

A morte da irmã cega - Paula
Rego, 2007
O aumento da esperança média de vida, os avanços da medicina e o
envelhecimento populacional nas sociedades ocidentais transformaram cada
ser humano numa potencial pessoa com deficiência. A não consideração da
deficiência e a ausência de ações no sentido de combater a opressão e a
exclusão enfrentadas pelas pessoas com deficiência tem no presente, e terá
certamente no futuro, um elevado custo para as nossas vidas.
Esta situação é tanto mais gravosa quando situações de vulnerabilidade
social e econômica se transformam em situações de vulnerabilidade física e
psicológica face a fenômenos de violência.
O presente capítulo considera o fenômeno da violência contra pessoas com
deficiência em Portugal. Para tal, propõe-se uma análise do “crime de ódio
deficientizador” ¹ (CHAKRABORTI e GARLAND, 2009; ROULSTONE,
THOMAS e BALDERSTON, 2011), ancorado na concepção de violência
enquanto forma de opressão (YOUNG, 1990).
Por “crime de ódio
deficientizador” entende-se uma ofensa criminal socialmente percepcionada
como sendo motivada pelo preconceito face a pessoas com deficiência,
incluindo as seguintes formas de violência física, verbal ou simbólica: abuso
sexual, ameaça, assédio, intimidação, roubo, vandalismo, violação, tortura e
assassinato. Na primeira parte, apresenta-se um enquadramento histórico e
conceitual da noção de crime de ódio. Na segunda parte, faz-se uma
contextualização do fenômeno de exclusão econômica e social das pessoas
com deficiência na sociedade portuguesa, procurando ancorar nestas formas
de exclusão e opressão o fenômeno da violência contra pessoas com
deficiência. Na terceira parte, caracteriza-se o fenômeno de violência contra
pessoas com deficiência em Portugal. Na quarta parte, examinam-se as
disposições legais atualmente existentes em Portugal com vista à proteção
das pessoas com deficiência, assinalando áreas de intervenção e imagens
das pessoas com deficiência privilegiadas pelo legislador. Nesta última
parte, avalia-se, ainda, a efetividade das leis de proteção vigentes em
Portugal e exploram-se as potencialidades de um reconhecimento legal do
crime de ódio sobre pessoas com deficiência.
Violência e Crimes de ódio: clarificações histórico-conceituais
Como bem refere Hall (2005), as ofensas a que se referem os crimes de ódio
nada têm de novo, a novidade advém unicamente do interesse da sociedade
nas motivações que subjazem à escolha da vítima, nomeadamente o ódio ou
preconceito. De acordo com Gerstenfeld (2004) o crime de ódio refere-se à
perseguição de alguém percepcionado como não fazendo parte do grupo.
Para este autor, o aspecto fundamental deste tipo de crime é o ataque à
identidade da vítima mais do que a motivação por ódio. Para Perry (2001), os
crimes de ódio correspondem a “crimes recado” ( message crimes ), i.e.,
crimes destinados a passar uma mensagem ameaçadora, não só para a
vítima, mas para todo o grupo ou comunidade a que pertence; são, portanto,
mensagens intimidatórias. A vítima é selecionada por aquilo que representa.
A autora vai ainda mais longe (PERRY, 2009), ao afirmar que estes crimes
são sintomáticos de processos sociais mais profundos de afirmação de poder
por parte de determinados grupos sociais. Esta forma de violência emerge
como uma forma de manter atitudes e valores sociais hegemônicos e a
própria desigualdade social existente, como uma forma de relembrar
constantemente a posição social de cada um. Mais recentemente, Walters
(2011) oferece-nos uma visão mais interessante, do ponto de vista dos
crimes de ódio deficientizadores, ao defender que o preconceito do abusador
face à vítima é a chave para reconhecer um crime de ódio.
Historicamente, a noção de crime de ódio sofreu também um longo processo
de maturação. Na verdade, em países como os Estados Unidos da América
(EUA), a preocupação com este tipo de crime resultante do ódio e
preconceito face ao outro é mesmo anterior à emergência da noção de crime
de ódio em meados da década de 1980 (GERSTENFELD, 2004; HALL, 2005).
