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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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O Corpo Se Vê: Educação e Motricidade

Eline Rozante Porto

Pity The Blind!   Peggy Bacon, 1933
Pity The Blind!  - quadro de Peggy Bacon, 1933
 
Sejamos galinhas e águias: realistas e utópicos, enraizados no concreto e abertos ao
possível ainda não ensaiado, andando no vale mas tendo os olhos nas montanhas.
Recordemos a lição dos antigos: se não buscarmos o impossível (a águia)
jamais conseguiremos o possível (a galinha).  Leonardo Boff


Volto a me lembrar da idéia do parque cheio de crianças, apresentada no Momento III. Lembro-me de uma das situações inesperadas apresentadas anteriormente, que foi a chegada de uma criança cega ao parque, querendo brincar com as demais crianças. Como as crianças videntes agiriam diante desse inesperado? Agiriam com naturalidade? Demonstrariam curiosidade, repulsa ou se aproximariam diante do diferente, do desconhecido? Pelo tempo vivido junto a crianças de diversas faixas etárias, durante um período de, aproximadamente, quinze anos, acredito que a reação imediata das crianças seria olhar, observar com olhinhos curiosos. Elas poderiam se aproximar, perguntar os “porquês” de que sentissem necessidade e desejo de saber e aí então, se juntariam à criança cega e tentariam deixá-la o mais à vontade possível para aproveitar os brinquedos tanto quanto elas.

Penso também nessa situação acontecendo num ambiente de pessoas adultas. Creio que as reações seriam diferentes das apresentadas pelas crianças. Os adultos, na sua grande maioria, iriam observar o cego com olhares desconfiados e, provavelmente, pensariam: “Coitado, não pode e não é capaz de fazer nada, como ele pode estar aqui? O que ele pretende fazer aqui junto a nós? Como ele é cego, não dá para ele participar conosco.” Enfim, o medo do novo, do diferente, do desconhecido, muitas vezes, provoca indiferença, repulsa.

Por que será que as atitudes dos seres humanos frente a uma mesma situação podem apresentar-se tão distintamente? Será apenas pela diferença cronológica das idades? Será pelo acúmulo de informações, conhecimentos, valores, propiciado pela diferença de tempo vivido entre os adultos e as crianças? Como e por que esse acúmulo de informações que os seres humanos recebem durante sua existência provoca tantas mudanças nos seus comportamentos? Poderá tal conduta ser atribuída também a pré-conceitos? A complexidade dos sistemas biológico, psicológico, social, cultural do ser humano possibilita compreendermos partes desse todo que envolve as relações entre os humanos. No entanto, para eu poder compreender um pouco mais esse todo, sinto a necessidade de complementá-lo com mais algumas partes.

No dobrar e desdobrar da existência entre os seres humanos e refletindo sobre os sistemas que formam esses seres, meu pensamento sobrevoa um tema intimamente associado a todos eles, que vem não só complementar, mas também, implicar e potencializar o princípio da complexidade e dos antagonismos: a educação.

No patamar da organização dos sistemas sociais, a educação também é considerada um fenômeno complexo do ser humano. É também um sistema complementar/conflituoso que possibilita a conservação, a manutenção, a transmissão, a reprodução e a renovação das informações, comungando com a heterogeneidade e a singularidade do ser humano no seu processo de organização/desorganização.

Dialogar e compreender a complexidade da educação num âmbito geral e, posteriormente, num âmbito específico são o intuito desse Momento de reflexão, pois, a necessidade, a vontade e mesmo a organização das minhas sensações na manifestação das idéias, surgem como uma parte que é e está vinculada a um todo, mas é também um todo que é e está interagindo com as partes.

Rosário (1999), ao comentar as diferenças existentes entre o ser humano e os demais seres vivos, chama a atenção para a complexa tarefa da educação devido à dinâmica social, cultural, histórica, política, entre outras, em que os seres humanos estão envolvidos Ao acreditar nessa complexidade como um princípio básico da educação, deve-se aceitar um desafio: para se educar o ser humano como um todo, é necessário conhecê-lo todo.

Tradicionalmente, a educação difundida nas escolas está vinculada apenas à transmissão do conhecimento de uma forma simplista e reducionista, em que o educando recebe informações e mais informações fragmentadas e desconectadas do contexto global no qual vive, ou seja, do seu mundo vida, sem ser instigado a refletir, a questionar, a compreender e a ir além daquilo que está sendo transmitido.

O professor de história Neno, cego, acredita que a educação deve estar preocupada com a informação que traz a formação de seres humanos felizes e com ética. Isso propiciará transformações nas relações humanas em que a liberdade de pensamento poderá gerar a crítica e a auto-crítica, bem como a percepção do mundo, de modo a salientar o convívio social (anexo 2).

A educação pode ser considerada como um instrumento na construção do conhecimento, com preocupações mais amplas acerca da humanização, da realidade e da vida. Deve qualificar a população para fazer os meios e, conseqüentemente, atingir os fins. A educação serve de base para a formação de um sujeito histórico, crítico e criativo que dê importância à cidadania e outros valores sócio-culturais. “Educação não será, em hipótese nenhuma, apenas ensino, treinamento, instrução, mas especificamente formação, aprender a apreender, saber pensar, para poder melhor intervir, inovar” (Ottone & Tedesco, 1992, apud Demo, 2000, p.20/21).

Hoje, século XXI, a educação está a caminho de mudanças paradigmáticas que poderão propiciar novos entendimentos e compreensões acerca do ser humano na sua relação com o mundo. Para que isso venha a acontecer, de fato, as mudanças no processo educativo do conhecimento são necessárias e imprescindíveis.

Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma é paradigmática e, não, programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. (Morin, 2001, a, p. 35) Na mesma obra, Morin argumenta que um dos desafios lançados para se alcançar essas mudanças está ligado ao agrupamento dos conhecimentos advindos das ciências naturais com os das ciências humanas, colocando em evidência a complexidade e a multidimensionalidade humanas, como também incorporar a inestimável contribuição da literatura, da poesia e das artes em geral. Desse modo, departamentalizar as dimensões humanas nos vários campos do conhecimento, ou seja, colocá-las no departamento de biologia, de psicologia, de religião, de economia, de política é compartilhar com a fragmentação e com o enfraquecimento dos saberes diante da percepção global que a educação deve proporcionar aos educandos, considerando sua responsabilidade e sua solidariedade.

Assmann (1994), ao tratar de mudança paradigmática da educação, alerta mostrando que um dos principais focos para essa mudança ocorrer, o modo de como o ser humano deve ser encarado, precisa ser modificado. Não é possível acreditar no ser humano como uma entidade abstrata, nem como uma individualidade isolada. Existem apenas seres humanos imersos numa complexíssima rede de relações com as coisas da natureza e entre si, em formas concretas de produção e reprodução social da vida humana (p.46).

Aí, quem sabe, será possível situar o cego e as demais pessoas deficientes no meio das consideradas “normais”, compreendendo e aceitando que limites biológicos, afetivos, sociais e culturais são condições de sobrevivência para todo e qualquer ser humano. As capacidades e os domínios que o ser humano possui são seus próprios limites para os enfrentamentos com esses limites que desencadeiam outras capacidades e domínios. O cego, como mostrado no capítulo anterior, por não ver o mundo com os olhos, afina com intensidade sua percepção tátil, auditiva, olfativa e cinestésica.

As propostas atuais que abarcam a educação são desafiadoras, tal como são o desafio da globalidade e o desafio da complexidade. A complexidade se mostra presente quando todos os componentes que formam um todo (como o político, o econômico, o psicológico, o sociológico, o antropológico) são inseparáveis e interdependentes, interativos e interretroativos entre as partes e o todo e o todo e as partes (Morin, 2001).

Reencantar a educação, para Assmann (1998), está associado às biociências quando afirmam que os seres vivos são seres aprendentes devido à capacidade flexível e adaptativa que possuem na dinâmica da vida, em que os processos vitais e os de conhecimento são a mesma coisa. Isso vem demonstrar, pela primeira vez na história da humanidade, as possibilidades de relacionamento entre o potencial inovador do conhecimento e a própria essência da vida.

Para o cego ser autônomo e independente ao se locomover por todos e quaisquer espaços que desejar, o relacionamento entre o conhecimento inovador e a essência da vida dele é condição básica de sobrevivência social, afetiva, cultural, entre outras. Portanto, o cego necessita conhecer, ou melhor, apreender a aprender viver num mundo em que a grande parte das informações perpassam pelos processos visuais, e assim se inter-relacionar com o mundo, não só na sua essência, mas também na sua existência. Acredito nesse processo como uma proposta educacional sob a perspectiva da complexidade.

Outros desafios que estão atrelados à educação e, conseqüentemente, ao conhecimento do século XXI, mostrados por Morin, (2001, a) revelam alguns princípios que ressaltam: - os riscos de erro, no processo de desenvolvimento do conhecimento, são possíveis e devem ser aceitos, pois, traduzir e reconstruir uma idéia, um pensamento, comporta a interpretação, que por conseguinte será feita pela subjetividade de um conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento; - as idéias e os mitos, que desempenham um papel complexo no interior da sociedade humana, não devem ser reduzidos a simples instrumentos, mas sim, ir além dessa dinâmica criando possibilidade de consciência e diálogo sobre as mesmas idéias, contendo-as e utilizando-as ao mesmo tempo que elas contêm e utilizam o ser humano; - a inteligência geral deve ser despertada e estimulada no processo educativo, pois, quanto mais se compreendem os dados gerais do conhecimento, maiores são as competências para resolver os problemas particulares ou especiais. A inteligência geral deve possibilitar aptidão para o envolvimento com o complexo, com o contexto, de modo multidimensional, dentro da concepção global do ser humano; - a unidade e a diversidade, esses dois princípios, devem permanecer unificados à educação, pela complementaridade que estabelecem nos traços biológicos, psicológicos, culturais e sociais do ser humano. “Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade.” (p.55); - a compreensão do trinômio indivíduo/sociedade/espécie, como um fenômeno complexo das sociedades democráticas, deve ser mais uma tarefa da educação. A comunicação humana, como mediadora e interlocutora do conhecimento, necessita que a compreensão das idéias entre as sociedades esteja presente durante o meio e o fim de todo o processo comunicativo.

É uma revolução nos modos de se produzir e transmitir o conhecimento na perspectiva da educação. Diante do progresso científico, das avançadas e modernas tecnologias, a educação se encontra desestruturada e desequilibrada devido à enormidade de problemas encontrados pela própria estagnação no seu processo de desenvolvimento atitudinal. E aí estão instaladas as forças políticas e econômicas repressoras de um viver com saber, com sabor e com prazer.

Já dizia Alves (1998), o ser humano só aprende algo quando o sabor sentido e experimentado trouxer prazer, pois, degustar o aprendizado trará satisfação, alegria e apreensão do conhecimento. Morin (2001, a) afirma que a inteligência só se desenvolve juntamente com a afetividade, e que a curiosidade e a paixão também estão juntas na faculdade de raciocinar. As emoções, certamente, são indispensáveis ao estabelecimento dos comportamentos racionais.

Ao contar sobre a Escola de Dona Clotilde, Freire (2001) alerta para alguns cuidados que a educação está deixando de lado, os quais são elementos essenciais para que o processo educacional estenda suas preocupações para além dos antigos chavões: disciplina, conteúdo, metodologia e aprendizagem.

Educação e conhecimento devem possibilitar ao ser humano um entrelaçamento entre o saber optar, o saber querer, o saber sobre os direitos individuais e coletivos, e assim buscar para os problemas, soluções que sejam amplas, coletivas, fraternas, sensíveis e com compaixão.

