiosidade, várias pessoas cegas (principalmente nos Estados
Unidos) chegaram a ultrapassar as 120 palavras por minuto, em
textos de boa impressão. Nós mesmos, num curso de Optacon que
fizemos, utilizando textos bem impressos e com uma normal
dimensão de letra, conseguimos ler 120 palavras por minuto.
A propósito da utilização do Optacon, cabe aqui citar José
Bento (cego e a exercer advocacia em Faro), num artigo seu
publicado em 1993: “Desde cedo compreendi que era necessário
apostar fortemente nas novas tecnologias para que me fosse
possível, ao nível profissional, responder às grandes exigências
de quem quiser progredir em qualquer ramo do conhecimento. Foi
assim que, em meados da década de 80, adquiri um Optacon e com
ele comecei a fazer todos os treinos que me permitissem ler com
a maior desenvoltura possível.”. “Posso dizer que -afirma
ainda José Bento(1993) -, com o Optacon, após muitas horas de
leitura, após um treino aturado, comecei a ter acesso a livros e
outros documentos que até então me era impossível. Direi ainda
hoje que o sistema de leitura do Optacon é aquele que permite ao
deficiente visual maior autonomia, no ponto de vista em que é um
sistema directo, um sistema em que o aparelho reproduz para
relevo com fidelidade aquilo que está no papel; e, por isso, o
leitor não está dependente de ninguém, nem sequer das
insuficiências dum programa informático de leitura.”. Eé
curioso que, depois de ler durante tantas horas e de tantas
páginas lhe passarem pelos dedos, o modo de José Bento pensar as
letras, sustenta, “modificou-se radicalmente” e, quando hoje
imagina mentalmente a grafia das palavras, os caracteres que lhe
surgem já não são os caracteres braille, mas a forma dos
caracteres que lhe era dada pelo Optacon, a forma dos caracteres
comuns. E acrescenta: “Mas a leitura que o Optacon me permitia
era lenta, isto apesar de eu ter conseguido atingir os cento e
trinta caracteres por minuto. Seria necessário atingir-se, pelo menos, o
triplo desta velocidade, sendo muito difícil que, com o Optacon, “se consiga
ler mais de 160 caracteres por minuto.”.
Contudo, o Optacon é uma máquina que proporciona uma extrema autonomia ao
seu utilizador, não necessitando este de qualquer ajuda exterior, é
portátil, eficaz para quem domina o alfabeto em caracteres comuns e
resistente. Sabemos que, para simplificar este processo de leitura, foi
ensaiado um outro aparelho, o “Transicon”, que, muito embora concebido à
semelhança do Optacon, tinha a particularidade de apresentar na placa táctil
os caracteres braille correspondentes às letras (só de imprensa) cujas
imagens fossem captadas pela câmara. “A simplificação proporcionada pelo
Transicon teve de ser obtida, todavia, à custa de dois sacrifícios
importantes: o primeiro diz respeito às características portáteis do
aparelho; o segundo resulta da impressionante redução da quantidade dos
caracteres representados, pois, enquanto o Optacon possibilita tantas
representações quantos os caracteres tipográficos existentes (são
actualmente mais de 300.000), o Transicon terá a sua capacidade de
representação necessariamente condicionada pelas limitadas possibilidades do
sistema Braille.”.
Posteriormente, baseados nos princípios do Optacon e do
Transicon, outros aparelhos, mais aperfeiçoados e mais
acessíveis à sensibilidade táctil, têm vindo a surgir para as
pessoas cegas, como o “Delta: Dispositif electronique de lecture
de textes pour aveugles” e, mais recentemente, o Manager
Braille.
Surgiram, entretanto, outras máquinas de leitura e de
impressão (umas com vida efémera, outras que sobreviveram
ajustando-se cada vez mais às necessidades dos utilizadores e ao
progresso), designadamente a Digicassete, que foi uma máquina
(com vida efémera) que também abriu às pessoas cegas
grandes/falsas perspectivas, o Braillex, um sofisticado
computador e terminal alemão, altamente funcional, dotado de
ambientes DOS e WINDOWS e cada vez mais promissor, a
Impressora Braille Interpontos, que permite imprimir (de forma
perfeitamente legível) em braille uma folha nos dois lados, o
Simul Braille, o Videmo-Esite Braillena, o Versa Braille, o Alva, a princípio apenas como terminal de
computador e mais tarde como P.C. e terminal, o Braille'n
Speack, a Mountbatten Brailler.
Para termos uma ideia mais consistente da variedade de
parte do equipamento informático para cegos mais utilizado
presentemente, anexamos, no final deste capítulo, uma pequena
listagem desse equipamento com a respectiva descrição.
IV.5 - Perspectivas da Informação Acessível às Pessoas Cegas,
Mediante o Contributo Informático-Tecnológico
“As novas tecnologias têm funcionado como um mito, um
paradigma que, a ser atingido, proporcionaria aos cegos não só a
resolução do acesso pleno à informação escrita, como também o da visão em geral.”.
No fundo, o que importa é sairmos de uma certa utopia, sem
a abandonarmos, porque nos alimenta o imaginário e nos retempera
a esperança (não sonhar sem realmente conhecer, mas conhecer
efectivamente para sonhar depois e revolucionar então) e
mergulharmos na realidade, no possível, vencendo determinadas
fantasias e conquistando aspectos informático-tecnológicos
práticos que, quotidianamente, possam potenciar, ampliar e
rendibilizar os sistemas sensoriais das pessoas cegas.
O inimaginável há uns anos atrás, no complexo domínio da
acessibilidade interactiva das pessoas cegas à informação e à
cultura, está a tornar-se agora realidade, a redimensionar-lhes
a acção e as vidas, a transformar mentalidades, o que nos leva a
reflectir sobre o leque de possibilidades que as novas
tecnologias lhes proporcionam, vivendo uma nova revolução,
análoga (ou mesmo superior) à do século passado, com a invenção
do Sistema Braille.
Neste momento, temos já ao nosso dispor algumas valiosas
ferramentas que urge rentabilizar, o que nem sempre acontece. Um
uso generalizado destes equipamentos será o melhor incentivo
para os fabricantes prosseguirem com o desenvolvimento
tecnológico, aspecto imprescindível na consolidação das
aquisições já conseguidas.
Mas quanto ao acesso à informação, não obstante convivermos
com determinadas realidades, a maior parte das vezes passam-nos
despercebidos aspectos fundamentais. Podemos pensar, por
exemplo, na participação de uma pessoa surda numa reunião sem
tradução gestual, ou numa pessoa cega que assiste a uma aula apresentada através de acetatos ou diapositivos, limitando-se o
professor a fazer apenas alguns comentários circunstanciais.
A grande realidade -sustenta Francisco Alves(1997) -“é
que os cegos deparam-se com graves limitações no acesso à
informação escrita e a toda a informação visual em geral,
enquanto os surdos ficam alheios a toda a informação sonora.
Dois mundos, de uma importância fundamental no nosso tempo, que
de uma forma e de outra relegam os portadores de cegueira ou de
surdez para uma marginalização inevitável.”. Basta
imaginarmos o que seria fecharem-nos de um momento para o outro
a torneira da informação sonora e/ou da informação escrita e
visual.
Não cabe aqui uma abordagem sobre a situação das pessoas
surdas (o que mereceria outro tipo de investigação), o problema
da língua gestual como a sua língua materna, os problemas que
tem trazido a educação por não ter em conta estes aspectos. E
não temos dúvidas de que também as novas tecnologias poderão
contribuir para uma melhor qualidade de vida destas pessoas,
apresentando-se-lhes a questão da alfabetização ainda mais
complexa do que às pessoas cegas.
No que respeita às pessoas cegas (conforme a explanação que
temos vindo a desenvolver), deram-se os primeiros passos com
Valentin Haüy, depois com Barbier de la Serre, surgindo no final
da terceira década do século passado, com Louis Braille, a
primeira ferramenta verdadeiramente “revolucionária”, virada
para a sensibilidade táctil, a despeito de implicar (como já
ficou expresso no terceiro capítulo) uma longa e renhida luta
para que as pessoas normovisuais com responsabilidade na
educação das pessoas cegas se rendessem à excelência do Sistema
Braille, ampliou-se a acessibilidade à informação, com o
aparecimento de livros em formato áudio nos Estados Unidos, nos
princípios da década de trinta do século XX, possibilitando as
novas tecnologias, actualmente, o acesso a outro suporte de
informação (a informática), fantasticamente promissor para as
pessoas cegas, embora ainda reúna aspectos não testados, de
forma a retirar-lhe todas as potencialidades que encerra.
Apesar de os equipamentos informáticos estarem em permanente evolução
(inovações que a maior parte das vezes comprometem o acesso já conquistado),
a verdade é que hoje uma pessoa cega que utilize equipamentos informáticos
poderá aceder a um volume inexaurível (inimaginável para a generalidade dos
cidadãos) de informação, podendo compilá-la, citá-la, reformulála, produzir
nova informação, imprimi-la, difundi-la (até por via telemática), em
caracteres comuns, em braille ou em formato electrónico (disquete, o que
lhe abre um vastíssimo campo de possibilidades, já difícil de avaliar
presentemente.
A revolução informática, do ponto de vista do utilizador sustenta
Francisco Alves(1997) e nós também -, “é simples e não exige grandes
conhecimentos. Basta a utilização de um processador, de uma base de dados e
de uma folha de cálculo, o manuseamento dos comandos simples e de alguns
programas utilitários, para se poder entrar neste mundo fantástico e que não
encontro adjectivos para o classificar.”.
No que se refere aos diferentes equipamentos de acesso
(sintetizadores de voz, linhas braille e ampliadores de
caracteres), são apenas diferentes formas de aceder ao discurso
informático, optando cada pessoa pelo interface que melhor se
ajuste às suas capacidades e/ou possibilidades económicas. -
Até aos princípios da década de noventa deste século XX, só
era possível às pessoas cegas acederem à informação electrónica
em DOS, podendo, desde então, consultar e produzir informação também em WINDOWS, mas, no momento em que lhes está acessível o
WINDOWS 95, já existe o 97, negando-lhes a possibilidade de
“acertar o passo”, situação que serve de justificação a todos
aqueles que, por mais benefícios que tenham, alimentam sempre
uma posição pessimista, “décalage” que, em nossa opinião,
atendendo aos progressos já alcançados pelas pessoas cegas neste
domínio, legitima a nossa crença na consolidação desta nova
“revolução”.
“As implicações no plano profissional -afirma Francisco Alves(1997)
-teoricamente deveriam ser altamente favoráveis, pois se se atenua a
diferença entre a escrita a tinta e a escrita braille, então a prestação
laboral também se afigura prometedora. Contudo, aqui deparamo-nos com outros
desafios e outra filosofia de emprego que não sei bem avaliar, mas que
forçosamente terá de ser diferente. Muitos empregos como os concebemos
desaparecerão, enquanto outros surgirão.”. E prossegue: “Sem optar por um
optimismo fácil, parece-me legítimo concluir que a informática vai
proporcionar transformações importantes no futuro dos cegos. Ao
garantir-lhes uma maior autonomia no acesso à informação, a formação e a
educação passarão apenas a depender da vontade, da capacidade e do empenho
de cada deficiente visual.”.
Mas outros itinerários se abriram recentemente às pessoas
cegas: os da Internet. Saber como guardar a informação, se em
casa em CD-ROM ou numa gigantesca biblioteca com a dimensão do
universo a que se tem acesso directamente de casa, ou de outras
formas ainda não imaginadas ou consumadas, é uma questão,
nalguns casos, também já acessível às pessoas cegas.
Já anteriormente dissemos que a Internet é uma rede de
computadores disseminados por todo o mundo e conectados entre si
com a finalidade de partilhar, armazenar ou distribuir
informação, podendo os computadores conectar-se através de uma
linha de alta velocidade, como o cabo, através da linha de cobre
tradicional ou através de ondas hertzianas.
A diferença principal radica na forma em que se transmite a
informação: digital (a mais rápida) ou analógica, efectuando-se
a transmissão digital, normalmente, pelas linhas de cabo e a
analógica pelas de cobre e ondas hertzianas. Os utilizadores por
cabo são uma minoria, devido a uma natural inacessibilidade,
restringindo-se, em geral, a grandes organizações que, por sua
vez, costumam ser servidores de informação. Os restantes utentes
usam a tradicional linha telefónica e fazendo a conexão através
de ondas hertzianas.
A transmissão analógica é por impulsos eléctricos ou ondas
e é contínua. Por exemplo, num telefonema a comunicação faz-se
por flutuações eléctricas análogas à voz humana. A comunicação
digital converte toda a informação em combinações binárias de 1
e 0, os chamados bit, sendo descontínua. Os bit ocupam muito
pouco espaço e a transmissão digital é mais rápida e de maior
qualidade.
Os servidores são computadores que contêm uma grande quantidade de
informação e estão activos quotidianamente, contêm inúmeros documentos
(texto, imagem e som), conduzindo o grande tráfego de informação dentro da
rede e por isso têm uma enorme capacidade de resposta, existindo, neste
momento, mais de nove milhões de servidores na Internet.
