

Pity The Blind!
- quadro de Peggy Bacon, 1933
Sejamos galinhas e águias: realistas e
utópicos, enraizados no concreto e
abertos ao
possível ainda não
ensaiado, andando no vale mas tendo
os olhos nas montanhas.
Recordemos a
lição dos antigos: se não buscarmos o
impossível (a águia)
jamais
conseguiremos o possível (a galinha). Leonardo
Boff
Volto a me lembrar da idéia do parque cheio de crianças,
apresentada no Momento III. Lembro-me de uma das situações inesperadas
apresentadas anteriormente, que foi a chegada de uma criança cega ao parque,
querendo brincar com as demais crianças. Como as crianças videntes agiriam
diante desse inesperado? Agiriam com naturalidade? Demonstrariam
curiosidade, repulsa ou se aproximariam diante do diferente, do desconhecido?
Pelo tempo vivido junto a crianças de diversas faixas etárias,
durante um período de, aproximadamente, quinze anos, acredito que a reação
imediata das crianças seria olhar, observar com olhinhos curiosos. Elas
poderiam se aproximar, perguntar os “porquês” de que sentissem necessidade e
desejo de saber e aí então, se juntariam à criança cega e tentariam deixá-la o
mais à vontade possível para aproveitar os brinquedos tanto quanto elas.
Penso também nessa situação acontecendo num ambiente de pessoas
adultas. Creio que as reações seriam diferentes das apresentadas pelas
crianças. Os adultos, na sua grande maioria, iriam observar o cego com olhares
desconfiados e, provavelmente, pensariam: “Coitado, não pode e não é capaz de
fazer nada, como ele pode estar aqui? O que ele pretende fazer aqui junto a
nós? Como ele é cego, não dá para ele participar conosco.” Enfim, o medo do
novo, do diferente, do desconhecido, muitas vezes, provoca indiferença,
repulsa.
Por que será que as atitudes dos seres humanos frente a uma mesma
situação podem apresentar-se tão distintamente? Será apenas pela diferença
cronológica das idades? Será pelo acúmulo de informações, conhecimentos,
valores, propiciado pela diferença de tempo vivido entre os adultos e as
crianças? Como e por que esse acúmulo de informações que os seres humanos
recebem durante sua existência provoca tantas mudanças nos seus
comportamentos? Poderá tal conduta ser atribuída também a pré-conceitos?
A complexidade dos sistemas biológico, psicológico, social, cultural
do ser humano possibilita compreendermos partes desse todo que envolve as
relações entre os humanos. No entanto, para eu poder compreender um pouco
mais esse todo, sinto a necessidade de complementá-lo com mais algumas
partes.
No dobrar e desdobrar da existência entre os seres humanos e
refletindo sobre os sistemas que formam esses seres, meu pensamento
sobrevoa um tema intimamente associado a todos eles, que vem não só
complementar, mas também, implicar e potencializar o princípio da
complexidade e dos antagonismos: a educação.
No patamar da organização dos sistemas sociais, a educação também
é considerada um fenômeno complexo do ser humano. É também um sistema
complementar/conflituoso que possibilita a conservação, a manutenção, a
transmissão, a reprodução e a renovação das informações, comungando com a
heterogeneidade e a singularidade do ser humano no seu processo de
organização/desorganização.
Dialogar e compreender a complexidade da educação num âmbito
geral e, posteriormente, num âmbito específico são o intuito desse Momento de
reflexão, pois, a necessidade, a vontade e mesmo a organização das minhas
sensações na manifestação das idéias, surgem como uma parte que é e está
vinculada a um todo, mas é também um todo que é e está interagindo com as
partes.
Rosário (1999), ao comentar as diferenças existentes entre o ser
humano e os demais seres vivos, chama a atenção para a complexa tarefa da
educação devido à dinâmica social, cultural, histórica, política, entre outras,
em
que os seres humanos estão envolvidos Ao acreditar nessa complexidade como
um princípio básico da educação, deve-se aceitar um desafio: para se educar o
ser humano como um todo, é necessário conhecê-lo todo.
Tradicionalmente, a educação difundida nas escolas está vinculada
apenas à transmissão do conhecimento de uma forma simplista e reducionista,
em que o educando recebe informações e mais informações fragmentadas e
desconectadas do contexto global no qual vive, ou seja, do seu mundo vida, sem
ser instigado a refletir, a questionar, a compreender e a ir além daquilo que
está sendo transmitido.
O professor de história Neno, cego, acredita que a educação deve
estar preocupada com a informação que traz a formação de seres humanos
felizes e com ética. Isso propiciará transformações nas relações humanas em
que a liberdade de pensamento poderá gerar a crítica e a auto-crítica, bem
como a percepção do mundo, de modo a salientar o convívio social (anexo 2).
A educação pode ser considerada como um instrumento na
construção do conhecimento, com preocupações mais amplas acerca da
humanização, da realidade e da vida. Deve qualificar a população para fazer os
meios e, conseqüentemente, atingir os fins. A educação serve de base para a
formação de um sujeito histórico, crítico e criativo que dê importância à
cidadania e outros valores sócio-culturais. “Educação não será, em hipótese
nenhuma, apenas ensino, treinamento, instrução, mas especificamente
formação, aprender a apreender, saber pensar, para poder melhor intervir,
inovar” (Ottone & Tedesco, 1992, apud Demo, 2000, p.20/21).
Hoje, século XXI, a educação está a caminho de mudanças
paradigmáticas que poderão propiciar novos entendimentos e compreensões
acerca do ser humano na sua relação com o mundo. Para que isso venha a
acontecer, de fato, as mudanças no processo educativo do conhecimento são
necessárias e imprescindíveis.