Nesse sentido, aproprio-me de algumas palavras de Assmann (1998): Os processos cognitivos e os processos vitais finalmente descobrem seu encontro, desde sempre marcado, em pleno coração do que a vida é, enquanto processo de autoorganização, desde o plano biofísico até o das esferas societais, a saber, a vida quer continuar sendo vida – a vida se “gosta” e se ama – e anela ampliar-se em mais vida.

A produção e reprodução biológica e social da vida não se deixa enquadrar plenamente em esquemas econométricos, porque os seres vivos entrelaçam necessidades e desejos de um modo muito mais complexo. Necessidades e desejos formam um tema unificado. (p.28)

Esses sistemas estão cheios de obstáculos para serem desarticulados e articulados novamente, como se propõe a complexidade dos sistemas dos seres vivos. Os desafios existentes na circularidade da e para a organização do conhecimento devem ser atrativos para uma mudança significativa nos modos processuais da educação. Como propõe Morin (2001), a reforma do pensamento se dá a partir do repensar a reforma e vice-versa, estimulando assim o ser humano a ter uma cabeça bem feita e não uma cabeça bem cheia.

Sentir, perceber, aceitar e respeitar a corporeidade do cego, como um ser de identidade própria, é para o vidente transformar seus pensamentos, idéias e valores sobre o que é e quem é o corpo e como este se inter-relaciona com o mundo. Essa transformação permite ao vidente adentrar num mundo pouco conhecido e explorado em que o antagonismo – o corpo do cego se “vê”- aparece intensamente para desequilibrar e desestruturar os sistemas naturais e sociais aparentemente organizados.

Fabiana, ao comentar sobre a corporeidade do cego mostra, com clareza, naturalidade e simplicidade, como o corpo do cego se “vê”, afirmando que: Corporeidade, para mim, é uma relação que o nosso corpo estabelece com diferentes ambientes onde ele pode estar, como também, é como esse corpo pode expressar nossos estados emocionais, nossos afetos, a nossa forma de pensar, de perceber o mundo.

... Corporeidade é tanto a relação que o corpo estabelece com o mundo, quanto o corpo poder expressar aquilo sobre ele mesmo, quer dizer, o corpo não é uma coisa estática, ele interage com aquele ambiente que a pessoa está situada. (anexo 1, p. 2) Em particular e de forma breve, faço referência à educação destinada às pessoas deficientes, em especial a dos cegos. Apesar das significativas mudanças pelas quais ela está passando, devido à proposta da educação inclusiva, ela não pode perder de vista , em nenhum momento, suas funções e suas metas.

Segundo Bartholo (1996), na educação para as pessoas deficientes as diferenças devem ser realçadas; o exercício da imaginação e da criatividade deve ser propulsor para as descobertas do conhecimento; a socialização e a comunicação interativa devem ser atrativos para que as experiências do mundo vivido (lebenswelt) venham a ser despertadas; o respeito às singularidades e particularidades do cego deve ser enfatizado, possibilitando ao mesmo uma educação balizada no sujeito que é cego como o elo construtor do processo educacional.

Ao comentar sobre a educação para as pessoas deficientes, Neno (anexo 2), cego, acredita que a educação se fundamenta na ética, na liberdade de ação, na percepção do outro. Certamente, a percepção e a atenção para com o deficiente, como para qualquer outro ser humano comum, irão acontecer de forma natural, em que o respeito às diferenças existentes entre todos será o a priori de todo o processo.

Para que isso venha a se concretizar, o vidente precisa estar aberto à renovação, à transmissão, à reprodução dos conhecimentos num processo de auto-organização das novas idéias, admitindo os erros e acertos como condições para compreensão e interpretação da subjetividade humana. Ao olhar para o corpo de um cego, o vidente precisa também considerar os princípios da unidade e da diversidade, acreditando que isso é possível e necessário, pois, trata-se da condição primeira da existencialidade e essencialidade de qualquer ser humano.

Compreender a corporeidade do cego não pode estar restrito apenas às condições limítrofes, de natureza biológica, que esse ser apresenta em relação à sua capacidade visual do órgão olho. Essa compreensão se faz necessária, mas deve ser ampliada e complementada pela interação e intersecção dos dados da realidade dispostos entre os seres humanos. Estes serão mediados e transmitidos pela capacidade que os seres humanos possuem para e em se comunicar, possibilitando assim, um olhar amplo e aberto para o trinômio indivíduo/sociedade/espécie.

Essa perspectiva mostra que o refletido e o irrefletido da corporeidade do cego se desvelam como elementos mediadores e construtores, os quais criam oportunidades para a compreensão da organização e desorganização da existencialidade desse corpo, despertando assim possibilidades de inter-relações entre os seres humanos cegos e videntes no processo de formação e informação educacional.

Mudar e reformar todas essas atitudes está intrinsecamente ligado à apropriação do conhecimento, via educação, que pelo saber-sabor deve possibilitar as mais variadas interfaces do viver do ser humano, admitindo as certezas e as incertezas, os acertos e os erros, as seguranças e as inseguranças, enfim, a ordem e a desordem dos fenômenos. Esse processo se mostra presente e prenhe de sentido e significado quando me reporto a alguns cegos durante as minhas reflexões ao longo deste trabalho como o professor e comerciante Espínola da Veiga, o filósofo, crítico de arte e fotógrafo Evgen Bavcar, o historiador Neno, a psicóloga e musicista Fabiana Bonilha e a artista plástica Susete.

Esta é uma aventura, afirma Morin (2001, a). Aventura incerta que corre o risco da ilusão e erro, podendo ser intitulada de conhecimento. Ter consciência do caráter da incerteza do ato cognitivo cria oportunidades para se alcançar o conhecimento pertinente. O ser humano, ao buscar o conhecer, se depara com as certezas e as incertezas desse ato, pois, (...) “o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas” (p.86).