Qualquer pessoa, se o desejar e possuir as condições
informático-tecnológicas adequadas, pode inserir informação na
Rede, fazendo-o de três formas: uma, deixando a informação no
espaço que os servidores destinam aos utentes, que se convertem
em alimentadores do servidor; outra, através dos fóruns de debate “News Groups” (agrupamentos de notícias por temas); a
última, o correio electrónico.
Um utente pode converter-se em servidor, desde que,
previamente, configure o seu computador, acessibilizando os BBS
(Bulletin Board Services), sendo BBS todos os serviços que estão
actualmente em funcionamento “on line” e existindo na Internet
milhares de BBS conectadas entre si.
Os “News Groups” são uma espécie de placards de anúncios ou
fóruns de debate agrupados por temas, tendo cada um apenas um
tema. São mensagens com remetente, mas sem um destinatário
concreto. Vão dirigidos a todo o fórum. O funcionamento é o
mesmo que o de um placard de anúncios da universidade. Um utente
deixa uma mensagem e espera que outro lhe responda ou dê a sua
opinião sobre o tema. Existem mais de dez mil “News Groups”.
O Correio Electrónico tem destinatário concreto e é
privado, funcionando como o tradicional correio, mas tendo os
utentes, na rede, uma direcção electrónica facilitada pelo
“provider” (fornecedor de serviços) e uma caixa no seu
computador, de onde envia e recebe mensagens. O remetente envia
uma mensagem que fica armazenada num dos servidores que existe
na rede até que o destinatário conecta com a Rede. É rápido,
seguro, mais barato que o fax e permite também enviar imagens e
sons. No que respeita às imagens, é sempre aconselhável
elaborar-se uma página alternativa em modo texto (deveria haver
mesmo legislação rigorosa de carácter internacional que
impusesse essa alternativa), de forma a que as pessoas cegas
tenham a descrição da imagem transmitida. Isto porque os
software especiais para voz sintetizada e para braille ainda não
descodificam (muito provavelmente nunca descodificarão) imagens,
mapas, esquemas... É neste domínio que os responsáveis pela
acessibilização da informação e da cultura a todos os indivíduos
(sem marginalizações) têm que se manter permanentemente atentos,
no sentido de que (e sempre) a evolução informático-tecnológica,
no campo da imagem, se processe com alternativas que permitam às
pessoas cegas uma perfeita autonomia no acesso à informação
sucessivamente disponível.
Para entrar na Internet precisamos de um telefone para onde
ligar e uma chave para conectar, situação que fica a cargo do
“provider”, proporcionando-nos este ainda os programas para
realizar a conexão e mover-nos na rede, o que se chama navegar.
Normalmente, os fornecedores de serviços são por sua vez
servidores.
Para aceder à Internet, uma pessoa cega terá que estar
equipada com um modem, um modelador, isto é, um aparelho que
converte o sinal digital do computador em sinal analógico para
que possa viajar através do telefone e vice-versa.
Os computadores utilizam diferentes linguagens e para a
comunicação se estabelecer é necessário um protocolo. No caso da
Internet, conhece-se como TCP/IP. Software de ligação (Transfer
Control Protocol / Internet Protocol). Trata-se de uma linguagem
universal para computadores, um programa que é gratuito.
O que torna a Internet extremamente atractiva, facultando
novos horizontes de informação às pessoas cegas, é o facto de
possuir uma grande quantidade de informação sobre todos os temas
imagináveis, acessível para todo o mundo de forma muito simples.
Além do Correio Electrónico, dos “News Groups”, tem ainda os
“Chats” (conversas), isto é, conversações em tempo real mediante
texto com outros utentes da rede, semelhante ao Correio
Electrónico, com a diferença de que tanto o remetente como o
destinatário estão conectados no mesmo momento na rede. Cada
utente pode conversar de forma privada com uma só pessoa ou ter uma conversa aberta com um grupo em que pode participar quem
passar por ali naquele momento.
A informação está armazenada nos servidores. Cada página de
informação possui uma direcção ou URL (Uniform Resource
Locators), endereços da rede onde se localizam as páginas, que
costuma começar por http://. É isto que temos de teclar no nosso
computador para chegar à página. Todavia, é preciso sublinhar
que isto só é válido para uma das muitas maneiras que há de
mostrar a informação na Internet. A WWW (world wide web), rede
mundial, é a mais popular e a que gerou o boom da Internet.
As páginas WEB são páginas escritas com uma linguagem informática
especial e que apresenta a informação integrando texto e imagens num
mesmo formato.
Para navegar não é necessário ir teclando essas direcções.
O WWW é um sistema de interconexão entre páginas WEB que permite
saltar de uma a outra por muito afastados que estejam os
servidores onde estão estas. Isto é possível graças ao
hipertexto, uma linguagem que permite vincular texto e imagens
de um documento com textos e imagens de outros documentos. Para
saltar de página, basta fazer “enter” na palavra ou gráfico
destacado com uma cor diferente do resto do texto. Assim,
começa-se consultando uma informação em Lisboa e termina-se em
Pequim, passando por Tóquio.
Para ler hipertexto necessitamos de um navegador, sendo o mais conhecido
o Netscape, para além de outros, permitindo este programa visualizar de uma
forma atractiva os conteúdos das páginas Webs e utilizar o hipertexto.
Claro que as pessoas cegas estão ainda muito longe de
poderem usufruir do acesso à Internet, de acordo com a descrição
que acabamos de fazer. Segundo a mesma fonte de referência
espanhola (Eniac), já existem no mercado programas que correm em
modo texto em MSDOS e que podem ser utilizados pelas pessoas
cegas com grandes vantagens, como o “Doslynx”, “Minuet” e
“Nettamer”.
Destes três programas, o que até agora proporcionou
resultados mais satisfatórios parece ter sido o «Nettamer», que
funciona em modo texto, embora também permita visualizar
imagens. Pode-se trabalhar com qualquer adaptação, embora a
experiência tenha sido feita com sintetizador de voz.
Com este programa, as pessoas cegas poderão navegar, enviar
e receber correio, fazer FTP (File Transfer Protocol), aceder a «news groups»,etc., encontrando-se este programa na
Internet, na direcção: http://people.delphi. com/davidzolston. É
muito barato e as pessoas cegas devem regularizar a sua
aquisição, constituindo esta a melhor forma de incentivar o
autor a continuar com o seu aperfeiçoamento. Mas o salto para o
acesso ao WINDOWS, por parte das pessoas cegas, já está
encontrado.
Mas é graças à complementaridade dos diversos sistemas que
as pessoas cegas conseguem ultrapassar certas dificuldades que a
informática coloca perante a ausência do sistema sensorial
visual, pelo que somos da opinião de que continuará a ser
necessário assegurar a produção braille e áudio a par da
produção em suporte electrónico, pois, a complementaridade é
útil para satisfazer as necessidades díspares da população deficiente visual em geral e, mesmo, para atender às nossas
necessidades em diferentes momentos.
Nem sempre temos um computador à mão, continua a dar
inquestionável prazer a leitura dos livros em papel embora, por
vezes, numa viagem ou numas férias seja mais fácil transportar
livros gravados do que em braille.
Determinados caminhos que nos apontam as novas tecnologias
indicam-nos que será possível no plano digital produzir obras
gravadas por voz humana e o texto em suporte informático,
podendo haver uma interacção entre estes dois suportes.
E, no plano das “novas perspectivas/Novos problemas”,
sustenta Francisco Alves, “um dos problemas maiores que se nos
coloca com todo este desenvolvimento é sem dúvida o tratamento
da informação. Muitas vezes sabemos de memória que temos um
livro, uma revista, mas não sabemos onde. Esta situação acontece
com meia dúzia de obras e meio milhar de cassetes que temos em
casa. Mesmo assim, por vezes ainda nos metemos em empresas
quixotescas de procurar a obra, a maior parte das vezes perdendo o nosso tempo sem qualquer êxito. Com a abertura das portas informáticas
e o vertiginoso aumento de informação que se nos torna acessível, estes
problemas aumentarão também nessa proporção, pois a organização dependerá
sempre do utilizador e não é a informática que a garante só por si.”. Por
esta razão, prossegue, “será sempre muito útil marcar as disquetes com
braille, rentabilizar os títulos dos ficheiros e directorias com
abreviaturas o mais intuitivas possível, incluir nos oito dígitos algo
referente à data e ao assunto, etc.”.
Outro problema coloca-se com os elevados custos das novas
tecnologias e a sua manutenção, sendo qualquer investimento de
alto risco e, quanto maior for o custo dos equipamentos, maior é o risco de se ficar ultrapassado.
“Das ferramentas que já temos disponíveis -refere
Francisco Alves(1997) -, normalmente só as utilizamos numa
pequena percentagem e por vezes entramos no jogo do puro
consumismo ao querer optar por soluções mais recentes, que nos
apresentam mais uma facilidade que na prática pouco ou nada nos
vai ajudar. Todavia, existem situações que nos forçam a adquirir
novos equipamentos, pois os fornecedores tornam os programas de
software tão pesados que só uma nova máquina os rentabiliza.”.
Segundo o autor em referência (que é uma pessoa cega, com uma
licenciatura em Filosofia, professor que se socorre de novas
tecnologias nas aulas, responsável pela criação da Associação
dos Cegos e Amblíopes de Portugal e tendo sido Presidente da
respectiva Direcção Nacional durante seis anos), “Será também
útil para os cegos procurarem soluções o mais próximas das
utilizadas pelos normovisuais, o que pode fazer diminuir os
riscos. Muitas das opções informáticas planeadas para os cegos,
(computadores com terminais), quando são comercializadas já
estão ultrapassadas e muitas delas são abandonadas pelos
próprios fabricantes.”. Mas a nossa convicçãoéade que a
acessibilidade à informação, mediante o fantástico, o fabuloso, o “revolucionário” contributo informático-tecnológico, está a invadir e a
transformar as vidas das pessoas cegas, proporcionando-lhes uma autonomia
impensável até há pouco tempo atrás, o que a todos só nos poderá encher de
alegria, de ânimo e esperança para enfrentar o futuro que urge preparar com
base na desconstrução da problematicidade tiflográfica e na evolução da
acessibilidade das pessoas cegas à informação, ao esclarecimento e à
cultura. Citando, a propósito, Frederico Ozanam, “é no presente onde se
situam as nossas obrigações e no passado onde repousam as nossas
preocupações que reside o futuro onde se dirigem as nossas esperanças”.
“Se os cegos quiserem progredir no campo do conhecimento já não poderão
encontrar desculpas para o não trabalho. Assim, poderemos ir tão longe
quanto a nossa vontade quiser e as nossas capacidades nos permitam.”.
No fundo, a orientação geral da reabilitação nãoéade
encontrar uma solução mágica para os problemas, a vista no caso
das pessoas cegas, mas a de contornar os obstáculos, através da
potenciação dos restantes sistemas sensoriais e do recurso a
técnicas específicas, às quais têm de adaptar-se para o hábito
lhes dar o prazer de acederem à informação em termos comparáveis
aos das pessoas normovisuais.
As diferentes técnicas, em nossa opinião, nunca poderão ser
encaradas numa acepção de exclusividade, visto que cada
indivíduo é um caso e uma realidade só igual a si mesmo,
afigurando-se-nos ser muito útil considerá-las numa perspectiva
de complementaridade.
Encontrar novas soluções implica tropeçar em novos
problemas que se têm que tentar resolver à luz dessa nova
situação, não podendo permitir-se que os escolhos que venham a
deparar-se possam minimizar ou ocultar as etapas já
concretizadas, sendo o conhecimento, a percepção real das
dificuldades e a capacidade, a perseverança, a cultura, a
solidariedade, a entreajuda, os principais elementos humanos que
constituirão a melhor forma para resolver, progressivamente,
essas dificuldades, acessibilizando o infinito mundo da
informação às pessoas cegas.
Como temos vindo a sustentar, a tecnologização da
informação, no âmbito logográfico, também tem vindo a
privilegiar a tiflografia, transformando e potenciando a célula
braille com mais do triplo dos recursos para sinais simples, o
que permite uma infinidade de combinações desses sinais para
formar uma inumerabilidade de sinais compostos, ampliando a
braillologia com novos e adequados símbolos signográficos,
conferindo-lhe todas as potencialidades para representar a
signografia destinada às pessoas normovisuais, trazendo ainda
essa tecnologização a possibilidade de se aceder com eficácia
aos mais diversos e sofisticados sistemas de informação através
de sintetizadores de voz e de ampliadores dos caracteres comuns.
Segundo José A. Bragança de Miranda, “... a tecnologia está
a manifestar-se segundo novas formas, não apenas por estar a
«desrealizar» toda a experiência, dando-lhe contudo uma certa
consistência virtual, nem tão pouco pelo facto da técnica das
máquinas se estar a dissimular e miniaturizar, transmigrando parã o interior dos «corpos», mas acima de tudo, por ela estar a
transformar a maneira como os modernos controlavam as
mediações.”.
“As novas tecnologias, indissociáveis como são da
tecnologização da palavra (“logotécnica”, como diz Lyotard),
estão a ir além da palavra, atingindo a imagem, os corpos, e até o próprio desejo do sujeito humano.”.