O final da Guerra Civil dos EUA, a emergência do Ku Klux Klan e o ceticismo
do estado federal norte-americano e dos diferentes estados face ao respeito
dos direitos civis de todos os cidadãos independentemente da sua cor leva à
aprovação do Civil Rights Act (GERSTENFELD, 2004). Este documento
legal, aprovado pelo Congresso Americano em 1871, veio permitir ao estado
federal processar qualquer pessoa que impeça outra do gozo dos seus
direitos civis. O aumento da mobilização política em torno de incidentes de
cariz racista e antissemita no final da década de 1970 e a ineficácia da
legislação estatal e federal nos EUA levam a Anti-Defamation League , uma
organização criada em 1913 para combater o antissemitismo,
² a preparar
um regulamento – Model Ethnic Intimidation Statute – e a pressionar a sua
aprovação por parte dos governos estaduais americanos (JENESS e
GRATTET, 2001; GERNSTENFELD, 2004). Este documento apresenta um
conjunto de disposições que preveem um aumento das penas a aplicar a
toda a atividade criminal baseada no ódio, entre os diferentes grupos de
atributos protegidos contavam-se inicialmente a raça, cor, religião, origem
nacional e orientação sexual. Este estatuto modelo prevê ainda a recolha de
dados referentes à aplicação da lei sobre crimes de ódio e a formação
adequada das forças policiais.
Nos EUA, este processo levou à aprovação de legislação sobre crimes de
ódio, ao agravamento das penas de crimes de ódio e à obrigatoriedade do
Departamento de Justiça de compilar dados sobre a aplicação da legislação
de crimes de ódio em nível federal a partir de 1990 (GERNSTENFELD,
2004; HALL, 2005; BLEICH, 2008). A aprovação do Mathew Shepard Act
pelo Congresso dos EUA, em 2009, veio alargar a legislação federal de
crimes de ódio para incluir também crimes cometidos com base no gênero,
orientação sexual, identidade de gênero e deficiência da vítima. Isto não
significa, todavia, uma uniformidade entre os diferentes estados. Não
obstante a generalização de legislação estadual sobre crimes de ódio,
continua a persistir uma grande disparidade no que se refere à definição de
crime de ódio e das categorias protegidas (HALL, 2005; BLEICH, 2008).
Na Europa, apesar da longa história de crimes de ódio face a determinados
grupos, para além de uma emergência mais tardia, o conceito de crime de
ódio tem tido uma grande dificuldade de penetração e afirmação. Fatores
como a centralidade do conceito de Direitos Humanos na Europa, a
tendência para a inscrição de qualquer legislação sobre antidiscriminação e
crimes de ódio nesta grande narrativa dos Direitos Humanos (GARLAND e
CHAKRABORTI, 2012) e o próprio historial da criação e desenvolvimento
deste conceito e seus instrumentos ao nível europeu têm subalternizado e
criado dúvidas quanto à utilização do conceito de crimes de ódio. A primeira
utilização oficial por parte de um órgão europeu do conceito de crimes de
ódio ocorreu numa Reunião do Conselho Ministerial da Organização para a
Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) realizada em Maastricht, em
2003, e a primeira decisão oficial do Conselho Ministerial desta instituição
relativa ao problema dos crimes de ódio data de 2009 (ODIHR, 2010).
Este
organismo define, assim, o crime de ódio como resultado de dois fatores: o
crime tem de constituir uma ofensa criminal e tem de envolver a
perseguição deliberada de uma pessoa resultante da sua pertença a
determinado grupo face ao qual o abusador possui alguma forma de
preconceito (ODIHR, 2010). O Conselho da Europa propôs uma definição
alternativa de “ódio”, entendido como uma intensa antipatia ou inimizade.
Como referem Garland e Chakraborti (2012), a definição do Conselho da
Europa em nada ajudou ao desenvolvimento desta noção, em função da
visão extremamente reducionista da noção de crime de ódio advogada,
entendida aqui como algo muito forte. O reconhecimento e a legislação
sobre crimes de ódio na Europa continuam, assim, muito restritos e pouco
desenvolvidos (GARLAND e CHAKRABORTI, 2012).
A realidade dos diferentes países europeus apresenta-se muito díspar e
marcada pela história de cada país (GOODEY, 2008; GARLAND e
CHAKRABORTI, 2012). Em geral, assiste-se à ausência de uma definição
legal do conceito de crime de ódio, substituída por uma listagem de
características da pessoa que a tornam vulnerável a ser vítima de um crime
de ódio, e a privilegiar manifestações específicas de crimes de ódio em
consonância com o passado histórico de cada país (GOODEY, 2008). Como
referem Garland e Chakraborti (2012), a diferença existente entre os
diferentes países europeus não se reduz à legislação existente em cada país,
estendendo-se também aos crimes abrangidos e / ou grupos protegidos.