A educação, hoje, está empenhada em substituir as certezas e os saberes pré-fixados pelas perguntas, pelo melhoramento dessas e pela acessibilidade às informações, desenvolvendo conceitos transversais abertos para a surpresa e para o imprevisto (Assmann, 1998).

Nesse contingente, a ênfase é dada a tudo que envolve o ser humano e o seu processo vital, que é e está no mundo vivendo a sua condição de ser humano sensível, recebendo e absorvendo, direta e indiretamente, as influências da sociedade, da ciência, da arte, da cultura, da política e da economia. E aí é descoberta uma enormidade de incertezas que circundam o aprender e o apropriar-se do conhecimento.

Pode-se considerar que uma grande contribuição do conhecimento no século XX foi a descoberta e a aceitação dos limites do próprio conhecimento, segundo Edgar Morin (2001), pois, as interrogações e o respeito às incertezas é que estão contribuindo para que o ser humano, cego e ou vidente, enfrente as dúvidas e as diversidades que se fazem presentes no mundo humano. O mesmo autor, ao comentar sobre a condição humana e conhecimento, apresenta três princípios que circundam a incerteza:

1) o cerebral (cognitivo): o conhecimento está atrelado sempre à tradução e construção do real, e não simplesmente ao seu reflexo, por isso o erro é e deve ser admitido;

2) o físico: conhecer os fatos é uma conseqüência da interpretação;

3) o epistemológico: o conhecimento é decorrente da crise dos fundamentos da certeza, em filosofia e em ciência. Ele deixa claro que o ser humano, ao conhecer e pensar, se depara e dialoga com as incertezas e não se preocupa em alcançar uma verdade e certeza absoluta.

Com o intuito de ilustrar esse pensamento, aponto algumas palavras de Bavcar (2000), para enriquecer o diálogo da educação na perspectiva da complexidade, pela própria atividade que ele, um cego, realiza, a de fotografar, para exprimir sua existencialidade.

Numa de suas passagens ele propõe: O olhar físico que quer ver não é aquele olhar da verdade, pois a presença de um objeto só pode ser confirmada pelo toque físico. (...) Poder-se-ia defini-lo como o olhar chegado, ou encostado, aquele que não provoca ainda a separação inelutável entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Não nos resta senão examinar esta separação a fim de que o pensamento permaneça o único princípio verificador de uma possível verdade. (p. 18) Bavcar, um corpo vivente da escuridão, vive sob a intencionalidade de sentir a luz nas suas ações cotidianas. É o corpo em movimento contínuo, absorvendo todas as informações do seu ecossistema e transformando-as, a partir da sua capacidade de transcender-se, apreendendo dessa forma os conhecimentos da sociedade, da arte, da cultura, da comunicação.

Isso acontece num processo formalmente sistematizado ou não, ou seja, a relação do corpo com o mundo vivido (lebenswelt) irá acontecer sempre, em qualquer instância, independente da sistematização ou não dos conhecimentos. Portanto esta sistematização possibilita ao ser humano, cego e ou vidente, uma apreensão e compreensão do mundo de forma mais ampla e abrangente, mais livre, mais crítica, mais autônoma, mais ética, mais sensível e mais prazerosa.

Esse diálogo entre o meio e o corpo pode ser denominado educação, segundo Rosário (1999), pois, é ele quem vai dar forma à alma e ao corpo do ser humano, possibilitando assim as relações humanas, de acordo com a cultura e o tempo em que estiverem acontecendo. A relação de troca existente meio/corpo permite um conhecimento que surge do exterior para o interior, bem como do interior para o exterior, resultando, a cada nova descoberta, indícios para uma próxima procura. O autor considera ainda: A riqueza do processo educativo reside em larga medida no fato de, felizmente, sermos todos diferentes; quer comparemos os genomas, quer, e também por ação destes, na forma individualizada como recolhemos, classificamos e relacionamos os dados do exterior como conseqüência do caráter genético da razão. (p.53) Rezende (1990), ao apresentar a educação sob uma abordagem fenomenológica, revela que a educação é um fenômeno, é uma experiência profundamente humana, em que o ato educativo é um sistema complexo por buscar a compreensão do ser humano, de modo a aprender e a apreender a ser homem e a existir como homem, numa perspectiva humana e humanizante.

Educar o ser humano consiste na percepção do sentido da própria existência para que essa possa ser vivida humanamente como tal. Perceber o sentido da própria existência, pode-se dizer que é a forma de o ser humano manifestarse, trazendo à tona a cultura, que faz desabrochar os traços distintos da humanidade e dos grupos humanos. Esses traços podem ser entendidos como: as diferentes maneiras que o homem encontra para se relacionar com o mundo; as diversas formas da intencionalidade; as diversas formas da dialética fenomenal. “A utilização do mundo, sua transformação, a apropriação do mundo, seu conhecimento, o poder, as relações sociais, a arte, a religião etc., são essas formas (no plural) da significação existencial.” (p.60) Moreira (1995), considerando esse modo de pensar de Rezende, adverte sobre o corpo e a educação, lembrando que nenhum ser humano escapa da ação educativa, e a educação, como um dos sistemas humanos, acontece no corpo todo e não apenas em algumas partes do corpo. Corpo este vivido e assumido...

(...) sem preconceitos, com ousadia, com paixão, com vida em abundância.

(...) que encontra vida, que busca prazer, que busca a superação de sua carência na convivência do hoje com outros corpos, (...).

(...) que deixa-se subir em montanhas, nadar em rios, contemplar amanheceres, sem a sensação de tempo perdido ou ato leviano por não significar produção.

(...) que acaricia e é acariciado, que doa e recebe energia vital, que brinca com outros corpos e permanece criança sem constrangimentos (...)

(...) que pode se deixar transparecer, se revelar, na perspectiva, na vivência do hoje, transformar o amanhã das relações corporais. (Moreira, 1994, p. 58)

O processo do conhecimento é, antes de mais nada, um processo corporal, por acompanhar uma inscrição no corpo recoberta por necessidades e desejos recheados de sensações de prazer, compondo uma unidade (Assmann, 1998).