Considerando que este capítulo se reserva mais à questão da
tecnologização da informação acessível às pessoas cegas, cabe
aqui referir que a Câmara Municipal de Lisboa / Gabinete de
Referência Cultural / “Dinamização Cultural” promoveu e
organizou (conforme o já expresso no ponto 3 deste capítulo) o
Colóquio Nacional Informática e Leitura Especial em Portugal:
Novas Acessibilidades para as Pessoas com Deficiência, cujas
resoluções/recomendações se inscrevem profundamente na matéria
que ora nos ocupa, razão por que as transcrevemos seguidamente,
em jeito de corolário e reforço conclusivo deste capítulo.
Assim, os participantes naquele evento técnico-científico e cultural concluíram e recomendaram, o que mereceu unânime
aprovação de todos os presentes, o seguinte texto de
resoluções/recomen-dações:
1. Tendo
em consideração a importância que representa nos
nossos dias o acesso à informação para todos os cidadãos e
tendo em consideração as grandes dificuldades com que se
defrontam os deficientes, sobretudo os visuais e auditivos,
nesse acesso, propõe-se:
a) Que
as televisões promovam a dobragem dos programas em
Língua Portuguesa e se incremente o programa de audiodescrição;
b) Que os Mass Media divulguem programas de sensibilização
sobre a problemática da deficiência, com a participação de
especialistas e dos próprios deficientes.
2. Entendendo o conceito de ajuda técnica como um instrumento
que garante a participação em igualdade e com autonomia das
pessoas com deficiência e visando a sua acessibilidade a
todos, propõe-se:
a) Simplificação e uniformização de critérios nos processos
de atribuição de ajudas técnicas;
b) Constituição de equipas de atribuição de ajudas técnicas
por técnicos de reabilitação com formação adequada;
c) Divulgação das entidades financiadoras;
d) Revisão do quadro legal de ajudas técnicas de forma a
apoiar todas as actividades do dia-a-dia;
e) Que as ajudas técnicas façam parte integrante dos
programas de reabilitação;
f) Que seja dada formação
aos deficientes visuais sobre a
utilização dos equipamentos e seja exigida junto dos
fornecedores a sua manutenção.
3. Tendo
em consideração as necessidades específicas dos
surdo-cegos e as enormes carências com que se defrontam,
propõe-se:
a) Que seja dada formação cuidada a técnicos de
reabilitação de surdo-cegos, nomeadamente nas áreas de
língua gestual adaptada e dactilologia, da ética e
moral, dos quais se espera toda a disponibilidade,
confidencialidade e rigor;
b) Valorização do papel do guia-intérprete como peça
fundamental no estabelecimento da comunicação com os
surdo-cegos;
c) Reforço do apoio psicológico no processo de
reabilitação do surdocego;
d) Promoção de jornadas de reflexão sobre a problemática
dos surdo-cegos.
4. Tendo
em consideração os altos custos da produção da
informação em suportes especiais e verificando-se que o
suporte informático produzido pelas editoras pode ser
acessível aos equipamentos específicos para cegos e ainda por
se verificarem dificuldades no acesso aos materiais já
disponíveis, propõe-se:
a) Que as unidades de produção de livros em suportes
informáticos, através da Comissão de Leitura para
Deficientes Visuais, promovam a assinatura de protocolos
com os editores a fim de disponibilizar os livros para os
cegos e amblíopes neste tipo de suporte;
b) Que sejam criados programas de acesso aos livros em
suporte informático, uniformizando critérios de consulta,
de organização e de difusão;
c) Que seja criado, no âmbito da Comissão de Leitura para
Deficientes Visuais, um manual contendo linhas orientadoras
para a produção de documentos em formato digital. Esse
manual deverá ser distribuído pelas editoras e organismos
de produção de informação digital. Estão aqui incluídos
produtos como: dicionários, enciclopédias e outras obras de
referência e outros de produção multimédia. Dos três
elementos do multimédia: som, imagem e texto, principal relevo deve ser dado à imagem e ao texto. Em relação ao
primeiro elemento, toda a imagem deverá ter a
correspondente descrição em texto e/ou legenda. Em relação
ao segundo elemento, a sua apresentação deverá facilitar e
estar em harmonia com o hardware e software específico
utilizado pelos deficientes visuais para aceder à
informação digital.
d) Que sejam desenvolvidos esforços junto da Comissão de
Leitura para Deficientes Visuais para uma eficaz
coordenação entre todos os produtores de livros em suportes
especiais.
5. Tendo
em consideração as potencialidades que encerra a
informação sonora estruturada digital, como já se verifica
noutros países, propõe-se:
Que sejam feitos esforços para incrementar em Portugal a
informação sonora estruturada digital, nomeadamente na
produção e na difusão dos equipamentos para a sua utilização.
6. Considerando as enormes potencialidades que encerra a
Internet no campo da produção e circulação da informação e
até no campo profissional, propõe-se:
a) Que sejam feitos esforços para disponibilizar, divulgar e
utilizar os equipamentos e respectivos software para os
deficientes visuais acederem à Internet;
b) Que sejam estabelecidos protocolos com a Portugal Telecom
que visem:
1) Criação de linhas de acesso gratuito à Internet por
parte dos deficientes, de forma a salvaguardar o maior
tempo que necessitam para as consultas;
2) Criação de um observatório da WEB portuguesa que possa
atribuir prémios aos projectos que incentivem e estimulem
a utilização da Internet por parte dos deficientes
visuais.
c) O
observatório referenciado no ponto anterior deverá
também contribuir para a construção e actualização das
linhas orientadoras contidas no manual referido no ponto
4.C), o qual deve abranger, logicamente, a informação
digital da Internet. Este manual deverá ser divulgado pelos
produtores de informação na Internet, nomeadamente junto do
Infocit.
7. Tendo em consideração a importância do projecto “Dixi” do
INESC pelo facto de ser um sintetizador criado
especificamente para a língua Portuguesa, propõe-se:
a) Que sejam criadas medidas de apoio e incentivo para o
INESC poder concretizar com a maior brevidade possível este
projecto;
b) Disponibilização de meios humanos
e financeiros para a
investigação na área de adaptação de projectos às
necessidades específicas dos vários grupos de deficiência,
nomeadamente o da cegueira.
8. Considerando as vantagens que encerra a formação à
distância através da teleformação e as potencialidades do
tele-trabalho que podem atenuar as dificuldades de mobilidade
dos deficientes visuais, com ganhos na gestão do tempo,
propõe-se:
a) Que os Centros de Formação promovam acções de teleformação
em diversos campos da vida social: profissional,
escolar e familiar;
b) Que os Centros de Formação promovam acções no âmbito do
teletrabalho e prospecção de emprego para os deficientes
visuais;
c) Criação dum telecentro para a integração de deficientes
no mercado de trabalho;
d) Criação duma rede telemática que integre serviços ou
empresas possuidores de telecentros.
9. Tendo
em atenção o interesse relevante das medidas
divulgadas por Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado
da Inserção Social e pelo Chefe de Gabinete de Sua Excelência
o Senhor Secretário de Estado da Comunicação Social, tais
como o porte pago para as publicações das instituições, a
introdução da língua gestual e legendagem em teletexto nos
programas da RTP, revisão da lei da televisão com a audição
das associações de deficientes, disponibilidade para apoiar
todas as iniciativas, projectos e programas que visem o
acesso aos meios de comunicação social pelos deficientes e
suas associações, incremento ao funcionamento da Comissão de
Braille e da Comissão de Leitura para Deficientes Visuais,
propõe-se:
Um voto de saudação por estas iniciativas, desejando a
sua melhoria e ampliação.
10. Na sequência das medidas anunciadas por parte da Câmara
Municipal de Lisboa sobre a criação dos serviços “Leitura
Domiciliária Especial” e “Leitura por Via Telemática”, no
Gabinete de Referência Cultural, graças à oferta duma
carrinha e materiais informáticos pelo Montepio Geral,
propõe-se:
Uma saudação calorosa, esperando que estes serviços se
revelem de grande utilidade para a população que se defronta
com dificuldades visuais ou de mobilidade.
11. Tendo em atenção que a realização deste Colóquio assinala
o 7º aniversário da revista Dinamização Culturaleo3ºdo
Gabinete de Referência Cultural, propõe-se:
Um voto de felicitações pelos aniversários celebrados, desejando a continuidade do trabalho sério realizado a favor das pessoas deficientes visuais.
Não há dúvida de que a informática trouxe para as pessoas
cegas vantagens inimagináveis até há cerca de dez anos atrás,
mas, agora que estes cidadãos conquistaram uma relevante
autonomia no plano da acessibilidade à informação, é preciso
propugnar, por todos os meios, para que tal desiderato não venha
a malograr-se, mercê de eventuais negligências na criação e/ou
adequação de hardware e de software específicos para o acesso a
alternativas do texto/imagem, de forma a poderem usufruir (sem
impedimentos essencialmente de natureza ergonómica) da
informação tecnologizada aos mais diverso níveis.
Para já, aí temos em curso, para todos (com excepcional
relevância para as pessoas cegas), a preparação de um novo mundo
informático-tecnológico, “vivo, livre e são!” no referente às
potencialidades psico-sensório-intelectuais e das novas
tecnologias das pessoas cegas no acesso à informação e à
cultura, resultante (em parte) da força e da legitimidade com
que ensaiamos e proferimos as palavras certas e adequadas nas
circunstâncias e situações certas, como móbil transformador,
renovador e incrementador de novas ideias e de novas e profícuas
formas de viver. Esse mundo diferente será aquele que todos
formos capazes de conceber e de construir sem exclusões sociais
e acessível (sempre que intelegivelmente possível) a todos os
cidadãos escorreitos e/ou apenas dotados dos indispensáveis
sistemas sensoriais compensatórios ou alternativos nos domínios
da sociabilidade, comunicabilidade, mobilidade, autonomia e
interacção na sociedade que todos constituímos e somos. Só o ser
humano, com compreensão, tolerância e solidariedade, como única,
complexa e inteligente «máquina» pensante e actuante, poderá
acessibilizar o inexaurível mundo da informação e da cultura, no âmbito de um (se calhar!) novo e alargado paradigma
comunicacional, a todos os cidadãos, incluindo os cegos.
UMA VERTENTE COMUNICACIONAL A DESCOBERTO
NAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
"Sempre que uma porta da felicidade se fecha uma outra se abre,
mas muitas vezes nós olhamos tanto para a porta fechada
que não vemos aquela que foi aberta para nós.”
Helen Keller
INTRODUÇÃO
Seleccionámos e aprofundámos quatro grandes itens do
domínio tiflo-sócio-comunicacional (interdependentes e
interrelacionados) fundamentais para dar corpo a esta
investigação, procurando erigir e conferir-lhe um argumento
sólido e inequívoco no plano teórico e experiencial da
sociabilidade, comunicabilidade, mobilidade, autonomia e
interacção da pessoa cega na sociedade aos mais diversos níveis,
com base na especial importância da perceptibilidade dos
sistemas sensoriais consubstanciada em suportes psico-sensóriointelectuais
(faculdades humanas -uma e outras -natas, ao
mesmo tempo indissociáveis, potenciáveis e ampliáveis), como
perspectiva relevante e preconizadora do alargamento do
paradigma comunicacional, preenchendo, a nosso ver, uma lacuna
na área das Ciências da Comunicação.
Assim, no primeiro capítulo centrámo-nos nas questões da
cegueira no contexto da oralidade e da escrita, da cegueira
enquanto reveladora das equivocidades da comunicação e em
conceitos e preconceitos a propósito de «ver» e «não-ver»,
enunciando já um alargamento da comunicação e da cultura
acessíveis às pessoas cegas, consubstanciado no fenómeno da
cultura e alicerçado em parâmetros intelectuais propulsores do
aumento e do enriquecimento da utensilagem mental destas
pessoas.
No segundo capítulo, tratámos, com a profundidade
possível, a percepção dos sistemas sensoriais numa dimensão tiflo-sócio-comunicacional e tiflo-interactiva, passando por
algumas reflexões em torno do conceito fenomenológico de
percepção, para, em seguida, abordarmos a questão do “sentido
dos obstáculos” ou tacto dos sistemas sensoriais alternativos ao
da vista, mergulhando em aspectos do sentir e do perceber,
equacionando a interligação sensorial e a percepção háptica, bem
como na perceptibilidade destes sistemas sensoriais como garante
da comunicabilidade, sociabilidade, mobilidade, autonomia e
interacção das pessoas cegas.
No terceiro capítulo, numa sucessão de passos histórico-culturais para a constituição de um sistema de leitura e de
escrita ajustado ao sentido do tacto, como veículo de cultura em
analogia com os sistemas de leitura e de escrita para as pessoas normovisuais, concentrámo-nos aprofundadamente no fulcro do
nosso objecto de estudo, que são os resultados da árdua tarefa
da nobre tríade formada por Valentin Haüy-Charles Barbier de la
Serre-Louis Braille, abordando a génese e a evolução da
tiflografia num contexto comunicacional e histórico-cultural,
não menosprezando outras iniciativas tiflográficas (ainda que
goradas) como alternativa ao Sistema Braille, o acesso das
pessoas cegas ao ensino público em Portugal, critérios de
produção e de publicação em braille, materiais braillográficos e
serviços de produção e de utilização em Portugal, não deixando
de referir também, por ordem cronológica, as publicações em
série portuguesas surgidas para as pessoas cegas, desde finais
do século passado até aos nossos dias.
