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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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O Alfabeto Braille, Sua Génese, Seu Significado

Albuquerque e Castro

1961

imagem da página 5 do Nouveau Procedé ( nfb.org )
página 5 do Nouveau Procedé ( nfb.org )
 

Na introdução ao seu «ENSAYO BIOLÓGICO SOBRE ENRIQUE IV DE CASTILLA Y SU TIEMPO», Gregório Marañõn distingue o investigador e crítico, verdadeiro criador de realidades, que muitas vezes condensa numa só frase todo um sistema de ideias, do simples curioso da ciência, da história e da vida, que se contenta com aflorar conhecimentos sem nunca os profundar.

“Intromissão e colaboração” é a síntese com que ele define estas atitudes tão diferentes entre si, caracterizadas por constante reconstrução do real, no campo da especulação e da experiência, ou por simples enciclopedismo de superfície em que o saber é paisagem por onde se passeia e não motivo sobre que se reflete.

O equívoco resultante de não se distinguir intromissão de colaboração leva muitos a julgarem-se capazes de tudo e a suporem que, por terem uma especialidade qualquer, lhes estão abertas todas as especialidades.

No que toca à vida dos cegos, aos seus problemas morais e sociais, ao conjunto de atividades no plano da experiência e do pensamento que são objeto da Tiflologia, encontra esta síntese integral confirmação.

Se o insigne cientista, com o seu forte humanismo, tivesse tido tempo de se debruçar sobre estes homens que só por sofrerem de desnivelamento sensorial que não podem esconder são olhados como menores mesmo quando adultos, não deixaria de assimilar aos inconvenientes que para a cultura traz o vício que denunciou aqueles que se manifestam no dia a dia da vida, sobretudo quando seres humanos indefesos sofrem por causa deles. Seres humanos que, apesar das provas irrefutáveis da sua capacidade intelectual, amor ao trabalho, bom senso, força de superação do défice visual que aparentemente os diminui, continuam em muitos países sem exclusão do nosso a não passar de tolerados sujeitos a tutela, de cujo destino se dispõe sem ao menos se lhes perguntar se não quereriam outro destino.

E, como o seu caso toca de perto o lado afetivo de quem os olha ou os conhece, faz-se deles com frequência motivo de reportagens sensacionais e pretexto para novelas mais ou menos apaixonantes.

Pierre Henri, um dos cegos que poderiam bem ser tutores pelo espírito de muitos dos que se julgam capazes de tutelá-los, escreve no prefácio de «LA VIE ET L’OEUVRE DE LOUIS BRAILLE» que o seu trabalho não é “vida romanceada, mas ensaio histórico e crítico”, salientando a oportunidade do esclarecimento “numa época em que jornalistas e cineastas não visam senão comover e distrair, muitas vezes à custa da verdade”. E lembra que “o inventor do sistema universal de escrita dos cegos era ele próprio cego. A sua personalidade está tanto mais exposta a deformações quanto a sua vida foi das mais modestas e a cegueira é sempre, para os que vêem, objeto de emoção e de mistério, ou antes, de curiosidade”.

Pierre Henri denuncia com razão, entre as especulações sobre a simpatia que a cegueira inspira, o livro do americano Kugelmas, cujo título, «A primeira história completa acerca do homem que abriu as portas do saber aos cegos de todo o mundo», é já por si cartaz colorido de propaganda novelesca.

Intromissão ou colaboração é bem a legenda que haveria de estar sempre onde quer que alguém trata de alguma coisa, para lhe dar consciência do modo como a trata, se intrometendo-se, se colaborando.

No dia em que os cegos puderem encontrar à sua volta apenas colaboração, os seus problemas específicos estarão em via de resolver-se.

Colaboração na obra a tantos títulos difícil mas valiosa de recuperar os não videntes para a Nação, pelo trabalho e pela cultura. Obra que não pode ser apenas da escola ou da oficina nem há de pertencer unicamente a um indivíduo ou a uma instituição. Obra onde não cabem a improvisação fácil, a inadaptação de homens e de processos, a solução de problemas ao nível do senso comum. Obra em que os próprios cegos têm de chamar-se ao primeiro plano, porque é deles e para eles.

Colaboração significa precisamente ir ao seu encontro e dar-lhes aquilo de que precisam para que possam pelo seu próprio esforço, de dentro para fora, erguer-se à altura da dignidade humana e social que os espera.