Um inquérito realizado pela OSCE aos seus 47 países-membros revelou que:
19 países indicam a proteção da questão da etnicidade / nacionalidade na
respectiva legislação nacional de, lato senso, “crimes de ódio”; 17 países
indicam a raça; 13 referem incluir a religião; o mesmo número indica a
criminalização do incitamento ao ódio com base na orientação sexual;
apenas 11 indicam a existência de legislação específica sobre motivação
homofóbica do crime como fator de agravamento; e ainda mais residual,
emergindo em apenas 7 países, surge a questão da deficiência (ODIHR,
2010 apud GARLAND e CHAKRABORTI, 2012: 45). Não é, assim, pois de
estranhar o privilegiar de determinadas categorias ou manifestações de
crimes de ódio em detrimento de outras nos diferentes países europeus.
Se
no Reino Unido, em França e em Portugal o “crime de ódio” emerge
sobretudo associado ao combate ao racismo, em países como a Alemanha e a
Áustria este surge majoritariamente associado ao extremismo político de
direita e ao antissemitismo (HALL, 2005; BLEICH, 2008; GOODEY, 2008).
Nesse sentido, o caso do Reino Unido apresenta-se paradigmático. Não
obstante este ser o país europeu onde a noção de crime de ódio registou um
maior desenvolvimento institucional e acadêmico, o Reino Unido continua
sem qualquer legislação específica sobre crimes de ódio. O país criou desde
cedo um vasto quadro legal de proibição à discriminação com base na cor,
raça, etnia ou origem nacional ( Race Relations Act – 1965, 1968 e 1976),
com base na religião ( Racial Relations Act – 2006) ou proibindo o
incitamento ao ódio homofóbico ( Criminal Justice and Immigration Act –
2008) (HALL, 2005), mas, apesar da emergência do debate sobre crimes de
ódio na década de 1990, em resultado do assassínio racista de Stephen
Lawrence em Londres, em 1993, e dos ataques bombistas de cariz racista
perpetrados também em Londres por David Copeland em 1999 (GARLAND e
CHAKRABORTI, 2012), o país continua sem qualquer legislação de crimes
de ódio. A diferença entre o Reino Unido e os países da Europa continental
advém do reconhecimento institucional garantido a esta forma de crime,
com a criação de várias instituições ao nível local, regional e nacional de
apoio às vítimas e o reconhecimento por parte dos serviços policiais desta
forma distinta de crime. Assim, desde 2000 que as forças policiais em
Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte consideram a existência do
crime de ódio para fins de registo e investigação criminal (ACPO, 2000 apud
HALL, 2005). Problemas com a definição inicial de crime de ódio levaram à
sua redefinição em 2005 de forma a clarificar o conceito (HALL, 2005). De
acordo com a definição atual, tal como proposto pela Associação dos Chefes
de Polícia ³ (ACPO) e seguida pelas forças policiais, por crime de ódio deve
entender-se “qualquer incidente de ódio, que constitui uma infração penal,
percebida pela vítima ou qualquer outra pessoa como sendo motivado por
preconceito ou ódio” ⁴ (ACPO, 2005 apud HALL, 2005: 8).
Tal como acontece na grande maioria dos países europeus, em Portugal não
existe qualquer reconhecimento legal da noção de “crime de ódio”. Não
obstante os trágicos acontecimentos de 1989 e 1995, que culminaram com
os assassinatos de José Carvalho, líder do Partido Socialista Revolucionário
(PSR), e de Alcindo Monteiro, jovem de origem cabo-verdiana, por motivos
políticos e racistas, respectivamente, a lei portuguesa não reconhece o
“crime de ódio” e Portugal é dos poucos países europeus a não recolher
estatísticas referentes à ocorrência de crimes de ódio (GARLAND e
CHAKRABORTI, 2012). Como se irá analisar mais adiante, o artigo 240.º do
Código Penal (CP) continua a ser o principal instrumento de defesa face aos
crimes cometidos com base na “raça, cor, origem étnica ou nacional,
religião, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (Artigo 240.º do
CP), embora o legislador opte pela não utilização da noção de crime de ódio.
Antes disso, urge contextualizar o fenômeno da exclusão econômica e social
das pessoas com deficiência na sociedade portuguesa, e perceber de que
forma é que estas formas de exclusão e opressão se articulam com o
fenômeno da violência e crimes de ódio contra pessoas com deficiência.