Finalmente, no quarto capítulo, desenvolvemos, com especial
relevância, a importância das novas tecnologias para as pessoas
cegas, atendendo a que do braille à braillo-informática e da
informação analógica à digital (em que o específico equipamento
informático de leitura e de escrita cada vez mais se tem vindo a
ajustar às necessidades especiais), as perspectivas actuais da
acessibilidade da informação, no plano informático-tecnológico,
preparam, para as pessoas privadas da sensibilidade visual, um futuro de maior e independente acessibilidade à informação e à
cultura, de uma maior e eficiente autonomia e interacção, de uma
mais ampla comunicabilidade e sociabilidade, de uma mais
profícua actividade sócio-intelectual e sócio-profissional,
satisfazendo naturais exigências pessoais e sociais no plano da
interacção e consequente integração na sociedade aos mais
diversos níveis.
1.º GRANDE ITEM
No primeiro capítulo deste livro, a que demos o título
“Questões da Cultura, da Linguagem, da Escrita e da Comunicação
no Plano Tiflológico”, levantámos algumas questões relacionadas
exactamente com a linguagem, a escrita, a comunicação e a
cultura, no âmbito da tiflologia, mediante uma interpretação da
cultura através da oralidade e da escrita, bem como da concepção
metafísica, desconstruindo os conceitos de “visão” e de
“cegueira”, como passo significativo para atingirmos o objectivo
desta investigação. Sendo mais explícitos (conforme o já
afirmado anteriormente), centrámo-nos nas questões da cegueira
no contexto da oralidade e da escrita, da cegueira enquanto
reveladora das equivocidades da comunicação e em conceitos e
preconceitos a propósito de «ver» e «não-ver», enunciando já um
alargamento da comunicação e da cultura acessíveis às pessoas
cegas (a cegueira não pode ser encarada como sinónimo de pobreza
intelectual e excrescência social vegetante), cumprindo o
primeiro grande item deste livro, consubstanciado no fenómeno da
cultura e alicerçado em parâmetros intelectuais propulsores do
aumento e do enriquecimento da utensilagem mental das pessoas
cegas.
No primeiro capítulo também fizemos uma abordagem a
propósito dos cegos errantes e a cultura oral -para os quais, o
sentido social por excelência era (tal como hoje) o ouvido -,
num esforço de desmistificação, de reposição e de definição de
conceitos ao nível da cegueira (que por vezes simboliza
ignorância) e da visão (no sentido mais intelectualizante e
abrangencial, no domínio da intelecção do saber, que possamos
imaginar), em que a cultura, no seu sentido mais amplo, confere
verdadeira significação ao indivíduo, à sociedade humana e ao
mundo, legitimando o nosso sentido de vida na sociedade humana
que todos nós somos, matéria esta que (corroborante do
desenvolvimento do conceito de comunicação) também aprofundámos
no ponto três do primeiro capítulo.
Em tempo de predomínio da oralidade, antes da difusão dos
seus específicos sistemas de leitura e escrita, a pessoa cega
não estaria em grande desvantagem em relação aos outros membros
(normovisuais) da comunidade em que se inseria, podendo mesmo
afirmar-se que, exceptuando algumas dificuldades postas por
certas actividades práticas, bem como a visualização do
universo, a contemplação visual de determinados atractivos..., a
pessoa cega estaria, razoavelmente, em condições de aceder à
informação e à cultura do seu tempo.
A comunicação oral era então a forma essencial da
aprendizagem, circunstância que constituía bons ambientes para
as pessoas cegas se cultivarem e, de certo modo, começarem
também a libertar-se, por um lado, do peso da misticidade, por
outro, de serem consideradas, nalgumas tribos e sociedades
(desde épocas imemoriais) causadoras de calamidades e portadoras
de males espirituais, atributos que, infundadamente, as
rotulavam e as votavam a um incompreensível amorfismo vivencial, por vezes terrificamente vistas como nocivas inutilidades
humanas, augurando o infortúnio de progenitores e das tribos ou
sociedades onde tinham a má sorte de nascer.
Porém, há circunstâncias em que, na Antiguidade, as pessoas
cegas beneficiaram da elevada cultura existente na época, por
exemplo, no Egipto, tendo aqui vários faraós sido benevolentes
para com os indivíduos cegos, os quais tiveram a oportunidade de
exercer actividade profissional como músicos, moleiros,
padeiros, alfaiates e curtidores. O cego mais famoso que existiu
no Egipto foi Sesostires I, poderoso faraó da XIIª dinastia que
reinou entre 1995 e 1965 a.C.
Dentro da concepção cristã da Idade Média, e em certa
medida ainda hodierna, ao lado das concepções pagãs, sustenta, a
propósito, Orlando Monteiro que “se via “no indivíduo privado da
vista um ser com faculdades de comunicar com os entes
sobrenaturais.”. E acrescenta que “a cultura, que anteriormente
podia ser considerada como sinónimo de luxo ou tida como
diletantismo, é hoje um eficiente instrumento de trabalho, bem
como o meio mais higiénico e valorativo para o enriquecimento do
espírito; isto, tanto no que respeita ao aspecto puramente
profissional, como no aspecto da valorização humana.”. E conclui
que “Vão já bem longe os tempos em que a cultura era tida como
um tabú a que só uma minoria privilegiada tinha livre acesso.
Hoje constitui ela um direito do cidadão nascido em qualquer
país civilizado.”.
Desta forma, em obediência a imperativos sobretudo de
natureza sócio-intelectual, passou a haver uma diferença entre
cultura erudita e cultura popular. Na cultura popular, as
pessoas cegas estariam sempre à vontade, em virtude do seu meio
de transmissão lhes ser naturalmente acessível, bastando-lhes
saberem ouvir e falar. Na cultura erudita, infelizmente, já que
muitas vezes os conhecimentos se começaram a difundir por
intermédio da escrita, as pessoas cegas viam surgir para si
desvantagens. Contudo, cabia-lhes um papel relevante em termos
culturais: eram difusores de cultura popular, considerada por
alguns marginal, mas importante, visto que, em tempos recuados,
a maior parte da população era analfabeta. Logo, esta seria a
cultura da maior parte das pessoas, incluindo, obviamente, a das
pessoas cegas.
À luz do poder estabelecido, tais formas culturais eram
marginais. De igual modo eram considerados os seus agentes,
tanto valia serem cegos como normovisuais, pois tanto era
marginal o cantor e tocador sem vista, como o jogral e a
bailadeira normovisuais.
Começaram, nessa clivagem cultural, as desvantagens da
pessoa cega, tornando-se-lhe a cultura erudita progressivamente
inacessível, até ao limiar da modernidade, altura em que se
reinicia para si outra etapa no plano da cultura e em que
começam a despontar condições e a surgir invenções que lhe
permitem a acessibilidade (desta vez também progressivamente) à
cultura erudita.
Não obstante todas as vicissitudes desta transição comunicacional, temos
informação da existência de impressionantes oradores cegos, desde a mais
remota antiguidade. A propósito (e talvez em obediência a uma questão de
patrioticidade), recordamos o português José de Sousa(16801744), que se
distinguiu pela sua fluente e empolgante oratória em latim, tendo sido
várias vezes Presidente da Academia dos Anónimos (no final do século XVII e
no princípio do século XVIII) para, conforme afirmação sua, levantar a
literatura portuguesa do letargo em que jazia. Mas impõem-se-nos, a propósito dos conceitos de ver e de
não ver, algumas reflexões.
Para que não subsistam dúvidas relativamente à forma como registamos,
entendemos e concebemos a questão da cegueira, sabemos que, em todas as
sociedades humanas, “a cegueira e os indivíduos dela portadores têm sido
alvo de comportamentos caracteristicamente emocionais, mesmo quando gozam de
uma aparente tolerância ou da reverente consideração geral.”.
Tudo se passa, na realidade, como se a própria ideia da
ausência da vista implicasse intrinsecamente uma carga emotiva
extremamente intensa, em que duas componentes (uma subjectiva de
natureza subconsciente e outra psicossocial relacionada com
crenças profundamente enraizadas) se confundem de forma
indissolúvel.
Mas, equacionando a questão mais concretamente, poderíamos dizer que, ao
adoptar-se uma determinada atitude face às pessoas cegas e à cegueira,
determinadas pessoas normovisuais estão, antes, a defrontar-se com os seus
próprios fantasmas inconscientes, reagindo ao medo de se verem eventualmente
atingidas por aquilo que consideram o mais temível dos males. Se a morte, em
sistemas culturais como o nosso, encerra um potencial simbólico tão
“pateticamente negativo” (expressão de Vítor Reino), não será exagerado
afirmar que a ideia de cegueira lhe é, em muitos aspectos, comparável,
funcionando como uma morte simbólica, segundo o mesmo autor um “mergulhar
nas trevas da eterna noite...”. Aliás, certos processos de reabilitação, em
indivíduos atingidos por cegueira súbita, assumem, sob o ponto de vista
psicológico, “o carácter de uma autêntica ressurreição, um retorno vitorioso
de entre os mortos após um período mais ou menos longo de morte aparente.”.
Ao medo subconsciente de perder a vista, associam-se
factores de natureza psicossocial mais ou menos estereotipados,
que condicionam profundamente toda a atitude em relação à
cegueira, sendo inumeráveis as crenças e preconceitos a este
nível, confundindo-se e interpenetrando-se numa complexa rede
que influencia decisivamente toda a gama de comportamentos
sociais perante a ausência do sistema sensorial visual.
Thomas D. Cutsforth atesta a impossibilidade de se viver
mergulhado num mundo de trevas e obscuridade, na medida em que
se irá naturalmente desenvolver todo um fenómeno adaptativo que o torna neutral, como que cinzento, sem luz nem trevas. Esta
opinião, apoiada em dados de natureza psicológica e fisiológica,
leva-nos a crer que o cego não vive, de facto, numa noite
permanente, o que, aliás, a acontecer, tornaria a sua existência
insustentável sob o ponto de vista da sanidade mental.
J. de Albuquerque e Castro(1903-1967) defende que “os cegos
não vivem às escuras”, “nem sequer são, ao contrário do que
frequentemente se afirma, aqueles seres tristes e escuros que
vivem para sempre imersos em trevas.”, pois, a noite em que
muitos julgam que os cegos vivem é apenas a noite da sua própria
imaginação, à qual sacrificam, sem exame, os dados da sua
experiência objectiva.”.
De facto, o estudo efectuado por Vítor Reino constitui uma
base e uma proposta importantes de reflexão sobre uma vasta área
de problemas em torno do significado psicológico, sociológico e
até semiológico da cegueira. As respostas ao seu questionário
(apesar de corresponderem ao limiar da década destinada à
sensibilização da opinião pública sobre a deficiência) vêm
confirmar, no essencial, que “a palavra cegueira continua a
provocar reacções em que a componente emocional assume uma
importância decisiva”, sugerindo a dominância de sentimentos
relacionados com “fantasmas subconscientes profundamente enraizados”, o que não nos surpreende, se considerarmos a
intensa carga simbólica de “temores” e “medos” inconscientes que
caracterizam a forma pela qual a cultura tem encarado a cegueira
ao longo da história. Vítor Reino veio mais uma vez provar que,
implícita e explicitamente, “inúmeras pessoas afirmam ainda hoje
que, de todos os males que se poderão vir a abater sobre elas, a
cegueira é o que mais sinceramente temem e lhes infunde maior
pavor...”. Mais ainda do que a deterioração das faculdades
mentais, a condenação a uma imobilidade motora permanente, “ou
qualquer outra moléstia do corpo ou do espírito”, a perspectiva
de perderem a vista causa-lhes sempre uma sensação (supomos que
inigualável) de “pânico” e “horror”, “muito embora a cegueira,
comparativamente a diversas outras perturbações, permita
alimentar a esperança de uma vida relativamente normal em muitos
domínios.”.
No fundo, trata-se da já aludida complexa acção dos
“fantasmas”, há que exorcisá-los “para que a ideia de cegueira
deixe de transportar consigo essa intensa carga simbólica que
lhe está associada e, consequentemente, os próprios cegos possam
esperar uma melhor compreensão e aceitação por parte da
sociedade em que vivem.”. E não temos dúvidas de que, só depois
de “exorcizada toda a ancestral corte de fantasmas tão
intimamente associada à cegueira, os cegos poderão ser olhados
com certa naturalidade, sem que complicados processos
psicológicos de natureza defensiva nos ponham em guarda contra
algo que, implicitamente, constitui uma terrível ameaça para o
nosso próprio equilíbrio mental.”. (Vítor Reino, 1992.
A própria Helen Keller refere que “o maior problema que os cegos
enfrentam é a falta de visão dos seus amigos que vêem.”.