Não ser cego e colaborar com ele, na plena consciência dos fins a atingir e no conhecimento exato dos métodos a adotar, eis o objetivo que deve nortear quantos se dedicam a assistência tiflológica, para que possam realizá-la de costas voltadas para a rotina, a passividade, a inépcia, o sentimentalismo vazio de conteúdo humano, a indiferença substituindo-se ao interesse.

Cabem estas reflexões a propósito do que vai dizer-se sobre Braille e o seu alfabeto e que não pretende apresentá-lo como objeto de espanto ou motivo de fáceis emoções.

De pouco vale, na verdade, a referência a factos passados, sobre que já decorreram muitos anos, se não for para determinar a medida em que se projetam no presente e condicionam o que na vida é essencialmente atual.

Por isso, não nos deteremos a recordar o que nos cadernos de vulgarização, em qualquer coletânea de biografias, nos dicionários enciclopédicos, toda a gente pode ver: Que a escrita formada por pontos em relevo para uso dos cegos, foi inventada por Luís Braille, natural de Coupvray, pequena vila a leste de Paris, onde nasceu a 4 de janeiro de 1809 e onde ficaram os seus restos mortais desde 10 de Janeiro de 1852, já que a sua morte se verificou em Paris a 6 do mesmo mês, 43 anos e 2 dias depois de haver nascido.
 

imagem: Louis Braille
Louis Braille


Não sabemos se estas particularidades e outras mais ou menos análogas da vida de Luís Braille têm alguma relação com o alfabeto por ele inventado e podem de qualquer modo ajudar-nos a entender a sua génese e o seu enquadramento na série de tentativas feitas através dos séculos para dar ao não vidente possibilidade de ler e escrever não só textos literários correntes como aqueles para que se exigem grafias especiais.

Duvidamos de que tais particularidades, tanto do agrado de espíritos simplistas mais atraídos pelo aspeto anedótico da história que pelas suas relações intrínsecas e pelo determinismo das forças que a informam, possam tornar mais inteligível a economia do Sistema Braille, os elementos que o estruturam, as influências que o subordinaram.

Para quem pretenda atingir este objetivo e não apenas contar a vida dum homem, que como homem e como vida pouco interesse tem, basta assinalar:
 

  • Que Luís Braille perdeu a vista pelos três anos, em ambiente recatado e severo, o que pode explicar a sua mentalidade de imaginativo introvertido mais dado à reflexão que à expansão de sentimentos;

  • Que o seu desenvolvimento intelectual, intimamente ligado ao período da escolaridade, coincidiu com os últimos aperfeiçoamentos da escrita noturna de Carlos Barbier de la Serre, apresentada no Instituto Real dos Jovens Cegos, de Paris, por volta de 1825, poucos anos depois que Braille ali deu entrada como internado;

  • Que os símbolos formados por pontos, que constituíam a sonografia de Barbier, correspondiam inteiramente ao caráter analítico do sentido táctil e, além disso, permitiam a sua reprodução manuscrita;

  • Que a leitura se fazia então através das letras do alfabeto latino, gravadas em relevo linear de difícil apreensão pelo tacto;

  • Que, enfim, Braille era cego e portanto se encontrava em melhores condições que Barbier para sentir os inconvenientes da sonografia por este criada e as transformações que deviam introduzir-se-lhe para fazer dela efetivamente a espécie gráfica que convém aos cegos.

Vejamos como a relacionação destas premissas pode iluminar o aspeto histórico do Alfabeto Braille e integrá-lo no conjunto de experiiências que desde 1809, ano em que Luís Braille nasceu, se estavam processando e, embora sem intenção de dar aos invidentes a sua convenção gráfica específica, acabaram por conduzir a ela quando se verificou a dificuldade de ler com os dedos carateres que haviam sido feitos para os olhos.
 

imagem: Charles Barbier
Charles Barbier
 

Após renovações e adaptações sucessivas que seria longo enumerar, o vidente Carlos Barbier, capitão de artilharia, orientou a sua Escrita Secreta, destinada a ser usada por guerreiros, de tal modo que o tacto se tornou elemento essencial na interpretação dos respetivos símbolos.

Foi já em período adiantado da evolução do seu método que lhe ocorreu pô-lo ao serviço dos cegos e chamar a atenção dos educadores para as vantagens que nele se evidenciavam por comparação com o das letras vulgares em relevo linear, introduzido por Valentin Haüy.
 

imagem: Valentin Haüy
Valentin Haüy
 

Desde logo, Barbier estabeleceu dois princípios que bastam para fazer dele o direto e único precursor de Luís Braille:

  1. Que os pontos são de mais fácil discriminação pelo tacto do que a linha;

  2. que os cegos, ao contrário do que pensava Valentin Haüy e os educadores do seu tempo, têm necessidade de convenções gráficas específicas, embora isso de algum modo os desintegre do mundo dos videntes.