Deficiência e Exclusão social
O aumento das desigualdades sociais apresenta-se como um dos grandes
desafios ao desenvolvimento neste novo milénio. A atual crise econômica da
zona europeia iniciada em 2007 / 2008 constitui uma ameaça acrescida para
os grupos mais vulneráveis.
Tal como diferentes estudos têm revelado, existe uma forte ligação entre
deficiência, pobreza e exclusão social (COLERIDGE, 1993; STONE, 2001).
As pessoas com deficiência estão sobrerrepresentadas entre os grupos mais
pobres e mais excluídos socialmente, não só nos países menos
desenvolvidos, mas também nos países economicamente mais desenvolvidos
(BERESFORD, 1996; ZAIDI e BURCHARD, 2002; SHELDON, 2005, 2009). O
estatuto socioeconômico das pessoas com deficiência, não resulta, todavia,
de uma incapacidade das pessoas com deficiência para integrarem a
sociedade ou o mercado de trabalho, mas, sim, da conjugação da ação do
modo de produção capitalista (FINKELSTEIN, 1980; GLEESON, 1997;
OLIVER, 1990; RUSSELL, 2002), com a operação de um conjunto de
barreiras ambientais, culturais e psicológicas deficientizadoras. A
emancipação das pessoas com deficiência só será possível através da
substituição do modo de produção capitalista por um modo de produção
mais igualitário, da eliminação destas barreiras e de uma efetivação da
transversalidade da deficiência nas diferentes políticas governativas.
No caso específico de Portugal, os relatórios, estudos e estatísticas recentes
são reveladores da manutenção de uma flagrante situação de exclusão social
das pessoas com deficiência e de uma inépcia legal e governativa na
garantia e efetivação dos direitos das pessoas com deficiência (FONTES,
2009, 2014; MARTINS 2007; VEIGA, 2007; PORTUGAL et al., 2010, 2014;
PINTO e TEIXEIRA, 2012).
No que diz respeito à qualificação acadêmica, não obstante a inexistência de
dados apurados nos censos de 2011, os censos de 2001 apontavam para a
existência de baixos níveis de escolarização das pessoas com deficiência,
reveladores das limitações na operacionalização da escola inclusiva. Tal
como apurado nessa altura, a taxa de analfabetismo das pessoas com
deficiência era de 37% face aos 26,4% apresentados pela população em
geral, ficando-se a grande maioria pelo primeiro ciclo do ensino básico
(GONÇALVES, 2003: 78).
Ao nível das acessibilidades, os dados apurados pelos censos de 2011 dão
conta, mais uma vez, deste quadro excludente e opressor das pessoas com
deficiência. Os referidos dados também permitem concluir que o parque
habitacional em Portugal é majoritariamente inacessível a deficientes
motores. Os dados apurados pelos censos de 2011 relativamente à
acessibilidade dos edifícios habitacionais para o caso da população com
dificuldade em andar ou subir escadas são bastante elucidativos. Do total de
275 930 pessoas com dificuldades em andar ou subir escadas a viverem em
edifícios habitacionais com três ou mais alojamentos, 60% (167 266) vivem
em edifícios sem elevador e 61% vivem em edifícios com a entrada
inacessível à circulação em cadeira de rodas (INE, 2012: 456). A falta de
apoio na eliminação das barreiras físicas no domicílio apresenta-se, assim,
como um fator impeditivo da participação das pessoas com deficiência na
vida familiar e da comunidade e como um fator potenciador da criação de
uma dependência na execução de tarefas básicas diárias.
No que se refere à situação face ao trabalho e emprego, segundo dados dos
censos de 2011, a taxa de atividade das pessoas com 15 ou mais anos com
pelo menos uma dificuldade é de 22,07% face a 47,56% para a população
portuguesa em geral. Situação idêntica se verifica ao nível da taxa de
desemprego, que se cifrava, quando da realização dos censos de 2011, nos
13,18% para a população em geral e nos 19,19% para as pessoas com 15 ou
mais anos com pelo menos uma dificuldade. Estes dados são ainda mais
problemáticos, mesmo tendo em consideração a atenuação produzida pelo
fator idade, quando revelam que a grande maioria desta população inativa
está reformada (79,73%), não obstante apenas 6,66% terem sido
considerados incapazes para o trabalho pelas autoridades e de apenas
1,79% serem estudantes. Se se analisar o principal meio de vida desta
população, verifica-se uma grande dependência face às prestações sociais do
Estado comparativamente ao trabalho. Do total de pessoas com 15 ou mais
anos com pelo menos uma dificuldade, 65,84% tem a reforma ou uma
pensão como principal forma de sustento, sendo que os rendimentos do
trabalho assumem centralidade para apenas 17,39% (INE, 2012).