J. de Albuquerque e Castro sustenta que “a cegueira não é
em si mesma causa de infortúnio” e “não desfalca a
personalidade do indivíduo”, sublinhando que os normovisuais
(a sociedade em geral) devem olhar os cegos segundo determinados
princípios básicos, como sendo “seres psiquicamente normais”;
como “indivíduos que vivem a sua vida sem quaisquer desfalques
na massa das suas necessidades humanas”; como “elementos sociais
regularmente válidos e úteis”; como “estruturas morais e mentais
que não romperam o equilíbrio entre o mundo subjectivo que as
forma e as realidades objectivas em que se movem”, pois, “o que
faz a sua infelicidade não é a cegueira em si, mas o ambiente de
compaixão ou indiferença que os rodeia, a falta de comunhão
afectiva entre eles e o meio, a inactividade forçada, com o
consequente nível económico muito baixo, e, sobretudo, essa
tendência colectiva, manifestada por tanta forma, para os
considerar como se foram seres de espécie à parte”. E acentua J. de
Albuquerque e Castro que, “Quando tais princípios se desencontrem da
realidade, não se procure a causa na cegueira, mas no complexo psicológico
do indivíduo, independentemente dela, no meio mais ou menos hostil ou
indiferente em que ele vive, ou em insuficiências de educação, a que o cego
tanto deve a sua inferiorização como homem.”.
Portanto, não nos cansamos de repetir, há que conhecer de perto e
divulgar por todos os meios as reais potencialidades das pessoas cegas, ao
nível das diferentes áreas que permitam a sua plena concretização e
desenvolvimento integral. Por vezes, é preciso “ver para crer”. E,
sobretudo, “há que promover uma progressiva mas firme evolução ideológica
que torne efectivamente possível uma autêntica mudança de atitudes, no plano
social e individual.”.
Todas estas concepções (muitas delas profundamente
erróneas), umas que nasceram com o próprio homem, outras menos ancestrais, outras ainda nossas contemporâneas, baseadas, na
generalidade, em antigos estereótipos e fantasmas interiorizados
(como observámos), têm sido agravadas ao longo da história da
humanidade por uma notória ignorância (ou cómoda negligência)
das reais potencialidades das pessoas cegas e, mais
especificamente, das consequências da cegueira ao nível da
personalidade e da inteligência. Felizmente que a história
regista alguns pontos de vista de filósofos e filantropos
eminentes (anteriores aos séculos XIX e XX), designadamente
Descartes, Diderot e Valentin Haüy, relativamente às pessoas
cegas, pontos de vista tanto mais estranhos quanto lavrados pela
pena de personalidades que assumiram posições indiscutivelmente
pioneiras no contexto social da sua época.
Não esqueçamos que, se é um facto que tal estado de coisas
se tende progressivamente a alterar com as profundas
modificações nas condições de vida e nos valores sociais e
humanos que caracterizam o actual momento histórico, não é menos
incontestável que as atitudes fundadas em crenças, preconceitos
e temores subconscientes são fortemente resistentes à mudança,
evoluindo a um ritmo bem mais lento do que seríamos levados a
supor. Felizmente também que o mundo vive mudanças rápidas e
radicais que influenciam a sociedade em geral e a escola em
especial, instituição esta que deverá assumir profícua
preponderância pedagógico-didáctica na acção educativa e no
ensino, com um comportamento dinâmico e esclarecido, provocando
a saudável mutação de mentalidades em relação a concepções
erróneas que escondem, amorfizam ou negligenciam potencialidades
e valores, sem os quais, continuaremos necessariamente a
conceber a assimilação de saberes, a apreensão e organização
consciente do mundo envolvente de forma substancialmente
restritiva.
O que tergiversa (ainda hoje) as reais potencialidades das
pessoas cegas, na sociedade em geral e mesmo no plano
científico, são determinadas afirmações avulsas, que se escrevem
e se dizem publicamente, em certa medida por pessoas de
responsabilidade na matéria, baseadas em convicções resultantes
de suposições fundadas apenas no que superficialmente parece e
não em realidades e experiências comprovadas. A cegueira
intelectual pode constituir uma terrível condicionante à
independente afirmação, pessoal e social, de determinados
indivíduos no domínio da tiflologia.
Porque vem a propósito neste contexto, acrescentamos que a
cegueira, enquanto reveladora das equivocidades da comunicação,
pressupõe, à partida e numa perspectiva metafísica, que
estejamos numa compreensão obstaculizada por erros ou por
ausências sensoriais (por exemplo a ausência do sistema
sensorial visual) que provocam a diminuição dessas
equivocidades. Porém, a teoria da comunicação mais radical a
este respeito (designadamente com Jacobson e Lacan) atesta que
toda a comunicação tem equivocidades e a compreensão é um ganho
que resulta do próprio processo, não sendo algo que é
pressuposto à partida.
O facto de se considerar que a ausência da vista é uma
falha, que provoca dificuldades de compreensão, pode não
significar aceitar que o sistema sensorial visual tenha a
centralidade de todo o processo, que só há este sistema e que o
resto é complementar, visto que, na vida comum, utilizamos uma
forma complexa, na apreensão do conhecimento, através dos
sentidos. Sabemos que toda a alternativa ao problema da
metafísica ocidental passou sempre pela questão da cegueira, o
que nos leva a questionar: será a cegueira uma falha ou um
revelador de outras potencialidades? Seremos mais cegos quando vemos, ou quando não vemos? Haverá uma cegueira provocada pela visão?
Paul de Man mostra que toda a metafísica está centrada numa certa ideia da
visão e que no interior do maior esclarecimento tem que haver uma cegueira
sob pena de que se desse uma violência para violentar o mundo e de nos
violentarmos a nós próprios.
A excessiva centralidade sobre a visão conduziu a um
desprezo profundo pelo mundo, pelo corpo, pela relação com o
outro, o que está em sintonia com a crítica de Derrida ao
fonocentrismo e ao teoricismo. A própria teoria (em grego)
significa aquilo que se vê, contemplação, todo o Ocidente está
fascinado pela centralidade e pelo maravilhoso da visão.
Estamos cientes de que, por vezes, a hipervalorização do
sentido da vista na comunicação, e consequente socialização, tem
dificultado o acesso das pessoas cegas à informação e à cultura,
inclusive a sua normal inserção e interacção na sociedade,
apesar de, em nossa opinião, o ver e o não ver coexistirem
(confundindo-se os conceitos de “ver” e de “conhecer”),
tornando-se o “ver” uma operação que ultrapassa em muito as
faculdades perceptivas do sentido da vista (o olho), para se
transformar no próprio modelo do conhecimento.
Citando António Guerreiro, “Ver é conhecer, analisar, criticar, pôr à
distância, exercer todas as mais nobres faculdades do intelecto, tal como o
entendimento. Assim, a visão sempre pôde ser vista como o mais
intelectualizado de todos os sentidos.”.
Trata-se, na realidade, do sentido mais absorvente e
valorizado pela humanidade (sobretudo no Ocidente),
compreendendo-se facilmente a razão de tal relevo. Isto porque a
vista, além de nos dar a luz e a cor, é um sentido que nos
permite contactar com as coisas, circunstâncias, acontecimentos
e contextos que estão afastados de nós e fora do nosso espectro
táctil e audível. Assim sendo, pelos contrastes de luz e cor, é
possível transmitir e apreender um conjunto de vivências que de
nenhum outro modo estão acessíveis ao indivíduo, sendo nesta
vantagem que radica, fundamentalmente, a importância da
modalidade sensorial visual.
Por isso, o homem tem tentado tirar o máximo proveito deste
sentido, sendo neste domínio que a pessoa cega tem vindo a
perder, nalguns casos, acessibilidade à igualdade de
oportunidades.
Mas estamos convictos de que esta questão da igualdade de
oportunidades, bem como outras inferências infundadamente
criadas ou suscitadas, se podem ultrapassar, sobretudo com
vontade, cultura, esclarecimento e inteligência das pessoas
cegas, das instituições e da opinião pública. Como já
anteriormente referimos, a cultura, na etimologia grega,
significa ver. E ver, seja em que dimensão for, é conhecer,
podendo, inclusivamente, ser uma forma de felicidade. A cultura
pode, em regra, conduzir à felicidade. Só com cultura é possível
vivermos com prazer na sociedade consciente e esclarecida que
todos formos capazes de construir ou de moldar, para que todos
nela caibamos sem discriminações. São os pais, os educadores, os
professores de hoje que poderão semear lógica e formas saudáveis
de pensar, com liberdade na interacção, de maneira a que a
cultura triunfe e a nossa posteridade colha e se delicie com os
frutos das árvores de saber que, entretanto, todos tivermos
conseguido cultivar. E para que este contributo para a
felicidade humana tenha viabilidade, é preciso investigar, é
preciso estudar. Se investirmos nesta perspectiva, é muito
provável que todos venhamos a ter a felicidade de termos
contribuído para que o progresso (o novo mundo culto, vivo, livre e são, desinibido de utopia) contemple todas as mentes,
não nos faltando a imaginação para ultrapassar sempre os
condicionalismos à avidez de cultura e de esclarecimento, o que
nos alimenta o espírito e nos redimensiona o pensamento e o
comportamento interactivo.
Estamos cientes de que comunicar e aceder à informação e à
cultura é estarmos permanentemente actualizados e evolutivos,
visto que, vitalmente, é no universo complexo, multifacetado e
pluridimensional da comunicação que tudo se gera e se
desenvolve. Pensamos que as pessoas cegas não são em nada
diferentes das pessoas normovisuais, no que concerne à propensão
para este ou para aquele domínio do conhecimento. Todos temos
necessidades e preferências culturais mais ou menos definidas,
todos precisamos de informação e de cultura para que legitimemos o nosso sentido de vida na nossa comunidade de inserção ou de
reinserção.
Mas, recuando um pouco na História, só no século XVIII,
mediante as preocupações culturais de então, as pessoas cegas
começaram a ser olhadas com outras “Luzes”, passando a
literatura a ser comandada pela filosofia, sendo quase toda a
literatura orientada num determinado sentido ideológico,
havendo, por conseguinte, uma outra capacidade para observar as
pessoas cegas e para as ver como elementos sociais possíveis e
como pessoas.
Contudo, a pessoa cega, antes do século XIX, não teve um
acesso eficaz aos sistemas de escrita e de leitura e nunca pôde,
até hoje, desfrutar do gozo de certas artes plásticas,
especialmente da pintura, o que significa dizer que não tinha ao
seu alcance sistemas de informação capitais para a vida em
sociedade. Não controlando os sistemas de escrita, não podia
instruir-se em escolas e universidades de igual para igual com
os normovisuais. Por outro lado, nunca lhe foi possível
exprimir-se -e ainda nãooé-pelas chamadas “artes visuais”,
a não ser estereotipadamente.
Conforme já atrás afirmámos, a vista tem dominado os meios
de acesso à informação, pelo que pensamos que devia ser difícil
para uma pessoa cega desejar singrar no mundo intelectual, antes
do século XIX (embora encontremos ao longo da história algumas
curiosas referências pontuais, mas sem expressão a um nível
elevado), o que nos induz a sustentar que o aparecimento do
sistema Braille e a sua disseminação constituiu uma revolução
tiflo-sócio-intelectual, visto facultar às pessoas cegas a
possibilidade de lerem e escreverem fluentemente, utilizando as
pontas designadamente dos dedos indicador e médio de ambas as
mãos (em simultâneo) para ler, e abrindo-lhes, na década de 80
do século XX, caminho para a manifestação e exploração de outras
potencialidades e novos horizontes do conhecimento, através da
informática e todas as tecnologias de informação dela
decorrentes.
Como sabemos, tal como a escrita vulgar para as pessoas
normovisuais, também a tiflografia, que se exponencializa no
genial sistema Braille e mais recentemente braillo-informática,
tem vindo, desde a criação daquele sistema e acompanhando a
evolução das várias notações gráficas da linguagem, a registar
inovações de natureza signográfica, contemplando novos símbolos,
notações e convenções que correspondem a necessidades
específicas nos códigos Braille aplicáveis às diversas
especialidades do saber.
Contudo, diremos, para já, que o sistema Braille foi o
móbil detonador das barreiras sócio-intelectuais das pessoas
cegas parafraseando um pouco Marcel Cohen, diremos que a
escrita é a grande invenção social e instrumento intelectual que consiste numa representação visível - e nós acrescentamos:
tangível e audível - e perdurável da linguagem, que por este
meio se torna transportável e conservável. A escrita, seja em
caracteres comuns, ou representada por qualquer outro processo
igualmente durativizado, deve assegurar, inequivocamente, a
preservação histórica da vida universal. Aprofundámos esta
questão nos capítulos terceiro e quarto, conferindo particular
relevo à sobrevivência da informação.
Inquestionavelmente, a cultura assegura a emancipação
sócio-intelectual aos que a procuram, conduzindo-os a um
aperfeiçoamento cada vez maior, facto que lhes propicia “serem
olhados e escutados pelos seus concidadãos com consideração e
respeito, e, muitas vezes, mesmo com admiração.”.
A este propósito, Albuquerque e Castro escreveu:
-
“Se a cultura valoriza o homem, na medida em que lhe
permite projectar-se em todas as dimensões no universo que o
rodeia e tomar consciência mais viva do universo que traz
consigo, ela assume para o não vidente importância difícil de
apreciar, dado que daí depende quase toda a sua capacidade para
ascender do meramente vegetativo ao realmente vivido.”. “Não
tendo possibilidade de se instruir através da vista, por
contacto com o meio objectivo, só por intermédio de livros e
outros instrumentos de cultura ele pode em geral tomar
conhecimento de seres e coisas, de factos e fenómenos, que são
para o comum da gente insignificante parcela do seu saber total,
oferecida desde muito cedo pela experiência de cada dia.”.