Para articular e organizar os conhecimentos e assim
reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é
necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta
reforma é paradigmática e, não, programática: é a
questão fundamental da educação, já que se refere à
nossa aptidão para organizar o conhecimento. (Morin,
2001, a, p. 35)
Na mesma obra, Morin argumenta que um dos desafios lançados para
se alcançar essas mudanças está ligado ao agrupamento dos conhecimentos
advindos das ciências naturais com os das ciências humanas, colocando em
evidência a complexidade e a multidimensionalidade humanas, como também
incorporar a inestimável contribuição da literatura, da poesia e das artes em
geral. Desse modo, departamentalizar as dimensões humanas nos vários campos
do conhecimento, ou seja, colocá-las no departamento de biologia, de
psicologia, de religião, de economia, de política é compartilhar com a
fragmentação e com o enfraquecimento dos saberes diante da percepção global
que a educação deve proporcionar aos educandos, considerando sua
responsabilidade e sua solidariedade.
Assmann (1994), ao tratar de mudança paradigmática da educação,
alerta mostrando que um dos principais focos para essa mudança ocorrer, o
modo de como o ser humano deve ser encarado, precisa ser modificado. Não é
possível acreditar no ser humano como uma entidade abstrata, nem como uma
individualidade isolada. Existem apenas seres humanos imersos numa
complexíssima rede de relações com as coisas da natureza e entre si, em
formas concretas de produção e reprodução social da vida humana (p.46).
Aí, quem sabe, será possível situar o cego e as demais pessoas
deficientes no meio das consideradas “normais”, compreendendo e aceitando
que limites biológicos, afetivos, sociais e culturais são condições de
sobrevivência para todo e qualquer ser humano. As capacidades e os domínios
que o ser humano possui são seus próprios limites para os enfrentamentos com
esses limites que desencadeiam outras capacidades e domínios. O cego, como
mostrado no capítulo anterior, por não ver o mundo com os olhos, afina com
intensidade sua percepção tátil, auditiva, olfativa e cinestésica.
As propostas atuais que abarcam a educação são desafiadoras, tal
como são o desafio da globalidade e o desafio da complexidade. A
complexidade se mostra presente quando todos os componentes que formam
um todo (como o político, o econômico, o psicológico, o sociológico, o
antropológico) são inseparáveis e interdependentes, interativos e
interretroativos entre as partes e o todo e o todo e as partes (Morin, 2001).
Reencantar a educação, para Assmann (1998), está associado às
biociências quando afirmam que os seres vivos são seres aprendentes devido à
capacidade flexível e adaptativa que possuem na dinâmica da vida, em que os
processos vitais e os de conhecimento são a mesma coisa. Isso vem
demonstrar, pela primeira vez na história da humanidade, as possibilidades de
relacionamento entre o potencial inovador do conhecimento e a própria
essência da vida.
Para o cego ser autônomo e independente ao se locomover por todos
e quaisquer espaços que desejar, o relacionamento entre o conhecimento
inovador e a essência da vida dele é condição básica de sobrevivência social,
afetiva, cultural, entre outras. Portanto, o cego necessita conhecer, ou melhor,
apreender a aprender viver num mundo em que a grande parte das informações
perpassam pelos processos visuais, e assim se inter-relacionar com o mundo,
não só na sua essência, mas também na sua existência. Acredito nesse processo
como uma proposta educacional sob a perspectiva da complexidade.
Outros desafios que estão atrelados à educação e,
conseqüentemente, ao conhecimento do século XXI, mostrados por Morin,
(2001, a) revelam alguns princípios que ressaltam:
- os riscos de erro, no processo de desenvolvimento do
conhecimento, são possíveis e devem ser aceitos, pois, traduzir e
reconstruir uma idéia, um pensamento, comporta a interpretação,
que por conseguinte será feita pela subjetividade de um
conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de
conhecimento;
- as idéias e os mitos, que desempenham um papel complexo no
interior da sociedade humana, não devem ser reduzidos a simples
instrumentos, mas sim, ir além dessa dinâmica criando
possibilidade de consciência e diálogo sobre as mesmas idéias,
contendo-as e utilizando-as ao mesmo tempo que elas contêm e
utilizam o ser humano;
- a inteligência geral deve ser despertada e estimulada no
processo educativo, pois, quanto mais se compreendem os dados
gerais do conhecimento, maiores são as competências para
resolver os problemas particulares ou especiais. A inteligência
geral deve possibilitar aptidão para o envolvimento com o
complexo, com o contexto, de modo multidimensional, dentro da
concepção global do ser humano;
- a unidade e a diversidade, esses dois princípios, devem
permanecer unificados à educação, pela complementaridade que
estabelecem nos traços biológicos, psicológicos, culturais e
sociais do ser humano. “Compreender o humano é compreender
sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade.” (p.55);
- a compreensão do trinômio indivíduo/sociedade/espécie, como um
fenômeno complexo das sociedades democráticas, deve ser mais
uma tarefa da educação. A comunicação humana, como mediadora
e interlocutora do conhecimento, necessita que a compreensão
das idéias entre as sociedades esteja presente durante o meio e
o fim de todo o processo comunicativo.
É uma revolução nos modos de se produzir e transmitir o
conhecimento na perspectiva da educação. Diante do progresso científico, das
avançadas e modernas tecnologias, a educação se encontra desestruturada e
desequilibrada devido à enormidade de problemas encontrados pela própria
estagnação no seu processo de desenvolvimento atitudinal. E aí estão
instaladas as forças políticas e econômicas repressoras de um viver com saber,
com sabor e com prazer.
Já dizia Alves (1998), o ser humano só aprende algo quando o sabor
sentido e experimentado trouxer prazer, pois, degustar o aprendizado trará
satisfação, alegria e apreensão do conhecimento. Morin (2001, a) afirma que a
inteligência só se desenvolve juntamente com a afetividade, e que a curiosidade
e a paixão também estão juntas na faculdade de raciocinar. As emoções,
certamente, são indispensáveis ao estabelecimento dos comportamentos
racionais.
Ao contar sobre a Escola de Dona Clotilde, Freire (2001) alerta para
alguns cuidados que a educação está deixando de lado, os quais são elementos
essenciais para que o processo educacional estenda suas preocupações para
além dos antigos chavões: disciplina, conteúdo, metodologia e aprendizagem.
Educação e conhecimento devem possibilitar ao ser humano um entrelaçamento
entre o saber optar, o saber querer, o saber sobre os direitos individuais e
coletivos, e assim buscar para os problemas, soluções que sejam amplas,
coletivas, fraternas, sensíveis e com compaixão.