Dois são também os defeitos fundamentais do seu método:

  1. Obedecer a princípios fonéticos e não ortográficos;

  2. ocuparem os carateres de maior envergadura e até os de envergadura média espaço tal que não podia a sua imagem global apreender-se com um só contacto.

Feito principalmente para facilitar aos combatentes a transmissão de mensagens durante a noite, de onde o seu nome de escrita noturna, o sistema de Carlos Barbier foi evolucionando até se tornar verdadeiro código cifrado, próprio para guardar o segredo militar.

Aparece então na forma de sonografia, constituída por 36 sinais representativos de outros tantos sons e distribuídos por 6 linhas de 6 sinais cada uma, formando igual número de colunas.

Bastava indicar por dois algarismos a linha e a ordem que o sinal nela ocupava, para facilmente o identificar.

Um momento houve no processo desta evolução, em que Barbier teve uma daquelas intuições que estão na origem de muitas das maiores descobertas e invenções do género humano. A dele consistiu em designar as coordenadas dos seus símbolos sonográficos por certo número de pontos, indicativos da abcissa e da ordenada, ou seja, da linha e da coluna a que o símbolo pertencia, pontos estes colocados em duas filas verticais e paralelas.

Assim, por exemplo, o sinal que se encontrasse no cruzamento da quinta linha e da terceira coluna seria representado por cinco pontos na fila vertical esquerda e três na direita. O que estivesse em última posição na segunda linha indicar-se-ia por dois pontos à esquerda e seis à direita, e assim por diante.

Daqui resultou um sistema gráfico, ou melhor, sonográfico, formado por pontos em relevo justapostos, que permitiam não só a leitura táctil mas a escrita. Carlos Barbier inventou mesmo um pequeno instrumento, verdadeiro arquétipo da régua Braille, por meio do qual, como hoje, com auxílio de um punção que ele chamou estilete, podiam gravar-se no papel todos os símbolos do seu sistema.

Qual é então o mérito de Luís Braille? Se os sinais em relevo ponteado estavam inventados, se o próprio instrumento de escrita o estava também, que podia fazer-se ainda?

Como Braille declarou por mais de uma vez, com aquela honestidade que foi timbre do seu caráter e aquela modéstia que não sofreu desvios mesmo quando a celebridade o ia já tocando, o processo de Barbier de la Serre resolvia algumas questões importantes no domínio da leitura e da escrita ao serviço dos cegos: Facilitava a discriminação dos sinais gráficos em relevo e, sobretudo, dava aos não videntes a possibilidade que até aí não haviam tido de escrever estes sinais pela sua própria mão.

Luís Braille reconheceu, porém, desde o início, que os sinais com mais de três pontos em cada fila ultrapassavam as possibilidades duma única perceção táctil, impedindo a formação de imagens por apreensão sintética. Reduziu, por isso, a este número o limite máximo de pontos em cada uma das filas ― e aqui está uma primeira transformação do processo Barbier que só por si representa alto mérito para Luís Braille.

Em seguida, extraiu das diversas combinações a que seis pontos dão origem uma série de carateres metodicamente dispostos e derivados uns dos outros com tanta lógica e simplicidade que ainda hoje nos espantam, sobretudo se pensarmos que esse objetivo foi atingido logo na primeira edição da sua obra, aparecida em 1829, quando tinha apenas 20 anos.

Outro dos méritos de Luís Braille de não menor alcance é o de ter ele rompido com a conceção fonética de Carlos Barbier, na qual os símbolos representavam sons e não letras, e dado ao seu processo fundamento ortográfico.