Corpo-educação ou educação-corpo? Tanto uma como outra forma adotada revelam para mim mais um dos princípios da complexidade do sistema educacional. Como revelaram os autores citados anteriormente, o processo de conhecimento, ou seja, a educação só acontece com a presentidade corporal; e o corpo se desenvolve na sua relação com o mundo por meio do conhecimento, da educação. Um caminho de mão dupla e interdependência, em que as partes de um completam o todo do outro, e vice-versa, na complementaridade da organização e desorganização de todos os outros sistemas do ser humano, o biológico, o social, o cultural, o da comunicação, o político, o econômico.

Diante desse contexto, concordo com Rosário (1999): o ser humano, pelo movimento, identifica-se e revela a sua história, pois, a mente escolhe e determina quais os gestos a realizar após buscar na memória os registros e as informações que o corpo lhe havia transmitido. O movimento corporal e intencional do ser humano retrata que (...) “partindo do corpo próprio, sublinha não haver significação que não se refira ao corpo, nem sentido que o corpo não realize e manifeste,” ... (p.43). Ou, como bem diz Moreira (1992): O homem é um ser carente, que caminha intencionalmente na direção de sua transcendência. Por essa razão, é dotado de motricidade, que não se confunde com movimento, pois este é a expressão da motricidade. (p.207)

Trazendo à memória todas as crianças no parque, tendo a oportunidade de escolher o brincar, penso na educação – mente/corpo - que elas receberam para disponibilizarem-nas ou não, a irem brincar, juntas ou sozinhas, sem medo, sem constrangimento, com segurança, com liberdade de ação, em que os corpos, relacionando-se naquele ambiente, movimentam-se com intencionalidade e transcendência.

Realmente, vejo que elas podem ou não estar disponíveis e aptas para viverem aqueles momentos no parque com prazer e alegrias. Isso depende de como a motricidade foi sendo despertada, estimulada e aprimorada no processo educativo dessas crianças, em que o corpo é presença e existência na relação com o mundo, respeitando o espaço, o tempo e seu modo singular de viver. Freire (1991), falando de motricidade, expressa:

Pela motricidade o homem se afirma no mundo, realiza-se, dá vazão à vida. Pela motricidade ele dá registro de sua existência e cumpre sua condição fundamental de existência. A motricidade é o sintoma vivo do mais complexo de todos os sistemas: o corpo humano...é o discurso da cultura humana. (p.63)

Educação, corpo, movimento, intencionalidade, transcendência e outras palavras mencionadas remetem o meu pensar à Motricidade Humana.

Considerada uma teoria nova, por fazer pouco tempo que despontou nos meios acadêmicos e científicos da Europa e do Brasil, a Motricidade Humana surge da necessidade de uma mudança epistemológica da Educação Física tradicional. A trajetória da Educação Física foi marcada, com excelência, pelas ciências naturais até os estudiosos da área começarem a sentir falta e necessidade de outras ciências, que pudessem e viessem contribuir com os inúmeros e diversificados problemas e questionamentos que surgiam a respeito do homem em movimento.

Nesse momento de transição, levando em consideração as mudanças paradigmáticas da ciência em geral, em que as dúvidas e as certezas que apareciam eram infindáveis, constatava-se que a Educação Física, do modo como era tratada e da forma como se referia ao ser humano em movimento, não seria capaz de abarcar todas as mudanças e transformações necessárias.

Com o pressuposto de complementar e ampliar a área de conhecimento do ser humano em movimento, respeitando e considerando toda a sua complexidade, surge a Motricidade Humana.

Lendo uma crônica de Alves (1994), ao falar do “lado avesso”, ou seja, o lado escondido das coisas e das pessoas, tratando-o como o lado sensível, belo, rico, diferente e feliz, visualizei, imediatamente, a Motricidade Humana e todos os seus princípios epistemológicos. Pois, só o “lado avesso” de uma ciência tradicional do movimento poderia revelar o lugar onde mora a sua “beleza” e o seu significado.

A Motricidade Humana resulta de um passado cheio de experiências e estímulos, de um presente que exige estudos e investigações sob um novo paradigma, envolvendo a roda das ciências e de um futuro que começa todo dia e vai determinando objetivos que não podem e não devem ser esquecidos.

Emergiu, segundo Rosário (1999), ... como resposta à necessidade de estudar todos os movimentos humanos; os princípios e os fins de todos os gestos que o Homem desenha no espaço ao longo da vida.

(...) ... surge, como parece indesmentível, quando as condições epistemológicas o permitiram e o exigiram.

Antes, não estavam reunidas as razões necessárias, depois, o espaço que é sem dúvida o seu estaria ocupado pelos defensores de outras áreas do conhecimento. (p.41) Segundo Oro (1995), essa nova abordagem sobre os estudos do movimento humano, denominada Motricidade Humana, para ser considerada e reconhecida como uma teoria pelos seus méritos cognitivos, não poderia escapar da historicidade do sistema científico, que é integrado por subsistemas dinâmicos passíveis de subdivisões ou reintegrações, portanto, o sistema científico se organiza e se diferencia de forma a respeitar as afinidades lógicas, metodológicas e gnosiológicas transparecidas nas investigações dos respectivos objetos particulares de estudo.

Como afirma um dos precursores da Motricidade Humana, Manuel Sérgio (1992): “Motricidade Humana – um paradigma emergente? Com toda a certeza! E, como tal, um novo espaço de reflexão. Não se considera pomposamente a verdade, mas um caminho alcantilado que a persegue”. (p. 103) O mesmo autor apresenta alguns pressupostos que dão suporte a esta teoria ressaltando: as investigações sobre o movimento devem ir além das ciências naturais, ampliando e interagindo com as ciências do homem, como a psicologia, a economia, a história, a política, entre outras. A Motricidade Humana expressa particularidades nos seus diversos conteúdos (dança, esporte, jogo, e outros) não impedindo a ocorrência de situações semelhantes e regulares; permite e estimula a discussão, a problematização em torno das questões teóricas, metodológicas e práticas do movimento humano.

