

Jogo da Cabra-Cega - fotografia de
Evgen Bavcar - 1997
1. REALIDADE E IMAGINAÇÃO: DOIS MUNDOS
A SEREM EXPLORADOS
A compreensão exata da construção do pensamento de uma criança com deficiência
visual deve pautar-se em estudos cientificamente
comprovados. Juízos prévios e precipitados precisam ser evitados para
que antigos mitos não sejam reforçados nem novos e danosos preconceitos sejam
instalados.
O universo interno da criança cega, de modo geral, sofre uma
sensível baixa de significações. Os desdobramentos naturais do pensamento podem,
de forma drástica, perderem sua capacidade de extensão
e de profundidade.
O universo externo torna-se pequeno em conhecimento e significado real.
Como perceber essa criança?
Como entender a formação desses dois universos que precisam interpenetrar-se
para que construam os alicerces da cognição e da subjetividade?
A criança cega ou com baixa visão possui estruturas mentais
idênticas às da criança vidente. Entretanto, a maneira de acioná-las, fazendo-as
válidas e autossuficientes, é que irá estabelecer as diferenças
perceptivas e conceituais que entram em seu desenvolvimento produtivo e
funcional. Assim, não se pode rotular a deficiência visual, pura
e simplesmente, como única responsável pela restrição dos aspectos
imaginativos do pensamento da criança cega, em particular.
A cegueira, nesse caso, é um fator importante a considerar; todavia, pode ser
minimizado em grande parte e, certamente, em muitas
incursões no caminho do conhecimento, pode ser até eliminado.
A forma de conduzir o processo de desenvolvimento cognitivo e
da imaginação da criança com deficiência visual necessita firmar procedimentos
pertinentes às condições de aprendizagem da criança em questão. A apreensão do
mundo que a rodeia dependerá de como esse
mundo chegará ao seu entendimento e concretização.
Vive-se sob o “império da imagem”. O elemento visual é supervalorizado e a
faculdade de “ver” (enxergar), transforma-se na via
preferencial para a aquisição do conhecimento. O olhar traz consigo a
“chave mágica” que abrirá as portas a fim de que sejam deslindados
todos os mistérios do mundo e todos os segredos da vida.
O ato de “ver” passa a ter um poder absoluto. Fora dele, o que
resta é muito pouco. Tal reducionismo deve ser revisto, principalmente,
dos postulados que guiam a educação em geral.
O entendimento do mundo dos objetos, das pessoas, dos lugares,
da natureza, o mundo externo que congrega tantas diferenças é percebido e
apreendido pelos cegos por meio de meios próprios que são
desenvolvidos pelo concurso de percepções trabalhadas e dos sentidos
remanescentes aguçados.
A relação entre a pessoa cega e o mundo estabelece-se por esses
mecanismos e, por eles, o “mundo do saber” faz-se presente e materializado na
sua ascensão intelectual e humana.
A visão sobre a cegueira é sempre carregada de concepções desfavoráveis e,
muitas das vezes, equivocadas e cruéis. Seja na análise popular,
seja na análise literária, a figura do cego é desenhada com traços antitéticos
e hiperbólicos, tanto nos aspectos positivos, quanto nos aspectos negativos.
A cegueira é metaforizada em diferentes campos e abordagens.
Compreender, pois, a cegueira é um caminho seguro para oferecer-se à criança
cega reais oportunidades e maiores possibilidades de
crescimento efetivo, dando-lhe condições de ombrear-se, verdadeiramente, à
criança vidente no exercício do seu direito ao desenvolvimento pleno de suas
reais potencialidades.
A literatura clássica ou popular, as canções, o teatro e o cinema
também disseminaram as mesmas ideias sobre a cegueira. A análise
dos personagens cegos, veiculada pela literatura, mostra que as características
fictícias usadas para descrever os cegos são tão contraditórias
quanto as concepções populares emitidas a esse respeito.
A literatura às vezes apresenta cegos diabolicamente maus, como cegos detentores
de uma sublime bondade. Inúmeras vezes, ainda, a cegueira
aparece como punição divina, como também converte-se em dádiva do céu, guardando
em si um caráter compensatório. Bons ou maus, são sempre vistos como “seres
especiais” pelos escritores ou pelo povo em geral.