A cultura e a sensibilidade, em todas as circunstâncias e
processos comunicacionais, ajudam-nos a crescer e industriam-nos
na assimilação dos conceitos, promovem a incursão e
sedimentação, nas nossas mentes, de valores intelectuais,
comportamentos e regras de conduta cívica, social, moral,
disciplinadoras da nossa interdependência e inter-relação na
sociedade, da afirmação da nossa personalidade com a necessária
capacidade de tolerância e de determinação no estabelecimento de
equilíbrios psico-sócio-intelectuais e culturais, na sociedade
de todos nós. A cultura e a sensibilidade aumentada deverão
mobilizar-nos no sentido de nos mantermos vigilantes, coerentes,
pacíficos e pacifistas, úteis e profícuos à sociedade humana e a
nós próprios. É claro que, por vezes, a ausência do sentido da
vista impõe às pessoas cegas profundas limitações no acesso à
informação e à cultura, distanciando-as das pessoas
normovisuais, em certas circunstâncias ou domínios, de forma
abismal. A sensação (quando acontece por falta de meios e de
interfaces adequados) desta premente e confrangedora realidade
pode ser quase asfixiante, mas absolutamente insuficiente e
impotente para compeli-las (como se se encontrassem sem
alternativas) a cruzar os braços e a vegetar na exclusão social.
Estamos cientes de que é impossível acessibilizar à
generalidade das pessoas cegas tudo o que se publica a âmbito
mundial, da mesma forma que tal não é possível fazê-lo para as
pessoas normovisuais, atendendo a obstáculos designadamente de
natureza logográfica, idiomático-linguística, preferencial,
técnico-funcional, ergonómica. Mas também estamos cientes de que
tem sido sobretudo por negligência e ausência de generosidade
sócio-política (falta de vontade política em Portugal) que
escasseia ainda a informação e a cultura, a que as pessoas cegas
possam aceder com independência.
A nossa proposta de solução alternativa imediata para estas
pessoas é serem capazes de orientar os seus interesses de forma
sistematizada para uma estruturada e inteligente gestão dos
recursos mediáticos e comunicacionais existentes que lhes
permitem aceder ao infinito mundo da informação, parte do qual disponível em variados suportes, que podem contribuir com
bastante eficácia para a ampliação e rendibilização das suas
também inesgotáveis potencialidades. Saberem Braille, serem
capazes de ler fluentemente para sentir gosto pela leitura,
complementarem a informação disponível em Braille com o já vasto
espólio existente em formato áudio e em suporte electrónico (que
no seu conjunto em Portugal já ascende a cerca de doze mil
títulos), conseguirem manter-se atentos às programações da rádio
e da televisão em toda a sua amplitude, à informação multimedia
mediante recursos especiais, aceder às tão difundidas “autoestradas
da informação” -a consequência da maravilhosa “aldeia
global” de MacLuhan, que prodigiosamente e tão depressa evoluiu
para o fenómeno da rede de redes Internet que liga
simultaneamente redes de universidades, de governos, de empresas
e já perto de 50 milhões de utilizadores individuais em todo o
mundo, todos estes meios são veículos comunicacionais
alternativos que, no seu conjunto e de forma articulada,
concorrem para um maior e melhor apetrechamento intelectual e
sócio-educativo das pessoas cegas, facultando-lhes novos
horizontes culturais e facilitando-lhes a integração ou, por
vezes, a reinserção social aos mais diversos níveis. As pessoas
cegas também já podem conciliar a utilização do suporte
permanente, de ecrã de papel branco, com o rígido ecrã, de vidro
audiovisual ou informático, ou seja o inconfundível e sempre
nobre lugar dos signos onde se elucida o sentido do mundo, o
livro, com o suporte evolutivo, de que o CD-ROM já oferece um
modelo.
Na realidade e inteligibilizando um pouco estes postulados,
a cultura é um complexo evolutivo amplamente aglutinador de
questões experienciais e intelectuais, o qual (consubstanciado
no instrumento intelectossocial -escrita e cultura são
indissociáveis) integra a constituição do móbil sócio-educativo
e cultural detonador de barreiras psico-sócio-pedagógicas e
culturais (mesmo ao nível da auto-interiorização) e propulsor do
progresso aos mais diversos níveis. Sem pretendermos ser
repetitivos (mas antes reforçando a nossa conclusão), é a
cultura e a sensibilidade que conduzem o ser humano à sua
realização plena como pessoa, levando-o, incentivadamente, a
contribuir para o bem da comunidade e de toda a sociedade
humana, sendo pela cultura e pela sensibilidade aumentada, no
seu sentido mais amplo, que a família, a escola, a comunidade e
toda a sociedade humana encontram a sua significação e legitimam o seu sentido. - Mas as pessoas cegas não poderão menosprezar um
outro aspecto, que é fundamental para que lhes reconheçam, inequivocamente,
as suas potencialidades e capacidades. Têm que ser cultas e militantes da
causa tiflológica. E é pela sua militância sócio-intelectual, numa postura
cultural sólida (e sempre disponível) para esclarecer as pessoas
alegadamente escorreitas, é pela sua utensilagem mental que conseguirão
pertencer, de pleno direito e naturalmente, a essa entidade abstracta que é
a sociedade, como legítimas (e não bastardas) células activas, laboriosas,
inteligentes e frutíferas, indissociadas dessa sociedade heterogénea,
dinâmica e evolutiva, mutável mas adaptável à medida do homem, à sociedade
que todos nós somos.
2º GRANDE ITEM
No segundo capítulo, que designámos “Percepção dos Sistemas
Sensoriais numa Dimensão Tiflo-Sócio-Comunicacional”,
aprofundámos a questão da percepção, com especial incidência em
vertentes que julgamos mais interactivas e desfrutáveis pelas
pessoas cegas, assente num determinado enquadramento
fenomenológico (ainda que tal enquadramento se tenha feito de
uma forma muito preliminar), em que a capacidade de observação
do indivíduo indica a primeira das questões fundamentais a serem
consideradas, a forma pela qual o uso dos sentidos habilita a
pessoa a conhecer o ambiente, sendo o processo da observação
constituído por dois passos (que entendemos sucessivos e
indissociáveis): a atenção, que é o passo preliminar, a
preparação para observar, e a percepção, que é o passo final, a
verdadeira observação de algum facto ou objecto, o que também
nos remete para o conceito de “antecipação perceptiva”, que
desempenha uma importante função no âmbito da percepção
ambiental e que abordámos no quarto ponto do segundo capítulo. A
palavra “percepção” designa o processo pelo qual se chega ao
conhecimento do ambiente que nos envolve através dos sentidos,
devendo a definição, porém, ampliar-se e abranger a capacidade
que o indivíduo possui para descobrir também, por meio dos
sistemas sensoriais, factos referentes propriamente, à sua
pessoa, sendo a percepção, nesta perspectiva, o processo de
chegarmos ao conhecimento de objectos e de factos objectivos por
meio dos sentidos. (Robert s. Woodworth e Donald G. Marquis,
1962).
Para ampliar o grau de percepção, de mobilidade e
orientação e por consequência autonomia e interacção social, há
necessidade de apoio psicomotor. Sabe-se que é pela visão que se
integra a actividade motora, perceptiva e mental da criança
(também do adulto consoante as circunstâncias), sendo através da
visão que se estabelecem as ligações dos primeiros esquemas que
são responsáveis pela integração das mensagens, através das
quais se dão significações a cada um dos sistemas (Piaget, “Le
Développement des Mécanismes de la Perception”, 1961).
A permanência do objecto, a fixação e a sua localização são
solidárias com a estabilidade espácio-temporal do universo
vivido. Como é que a criança ou jovem deficiente visual
ultrapassa as fases assimilo-acomodativas para atingir a
linguagem? Como facilitar a instabilidade da criança/adulto
deficiente? Como melhorar a equilibração e o conhecimento do
corpo?
São estas questões a que, desde que se tomem as medidas
necessárias, a terapia psicomotora pode responder. Reconhece-se
que a criança ou o jovem deficiente visual tem uma má adaptação
sensório-motora, (Grasset, “L'Organisation Spaciale et
Temporelle des Enfants Aveugles”, 1971), apresenta várias
dispraxias associadas a paratonias e a comportamentos de
ansiedade e insegurança (A. Labrégere, “Aveugles et Amblyoples”,
1973), para além de a sua autonomia e exploração espacial
estarem condicionadas.
Compreende-se que no plano psicomotor existam várias
perturbações, como sejam deslateralizações, laxidão articular,
reacções hipertónicas, movimentos sacados e rígidos, ausência de
liberdade corporal, etc., aspectos que podem vir a ser
aperfeiçoados com a intervenção de uma terapia psicomotora.
Com este tipo de intervenção, convém que seja o mais cedo
possível, poder-se-ão atingir, entre outros, os seguintes
objectivos:
-
Valorização das sensações quino-tácteis e
tacto-quinestésicas, que vão permitir melhores precisões
espaciais e mais convenientes representações gestuais,
proporcionando uma interiorização do movimento mais ajustada
e coerente, garantindo-se simultaneamente a noção básica de
oposição ao mundo e a tomada de consciência do Eu.
-
Integração de noções de espaço (aspectos gráficos practo-gnósicos) e de tempo (duração, intervalo, sucessão),
memorização, ideação, coordenação e expressão, permitindo à
criança/jovem a satisfação dos seus desejos, progredindo no
plano das aquisições (intelectuais e motoras) e do
comportamento.
Os espaços de recreio, as actividades de extensão escolar,
designadamente na frequência e utilização de ludotecas,
constitui um excelente contributo ao nível do desenvolvimento da
psicomotricidade da crinça/jovem deficiente visual. Reportando-nos às ludotecas, estas são espaços com um conjunto de
actividades integradas (com jogos e gravações), e sabemos que o
jogo tem merecido da parte de psicólogos e psicanalistas
variadíssimas formas de reflexão, não esquecendo a sua análise
antropológica e sociológica. E não temos dúvidas em sustentar
que o jogo é um vulcão de descobertas, pessoais e sociais, um
prelúdio psicomotor da inteligência, sendo por intermédio do
jogo que a criança combate a sua solidão, adquirindo nele
noções de orientação e formas de construção, inclusivamente
mental. O jogo é fundamentalmente a expressão de uma vitalidade
mental e a concretização de um dom psicomotor.
Na realidade, é saudável que muitas situações-problema sejam
apresentadas numa atmosfera lúdica, descondicionante,
desinibidora, libertadora, desbloqueadora, como formas
projectivas de valorização do universo mágico das crianças e dos
jovens.
De facto, inúmeros psicólogos e psicoterapeutas se têm dedicado
ao estudo do jogo e numerosos trabalhos atestam o seu valor
terapêutico e pedagógico.
Num trabalho bem orientado, poder-se-ão atingir objectivos, tais
como:
-
Desenvolvimento do espírito de equipa
-
Desenvolvimento da autonomia na resolução de problemas e na
velocidade de reacções
-
Melhoria da auto-estima
-
Desenvolvimento da capacidade de jogar cooperação versus
oposição
-
Promoção da cultura
-
Desenvolvimento da criatividade
-
Desenvolvimento da memória de curta e longa duração
-
Convívio entre os alunos
-
Desenvolvimento da sensibilidade táctil
-
Desenvolvimento da praxia fina
O treino de mobilidade tem uma importância fundamental na
liberdade de movimento e na autonomia da criança/jovem com
deficiência visual. Há necessidade de observar até que ponto a
criança/jovem tem um reconhecimento vivido do mundo
tridimensional e, com base neste dado, detectar, o mais
fielmente possível, problemas de concepção, estruturação,
retenção e organização espacial. A inadaptação espacial é uma consequência pós-sensorial, onde a somatognósia e experiência
motora ocupam lugar de relevo.
Segundo Piaget (em “La Géométrie Spontanée de l'Enfant”, 1963),
a unidade da consciência apoia-se na experiência vivida e nas
coordenadas cognitivo-reflexas das operações. De uma forma
geral, a inadaptação espacial pode condicionar, em grande
medida, o grau de disponibilidade da experiência subjectiva e,
de certa forma, apresentar-se como dificuldade e obstáculo à
génese das estruturas de aprendizagem.
Deve promover-se a concretização dos seguintes objectivos:
-
Orientação espacial
-
Integração espacial esquerda-direita
-
Capacidade de estruturação espacial
-
Capacidade de representação espacial
-
Ajudar a criança/jovem com deficiência visual a deslocar-se no
espaço e a orientar-se nele
-
Treino em actividades da vida diária.
Relativamente à manutenção da posição de pé, se não existir uma
informação coincidente entre a informação visual, a vestibular e
a quinestésica, o indivíduo segue a informação visual mesmo que
esta o esteja a induzir em erro.
Pick(1980) cita ainda um outro estudo efectuado por Pick, Warren
e Hay(1969) com indivíduos cegos em que era posta em conflito a
informação auditiva e a proprioceptiva: numa situação de queda
de um objecto, os indivíduos demonstram tendência a seguir a
informação proprioceptiva, embora a auditiva também tenha alguma
influência.
Num outro estudo do mesmo tipo, realizado com indivíduos cegos e
com visão, Warren e Pick (1970), obtiveram resultados
semelhantes, afirmando que neste caso, tal como Fisher (1964),
os indivíduos cegos que adquiriram a cegueira tardiamente são
influenciados pela sua experiência visual na execução de uma
tarefa de integração sensorial não visual.