Nesse sentido, aproprio-me de algumas palavras de Assmann (1998):
Os processos cognitivos e os processos vitais finalmente
descobrem seu encontro, desde sempre marcado, em
pleno coração do que a vida é, enquanto processo de autoorganização, desde o
plano biofísico até o das esferas
societais, a saber, a vida quer continuar sendo vida – a
vida se “gosta” e se ama – e anela ampliar-se em mais vida.
A produção e reprodução biológica e social da vida não se
deixa enquadrar plenamente em esquemas econométricos,
porque os seres vivos entrelaçam necessidades e desejos
de um modo muito mais complexo. Necessidades e desejos
formam um tema unificado. (p.28)
Esses sistemas estão cheios de obstáculos para serem
desarticulados e articulados novamente, como se propõe a complexidade dos
sistemas dos seres vivos. Os desafios existentes na circularidade da e para a
organização do conhecimento devem ser atrativos para uma mudança
significativa nos modos processuais da educação. Como propõe Morin (2001), a
reforma do pensamento se dá a partir do repensar a reforma e vice-versa,
estimulando assim o ser humano a ter uma cabeça bem feita e não uma cabeça
bem cheia.
Sentir, perceber, aceitar e respeitar a corporeidade do cego, como
um ser de identidade própria, é para o vidente transformar seus pensamentos,
idéias e valores sobre o que é e quem é o corpo e como este se inter-relaciona
com o mundo. Essa transformação permite ao vidente adentrar num mundo
pouco conhecido e explorado em que o antagonismo – o corpo do cego se “vê”-
aparece intensamente para desequilibrar e desestruturar os sistemas naturais
e sociais aparentemente organizados.
Fabiana, ao comentar sobre a corporeidade do cego mostra, com
clareza, naturalidade e simplicidade, como o corpo do cego se “vê”, afirmando
que:
Corporeidade, para mim, é uma relação que o nosso corpo
estabelece com diferentes ambientes onde ele pode
estar, como também, é como esse corpo pode expressar
nossos estados emocionais, nossos afetos, a nossa forma
de pensar, de perceber o mundo.
... Corporeidade é tanto a
relação que o corpo estabelece com o mundo, quanto o
corpo poder expressar aquilo sobre ele mesmo, quer dizer,
o corpo não é uma coisa estática, ele interage com aquele
ambiente que a pessoa está situada. (anexo 1, p. 2)
Em particular e de forma breve, faço referência à educação
destinada às pessoas deficientes, em especial a dos cegos. Apesar das
significativas mudanças pelas quais ela está passando, devido à proposta da
educação inclusiva, ela não pode perder de vista , em nenhum momento, suas
funções e suas metas.
Segundo Bartholo (1996), na educação para as pessoas
deficientes as diferenças devem ser realçadas; o exercício da imaginação e da
criatividade deve ser propulsor para as descobertas do conhecimento; a
socialização e a comunicação interativa devem ser atrativos para que as
experiências do mundo vivido (lebenswelt) venham a ser despertadas; o
respeito às singularidades e particularidades do cego deve ser enfatizado,
possibilitando ao mesmo uma educação balizada no sujeito que é cego como o
elo construtor do processo educacional.
Ao comentar sobre a educação para as pessoas deficientes, Neno
(anexo 2), cego, acredita que a educação se fundamenta na ética, na liberdade
de ação, na percepção do outro. Certamente, a percepção e a atenção para com
o deficiente, como para qualquer outro ser humano comum, irão acontecer de
forma natural, em que o respeito às diferenças existentes entre todos será o a
priori de todo o processo.
Para que isso venha a se concretizar, o vidente precisa estar aberto
à renovação, à transmissão, à reprodução dos conhecimentos num processo de
auto-organização das novas idéias, admitindo os erros e acertos como
condições para compreensão e interpretação da subjetividade humana. Ao
olhar para o corpo de um cego, o vidente precisa também considerar os
princípios da unidade e da diversidade, acreditando que isso é possível e
necessário, pois, trata-se da condição primeira da existencialidade e
essencialidade de qualquer ser humano.
Compreender a corporeidade do cego não pode estar restrito apenas
às condições limítrofes, de natureza biológica, que esse ser apresenta em
relação à sua capacidade visual do órgão olho. Essa compreensão se faz
necessária, mas deve ser ampliada e complementada pela interação e
intersecção dos dados da realidade dispostos entre os seres humanos. Estes
serão mediados e transmitidos pela capacidade que os seres humanos possuem
para e em se comunicar, possibilitando assim, um olhar amplo e aberto para o
trinômio indivíduo/sociedade/espécie.
Essa perspectiva mostra que o refletido e o irrefletido da
corporeidade do cego se desvelam como elementos mediadores e construtores,
os quais criam oportunidades para a compreensão da organização e
desorganização da existencialidade desse corpo, despertando assim
possibilidades de inter-relações entre os seres humanos cegos e videntes no
processo de formação e informação educacional.
Mudar e reformar todas essas atitudes está intrinsecamente ligado
à apropriação do conhecimento, via educação, que pelo saber-sabor deve
possibilitar as mais variadas interfaces do viver do ser humano, admitindo as
certezas e as incertezas, os acertos e os erros, as seguranças e as
inseguranças, enfim, a ordem e a desordem dos fenômenos. Esse processo se
mostra presente e prenhe de sentido e significado quando me reporto a alguns
cegos durante as minhas reflexões ao longo deste trabalho como o professor e
comerciante Espínola da Veiga, o filósofo, crítico de arte e fotógrafo Evgen
Bavcar, o historiador Neno, a psicóloga e musicista Fabiana Bonilha e a artista
plástica Susete.
Esta é uma aventura, afirma Morin (2001, a). Aventura incerta que
corre o risco da ilusão e erro, podendo ser intitulada de conhecimento. Ter
consciência do caráter da incerteza do ato cognitivo cria oportunidades para
se alcançar o conhecimento pertinente. O ser humano, ao buscar o conhecer, se
depara com as certezas e as incertezas desse ato, pois, (...) “o conhecimento é
a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas”
(p.86).