Braille é assim, verdadeiramente, o criador dum alfabeto.
 

imagem: Nouveau procedé pour représenter par des points la forme même des lettres à l'usage des aveugles - Louis Braille
Nouveau procedé pour représenter par des points
la forme même des lettres à l'usage des aveugles
-  Louis Braille, 1839 -

 

Nesta primeira edição, intitulada «Processo para escrever as Palavras, a Música e o Canto-Chão por meio de pontos, para uso dos cegos e dispostos para eles», são ainda aproveitados elementos dos métodos anteriores de escrita linear. Mas, em 1837, quando publicou a segunda, após oito anos de experiências e ajustamentos em que muitos dos seus camaradas hoje esquecidos colaboraram, o sistema apresenta-se tal como atualmente o conhecemos, tendo rapidamente alcançado forma definitiva e expressão perfeita ― tão perfeita que, apesar das modificações que outros procuraram introduzir-lhe, principalmente na Alemanha e na América do Norte, é presentemente o único processo tiflográfico usado pelos cegos de todo o mundo.
 

imagem: Alfabeto francês original de Louis Braille in https://www.historytoday.com/louis-braille-and-night-writer
Alfabeto francês original de Louis Braille

 

vide  Nouveau procedé pour représenter par des points la forme même des lettres à l'usage des aveugles - Louis Braille, 1839

Não foi fácil, porém, a sua ascensão à universalidade. Levou muitos anos a adotar-se na mesma escola onde Luís Braille foi aluno e professor, e no entanto se orgulha hoje de contá-lo entre os seus maiores. Levou mais anos ainda a invadir a Europa inteira, porque não foram poucos os obstáculos que dificultaram a sua expansão.

Uns estavam apegados de mais à rotina para aceitarem facilmente novas fórmulas; outros queriam ser também inventores de métodos de escrita em relevo e não era difícil, depois de Barbier e de Braille, com alterações e adaptações meramente acidentais, inventar outras fórmulas; estes não se dispunham a pôr de lado processos a que estavam habituados e já faziam parte integrante da sua estrutura mental; aqueles não podiam admitir que alguém diferente deles fosse o criador dum tipo de escrita que apesar de tudo lhes era forçoso reconhecer como inultrapassável.

Tivesse havido outro caminho e não se falaria hoje de Luís Braille.

Sempre assim acontece, quando alguém sacode ideias estagnadas ou contraria hábitos inveterados, abalando ao mesmo tempo posições que não querem perder-se, vaidades que não estão dispostas a subordinar-se, soberbas que não sabem encontrar o rumo da humildade.

Mas não havia outro caminho. E Braille triunfou.

Na obra já citada, Pierre Henri não hesita em proclamar que, sem Barbier, talvez nunca tivesse existido Braille.

“Nesta época”, diz ele, “estava-se ainda preso ao princípio enunciado por Valentin Haüy, segundo o qual em todas as coisas era preciso tanto quanto possível aproximar o cego do vidente. Aplicava-se esta máxima à leitura dos cegos e teimava-se em os fazer ler carateres que eles a custo decifravam.

vide  Essai sur l'Éducation des Aveugles - Valentin Haüy, 1786

Carlos Barbier teve o mérito de se libertar e de libertar o jovem Braille de tal princípio. Não é insignificante mérito esse, para um vidente. À falta de Braille, teria certamente aparecido alguém para aperfeiçoar o sistema elaborado pelo capitão Barbier”.

Esta afirmação em nada diminui a glória de Luís Braille, porque, além de improvável, poderia aplicar-se a quantos condensam em obra própria o que andava latente ou difuso na dos seus predecessores, sem por isso verem reduzido o seu valor. Outro ou ele pouco importa, até porque a questão seria suscetível de levantar-se em relação aos que tivessem ficado em seu lugar. A verdade, porém, é que foi ele quem transformou o sistema de Barbier, e, como nada nos faz desejar que houvesse sido outro, a ele devemos homenagem e gratidão.

Mas não podemos esquecer que a escrita em relevo ponteado estava de facto já inventada e que se tinham reconhecido as vantagens do seu uso no ensino dos não videntes. Não deve por isso negar-se a Carlos Barbier de la Serre o grande mérito de tê-lo feito em primeiro plano, e esta é a razão por que se nos afigura injusto o esquecimento a que se tem votado.

Não falta quem acuse os cegos de propositadamente o preterirem em favor de um dos seus, para assim melhor alicerçarem as suas reivindicações de capacidade intelectual e de independência no próprio campo dos seus instrumentos de trabalho e de cultura.

Exemplo significativo, nos nossos dias, desta pretensa atitude pode ver-se no facto de Pierre Villey, outro cego de grande envergadura, professor universitário, historiador e crítico, cujos ensaios sobre Montaigne e sobre a psicologia e a pedagogia dos invidentes não foram ainda ultrapassados, se referir a Carlos Barbier, em «LE MONDE DES AVEUGLES», nalgumas linhas apenas, equiparando-o a outros precursores que de nenhum modo se encontram no caminho que conduz a Braille.