Paillard(1976), citando Gibson, afirma estar demonstrado que a
informação visual predomina sobre a proprioceptiva sempre que é
colocada uma situação de conflito entre ambas.
Uma afirmação deste tipo é também feita por Zelnicke, Gregor e
Cratty (1982) em relação ao substracto sensorial do equilíbrio.
Segundo eles o indivíduo necessita de informações exteroceptivas
e proprioceptivas para se conseguir equilibrar, ficando a
dever-se à visão o papel informativo mais poderoso.
Em resumo, parece poder-se afirmar que a informação visual
desempenha um papel preponderante em relação aos outros tipos de
informação sensorial na deslocação no espaço. Ela dá com mais
facilidade e rapidez a informação de:
onde nos encontramos;
orientação em relação à gravidade, pela apreciação da
verticalidade; de localização da horizontal, medição das
distâncias e das mudanças de posição relativa, fornecendo pontos
de referência;
manutenção do equilíbrio do corpo, desempenhando neste caso a
visão periférica o papel fundamental.
Hall(1979) e Hill(1980) afirmam que o tratamento da informação
sensorial não implica apenas o que é percebido mas também o que
pode ser eliminado. O modo como tal selecção é efectuada depende do meio cultural onde as crianças estão inseridas: elas aprendem
desde a infância, mas sem o saberem, a eliminarem ou a reterem
com atenção tipos de informação muito diferentes.
Durante muito tempo pensou-se que construir a imagem do espaço
era um privilégio que cabia exclusivamente ao sentido da vista.
Todavia, o avanço do conhecimento permitiu equacionar a
interligação sensorial e a percepção háptica como forma
alternativa para a construção dessa imagem. Nesse sentido, a
preocupação das investigações no domínio não se prende somente
com a caracterização das diferenças de desenvolvimento e forma
de apreensão do espaço geográfico, mas também com a forma de
lhes fornecer mais informação do meio circundante, através da
construção de mapas tácteis, conforme o atestam Fletcher(1980),
Hollyfield e Foulke(1983), entre outros.
A modalidade sensorial háptica depende de receptores que se
excitam pela estimulação mecânica da pele e pelas repercussões
cinestésicas ou de movimento que se produzem, quando esta entra
em contacto com os objectos. Por outro lado, a propriocepção
depende, em geral, da transmissão interna de sinais cinestésicos
e de equilíbrio. Estas modalidades sensoriais proporcionam
informação sobre formas, tamanhos, superfícies, posição relativa
dos objectos, assim como do movimento destes. Talvez a
informação mais importante que estes sentidos fornecem à pessoa
cega, quando se desloca, seja a relativa à textura, composição e
contorno das superfícies, nas quais caminha. Mas, para que
exista percepção com estas modalidades sensoriais deve,
necessariamente, ocorrer contacto físico entre aquilo que produz o estímulo e o receptor sensorial, o que supõe que o campo
perceptivo disponível, a antecipação perceptiva, seja
consideravelmente reduzida. Para além disso, quando os objectos
têm grandes dimensões, a percepção e reconhecimento dos mesmos
realiza-se de forma fragmentária, podendo o conjunto desses
fragmentos proporcionar à pessoa cega o conhecimento global da
realidade que estiver a ser percepcionada. No entanto, a maior
parte dos investigadores que se debruçaram sobre este tema,
entre os quais Hermelin e O'Connor(1982), mantêm a hipótese de
que a percepção háptica apenas permite aos indivíduos organizar
o espaço parcialmente, dando origem a representações de carácter
subjectivo e egocêntrico, eventualidade que poderá ocorrer em
maior ou menor grau, acrescentamos nós, consoante o potencial
informativo de que se dispuser no momento.
Em síntese, tratámos, com a profundidade possível, a percepção
dos sistemas sensoriais numa dimensão tiflo-sóciocomunicacional,
passando por algumas reflexões em torno do
conceito fenomenológico de percepção, para, em seguida,
abordarmos a questão do “sentido dos obstáculos” ou tacto dos
sistemas sensoriais alternativos ao da vista, mergulhando em
aspectos do sentir e do perceber, equacionando a interligação
sensorial e a percepção háptica, bem como na perceptibilidade
destes sistemas sensoriais como garante da comunicabilidade,
sociabilidade, mobilidade, autonomia e interacção das pessoas
cegas, conferindo alguma fundamentação científica
(necessariamente imbuída de um certo empirismo) a esta questão,
até porque vestimos e experienciamos toda esta problematicidade,
pela circunstância de sermos uma pessoa cega, contribuindo assim também para a fundamentação teórica de todas as questões tiflosócio-comunicacionais e tiflo-interactivas que elegemos e
constituem parte integrante do objecto desta investigação.
3.º GRANDE ITEM
No terceiro capítulo, a que chamámos “A Questão da
Tiflografia num Contexto Comunicacional e Histórico-Cultural”,
aprofundámos a questão do alargamento da comunicação e da
cultura das pessoas cegas, bem como da consequente ampliação da
sua utensilagem mental para agir e interagir com independência
na sociedade, em que assume preponderância vital a tiflografia
como indispensável instrumento intelectossocial que, desde as
mais ancestrais tentativas tiflográficas até à braillografia e
braillo-informática, muito tem contribuído para a emancipação
sócio-intelectual daqueles cidadãos e consagração de igualdade
de oportunidades em relação aos normovisuais.
Numa sucessão de passos histórico-culturais para a
constituição de um sistema de leitura e de escrita ajustado ao
sentido do tacto, como veículo de cultura em analogia com os
sistemas de leitura e de escrita para as pessoas normovisuais,
concentrámo-nos aprofundadamente no fulcro do nosso objecto de
estudo, que são os resultados da árdua tarefa da nobre tríade
francesa formada por Valentin Haüy-Charles Barbier de la Serre-Louis Braille, abordando a génese e a evolução da tiflografia
num contexto comunicacional e histórico-cultural, outras
iniciativas tiflográficas (goradas) como alternativa ao sistema
Braille (alfabetos Moon e Mascaró), critérios de produção e
de publicação em braille, o esforço coroado de êxito no que
respeita ao acesso legal das pessoas cegas ao ensino público,
materiais braillográficos e serviços de produção e de utilização
em Portugal, não deixando de referir também as publicações em
série portuguesas para as pessoas cegas, de forma a, no quarto
capítulo, podermos evidenciar razões que nos levam a enumerar
vantagens da tecnologização da tiflografia, como inigualável
contributo para a informação, formação, interacção social e
independência sócio-intelectual das pessoas cegas.
Sem pretendermos ser redundantes, conferimos à
institucionalização do sistema braille, como instrumento
intelectossocial universal para as pessoas cegas, o
inquestionável relevo enquanto meio de comunicação vital e
principal propulsor da sociabilidade, da comunicabilidade, da
interacção e da consequente integração sócio-intelectual destes
cidadãos, desiderato que veio a ser reforçado e consolidado com
os contributos da moderna tiflopedagogia, da redimensionada e
ampliada tiflografia e da informação estruturada. Isto porque estamos cientes de que o binómio leitura-cultura constitui um direito de todos os cidadãos (diferentes ou
não), sendo, desde sempre, uma prerrogativa humana integrante e
determinante do progresso da sociedade humana em todos os
domínios. A ausência de leitura e de cultura (ou a sua
inacessibilidade) traduz-se sempre em apatia, pobreza
espiritual, excrescência vegetante na sociedade alegadamente
«escorreita», em involução. As pessoas cegas não podem ignorar,
nem sequer negligenciar, esta inquestionável realidade (a
imprescimdibilidade da leitura-cultura), como móbil
imprescindível à natural imposição da sua plena integração na
sociedade, o que é possível sem grandes reservas mediante a
utensilagem mental e a militância sócio-intelectual que forem capazes de evidenciar, de forma segura e determinada, nunca
perdendo a oportunidade de esclarecerem a sociedade, numa
postura pedagógico-didáctica e cultural sólida e clarividente.
4.º GRANDE ITEM
Finalmente, no quarto capítulo, que denominámos “As
Vantagens da Tecnologização da Tiflografia e da Acessibilidade
da Informação às Pessoas Cegas”, tratámos questões que nos
preocupam profundamente, ao nível dos muitos esforços, empíricos
e científicos, que têm vindo a ser desenvolvidos sobre a
tiflologia e que, progressivamente, nos têm vindo a ajudar a
solucionar (com uma eficácia cada vez mais aprimorada) prementes
problemas que ainda condicionam as pessoas cegas na
acessibilidade (com independência) à informação e à cultura.
A tiflologia não se nos apresenta ainda propriamente como
uma ciência, mas como uma posição plurifacetada, traduzida numa
actividade multidisciplinar, em que convergem disciplinas do
âmbito de diversas ciências (designadamente oftalmologia e
outras especialidades da ciência médica, psicologia, pedagogia,
sociologia, engenharia, arquitectura, acção social, direito e,
mais recentemente, a informática, com o objectivo de se
compreender integralmente o deficit funcional motivado pela
deficiência visual em todas as suas implicações intrínsecas e
extrínsecas ao deficiente, procurando, na medida do possível,
reduzir ou eliminar essas implicações. Esta preocupação já
tornou possíveis um leque de conquistas, das quais já merecem
destaque as seguintes:
-
reconhecimento de uma configuração tipológica
justificativa da separação da deficiência visual de outras deficiências, com as quais a princípio andou misturada, como a surdez e a mudez;
-
definição do conceito de deficiência visual, determinação
dos seus graus e tipificação dos quadros da sua ocorrência;
-
desenvolvimento de métodos, técnicas e ajudas tiflotécnicas, especialmente no âmbito de actividades de índole tiflopedagógica e tiflolaboral;
-
reconhecimento do direito à orientação e mobilidade em
segurança na via pública e nos transportes públicos;
-
distinção e caracterização do segmento da hipovisão, com a adopção de técnicas e equipamentos apropriados;
direito ao acesso à informação, ao esclarecimento, à fruição de bens culturais e
artísticos, à prática
desportiva, ao apoio à terceira idade, à preparação familiar, ao
enquadramento legislativo sectorial, etc.
A capacidade criadora, a inteligência e a sensibilidade do homem
constituem o móbil e a inexpugnabilidade da evolução do mundo e
do progresso a todos os níveis, do redimensionamento e da
ampliação de potencialidades e capacidades humanas, da
transformação das mentalidades. E aí temos a ciência e a técnica
informáticas a ajudar a operacionalizar com mais eficácia e
rapidez a vida das sociedades, das pessoas com dificuldades
específicas, por exemplo no acesso à informação e à cultura,
sendo as pessoas cegas as que mais têm sentido e sofrido essa
inacessibilidade, lacuna que, sobretudo desde o século passado,
tem vindo a ser progressivamente colmatada, primeiro com a
criação do sistema Braille, depois com o fabuloso contributo da
informática e das tecnologias dela decorrentes.
Assistimos neste momento a novas (e até há poucos anos
inimagináveis) possibilidades proporcionadas às pessoas cegas
baseadas no contributo da informática, nas vantagens da
tecnologização da tiflografia e da acessibilidade da informação, o que nos levou a desenvolver o último capítulo com especial
relevância para a importância das novas tecnologias para as
pessoas cegas, pois que, do braille à braillo-informática e da
informação analógica à digital e estruturada (em que o
específico equipamento informático de leitura e de escrita cada
vez mais se tem vindo a ajustar às necessidades especiais), as
perspectivas actuais da acessibilidade da informação, no plano
informático-tecnológico, preparam, para as pessoas privadas da
sensibilidade visual, um futuro de maior e independente
acessibilidade à informação e à cultura, de uma maior e
eficiente autonomia e interacção, de uma mais ampla
comunicabilidade e sociabilidade, de uma mais profícua
actividade sócio-cultural e sócio-profissional, satisfazendo
naturais exigências pessoais e sociais.
Os hardware e software inicialmente criados para as pessoas
cegas poderem aceder à informação em formato electrónico ou a
computadores estavam preparados para correr apenas em ambiemte
DOS. Presentemente, foram inventados software que permitem a
compatibilização de equipamentos preparados para DOS para
correrem também em ambiente WINDOWS. Mais recentemente, surgiram
software especialmente para ambiente WINDOWS, como,
designadamente o «Virtual Vison», Micropower em S. Paulo, que é
um leitor de ecrã usando o Sound Blaster,e o «Zoom Text», que
também usa o Sound Blaster, sendo simultaneamente ampliador de
ecrã, da Ai Squared Inc. em Manshester Center, em Vermont, nos
Estados Unidos.