A educação, hoje, está empenhada em substituir as certezas e os
saberes pré-fixados pelas perguntas, pelo melhoramento dessas e pela
acessibilidade às informações, desenvolvendo conceitos transversais abertos
para a surpresa e para o imprevisto (Assmann, 1998).
Nesse contingente, a ênfase é dada a tudo que envolve o ser humano
e o seu processo vital, que é e está no mundo vivendo a sua condição de ser
humano sensível, recebendo e absorvendo, direta e indiretamente, as
influências da sociedade, da ciência, da arte, da cultura, da política e da
economia. E aí é descoberta uma enormidade de incertezas que circundam o
aprender e o apropriar-se do conhecimento.
Pode-se considerar que uma grande contribuição do conhecimento no
século XX foi a descoberta e a aceitação dos limites do próprio conhecimento,
segundo Edgar Morin (2001), pois, as interrogações e o respeito às incertezas
é que estão contribuindo para que o ser humano, cego e ou vidente, enfrente as
dúvidas e as diversidades que se fazem presentes no mundo humano.
O mesmo autor, ao comentar sobre a condição humana e
conhecimento, apresenta três princípios que circundam a incerteza:
1) o
cerebral (cognitivo): o conhecimento está atrelado sempre à tradução e
construção do real, e não simplesmente ao seu reflexo, por isso o erro é e deve
ser admitido;
2) o físico: conhecer os fatos é uma conseqüência da
interpretação;
3) o epistemológico: o conhecimento é decorrente da crise dos
fundamentos da certeza, em filosofia e em ciência. Ele deixa claro que o ser
humano, ao conhecer e pensar, se depara e dialoga com as incertezas e não se
preocupa em alcançar uma verdade e certeza absoluta.
Com o intuito de ilustrar esse pensamento, aponto algumas palavras
de Bavcar (2000), para enriquecer o diálogo da educação na perspectiva da
complexidade, pela própria atividade que ele, um cego, realiza, a de
fotografar, para exprimir sua existencialidade.
Numa de suas passagens ele
propõe:
O olhar físico que quer ver não é aquele olhar da verdade,
pois a presença de um objeto só pode ser confirmada pelo
toque físico. (...) Poder-se-ia defini-lo como o olhar
chegado, ou encostado, aquele que não provoca ainda a
separação inelutável entre o sujeito e o objeto do
conhecimento. Não nos resta senão examinar esta
separação a fim de que o pensamento permaneça o único
princípio verificador de uma possível verdade. (p. 18)
Bavcar, um corpo vivente da escuridão, vive sob a intencionalidade
de sentir a luz nas suas ações cotidianas. É o corpo em movimento contínuo,
absorvendo todas as informações do seu ecossistema e transformando-as, a
partir da sua capacidade de transcender-se, apreendendo dessa forma os
conhecimentos da sociedade, da arte, da cultura, da comunicação.
Isso acontece num processo formalmente sistematizado ou não, ou
seja, a relação do corpo com o mundo vivido (lebenswelt) irá acontecer sempre,
em qualquer instância, independente da sistematização ou não dos
conhecimentos. Portanto esta sistematização possibilita ao ser humano, cego e
ou vidente, uma apreensão e compreensão do mundo de forma mais ampla e
abrangente, mais livre, mais crítica, mais autônoma, mais ética, mais sensível e
mais prazerosa.
Esse diálogo entre o meio e o corpo pode ser denominado educação,
segundo Rosário (1999), pois, é ele quem vai dar forma à alma e ao corpo do
ser humano, possibilitando assim as relações humanas, de acordo com a cultura
e o tempo em que estiverem acontecendo. A relação de troca existente
meio/corpo permite um conhecimento que surge do exterior para o interior,
bem como do interior para o exterior, resultando, a cada nova descoberta,
indícios para uma próxima procura. O autor considera ainda:
A riqueza do processo educativo reside em larga medida
no fato de, felizmente, sermos todos diferentes; quer
comparemos os genomas, quer, e também por ação destes,
na forma individualizada como recolhemos, classificamos
e relacionamos os dados do exterior como conseqüência
do caráter genético da razão. (p.53)
Rezende (1990), ao apresentar a educação sob uma abordagem
fenomenológica, revela que a educação é um fenômeno, é uma experiência
profundamente humana, em que o ato educativo é um sistema complexo por
buscar a compreensão do ser humano, de modo a aprender e a apreender a ser
homem e a existir como homem, numa perspectiva humana e humanizante.
Educar o ser humano consiste na percepção do sentido da própria existência
para que essa possa ser vivida humanamente como tal. Perceber o sentido da
própria existência, pode-se dizer que é a forma de o ser humano manifestarse,
trazendo à tona a cultura, que faz desabrochar os traços distintos da
humanidade e dos grupos humanos. Esses traços podem ser entendidos como:
as diferentes maneiras que o homem encontra para se relacionar com o mundo;
as diversas formas da intencionalidade; as diversas formas da dialética
fenomenal. “A utilização do mundo, sua transformação, a apropriação do
mundo, seu conhecimento, o poder, as relações sociais, a arte, a religião etc.,
são essas formas (no plural) da significação existencial.” (p.60)
Moreira (1995), considerando esse modo de pensar de Rezende,
adverte sobre o corpo e a educação, lembrando que nenhum ser humano escapa
da ação educativa, e a educação, como um dos sistemas humanos, acontece no
corpo todo e não apenas em algumas partes do corpo. Corpo este vivido e
assumido...
-
(...) sem preconceitos, com ousadia, com paixão, com vida
em abundância.
-
(...) que encontra vida, que busca prazer, que busca a
superação de sua carência na convivência do hoje com
outros corpos, (...).
-
(...) que deixa-se subir em montanhas, nadar em rios,
contemplar amanheceres, sem a sensação de tempo
perdido ou ato leviano por não significar produção.
-
(...) que acaricia e é acariciado, que doa e recebe energia
vital, que brinca com outros corpos e permanece criança
sem constrangimentos (...)