Não cremos que esteja aí a razão do esquecimento, mas principalmente em não se ter usado nunca o processo de Barbier, de que não ficou qualquer tradição nem documento da sua aplicação prática a não ser o livro que, a título meramente histórico, se guarda no Museu Valentin Haüy, em Paris.

Seja como for, não fica mal aos cegos nem os diminui dizer que um dos seus maiores de entre eles, o que lhes deu o instrumento da sua recuperação social pela cultura, teve como precursor um vidente, sem o qual o seu alfabeto específico, a convenção gráfica organizada por Luís Braille, não existiria talvez.

Ele próprio, com a dignidade e a probidade mental que foram marca constante da sua vida, reconheceu a profunda influência ― alguns dos seus biógrafos chamam-lhe filiação ― que relaciona o seu sistema e o do seu mestre.

Mas outro que não fosse ele, homem de espírito reto e metódico, classificador e rigorosamente lógico, mais dado à refleção que à expansão de sentimentos, teria modificado a sonografia de Barbier até a tornar tão simples, tão luminosa, tão perfeita, desde a primeira hora, que verdadeiramente a transfigurou?

Não haveria hoje, em vez do seu método, uma multiplicidade de métodos, muito longe da unidade que presentemente o caracteriza e só encontra paralelo na que atingiu a expressão gráfica da Música?

Villey classifica de “prodígio do alfabeto Braille” o facto de o seu símbolo genético se compor apenas de seis pontos, que não excedem o campo da tactilidade e no entanto satisfazem a todas as necessidades da sua utilização.
 

imagem: símbolo genético do alfabeto braille
Símbolo genético do alfabeto braille


Assim é, com efeito, e por isso escrevemos em «POLIEDRO», ao assinalar a passagem de século e meio sobre o nascimento do seu criador:

“Sem Carlos Barbier, não teria talvez existido para Luís Braille a imortalidade. Mas, sem ele, o sistema de escrita em relevo inventado por Barbier não teria talvez ultrapassado o seu autor, porque nenhum outro, senão Luís Braille, saberia transformá-lo e fazer dele o modelo de lógica, de simplicidade e de polivalência que todos conhecemos.
Glória a Carlos Barbier! Mas glória maior ainda a Luís Braille!”


Que os cegos saibam sempre envolver os dois nomes no mesmo sentimento de gratidão, mas sobretudo não esqueçam que a melhor homenagem que podem prestar a Luís Braille é mostrarem-se capazes de merecer o que nos legou. Não que ele pressentisse que o seu Processo de escrever as palavras, a música e o canto-chão por meio de pontos seria a força impulsionadora do grande movimento de emancipação social dos seus iguais na cegueira, que depois dele se verificou.

Não dispunha de espírito problemático, na aceção filosófica do termo. Embora tivesse obstáculos na sua frente, não sentia necessidade de transpô-los. Sempre aceitou resignadamente a existência humilde que levava e se contentou em viver como indivíduo entre indivíduos. Não via nos cegos mais que seres humanos que sofriam, a quem sempre estendeu a mão e pelos quais se sacrificou muitas vezes. Mas os seus problemas específicos, generalizados a todo o grupo, até porque na época não tinham ainda sido claramente equacionados, não lhe prenderam a atenção.

O seu sistema, no entanto, é incontestavelmente elemento essencial do acesso dos cegos à cultura e, por consequência, da sua valorização como indivíduos e como partícipes do agregado social.

Sem cultura não há problemática. Ela começa exatamente quando o espírito entra abertamente no caminho da análise e da refleção. Foi a partir do momento em que os cegos, graças ao Alfabeto Braille, fizeram a sua introdução na cultura, no sentido que dá Julián Marias a esta expressão, que eles compreenderam que também tinham problemas, diferentes dos que até aí os afligiam e se haviam limitado a maior parte das vezes a encontrar por qualquer preço o pão nosso de cada dia.

Mas este “por qualquer preço” e não a procura do pão nosso era afinal o problema básico que havia mister resolver-se.

Os cegos não queriam o seu pão por qualquer preço. Desejavam-no conquistado pelo esforço do braço e do espírito. Desde então, a problemática da sua emancipação surgiu. Que Luís Braille, conscientemente ou não, se acha no centro desta problemática, não por si, como pessoa, mas pelo alfabeto que nos legou, não cabe duvidar.