Logo no primeiro capítulo, referimos que a comunicação entre os
seres locutores pode estabelecer-se através do acto de falar (a
simples oralidade), da língua gestual, dos movimentos corporais,
das mais diversas artificialidades e notações gráficas da
linguagem, abrangendo, indiscutivelmente também, a tiflografia,
sistema de leitura e de escrita este que, pela sua
fundamentação, evolução e consistência logográfica (encarado à
luz e dimensão puramente braillológica), é o nosso objecto de
estudo neste livro, integrando, necessariamente, outros factores
e outros contributos da fenomenologia e da psicologia humanas
(nos domínios psico-sensório-motor, perceptivo-motor, sensório-intelectual e cognitivo), de forma a podermos concluir (sem equivocidades) que as pessoas cegas, desde que consolidadamente
incentivadas, ensinadas, orientadas e apetrechadas naqueles
domínios, desde que propendendo para a amplitude de valores e
despertas intelectualmente para essa abrangência, são, sem
margem de dúvidas, capazes de aceder à informação e à cultura,
autonomizando-se, socializando-se e interagindo sem
dificuldades, com natural direito à generalizada igualdade de
oportunidades aos mais diversos níveis. São, de resto, reflexões
que fizemos, tão aprofundadamente quanto nos foi possível, à luz
da moderna tiflologia e tiflografia, ao nível da
problematicidade comunicacional e informacional, numa tentativa
de contribuirmos para a ampliação do paradigma comunicacional e
dos horizontes das Ciências da Comunicação.
Simultaneamente (o que vem potenciar ainda mais e tornar
inequívocas as capacidades das pessoas cegas, potencialidades e
capacidades até há pouco tempo prisioneiras da ignorância ou
cegueira intelectual e negligência de determinadas mentes
humanas, em muitos casos amorfizadas por falsos preconceitos
sociais e por uma certa involução de saberes na sociedade),
apresenta-se-nos hoje de forma fascinante a questão do acesso
destas pessoas à informação e à cultura, processo que tem
passado, ao longo da História, por diversas vicissitudes, mas
sempre num itinerário evolutivo, de descoberta constante de
outras potencialidades (umas que se manifestam sem que disso nos
demos conscientemente conta, outras adormecidas por não terem
representatividade consciente na centralidade da visão),
surgindo e implementando-se novos valores no âmbito da ampliação
sensorial e da decorrente sensibilidade aumentada, o que já se
traduz num normal e elevado grau de acessibilização.
Numa época (a nossa) em que os processos de acessibilidade a
este vasto domínio do conhecimento (a informação e a cultura)
estão em frenética renovação, as pessoas cegas não poderão
alhear-se destas questões, tanto mais que se lhes abrem
horizontes até há pouco tempo inimagináveis. Já estamos a
assistir a uma revolução na vida destas pessoas, pelo menos ao
nível sócio-intelectual, muito superior àquela que (embora muito
justamente nela baseada) lhes foi proporcionada com a criação e consequente difusão do sistema Braille, no século XIX.
Hoje em
dia, a pessoa portadora de deficiência visual, em especial a
totalmente cega, já poderá, utilizando determinadas e adequadas
tecnologias, manipular e aceder à informação do mesmo modo que a
pessoa normovisual, cujas consequências (uma incomensurável
transformação ao nível da inequivocidade das suas
potencialidades e capacidades e das mentalidades da generalidade
dos cidadãos) aprofundámos no quarto capítulo.
Ao longo da sua história, o homem tem vindo a ampliar e a
aperfeiçoar os seus processos de comunicação e de informação,
criando, para a efectiva materialização destes processos, os
mais diversos e sofisticados dispositivos.
Não podemos viver realmente sem a informação e sem a
comunicação, sob pena de não passarmos de um estado amórfico e
de sucumbirmos intelectualmente, sendo o século XX o século da
informação, tal como o século XIX foi o século da produção
industrial. Todos nós sabemos que o valor informativo de uma
qualquer realidade vai diminuindo o seu impacto junto das
populações à medida que se vai integrando no universo de saberes
aceite pela sociedade. Todos nós sabemos que o valor informativo
da afirmação de que a Terra girava à volta do Sol era certamente
grande no tempo de Galileu, mas que deixou de o ser, a partir do
momento em que passou a integrar o saber aceite de maneira
indiscutível pela nossa sociedade.
Chegou pois também o momento de o valor informativo de
determinadas realidades e de certos conceitos de índole
tiflológica, designadamente no que se refere à acessibilidade
das pessoas cegas à informação, à formação e à cultura, o que
lhes desenvolve a sociabilidade, a comunicabilidade e a
interacção, capacitando-as indiscutivelmente para o perfeito
exercício de funções aos mais diversos níveis, deixar de
impressionar mentes de convicções obsoletas, e de as mensagens
sobre realidades comprovadas neste domínio (com o indispensável
esforço das pessoas cegas e das pessoas normovisuais) integrarem o mundo das mensagens socialmente aceites como prováveis ou
indiscutíveis, traduzindo-se o valor informativo destas questões
em constatações inequívocas, aceites naturalmente pela
sociedade, sem comiserações, sem paternalismos, sem
superproteccionismos.
Estamos hoje em contacto permanente e instantâneo com uma
multiplicidade de mundos da experiência que se situam fora do
horizonte da nossa percepção espontânea, fazendo com que a nossa
percepção da realidade ultrapasse cada vez mais as barreiras de
espaço e de tempo que delimitam os quadros de referência da
nossa percepção da realidade e as fronteiras do nosso mundo.
Complexos e sofisticados dispositivos de informação, como o
telefone, o cinema, os jornais, a rádio, a televisão, os
satélites de telecomunicações, o telefax, o correio electrónico,
os discos compactos, o computador, as redes e os sistemas
integrados de serviços telemáticos, fazem parte do nosso dia a
dia, definem novos horizontes da nossa experiência, alargando a
esfera de percepção e de intervenção no mundo, elaborando a
nossa própria representação da realidade.
Hoje em dia, sem sairmos do nosso quarto ou da nossa sala de
estar, através dos sistemas de informação temos o mundo inteiro ao nosso alcance. É por isso que dificilmente poderíamos hoje
imaginar a nossa vida sem estes dispositivos mediáticos que
passaram a fazer parte integrante dos nossos próprios órgãos de
percepção. O telefone e a rádio são autênticas próteses
auditivas do homem do nosso tempo (a que as pessoas cegas, mais
do que ninguém, recorrem para também ampliarem e sedimentarem
conhecimentos), a televisão projecta a nossa visão (o nosso
conhecimento, o nosso saber) até aos confins do planeta, os
computadores substituem cada vez mais a componente mecânica da
nossa memória e facultam, sobretudo às pessoas cegas, uma
extraordinária extensão dos sistemas sensoriais (tacto, tacto
dos sentidos), da perceptibilidade aumentada dos sentidos, da
atenção e intuição, mediante o contributo da informática e das
novas tecnologias dela decorrentes, os software e os interfaces
específicos, em cujo domínio a Câmara Municipal de Lisboa já
disponibiliza para todos os cidadãos um pólo interactivo de
recursos especiais, o Gabinete de Referência Cultural, bem como
a “Dinamização Cultural” que leva aos seus inúmeros leitores-ouvintes espalhados pelo mundo uma heterogeneidade de
informação, até agora inédita ou que era inacessível às pessoas
cegas. Os dispositivos electrónicos da informação permitem
ultrapassar cada vez mais as limitações do espaço, do tempo e
dos handicapes que, até há pouco tempo, nos mantinham
relativamente confinados à comunidade (segregacionista ou não)
que nos tinha visto nascer, viver (ou vegetar), crescer e
perecer.
Na realidade, os meios de comunicação, na ampla acepção da sua
significação, constituem autênticas próteses e extensões de
infinito alcance do homem.
É neste universo de grandes e espantosas afirmações, que importa
inscrever as incidências do progresso das novas tecnologias da
informação que vieram dar novos rumos ao mundo, neste caso, da
reabilitação, designadamente a computorização, as ajudas
técnicas e outros meios auxiliares de processos comunicacionais,
em especial da leitura e da escrita, permitindo hoje a natureza
cibernética das novas tecnologias acelerar o processo
informativo, ultrapassar as barreiras espaciais à circulação da
informação, neutralizar a subjectividade dos actores sociais,
homogeneizar as mensagens, converter a informação num “fluxo
contínuo e planetário.”.
Há comunicólogos de renome que estão, com inquestionável rigor
científico, muito centrados sobre o problema da linguagem e num
certo sentido que tem por detrás a ideia da teoria da visão.
Embora reconhecendo essa incontestabilidade, estamos a procurar
justificar (porque o sentimos) um alargamento do paradigma da
comunicação, visto que, a nosso ver, a comunicação é algo de
muito mais complexo, sendo alguns dos seus elementos quase
inconscientes. De certo modo, problematizamos o modelo
restritivo da comunicação e propomos um modelo alargado a partir
de conceitos redimensionantes que apresentamos-oda visão, o
da percepção dos sentidos (no que se integra a atenção)eoda
tecnologização da tiflografia -, radicados nos restantes
sentidos para suplementarem a visão, dando-nos hoje as novas
tecnologias não só um suplemento da visão, como uma visão mais
completa das coisas, criando para as pessoas cegas uma “visão” em alternativa e desinibida de metaforicidades, uma
comunicabilidade, sociabilidade, autonomia, interacção e
sensibilidade aumentadas.
Estamos cientes de que ainda nos falta o levantamento e a
análise de inúmeras questões que se prendem com o inexaurível
mundo das potencialidades dos sistemas sensoriais sobretudo nas
pessoas cegas, faculdades que é preciso continuar a descobrir
(investigando-as em profundidade), a estudar e a revelar, no
sentido de, em definitivo, perecerem nas mentes designadamente
de todos os comunicólogos e da generalidade dos normovisuais
reservas em relação às inequívocas potencialidades e capacidades
das pessoas que, não obstante privadas da vista, podem utilizar
as restantes modalidades sensoriais para viver com independência
e observar o mundo, numa perfeita interacção com os outros
indivíduos.
Este livro destina-se, pois, a todos os estudiosos e
investigadores e à generalidade das pessoas inquietas e
receptivas à novidade que procuram a compreensão e explicação
dos fenómenos relacionados com o ser humano, que é capaz de
exercitar e de pôr em prática potencialidades ao nível da
mobilidade, da perceptibilidade espacial e sensorial, com
relevância para a perceptibilidade háptica, sem a modalidade
sensorial mais absorvente que o ser humano possui: a vista.
Tivemos uma atitude mais crítica (e de forma crescente) nos
primeiro e segundo capítulos, imprimindo um cunho mais
descritivo aos terceiro e quarto capítulos, acentuando-se esta
forma descritiva no terceiro capítulo (por abordar um conteúdo
mais histórico-cultural da génese, da evolução e imposição
universal da tiflografia), tornando a assumir, no quarto
capítulo, um aparato crítico embora menos incisivo do que nos
dois primeiros, por sentirmos a necessidade de também
descrevermos matéria que, até agora, não havia sido publicada
com esta trajectória e dimensão e interpretação, pois existia
muito dispersa e impunha-se fazer um estudo recapitulativo da
mesma.
Trata-se de um novo olhar sobre as pessoas cegas, em certa
medida de uma reflexão sobre a emergência de novos dados para
uma (se calhar) nova ciência do homem, a tiflologia, que vem pôr
em causa estruturas meramente teóricas baseadas em paradigmas
mecanicistas, procurando ser um convite à reflexão e à
construção de uma nova realidade no âmbito da problematicidade
da cegueira “em busca do mais ser”.(Anna Maria Feitosa, 1993).
Naturalmente sentimos uma vontade quase incontrolável de não
parar aqui. A problematicidade que nos galvanizou parece não ter
fim. Há como que uma infinidade de processos (ainda que nalguns
casos elementares), que são as sensações, surgindo um agora e
outro mais daqui a pouco, nunca isoladamente mas sempre
integrados em complexos psíquicos ou percepções, tomando nós
cada vez mais consciência desta realidade tiflológica nova, sob
a forma de estruturas ou totalidades sempre revestidas de
significação e exigindo explicações clarificantes. E estamos
conscientes de que esta investigação, nalguns casos, ainda é
inconclusiva, ansiando nós ainda por continuar a reflectir
alguns estados de latência, numa busca infatigável de mais luz e
de uma linguagem inteligível, permitindo-nos uma comunicação inequívoca e tranquilizante. Como Anna Maria Feitosa(1993)
refere, também temos “ânsias de voos”, embora reconhecendo a
“insegurança do tempo” e aconselhando-nos “prudência”.
Ficaremos muito gratificados intelectualmente se, com a problematicidade que tanto nos motiva, pudermos, de algum modo e
modestamente, contribuir para o alargamento do paradigma da
comunicação. A nossa reflexão poderá ampliar este domínio,
embora estejamos cientes de que o mundo nem sempre mude com uma
ampliação ou mutação de paradigma, mas, depois da nossa proposta
de extensão do paradigma comunicacional, o cientista poderá
trabalhar, certamente, num mundo diferente. Na verdade, “um
paradigma” é “uma forma de olhar. Mudar de paradigma: mudar de
olhar.”. O termo paradigma está “fortemente associado à
passagem de uma concepção da história concebida em moldes de
continuidade para uma concepção da história concebida em moldes
de descontinuidade.”. Conquanto ainda estejamos longe de
uma pretensão genuinamente científica, não podemos deixar de
referir que, a este propósito, Thomas S. Khun sustenta que,
“quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo.
Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos
instrumentos e orientam seu olhar em novas direções.”.
Que este nosso contributo, conquanto modesto, mereça o
necessário acolhimento na comunidade científica.
ϟ
Para uma Nova Comunicação dos
Sentidos! Augusto
Deodato Guerreiro Secretariado Nacional
para a
Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, Lisboa Livros SNR n.º 16, 2000.
Δ
27.Jul.2010
publicado
por
MJA
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