-
(...) que pode se deixar transparecer, se revelar, na
perspectiva, na vivência do hoje, transformar o amanhã
das relações corporais. (Moreira, 1994, p. 58)
O processo do conhecimento é, antes de mais nada, um processo
corporal, por acompanhar uma inscrição no corpo recoberta por necessidades
e desejos recheados de sensações de prazer, compondo uma unidade
(Assmann, 1998).
Corpo-educação ou educação-corpo? Tanto uma como outra forma
adotada revelam para mim mais um dos princípios da complexidade do sistema
educacional. Como revelaram os autores citados anteriormente, o processo de
conhecimento, ou seja, a educação só acontece com a presentidade corporal; e
o corpo se desenvolve na sua relação com o mundo por meio do conhecimento,
da educação. Um caminho de mão dupla e interdependência, em que as partes
de um completam o todo do outro, e vice-versa, na complementaridade da
organização e desorganização de todos os outros sistemas do ser humano, o
biológico, o social, o cultural, o da comunicação, o político, o econômico.
Diante desse contexto, concordo com Rosário (1999): o ser humano,
pelo movimento, identifica-se e revela a sua história, pois, a mente escolhe e
determina quais os gestos a realizar após buscar na memória os registros e as
informações que o corpo lhe havia transmitido. O movimento corporal e
intencional do ser humano retrata que (...) “partindo do corpo próprio, sublinha
não haver significação que não se refira ao corpo, nem sentido que o corpo não
realize e manifeste,” ... (p.43). Ou, como bem diz Moreira (1992):
O homem é um ser carente, que caminha intencionalmente
na direção de sua transcendência. Por essa razão, é
dotado de motricidade, que não se confunde com
movimento, pois este é a expressão da motricidade. (p.207)
Trazendo à memória todas as crianças no parque, tendo a
oportunidade de escolher o brincar, penso na educação – mente/corpo - que
elas receberam para disponibilizarem-nas ou não, a irem brincar, juntas ou
sozinhas, sem medo, sem constrangimento, com segurança, com liberdade de
ação, em que os corpos, relacionando-se naquele ambiente, movimentam-se com
intencionalidade e transcendência.
Realmente, vejo que elas podem ou não estar disponíveis e aptas
para viverem aqueles momentos no parque com prazer e alegrias. Isso depende
de como a motricidade foi sendo despertada, estimulada e aprimorada no
processo educativo dessas crianças, em que o corpo é presença e existência na
relação com o mundo, respeitando o espaço, o tempo e seu modo singular de
viver. Freire (1991), falando de motricidade, expressa:
Pela motricidade o homem se afirma no mundo, realiza-se,
dá vazão à vida. Pela motricidade ele dá registro de sua
existência e cumpre sua condição fundamental de
existência. A motricidade é o sintoma vivo do mais
complexo de todos os sistemas: o corpo humano...é o
discurso da cultura humana. (p.63)
Educação, corpo, movimento, intencionalidade, transcendência e
outras palavras mencionadas remetem o meu pensar à Motricidade Humana.
Considerada uma teoria nova, por fazer pouco tempo que despontou
nos meios acadêmicos e científicos da Europa e do Brasil, a Motricidade
Humana surge da necessidade de uma mudança epistemológica da Educação
Física tradicional. A trajetória da Educação Física foi marcada, com
excelência, pelas ciências naturais até os estudiosos da área começarem a
sentir falta e necessidade de outras ciências, que pudessem e viessem
contribuir com os inúmeros e diversificados problemas e questionamentos que
surgiam a respeito do homem em movimento.
Nesse momento de transição, levando em consideração as mudanças
paradigmáticas da ciência em geral, em que as dúvidas e as certezas que
apareciam eram infindáveis, constatava-se que a Educação Física, do modo
como era tratada e da forma como se referia ao ser humano em movimento,
não seria capaz de abarcar todas as mudanças e transformações necessárias.
Com o pressuposto de complementar e ampliar a área de conhecimento do ser
humano em movimento, respeitando e considerando toda a sua complexidade,
surge a Motricidade Humana.
Lendo uma crônica de Alves (1994), ao falar do “lado avesso”, ou
seja, o lado escondido das coisas e das pessoas, tratando-o como o lado
sensível, belo, rico, diferente e feliz, visualizei, imediatamente, a
Motricidade
Humana e todos os seus princípios epistemológicos. Pois, só o “lado avesso” de
uma ciência tradicional do movimento poderia revelar o lugar onde mora a sua
“beleza” e o seu significado.
A Motricidade Humana resulta de um passado cheio de experiências
e estímulos, de um presente que exige estudos e investigações sob um novo
paradigma, envolvendo a roda das ciências e de um futuro que começa todo dia
e vai determinando objetivos que não podem e não devem ser esquecidos.
Emergiu, segundo Rosário (1999),
... como resposta à necessidade de estudar todos os
movimentos humanos; os princípios e os fins de todos os
gestos que o Homem desenha no espaço ao longo da vida.
(...) ... surge, como parece indesmentível, quando as
condições epistemológicas o permitiram e o exigiram.
Antes, não estavam reunidas as razões necessárias,
depois, o espaço que é sem dúvida o seu estaria ocupado
pelos defensores de outras áreas do conhecimento. (p.41)
Segundo Oro (1995), essa nova abordagem sobre os estudos do
movimento humano, denominada Motricidade Humana, para ser considerada e
reconhecida como uma teoria pelos seus méritos cognitivos, não poderia
escapar da historicidade do sistema científico, que é integrado por
subsistemas dinâmicos passíveis de subdivisões ou reintegrações, portanto, o
sistema científico se organiza e se diferencia de forma a respeitar as
afinidades lógicas, metodológicas e gnosiológicas transparecidas nas
investigações dos respectivos objetos particulares de estudo.
Como afirma um dos precursores da Motricidade Humana, Manuel
Sérgio (1992): “Motricidade Humana – um paradigma emergente? Com toda a
certeza! E, como tal, um novo espaço de reflexão. Não se considera
pomposamente a verdade, mas um caminho alcantilado que a persegue”. (p. 103)
O mesmo autor apresenta alguns pressupostos que dão suporte a
esta teoria ressaltando: as investigações sobre o movimento devem ir além das
ciências naturais, ampliando e interagindo com as ciências do homem, como a
psicologia, a economia, a história, a política, entre outras. A Motricidade
Humana expressa particularidades nos seus diversos conteúdos (dança,
esporte, jogo, e outros) não impedindo a ocorrência de situações semelhantes
e regulares; permite e estimula a discussão, a problematização em torno das
questões teóricas, metodológicas e práticas do movimento humano.