Por isso nos parece que a melhor forma de homenageá-lo é ser-se digno do seu legado, isto é, trabalhar para que não fosse em vão que, após tantos séculos de miséria e de ignorância, um cego tivesse dado aos cegos o instrumento da sua libertação.

Todo aquele que aprendeu a ler com o Alfabeto Braille e nada fez para transmitir voluntariamente ao seu semelhante o benefício colhido não é por certo digno desse legado.

 

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José Ferreira de Albuquerque e Castro nasceu a 23 de Janeiro de 1903, na freguesia de Santa Marinha, do concelho de Vila Nova de Gaia, sendo filho de António Maria de Albuquerque e Castro e de Ana Ferreira da Silva. Frequentou a Escola Primária da sua freguesia, a Escola Preparatória e mais tarde o Instituto Industrial. Aos 13 anos cegou por acidente, tendo sido inúteis todos os tratamentos a que se submeteu, nomeadamente no Instituto Oftalmológico Gama Pinto e na Clínica do Dr. Barraquero em Barcelona. Como aluno externo do Instituto de Cegos do Porto, Albuquerque e Castro aprendeu braille e música. Mais tarde tirou o Curso Superior de piano, com 20 valores, no Conservatório de Música do Porto. Em 1938 tornou-se professor do Instituto, mais tarde designado por Instituto de Cegos de S. Manuel.
A sua acção como Tiflólogo, Pedagogo e Compositor foi notável.
Faleceu em 1967.


Obra de José de Albuquerque e Castro:

1935 - Publicação de “Projecto de Aplicação do Sistema Braille à Ortografia da Língua Portuguesa”.
1937 - Publicação da “Estenografia Braille da Língua Portuguesa”.
1940 - Publicação de “Cantares”, coral para quatro vozes mistas e para três vozes iguais.
1944 - Publicação na Revista dos Cegos de “Reflexões e Comentários”.
1945 - Publicação do “Prontuário Morfológico da Língua Portuguesa”.
1947 - Publicação de “Miragem” (quadro radiofónico). Publicação de “Tu!”, peça para canto e piano.
1948 - Conferência “Os Cegos como Cidadãos e como Homens”.
1949 - Publicação de “Ave-Maria”, coral para três vozes iguais.
1951 - Conferência “A Educação dos Cegos e a sua Recuperação para a Vida”. Participação como Delegado de Portugal à Conferência de Montevideu.
1952 - Elaboração de Esquema de Planos de uma Organização Assistência! Tiflológica.
1953 - Representação de Portugal na UNESCO. Organização da 1.ª Exposição Tiflológica no Porto. Conferência “A Música no Tempo e no Espaço”. Conferência “Sentido Contemporâneo do Fenómeno Musical”.
1955 - Visita a Centros Tiflológicos em Espanha e França como bolseiro do Instituto de Alta Cultura.
1956 - Fundação e direcção do Centro de Produção do Livro para o Cego e da Revista “Poliedro”. Participação como Delegado de Portugal à Organização Mundial para a Promoção Social dos Cegos, em Londres.
1959 - Conferência “O Alfabeto Braille e a sua projecção em Portugal”. Participação como Delegado de Portugal à Organização Mundial para a promoção Social dos Cegos, em Roma.
1960 - Publicação de “Símbolos do Alfabeto Braille”.
1961 - Nomeação como Director dos Serviços Tiflológicos da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Participação como Delegado de Portugal na Conferência Internacional de Guatemala. Visita a Centros Tiflológicos nos Estados Unidos e Canadá.
1962 - Visita ao Brasil, a convite dos Serviços de Readaptação do Estado de Guanabara.
1963 - Estudo dos exames dos Cegos.
1964 - Elaboração dos símbolos Braille de Matemática. Conferência “Os Cegos de Ontem e de Hoje”. Conferência sobre “Fundamentos da Valorização Social dos Diminuídos Visuais”.
1965 - Unificação da Grafia Braille. Criação dos Símbolos de Fonética Braille.
1966 - Participação como membro fundador na Comissão Permanente de Braille. Distinguiu-se ainda como poeta, sendo de referir neste campo “Poemas de Ontem e de Hoje”, publicados em 1967 pelo Centro Professor Albuquerque e Castro.
 


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O Alfabeto braille, sua génese, seu significado
J. de Albuquerque e Castro
in revista «POLIEDRO, n.os 44, 46 e 48
Janeiro, Abril e Junho de 1961

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5.Jul.2020
Maria José Alegre