A Motricidade Humana acolhe a idéia da complexidade, do caos, da imprevisibilidade, da incerteza, rejeitando a simplificação, o determinismo, a previsibilidade. Ao investigar o ser humano em movimento, preocupa-se com o movimento hominal e humano do homem, ou seja, faz uma leitura sistêmica desse fenômeno na sua relação com o movimento propriamente dito, bem como com o mundo ao qual pertence, carregado de história e de cultura. A atenção dada ao movimento hominal e humano, nessa ciência, está voltada à transcendência (superação), à liberdade, à individualidade, à integralidade, ao respeito pela vontade e pelo desejo de ser em movimento, tudo isso em constante integração e interação.

Atentar para o movimento hominal e humano é advogar a essencialidade e a existencialidade do ser-no-mundo, considerando sua natureza, sua facticidade e sua transcendência. Como diz Muniz de Rezende (1990), estudar o homem nessa perspectiva é ampliar o universo da observação sobre ele, ou seja, é considerá-lo corporal-espiritual, individual- social, teórico-prático, entre outros aspectos, reformulando o problema da consciência e da subjetividade, compreendendo e ultrapassando conceitos.

Investigar o ser humano em movimento transcendente traz novos conceitos, novas aptidões ao campo científico, preocupações interrogativas constantes, vontade e necessidade de auto-superar-se, de ir além dos determinismos inventando e resolvendo problemas (Sérgio, 1995). Elevando a investigação a uma estrutura sistêmica complexa em que o físico, o biológico, o social, o antropológico se diferem, se distanciam e ao mesmo tempo se complementam e se integram, na dialética da organização/desorganização.

Sérgio, no mesmo texto, refere-se ao ser humano no movimento da transcendência como um ente singular que, além de pôr à prova suas qualidades físicas, explora também sua sagacidade, sua perspicácia, sua inventividade, sua afetividade, sua inteligência. E mais: Porque no movimento da transcendência o praticante sente-se permanentemente inacabado, ele está em incessante diáspora, ele pratica, não uma disciplina, mas uma indisciplina – uma indisciplina que nos remete ao corpo no ato poético da criatividade. A motricidade humana é bem a expressão corporal da incompletude! (p.166) Na existencialidade e na presentidade que envolvem o ser humano e sua motricidade, considero as palavras de Moreira (2001) ao pronunciar que o processo de humanização do ser humano está atrelado à produção da cultura e à realização da história, sendo modificado por ambas. Ao caminhar para a superação, os sentidos de fazer, saber, pensar, sentir, comunicar e querer encontram-se implícitos, definindo e identificando sua corporeidade como condição de presença, de participação e de significação do ser humano no mundo, compreendendo a motricidade.

Os cegos, em nenhum instante da sua presentidade, deixam de ser sujeitos existencializados, singulares e coletivos, sensíveis e inteligíveis, na sua relação com o mundo através da motricidade. Aí então, lembro-me de algumas situações desafiadoras que vivenciei ao desenvolver atividades corporais para cegos, pois, em vários momentos não percebia, com clareza, os princípios da Motricidade Humana engajados no processo educativo da motricidade daquelas pessoas com as quais eu me relacionava.

Como exemplo, cito uma passagem muito viva ainda na minha memória: estávamos, eu e os alunos cegos, num dos nossos encontros semanais, desenvolvendo a descoberta e a execução de movimentos com lenços. Depois de eles explorarem o material à vontade, eu solicitava alguns movimentos através da oralização. Ia observando que os movimentos executados eram bem diferentes daqueles que eu havia imaginado e esperava como resposta. Eu procurava não impedi-los de executar, apenas olhava e ficava admirada com a diversidade de movimentos que executavam a partir de uma mensagem transmitida. Nesse dia percebi que, apesar da cegueira total deles todos, eles exploram a criatividade, a liberdade de expressão, a vontade, tão bem ou melhor que qualquer outra pessoa vidente, desde que sejam estimulados e lhes dêem oportunidades para tal.

Susete, a artista plástica de baixa visão, menciona que, ao iniciar o projeto de pintura com os deficientes visuais e mentais, estes não acreditavam que um dia seriam capazes de pintar e hoje se surpreendem com os progressos alcançados. Segundo a pintora, os trabalhos produzidos por eles são reconhecidos por críticos de arte e estes comentam (...)” o que demoramos uma vida inteira para conseguir, os deficientes conseguem com muita facilidade, que é projetar o seu “eu” na pintura” (anexo 3, p.3). Essa situação revela a potencialidade que os cegos e deficientes mentais possuem para aprender e apreender qualquer conhecimento, desde que o corpo todo vivencie o processo de informação e formação. Digo isto porque a metodologia utilizada, neste projeto desenvolvido por Susete, para a apropriação da pintura como arte é balizada a partir de vivências corporais e não apenas visuais.

Reportar ao processo educativo, ou seja, a uma aproximação simultânea da teoria com a prática, tratando-se de uma teoria complexa como a Motricidade Humana, exige, como afirma Sérgio (1995): acreditar no ser humano como um ser complexo dotado de sistemas complexos como o biológico, o social, o cultural, o histórico; ter espírito crítico diante da própria profissão; ser consciente da dignidade da pessoa humana; intervir através de idéias e pensamentos gerais e específicos; informar-se e formar-se sempre científica e pedagogicamente; ser vivaz e curioso com relação ao processo evolutivo da sociedade e da cultura; conviver com a incerteza, com a inquietação, com o sonho e com a firme vontade de ir mais além.