A Motricidade Humana acolhe a idéia da complexidade, do caos, da
imprevisibilidade, da incerteza, rejeitando a simplificação, o determinismo, a
previsibilidade. Ao investigar o ser humano em movimento, preocupa-se com o
movimento hominal e humano do homem, ou seja, faz uma leitura sistêmica
desse fenômeno na sua relação com o movimento propriamente dito, bem como
com o mundo ao qual pertence, carregado de história e de cultura. A atenção
dada ao movimento hominal e humano, nessa ciência, está voltada à
transcendência (superação), à liberdade, à individualidade, à integralidade, ao
respeito pela vontade e pelo desejo de ser em movimento, tudo isso em
constante integração e interação.
Atentar para o movimento hominal e humano é advogar a
essencialidade e a existencialidade do ser-no-mundo, considerando sua
natureza, sua facticidade e sua transcendência. Como diz Muniz de Rezende
(1990), estudar o homem nessa perspectiva é ampliar o universo da
observação sobre ele, ou seja, é considerá-lo corporal-espiritual, individual-
social, teórico-prático, entre outros aspectos, reformulando o problema da
consciência e da subjetividade, compreendendo e ultrapassando conceitos.
Investigar o ser humano em movimento transcendente traz novos
conceitos, novas aptidões ao campo científico, preocupações interrogativas
constantes, vontade e necessidade de auto-superar-se, de ir além dos
determinismos inventando e resolvendo problemas (Sérgio, 1995). Elevando a
investigação a uma estrutura sistêmica complexa em que o físico, o biológico, o
social, o antropológico se diferem, se distanciam e ao mesmo tempo se
complementam e se integram, na dialética da organização/desorganização.
Sérgio, no mesmo texto, refere-se ao ser humano no movimento da
transcendência como um ente singular que, além de pôr à prova suas qualidades
físicas, explora também sua sagacidade, sua perspicácia, sua inventividade, sua
afetividade, sua inteligência. E mais:
Porque no movimento da transcendência o praticante
sente-se permanentemente inacabado, ele está em
incessante diáspora, ele pratica, não uma disciplina, mas
uma indisciplina – uma indisciplina que nos remete ao
corpo no ato poético da criatividade. A motricidade
humana é bem a expressão corporal da incompletude!
(p.166)
Na existencialidade e na presentidade que envolvem o ser
humano e sua motricidade, considero as palavras de Moreira (2001) ao
pronunciar que o processo de humanização do ser humano está atrelado à
produção da cultura e à realização da história, sendo modificado por ambas. Ao
caminhar para a superação, os sentidos de fazer, saber, pensar, sentir,
comunicar e querer encontram-se implícitos, definindo e identificando sua
corporeidade como condição de presença, de participação e de significação do
ser humano no mundo, compreendendo a motricidade.
Os cegos, em nenhum instante da sua presentidade, deixam de ser
sujeitos existencializados, singulares e coletivos, sensíveis e inteligíveis, na
sua relação com o mundo através da motricidade. Aí então, lembro-me de
algumas situações desafiadoras que vivenciei ao desenvolver atividades
corporais para cegos, pois, em vários momentos não percebia, com clareza, os
princípios da Motricidade Humana engajados no processo educativo da
motricidade daquelas pessoas com as quais eu me relacionava.
Como exemplo, cito uma passagem muito viva ainda na minha
memória: estávamos, eu e os alunos cegos, num dos nossos encontros semanais,
desenvolvendo a descoberta e a execução de movimentos com lenços. Depois
de eles explorarem o material à vontade, eu solicitava alguns movimentos
através da oralização. Ia observando que os movimentos executados eram bem
diferentes daqueles que eu havia imaginado e esperava como resposta. Eu
procurava não impedi-los de executar, apenas olhava e ficava admirada com a
diversidade de movimentos que executavam a partir de uma mensagem
transmitida. Nesse dia percebi que, apesar da cegueira total deles todos, eles
exploram a criatividade, a liberdade de expressão, a vontade, tão bem ou
melhor que qualquer outra pessoa vidente, desde que sejam estimulados e lhes
dêem oportunidades para tal.
Susete, a artista plástica de baixa visão, menciona que, ao iniciar o
projeto de pintura com os deficientes visuais e mentais, estes não acreditavam
que um dia seriam capazes de pintar e hoje se surpreendem com os progressos
alcançados. Segundo a pintora, os trabalhos produzidos por eles são
reconhecidos por críticos de arte e estes comentam (...)” o que demoramos
uma vida inteira para conseguir, os deficientes conseguem com muita
facilidade, que é projetar o seu “eu” na pintura” (anexo 3, p.3). Essa situação
revela a potencialidade que os cegos e deficientes mentais possuem para
aprender e apreender qualquer conhecimento, desde que o corpo todo vivencie
o processo de informação e formação. Digo isto porque a metodologia
utilizada, neste projeto desenvolvido por Susete, para a apropriação da
pintura como arte é balizada a partir de vivências corporais e não apenas
visuais.
Reportar ao processo educativo, ou seja, a uma aproximação
simultânea da teoria com a prática, tratando-se de uma teoria complexa como
a Motricidade Humana, exige, como afirma Sérgio (1995): acreditar no ser
humano como um ser complexo dotado de sistemas complexos como o biológico,
o social, o cultural, o histórico; ter espírito crítico diante da própria
profissão;
ser consciente da dignidade da pessoa humana; intervir através de idéias e
pensamentos gerais e específicos; informar-se e formar-se sempre científica
e pedagogicamente; ser vivaz e curioso com relação ao processo evolutivo da
sociedade e da cultura; conviver com a incerteza, com a inquietação, com o
sonho e com a firme vontade de ir mais além.