Desde a antiguidade, nos mitos, na Bíblia Sagrada, na Grécia
Clássica, a cegueira serviu como metáfora para a expressão dos mais
diversos sentimentos:
O rei Édipo furou os próprios olhos quando descobriu que matara
seu pai e se casara com a mãe.
Sófocles descreveu a cegueira como algo pior que a morte. Revelava-se como uma
autopunição para o pecado do incesto.
Em sentido contrário, tem-se
Tirésias, outro personagem mítico
grego. Tirésias foi destruído, em uma das versões da mitologia grega,
pela deusa Hera. Tirésias fora levado à presença de Zeus e de Hera
para ser questionado quanto ao prazer sexual do elemento masculino
ou feminino. Tirésias afirmou que o elemento feminino sobrepunha-se
ao masculino nesse particular. Por isso, recebeu o castigo de ficar cego.
Porém, foi recompensado com o “dom da premonição”. Os mesmos
deuses deram-lhe o bastão mágico que o guiaria pelas sendas da vida.
O mito de Édipo foi utilizado por Freud como metáfora para a
descrição do desenvolvimento psicossexual. A cegueira, significando
castração, embora a castração no nível do simbólico seja percebida
como uma condição necessária a um desenvolvimento sadio. Em nossa mente,
portanto, a concretização da cegueira parece ligar-se a uma
castração real e representar uma punição exemplar para castigar um
pecado capital, ainda que fosse inconsciente.
Vê-se também, na literatura de ficção, a cegueira forjando metáforas que serviam
tanto ao patético como ao horror, podendo atingir,
concomitantemente, a ambos.
Shakespeare descreveu o
Conde de Gloucester, cego, como punição por adultério,
transformado por tal transgressão num homem dependente, facilmente enganável,
deprimido e miserável.
Victor Hugo, em
O Homem que Ri, refere-se à jovem Déa como
capaz de entrar em êxtase e em profunda harmonia com Deus. Transe
e comunhão atestam tais qualidades, que eram atribuídas à cegueira.
Para alguns escritores, a cegueira significava prejuízo total.
Para outros, significava pureza, libertação das contaminações mundanas trazidas
pela visão. Muitos ainda a viam como simbolização das forças da treva e
da morte.
A escritora americana
Debora Kent (1989) faz uma análise da
cegueira a partir da literatura clássica e da mitologia já mencionadas
neste capítulo.
A autora traz um interessante estudo sobre personagens cegas
retratadas no Romantismo europeu do século XIX e nas novelas americanas do
século XX. A temática recorrente de seus livros enfoca as
relações do cego com a sociedade. As tramas principais são a rejeição
à cegueira, a luta pela independência, a autoestima e o autorreconhecimento. Tal
análise demonstra as mudanças ocorridas na sociedade em
relação à cegueira através dos tempos.
Na literatura do século XIX, observam-se, pela descrição das
personagens cegas, as diferenças sociais da cegueira percebidas por
uma nova óptica. Mesmo dentro dessa nova visão, os cegos sempre
apresentados ao leitor como pessoas que levam uma vida relativamente
normal ainda são exemplos do que pode ser obtido através da fé, da
perseverança. É um juízo ainda ligado a um comportamento fora do
padrão preestabelecido.
Coloca-se em tal posição Elisabeth Maclure, personagem do romance Old Mortality,
de Walter Scott. A personagem é descrita como
uma mulher cega de meia-idade que dirige uma casa de pensão com
muito sucesso e que é ajudada apenas por sua filha de 12 anos.
O caráter mau dos cegos começava a aparecer em fins do século
XIX e toma força nos primeiros anos do século XX, aumentando,
significativamente, na década de 1960. O pirata Pew, da
Ilha do Tesouro, de
Robert Louis Stevenson, o vilão Stagg, de Charles Dickens e o malévolo capitão
Wolf Larsen, de O Lobo do Mar, de Jack London.
Em síntese, pode afirmar-se que a cegueira abordada na literatura, no teatro e
no cinema mostra o cego como pertencendo a uma
classe específica, categoria construída no contexto da própria cegueira.