Para todos esses preceitos serem alcançados é necessário que o conhecimento científico da área esteja associado à universalidade do saber fazer em motricidade. Dessa forma, o profissional outorgado para desempenhar essas ações apresentará competência, fluidez, segurança na resolução dos acasos e dos antagonismos que porventura aparecerem durante o processo educativo. Fazer e compreender propõem uma educação integrada em que o processo se dá tanto do educador para o educando, como do educando para o educador.

Nessa linha de raciocínio, Freire (1995) propõe a pedagogia do conflito, no sentido de propor ao educando algo familiar ainda desconhecido, emergindo daí algo novo e diferente, o que despertará estímulos e desafios para a reflexão, o diálogo e novas descobertas. Assim, creio eu, o conhecimento não pode ser algo rígido, fechado, determinado, imposto, mas sim pautado pela flexibilidade, abertura, indeterminação, escolha, liberdade, aceitando e respeitando com sabedoria os vieses do processo. O conhecimento produzido, nesse caso, não seguirá uma linearidade de começo, meio e fim, nem de causa e efeito, mas sim de surpresas que gerarão outras novas surpresas desencadeadas a partir da liberdade de ação e expressão de cada ser em particular.

A expressão, a sensibilidade e a forma de comunicar-se do ser humano são imanentes a ele, e elas acontecem desde que ele tenha permissão e oportunidade para explorá-las, como também, elas transcendem se ele for educado para percebê-las e compreendê-las. Portanto, para o cego saber fazer e compreender um gesto que faz, no mundo onde tudo é estabelecido pela cultura dos videntes, ele necessita ter oportunidade para se expressar, dialogar e explicitar, o para que, o quê, o porquê e o como faz e sente sua motricidade na relação com o mundo.

Para Neno, cego adquirido, estar se movimentando na água, é uma das melhores formas para viver sua motricidade, sente-se livre num espaço aberto e sem obstáculos, em que ele pode executar variados e prazerosos movimentos num encontro consigo próprio e com o ambiente, explorando diversas sensações e sentimentos (anexo 2).

O inverso também se faz verdadeiro, o vidente ainda habituado e direcionado para a simplificação e fragmentação do ser humano, assusta-se ao se deparar com as diferenças humanas. Contudo, precisa estar sensível e aberto às novas descobertas surgidas no ir e vir da motricidade, fazendo-se valer do saber fazer e do compreender que florescem das relações humanas.

Como se expressa Moreira (1992), o ato educativo está atrelado ao saber ser, permitindo ao ser humano viver como humano, tanto solitária como solidariamente.

Destacar sensibilidade como um dos ingredientes imprescindíveis e intrínsecos das relações humanas, é estar adentrando em mais um campo da complexidade do ser humano, o complexo emocional. Aí estão envolvidos os mais diversos tipos de sentimentos que um ser humano pode vir a ter ao ser e estar presente no processo educativo da motricidade, ou outro processo qualquer.

A ação da motricidade é e está, intrínseca e extrinsecamente, associada às atitudes corporais que, com sabedoria e consciência, revelam os conteúdos pessoais e individuais. As reações neuromusculares revelam a interioridade sensível de todo ser humano, adverte Morais (1992). “Depressão, angústia, medo como também euforia, otimismo e tranqüilidade, são todos esses sentimentos detonados na estrutura corporal e então captados por nossa “interioridade.” (p.79) Analisar o complexo emocional é considerar pelo menos três dimensões do ser humano na ação da motricidade, ou seja, ele na relação consigo mesmo, na relação com os outros e na relação com o mundo.

A tridimensionalidade das relações do ser humano no ato educativo aponta princípios que norteiam a viabilização da Motricidade Humana. Feitosa (1999) mostra alguns: a consciência da complexidade, o diálogo, a criatividade, a solidariedade, a cientificidade, a confiança e a esperança, a práxis, o amor, a integridade e a honestidade, a autoconsciência, o sentido da vida, a autodisciplina e auto-liderança, a liberdade e a responsabilidade, a interdependência, a visualização, a auto-estima e o altruísmo, o amor incondicional e a cosmoética.

Pensar, falar e agir com emoções no ato educativo, acredito que deve ser uma condição básica para que este aconteça com fluidez e harmonia.

As emoções, quando positivas, tendem a trazer vontade de sempre estar realizando algo a mais, com criatividade e mudanças. O ato educativo, dessa forma, poderá almejar a transcendência na tridimensionalidade das relações humanas na ação da motricidade, desencadeando prazer, solidariedade e motivação para que você e o outro, individual e coletivamente, realizem-se como seres humanos na sua completude e intencionalidade, independente do quanto cada um almejou e conseguiu.

Ao comentar seu ato de educadora artística com os deficientes visuais e mentais, Susete reconhece que seu trabalho possui credibilidade por parte dos alunos e dos demais envolvidos, devido ao seu amplo conhecimento adquirido sobre a pintura desde a adolescência, quando iniciou sua carreira, como também devido a todas as emoções que sente e transmite ao desenvolver o Projeto Pintar por Pintar (anexo 3).

Por ser algo extremamente subjetivo e particular, não é possível quantificar as emoções em nenhuma instância, mas é incondicional senti-las em qualquer situação e relação. As emoções positivas poderão incitar outros sentimentos como a auto-estima, a responsabilidade, a integridade, a autoconsciência, a humildade, a aceitação, os quais possibilitarão aos seres humanos sentirem-se humanos e transmitirem humanidade no processo do ato educativo da Motricidade Humana.