Para todos esses preceitos serem alcançados é necessário que o
conhecimento científico da área esteja associado à universalidade do saber
fazer em motricidade. Dessa forma, o profissional outorgado para
desempenhar essas ações apresentará competência, fluidez, segurança na
resolução dos acasos e dos antagonismos que porventura aparecerem durante
o processo educativo. Fazer e compreender propõem uma educação integrada
em que o processo se dá tanto do educador para o educando, como do
educando para o educador.
Nessa linha de raciocínio, Freire (1995) propõe a pedagogia do
conflito, no sentido de propor ao educando algo familiar ainda desconhecido,
emergindo daí algo novo e diferente, o que despertará estímulos e desafios
para a reflexão, o diálogo e novas descobertas. Assim, creio eu, o
conhecimento não pode ser algo rígido, fechado, determinado, imposto, mas
sim pautado pela flexibilidade, abertura, indeterminação, escolha, liberdade,
aceitando e respeitando com sabedoria os vieses do processo. O conhecimento
produzido, nesse caso, não seguirá uma linearidade de começo, meio e fim, nem
de causa e efeito, mas sim de surpresas que gerarão outras novas surpresas
desencadeadas a partir da liberdade de ação e expressão de cada ser em
particular.
A expressão, a sensibilidade e a forma de comunicar-se do ser
humano são imanentes a ele, e elas acontecem desde que ele tenha permissão
e oportunidade para explorá-las, como também, elas transcendem se ele for
educado para percebê-las e compreendê-las. Portanto, para o cego saber fazer
e compreender um gesto que faz, no mundo onde tudo é estabelecido pela
cultura dos videntes, ele necessita ter oportunidade para se expressar,
dialogar e explicitar, o para que, o quê, o porquê e o como faz e sente sua
motricidade na relação com o mundo.
Para Neno, cego adquirido, estar se movimentando na água, é uma
das melhores formas para viver sua motricidade, sente-se livre num espaço
aberto e sem obstáculos, em que ele pode executar variados e prazerosos
movimentos num encontro consigo próprio e com o ambiente, explorando
diversas sensações e sentimentos (anexo 2).
O inverso também se faz verdadeiro, o vidente ainda habituado e
direcionado para a simplificação e fragmentação do ser humano, assusta-se ao
se deparar com as diferenças humanas. Contudo, precisa estar sensível e
aberto às novas descobertas surgidas no ir e vir da motricidade, fazendo-se
valer do saber fazer e do compreender que florescem das relações humanas.
Como se expressa Moreira (1992), o ato educativo está atrelado ao saber ser,
permitindo ao ser humano viver como humano, tanto solitária como
solidariamente.
Destacar sensibilidade como um dos ingredientes imprescindíveis e
intrínsecos das relações humanas, é estar adentrando em mais um campo da
complexidade do ser humano, o complexo emocional. Aí estão envolvidos os
mais diversos tipos de sentimentos que um ser humano pode vir a ter ao ser e
estar presente no processo educativo da motricidade, ou outro processo
qualquer.
A ação da motricidade é e está, intrínseca e extrinsecamente,
associada às atitudes corporais que, com sabedoria e consciência, revelam os
conteúdos pessoais e individuais. As reações neuromusculares revelam a
interioridade sensível de todo ser humano, adverte Morais (1992). “Depressão,
angústia, medo como também euforia, otimismo e tranqüilidade, são todos
esses sentimentos detonados na estrutura corporal e então captados por
nossa “interioridade.” (p.79)
Analisar o complexo emocional é considerar pelo menos três
dimensões do ser humano na ação da motricidade, ou seja, ele na relação
consigo mesmo, na relação com os outros e na relação com o mundo.
A tridimensionalidade das relações do ser humano no ato educativo
aponta princípios que norteiam a viabilização da Motricidade Humana. Feitosa
(1999) mostra alguns: a consciência da complexidade, o diálogo, a criatividade,
a solidariedade, a cientificidade, a confiança e a esperança, a práxis, o amor,
a
integridade e a honestidade, a autoconsciência, o sentido da vida, a
autodisciplina e auto-liderança, a liberdade e a responsabilidade, a
interdependência, a visualização, a auto-estima e o altruísmo, o amor
incondicional e a cosmoética.
Pensar, falar e agir com emoções no ato educativo, acredito que
deve ser uma condição básica para que este aconteça com fluidez e harmonia.
As emoções, quando positivas, tendem a trazer vontade de sempre estar
realizando algo a mais, com criatividade e mudanças. O ato educativo, dessa
forma, poderá almejar a transcendência na tridimensionalidade das relações
humanas na ação da motricidade, desencadeando prazer, solidariedade e
motivação para que você e o outro, individual e coletivamente, realizem-se
como seres humanos na sua completude e intencionalidade, independente do
quanto cada um almejou e conseguiu.
Ao comentar seu ato de educadora artística com os deficientes
visuais e mentais, Susete reconhece que seu trabalho possui credibilidade por
parte dos alunos e dos demais envolvidos, devido ao seu amplo conhecimento
adquirido sobre a pintura desde a adolescência, quando iniciou sua carreira,
como também devido a todas as emoções que sente e transmite ao desenvolver
o Projeto Pintar por Pintar (anexo 3).
Por ser algo extremamente subjetivo e particular, não é possível
quantificar as emoções em nenhuma instância, mas é incondicional senti-las em
qualquer situação e relação. As emoções positivas poderão incitar outros
sentimentos como a auto-estima, a responsabilidade, a integridade, a
autoconsciência, a humildade, a aceitação, os quais possibilitarão aos seres
humanos sentirem-se humanos e transmitirem humanidade no processo do ato
educativo da Motricidade Humana.