Exclui-se, assim, a possibilidade de vê-lo como uma pessoa comum,
semelhante a outras pessoas de igual sexo, idade, condição social, bagagem
intelectual. Tal interpretação sobre esse indivíduo faz com que não
haja diferença em relação a outros cegos que não apresentam qualquer
proximidade com ele.
Diante de tal comportamento, percebe-se, claramente, que ainda há uma enorme
estrada a percorrer. O fenômeno da generalização
emerge dos textos e da sociedade. Mas o fascínio pela cegueira perdura.
Entre todas as deficiências, é ela a mais abordada e posta em destaque.
Compreendê-la, por conseguinte, é um passo para que se possa conduzir melhor e
com maior êxito uma criança cega rumo à vida produtiva
e à realização pessoal.
A literatura pôs em relevo a necessidade de os cegos recuperarem
a visão.
No romance de André Gide,
Sinfonia Pastoral, um velho pastor, sempre preocupado
com seu ministério, seus fiéis e sua família,
acolhe Gertrudes, jovem órfã e cega. Apaixona-se por ela e, então,
estabelece-se uma relação de grande conflito. Gertrudes poderia voltar a
enxergar através de uma cirurgia. O pastor protelava por temer
que a jovem não entendesse sua velhice. Mais uma vez, a cegueira
conferia a alguém qualidades que a distanciavam da realidade da
vida comum.
Faz-se importante compreender todos esses mecanismos que forjam ideias e
conceitos duvidosos quanto à pessoa cega.
Ao tratar-se de uma criança, é fundamental percebê-la como alguém que está em
formação, que se desenvolve e que pode alcançar
patamares elevados na vida pessoal e na sociedade. É preciso que se
destruam certos estigmas para que o indivíduo cego ou com baixa visão
possa trilhar o caminho do êxito e da cidadania.
Considerações Finais
O presente estudo trabalhou sobre determinadas questões que se
referem ao imaginário da criança com deficiência visual. Dados foram levantados
e analisados. Da análise e da proposta, constituiu-se a hipótese:
A criança com deficiência visual, em especial a criança cega, tem
seu imaginário empobrecido, seu acervo imaginativo destituído de beleza,
encanto, criatividade e senso crítico.
A deficiência rouba-lhe a magia da infância.
A priori, a deficiência visual, em particular a cegueira, vem carregada de forte
impacto negativo. Incapacidade, incompetência, impossibilidade são muito mais do
que meras palavras. São conceitos que se disseminam e rodeiam a pessoa atingida
por essa falta ou deficit sensorial.
Desses conceitos que emanam negação, surgem os preconceitos, juízos
prévios e carentes de conhecimento científico e profundidade humana.
-
Julga-se com superficialidade.
-
Afirma-se com precipitação.
-
Decreta-se com empáfia.
O homem é por natureza excludente. Vê o “outro” através do
espelho. Portanto, todo aquele que escapa à sua imagem e semelhança, todo aquele
que foge ao padrão preestabelecido como “normal”,
torna-se inaceitável. A rejeição submerge de tal equívoco e propicia o
aparecimento de uma visão distorcida cujas representações desfavoráveis
desembocam na discriminação, na depreciação, fatores que trarão
irrecuperáveis danos à pessoa cega ou com baixa visão.
É hoje inadmissível amesquinhar-se um indivíduo por sua condição física,
psíquica ou intelectual. Estigmatizar-se uma criança, principalmente, colocando
suas potencialidades numa escala de valores menores é algo que demanda fazer-se
uma reflexão madura e verdadeira,
despida de qualquer vestígio de escamoteamento.
A criança com deficiência visual possui estruturas cognitivas,
formula conceitos, constrói imagens mentais. Sua mente desenvolve-se
como seu intelecto e sua estrutura emocional. Vê-la como alguém imerso
numa atmosfera de improdutividade e alheamento é reduzi-la diante de
si mesma e provocar-lhe o embotamento e a extrema diminuição de sua
autoestima. Uma educação de qualidade, com direcionamento competente às suas
peculiaridades e anseios, corrigirá essas distorções, estabelecerá novas
posturas pedagógicas, criará novos postulados, renovará
estratégias didáticas, abrir-se-á para outros empreendimentos educativos.
A deficiência limita, mas não impede.