Ser íntegro e responsável é o ser humano aceitar e ter consciência do papel escolhido para desempenhar e a condição na qual ele se encontra, organizando-se e conciliando-se com os propósitos e objetivos próprios e individuais da vida. Assim, ele poderá relacionar-se com os outros com integridade e honestidade. Essa dimensão emocional remete o ser humano para a auto-realização que surge da auto-disciplina e da auto-liderança. Como diz Feitosa (1999): A auto-disciplina só é possível para quem sonha e transforma o sonho em projeto. Um projeto é um sonho com data marcada. A auto-disciplina é a semente da auto-liderança. A auto-liderança é fundamental para a auto-realização. (...) A auto-realização é uma fonte inesgotável de satisfação e de paz. (p.90) Escolher estar perto de pessoas cegas deve, em primeira instância, despertar satisfação e paz para, posteriormente, esse sentimento acalantar a auto-disciplina e auto-liderança. Caso contrário, sentimentos de piedade e constrangimento irão prevalecer na relação, impedindo dessa forma que o cego seja e esteja no mundo como qualquer outro ser humano, recebendo informações e formações.

O ser humano envolvido pelo complexo emocional compreende e age de modo interativo com os seus semelhantes e com a natureza. Nessa interação, qualquer atividade humana expressa-se na e pela motricidade. Os movimentos viabilizam todas as ações do ser humano na sua relação com o mundo, como também, as relações interpessoais acontecem pelo movimento como o falar, o sorrir, o chorar, o abraçar, o lutar, o brigar, o dialogar, o respeitar, ... (Kolyniak, Fº, 2001).

A comunicação do ser humano com o mundo e com o outro inicia-se desde o nascimento, em que o primeiro contato acontece pelo corpo. Ao nascer, o corpo sente que está num outro lugar e reage a essa situação movimentando-se, simultaneamente, sente o ambiente pela pele e pelo som, manifestando sua inquietude, sua incompreensão pelo choro. A partir de então, esse repertório vai se ampliando de acordo com o desenvolvimento biológico, social, cultural e afetivo de cada um, devido às necessidades humanas de interação e integração com o meio e com o outro.

Ao nascer, o ser humano é considerado, essencialmente, um ser biológico. Ao humanizar-se, em sua existencialidade, realiza movimentos buscando a auto-superação na relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo, ultrapassando o estágio inicial e determinista dos instintos, dos reflexos, das funções orgânicas para uma intencionalidade guiada por racionalidade, inteligência, criatividade, sensibilidade e afetividade. Essa facticidade e existencialidade do ser humano, em que o homem e o humano podem ser compreendidos pelos movimentos, pela expressão, pela comunicação, denomina-se conhecimento identificador da Motricidade Humana, ressalva Moreira (2001).

Conhecer, compreender e acreditar nessa teoria é um ponto de partida, porém vivenciá-la, incorporá-la, difundi-la, transformando as ações do dia-a-dia, é essencial para que a auto-superação aconteça consigo mesmo e, posteriormente, se alastre para e com o outro. Trazer o cego, ou mesmo o vidente, para a compreensão da corporeidade como forma de estar-no-mundo sensível e inteligivelmente exige competência, domínio do conhecimento geral e específico, dedicação, sensibilidade e outros princípios comentados anteriormente, os quais poderão instigar mudanças e realização pessoal e coletiva no e para o ser humano.

Conde (1997), professor de Educação Física de um Instituto de Cegos no Rio de Janeiro, publica um relato sob o título “Hoje a Aula é de Alegria!”. Conta que num determinado dia, dois acadêmicos de Educação Física foram cumprir um estágio de observação junto a uma turma de crianças cegas que chegavam muito felizes para a aula de natação. Já na chegada dos alunos, os acadêmicos se surpreenderam pela manifestação livre, segura, independente e alegre de todos os cegos. As perguntas convencionais feitas pelos acadêmicos aconteceram, e uma delas foi sobre qual seria o tema da aula, o professor responde que a aula seria de alegria. A partir da resposta, os estagiários, com muito espanto e estranhamento, passaram a observar o professor com dúvida e avidez, pois, como poderia uma aula de Educação Física ser de alegria, e os movimentos, onde se situariam? A aula aconteceu sob a predominância das atividades lúdicas; da aquisição, transferência e utilização de conceitos; dos problemas, desafios e reforços apresentados individualmente; utilização de pistas ambientais e pontos de referência; movimentos expressos livremente; superação de movimentos; aspectos utilitários, recreativos e formativos da natação; desenvolvimento da autoconfiança, da auto-iniciativa, da capacidade de tomar decisões e do prazer de poder fazer; e, acima de tudo, o privilégio da participação plena de cada aluno cego, em que a alegria sobrepusesse qualquer conteúdo formal.

Esse relato revela que explorar uma prática motora com alunos cegos, baseada na Motricidade Humana, é possível, viável e necessário, porém, deixa claro também que os acadêmicos, na sua fase de informação e formação profissional, estão sendo preparados sob o paradigma tradicional da Educação Física. Diante desse fato, algumas palavras de Manuel Sérgio (1992) reforçam as possibilidades de novos sentidos e significados dos estudos e intervenções para com o corpo em movimento na relação com o mundo, seguindo como base os princípios da teoria da Motricidade Humana que...

... em tudo faz referência ao corpo: ao corpo-memória e ao corpo-profecia, ao corpo-estrutura e ao corpoconduta, ao corpo-razão e ao corpo-emoção, ao corponatura e ao corpo-cultura, ao corpo-lúdico e ao corpoprodutivo, ao corpo normal e ao corpo com necessidades especiais. (p.100) Corpos que respondem à complexidade de serem humanos, presentes nos diversos mundos do seu entorno próprio e coletivo, e que se movimentam naturalmente, independente da sua condição de existencialidade. Os cegos, como todos os outros, necessitam ser compreendidos, aceitos e admirados, para poderem se ver e se encontrar na dinâmica do seu mundo vivido (lebenswelt) ...

FIM

 

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O CORPO CEGO SE VÊ: EDUCAÇÃO E MOTRICIDADE
in A CORPOREIDADE DO CEGO: NOVOS OLHARES ELINE TEREZA ROZANTE PORTO
Tese de Doutorado, defendida por Eline Tereza Rozante Porto
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
UNICAMP
Campinas - 2002
texto integral da tese aqui.

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1.Out.2020
Maria José Alegre