Ser íntegro e responsável é o ser humano aceitar e ter consciência
do papel escolhido para desempenhar e a condição na qual ele se encontra,
organizando-se e conciliando-se com os propósitos e objetivos próprios e
individuais da vida. Assim, ele poderá relacionar-se com os outros com
integridade e honestidade. Essa dimensão emocional remete o ser humano para
a auto-realização que surge da auto-disciplina e da auto-liderança. Como diz
Feitosa (1999):
A auto-disciplina só é possível para quem sonha e
transforma o sonho em projeto. Um projeto é um sonho
com data marcada. A auto-disciplina é a semente da
auto-liderança. A auto-liderança é fundamental para a
auto-realização. (...) A auto-realização é uma fonte
inesgotável de satisfação e de paz. (p.90)
Escolher estar perto de pessoas cegas deve, em primeira instância,
despertar satisfação e paz para, posteriormente, esse sentimento acalantar a
auto-disciplina e auto-liderança. Caso contrário, sentimentos de piedade e
constrangimento irão prevalecer na relação, impedindo dessa forma que o cego
seja e esteja no mundo como qualquer outro ser humano, recebendo
informações e formações.
O ser humano envolvido pelo complexo emocional compreende e age
de modo interativo com os seus semelhantes e com a natureza. Nessa
interação, qualquer atividade humana expressa-se na e pela motricidade. Os
movimentos viabilizam todas as ações do ser humano na sua relação com o
mundo, como também, as relações interpessoais acontecem pelo movimento
como o falar, o sorrir, o chorar, o abraçar, o lutar, o brigar, o dialogar, o
respeitar, ... (Kolyniak, Fº, 2001).
A comunicação do ser humano com o mundo e com o outro inicia-se
desde o nascimento, em que o primeiro contato acontece pelo corpo. Ao
nascer, o corpo sente que está num outro lugar e reage a essa situação
movimentando-se, simultaneamente, sente o ambiente pela pele e pelo som,
manifestando sua inquietude, sua incompreensão pelo choro. A partir de então,
esse repertório vai se ampliando de acordo com o desenvolvimento biológico,
social, cultural e afetivo de cada um, devido às necessidades humanas de
interação e integração com o meio e com o outro.
Ao nascer, o ser humano é considerado, essencialmente, um ser
biológico. Ao humanizar-se, em sua existencialidade, realiza movimentos
buscando a auto-superação na relação consigo mesmo, com o outro e com o
mundo, ultrapassando o estágio inicial e determinista dos instintos, dos
reflexos, das funções orgânicas para uma intencionalidade guiada por
racionalidade, inteligência, criatividade, sensibilidade e afetividade. Essa
facticidade e existencialidade do ser humano, em que o homem e o humano
podem ser compreendidos pelos movimentos, pela expressão, pela comunicação,
denomina-se conhecimento identificador da Motricidade Humana, ressalva
Moreira (2001).
Conhecer, compreender e acreditar nessa teoria é um ponto de
partida, porém vivenciá-la, incorporá-la, difundi-la, transformando as ações do
dia-a-dia, é essencial para que a auto-superação aconteça consigo mesmo e,
posteriormente, se alastre para e com o outro. Trazer o cego, ou mesmo o
vidente, para a compreensão da corporeidade como forma de estar-no-mundo
sensível e inteligivelmente exige competência, domínio do conhecimento geral e
específico, dedicação, sensibilidade e outros princípios comentados
anteriormente, os quais poderão instigar mudanças e realização pessoal e
coletiva no e para o ser humano.
Conde (1997), professor de Educação Física de um Instituto de
Cegos no Rio de Janeiro, publica um relato sob o título “Hoje a Aula é de
Alegria!”. Conta que num determinado dia, dois acadêmicos de Educação Física
foram cumprir um estágio de observação junto a uma turma de crianças cegas
que chegavam muito felizes para a aula de natação. Já na chegada dos alunos,
os acadêmicos se surpreenderam pela manifestação livre, segura,
independente e alegre de todos os cegos. As perguntas convencionais feitas
pelos acadêmicos aconteceram, e uma delas foi sobre qual seria o tema da aula,
o professor responde que a aula seria de alegria. A partir da resposta, os
estagiários, com muito espanto e estranhamento, passaram a observar o
professor com dúvida e avidez, pois, como poderia uma aula de Educação Física
ser de alegria, e os movimentos, onde se situariam? A aula aconteceu sob a
predominância das atividades lúdicas; da aquisição, transferência e utilização
de conceitos; dos problemas, desafios e reforços apresentados
individualmente; utilização de pistas ambientais e pontos de referência;
movimentos expressos livremente; superação de movimentos; aspectos
utilitários, recreativos e formativos da natação; desenvolvimento da
autoconfiança, da auto-iniciativa, da capacidade de tomar decisões e do prazer
de
poder fazer; e, acima de tudo, o privilégio da participação plena de cada aluno
cego, em que a alegria sobrepusesse qualquer conteúdo formal.
Esse relato revela que explorar uma prática motora com alunos
cegos, baseada na Motricidade Humana, é possível, viável e necessário, porém,
deixa claro também que os acadêmicos, na sua fase de informação e formação
profissional, estão sendo preparados sob o paradigma tradicional da Educação
Física. Diante desse fato, algumas palavras de Manuel Sérgio (1992) reforçam
as possibilidades de novos sentidos e significados dos estudos e intervenções
para com o corpo em movimento na relação com o mundo, seguindo como base
os princípios da teoria da Motricidade Humana que...
... em tudo faz referência ao corpo: ao corpo-memória e
ao corpo-profecia, ao corpo-estrutura e ao corpoconduta, ao corpo-razão e ao
corpo-emoção, ao corponatura e ao corpo-cultura, ao corpo-lúdico e ao
corpoprodutivo, ao corpo normal e ao corpo com necessidades
especiais. (p.100)
Corpos que respondem à complexidade de serem humanos, presentes
nos diversos mundos do seu entorno próprio e coletivo, e que se movimentam
naturalmente, independente da sua condição de existencialidade. Os cegos, como
todos os outros, necessitam ser compreendidos, aceitos e admirados, para poderem
se ver e se encontrar na dinâmica do seu mundo vivido (lebenswelt) ...
FIM
ϟ
O CORPO CEGO SE VÊ: EDUCAÇÃO E MOTRICIDADE
in A CORPOREIDADE DO CEGO: NOVOS OLHARES
ELINE TEREZA ROZANTE PORTO
Tese de Doutorado, defendida por Eline Tereza Rozante Porto
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
UNICAMP
Campinas - 2002
Δ
|