Ao deixar-se uma criança cega ou mesmo com baixa visão à margem das condições
reais do seu crescimento, impossibilita-se seu
desenvolvimento pleno. Uma ação pedagógica errônea ou negligente
é a maior responsável pelas falhas e lacunas que se abrem na aquisição do
conhecimento e que se instalam no processo evolutivo dessa
criança. Os atrasos ou deficits cognitivos, sociais e afetivos interpõem
enormes barreiras entre a criança e a trilha de suas conquistas humanas
e culturais. A deficiência, como frequentemente se vê, serve como justificativa,
camufla atitudes e o despreparo dos professores e dos sistemas
educacionais. Nesse contexto, a criança passa a ser a detentora absoluta
dos insucessos do próprio curso de sua evolução. É ela a dona de todas
as desvalias, e o produto mal forjado nas desvantagens impostas pela
privação ou redução da acuidade visual.
Discutiu-se, no corpo deste trabalho, o cunho deficitário que revela o
imaginário da criança com deficiência visual. Aspectos de diferentes ordens e
grau de importância foram trazidos ao centro de uma
reflexão que buscou demonstrar que o problema existe, mas que a solução também
existe e não está longe nem da família nem da ESCOLA.
A imaginação, o poder criador, a sensibilidade, a opinião precisam fazer parte
do universo de qualquer criança.
Por que alijar-se a criança com deficiência visual da conquista
imprescindível do conjunto desses bens internos?
O fracasso ou o êxito na promoção global do homem será ditado
pela forma como essa promoção é conduzida. Será positiva se houver
crença, competência, abertura. Em contrapartida, far-se-á negativa se
houver descrédito, desleixo, preconceito.
O imaginário (pensamento mágico) repousa no âmago mais profundo da infância. A
criança estabelece, em relação a ele, um vínculo
quase genético. Ele lhe pertence e faz parte dela. O pensamento encantatório,
por seu lado, devolve-lhe esse estado de descendência, confere-lhe
características, dita-lhe atitudes, sedimenta-lhe comportamentos, embasa
sua criatividade e senso crítico, estrutura sentimentos e emoções.
Fica claro que a deficiência visual poderá atrasar ou mesmo retardar o tempo de
construção do pensamento mágico. Contudo, comprova-se ser esse problema
absolutamente sanável. Havendo uma intervenção segura e competente por parte da
Escola e também da família,
a criança crescerá dentro de padrões desejáveis e alcançará o desenvolvimento
compatível com sua faixa etária e condições de aprendizagem.
Ocorrendo o inverso, pondo-se rótulos discriminatórios e levianos na
criança, será vedada a ela a possibilidade de desenvolver-se a contento.
Saberes, tendências, talentos, vocações, todos esses dons e capacidades
poderão ser asfixiados pela ação falha de uma educação pobre de ideias,
equivocada em seus propósitos, apoiada em velhas práticas, acomodada
na descrença da própria eficácia.
Entende-se que há caminhos a trilhar. Há novos rumos a seguir. A
criança com cegueira ou com baixa visão não pode ser punida por sua
deficiência. Ao contrário, deve-se envidar todos os esforços para que
tais atitudes sejam eliminadas e que a educação cumpra, sem qualquer
resquício de negligência e de intolerância, o papel que lhe cabe na construção
de novos paradigmas educacionais.
A criatividade e o senso crítico não podem ficar restritos ao educando. Também
os educadores precisam tomar novas direções, ampliar
seu raio de ação, buscar outras linguagens, tentar outros atalhos e saídas.
O processo de letramento/alfabetização requer um olhar mais
profundo ao alfabetizador. A aquisição da leitura não pode prender-se
apenas ao ato físico de “ler”. A leitura ultrapassa os limites dos fonemas
e grafemas. Ela tira o homem do obscurantismo cerceador. A leitura
anula a ignorância, alavanca pensamentos, projeta realizações.
A criança lê o “mundo” através da riqueza de suas experiências.
Interpreta esse mesmo “mundo” pela excelência do que foi experimentado. A
alfabetização tende revestir-se dos tons lúdicos e sensíveis da
infância. É uma fase em que hábitos e posturas formarão o pequeno leitor.
Imaginação, ludicidade, inventividade precisam integrar-se à carga
intelectual e emotiva que se embute nesse novo explorador de ideias.
A leitura consciente, crítica, artística habilita e coloca o leitor iniciante
frente ao conhecimento de que ele se valerá para adquirir competências
e, no futuro, poder mergulhar nas grandes obras literárias produzidas
por eternos escritores em todos os tempos.
O assunto foi colocado em pauta – o imaginário da criança cega ou
com baixa visão – e discutido. Procurou-se desmistificar um conceito: A
deficiência visual não permite que se estabeleça nexo entre o “mundo do
conhecimento criativo” e a criança com deficiência da visão.
Buscou-se compreender a complexa evolução em diversas áreas
do desenvolvimento da criança cega ou com baixa visão. Dificuldades
e possibilidades foram cotejadas. Desvantagens e saídas foram discutidas.
Condições e vias de aprendizagem foram apontadas. Esmiuçou-se,
tanto quanto possível, a caminhada evolutiva dessa criança desde o nascimento. O
estudo trouxe, acredita-se, elementos capazes de provocar
alguns debates, não só de caráter educacional, mas também na esfera da
psicologia, da psicanálise, da arte da palavra, a literatura.
A criança cega ou com baixa visão é um ser cognoscente, como foi
demonstrado. Precisa, portanto, de espaços propícios para ganhar confiança,
trabalhar emoções, adquirir condutas, amealhar ideias, expandir
pensamentos, produzir fantasias, formar sua bagagem de conhecimentos
e de mecanismos internos, espaços que podem indicar dimensões gigantescas onde a
criança de agora terá enorme chance de tornar-se um
indivíduo inteiro, livre dos estereótipos que criam, para ela, estigmas
dolorosos que o apequenam e dificultam seu progresso e ascensão.
O estudo abriu um campo de sugestões. A literatura infantil como
aporte no processo de construção e de desenvolvimento do imaginário
da criança cega e com baixa visão.
O texto literário, como pôde observar-se, concentra em si uma
força sem precedência. Mensagem, estrutura frasal, segmentos fônicos
e textuais formam um todo harmônico, que as crianças muito pequenas
não percebem a complexidade que os cerca, mas, aos poucos, sem que
se deem conta, dele vão-se apropriando. O texto instiga curiosidade, dá
prazer, aciona a emotividade, extravasa sentimentos.
A literatura infantil não deve ser vista como uma modalidade menor da grande
literatura. Ambas fundamentam-se nos mesmos princípios da “arte de escrever”. A
prosa e a poesia constituem a base de suas
estruturas e dão-lhes a configuração do belo, da estética, da semântica,
da criação materializada em palavras. Histórias singelas, contos de fadas,
trovas e poemetos, lendas nas quais criam-se mitos para explicar a
existência e a transformação das coisas. Movem raciocínios e elevam o nível de
interpretação do leitor. Sem que o saibam, as crianças entram
em contato com os elementos estruturadores da narrativa, com a linguagem
figurada, com os diversos gêneros literários, com o tom (estilo) de
cada autor, com os diferentes “eus” que particularizam obras e épocas.
O aspecto formal junta-se aos conteúdos ideativos, estabelecendo e estendendo
ambientes linguisticoliterários em que o espírito da arte se
manifesta e acende a chama da paixão do ato de criar.
O leitor em construção, pode-se afirmar, é um sujeito em estado
de recepção. A ele, é desejável oferecer-se o melhor do texto literário.
Valorizando-se tal oferta, suas demandas ligadas à leitura nascem e naturalmente
crescem em grau de importância. Os fatores constitutivos
do texto literário vão-se fazendo presentes, vão-se tornando visíveis.
Não mais se encontram sob a densa camada do desconhecimento. Aos
poucos, passo a passo, a criança se apercebe da existência de uma nova
fala cuja comunicação escapa ao discurso cotidiano. É a hora, o instante
propício para trazer-lhe a palavra mitificada, capaz de transmutar-se
em mil faces. Capaz de desaparecer e de ressurgir refeita e vigorosa na
voz mediadora dos grandes escritores. Marota quando diverte, reflexiva
quando analisa, dogmática quando ensina. Na ciranda do ideário infantil, a
palavra precisa adquirir significados e representações que corporifiquem
conceitos e contextos na sua essência mais pura e diversa.
A linguagem literária, com sua riqueza de recursos morfofonêmicos e semânticos,
entre outros, com sua diversidade de abordagens, caminha com a criança no
processo de sua evolução. Introjeta-se
em sua sensibilidade, extrai de sua alma a vibração necessária para
concretizar-se, criando formas expressivas de ordem social, cultural
e psicológica. A infância é o tempo do confronto entre a criança e a
descoberta de realidades que encantam, surpreendem, amedrontam,
encorajam. O pensamento infantil, ao expandir-se, brinca, fabula, engendra,
constrói, sobe à esfera do sonho e, muitas vezes, recusa-se a
abandoná-la. A faculdade de imaginar provém dessa prática advinda da
profundidade e da largueza do ser.
Conclui-se, assim, que uma criança passando pela vivência e
pelo convívio do texto literário terá mais oportunidades de desenvolver
sua imaginação e de absorver os elementos construtores do texto em
prosa, como também o texto poético.
A literatura infantil guarda características próprias, o que dimensiona sua
originalidade e relevância. Suas funções ilustram o tema central deste trabalho
e a conclusão a que ele chegou:
A criança cega ou com baixa visão pode ter seu imaginário rico
de informações, sensível aos apelos infantis, profundo na sua capacidade de
decodificar o “mundo da imaginação”, largo na extensão ilimitada
do seu pensamento mágico.
Educar, instruir, distrair, despertar sentimentos e emoções, incentivar a
criatividade e a criticidade, atender ao psiquismo infantil, mostrar a
importância do livro, estabelecer normas eticomorais, embasar
o intelecto, incrementar a expressão oral e escrita, fomentar o gosto
artístico, alicerçar e alimentar o prazer da leitura. Essas são funções da
literatura infantil.
Não existe uma forma infalível para que o homem consiga alcançar a concretização
máxima dos seus objetivos e ideais. Todavia,
compreende-se que há sempre caminhos menos tortuosos a seguir. Na
análise do estudo em foco, viu-se que é possível desenvolver-se plenamente o
imaginário de uma criança com deficiência visual. A literatura
foi apontada como um instrumental a serviço da educação. Aos professores,
sugere-se a adoção desse extraordinário aparato pedagógico.
Os grandes temas que deram corpo à literatura fizeram-na espelhar os dramas
existenciais do homem, os compartimentos da sociedade,
a essência eterna e fugidia do tempo. A palavra entregou-se às mãos do
artista como cinzel preciso a esculpir mundos, realidades, sentimentos.
A literatura supriu e supre desejos de extravasamento interno, realizou
e realiza ideais estéticos que ampliam e aprofundam a expressão, criou
e cria estados de alma que alicerçam o amor, exaltam emoções, fomentam a visão
filosófica do leitor. A literatura emerge da sensibilidade e
invade e domina o imaginário do homem. A literatura infantil catalisa
iguais preceitos e transborda iguais valores.
Imaginação e criação – eis os pilares que sustentam o pensamento mágico da
criança.
A literatura animiza a palavra. A leitura animiza o intelecto.
FIM
Maria da Gloria de Souza Almeida | Doutora em Literatura pela PUC-Rio (2017) com
a tese "Ver além do visível: a imagem fora dos olhos". Mestrado em Letras pela
PUC-Rio (2011) com o tema "A Literatura como elemento de construção do
imaginário da criança deficiente visual". Pós-graduação pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (1992) . Tem experiência na área de
Educação, com ênfase na temática da Deficiência Visual. Designada, no período de
2002 a 2008, para compor a Consultória Técnico Científica da Comissão Brasileira
do Braille, retornando a essa consultoria no biênio 2017 a 2019. Professora
Regente das classes de Alfabetização, de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª séries e
do Curso de Capacitação para Professores na Área da Deficiência Visual do
Instituto Benjamin Constant (IBC). Chefe de Gabinete da Direção-Geral do
Instituto Benjamin Constant no período de 2003 a 2015. Assessora da
Direção-Geral do IBC a partir de 2015 até os dias atuais. (Out/2019)
ϟ
excerto da obra:
'A Importância da Literatura como Elemento de Construção do Imaginário da
Criança com Deficiência Visual'
autora: Maria da Glória de Souza Almeida
Instituto Benjamin Constant
Rio de Janeiro, 2014
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