Este quadro de dependência familiar e estatal é tanto mais premente
quando sabemos a grande pressão econômica exercida sobre as famílias
portuguesas no atual contexto de crise econômica, os baixos níveis de
proteção e de redistribuição social alcançados pelo Estado-Providência
português (HESPANHA, 2001), que se situam abaixo da média europeia
(GOUGH, 1996), e os custos acrescidos de se viver com uma deficiência
numa sociedade deficientizadora como é o caso de Portugal. Um estudo
recente realizado em Portugal, considerando os custos de oportunidade
(educação, emprego, etc.) e os custos acrescidos para fazer face às barreiras
de uma sociedade organizada de forma não inclusiva, demonstra
precisamente que o custo de vida adicional para os agregados familiares
com pessoas com deficiência se cifra entre os 4103 euros e os 25 300 euros
por ano (PORTUGAL et al., 2010, 2014).
Este cenário de exclusão e de dependência das pessoas com deficiência na
sociedade portuguesa é propiciador não só de uma naturalização da sua
imagem como dependentes e incapazes de gerirem as suas vidas, de um
silenciar das suas vozes nas diferentes esferas da vida social e familiar, da
sua exposição a fenômenos de violência e de crimes de ódio, mas também da
construção da sua vulnerabilidade.
Violência direcionada para pessoas com deficiência em Portugal
Comparativamente à população em geral, as pessoas com deficiência
apresentam um maior risco e uma maior incidência de fenômenos de
violência (ONU, 2006; QUARMBY, 2008; ROULSTONE et al., 2011; UE,
2011), com especial destaque para as mulheres e pessoas com dificuldades
de aprendizagem, em meio familiar e / ou institucional (BELEZA, 2003;
OPM, 2009; INR, 2010). No entanto, no contexto nacional, apesar do recente
investimento em programas de prevenção da violência (FERREIRA et al.,
2007; CIG, 2008), registra-se uma ausência de investigação e intervenção no
campo dos crimes de ódio (INR, 2010). Acresce a inexistência de dados que
permitam conhecer a acumulação de fatores de discriminação,
condicionando uma análise interseccional da violência direcionada a pessoas
com deficiência (OPM, 2009) e o fato de Portugal continuar a ser um dos
poucos países europeus a não compilar dados sobre crimes de ódio
(GARLAND e CHAKRABORTI, 2012), como atrás se assinalou.
Os dados sobre violência contra pessoas com deficiência em Portugal são
extremamente escassos. Em 2013, era do conhecimento público que havia
992 crianças e jovens com deficiência a serem acompanhados pela Comissão
Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco (1,4% do total de
casos acompanhados por esta entidade) (CNPCJR, 2014: 97).
Tal como o
relatório especifica, a grande maioria destas crianças e jovens estava a ser
acompanhada devido a cinco grandes problemáticas:
Negligência; Exposição a comportamentos que possam comprometer o bemestar
e desenvolvimento da criança; Situações de perigo em que esteja em
causa o Direito à Educação, a Criança / Jovem assume comportamentos que
afectam o seu bem-estar e os Mau trato físico [sic]. (CNPCJR, 2014: 169)
Os relatórios anuais de segurança interna também não apresentam muitos
dados sobre esta realidade em Portugal, apenas os relatórios referentes aos
anos 2006, 2007 e 2008 indicam o número de pessoas detidas por abuso
sexual de pessoas incapazes de resistência, isto é, pessoas com deficiência,
grávidas e crianças: 11, 7 e 2 pessoas respectivamente. De assinalar o
tratamento das pessoas com deficiência como “particularmente indefesas” e
incapazes de resistência, equiparadas a crianças e a mulheres grávidas. Este
entendimento das pessoas com deficiência tem dominado a mentalidade das
autoridades nacionais e do legislador, contribuindo desta forma para uma
menorização e infantilização das pessoas com deficiência em Portugal, como
se irá analisar em maior detalhe na próxima seção.
Uma análise efetuada aos artigos do jornal Correio da Manhã entre os anos
de 2006 e 2012 pode ajudar a desvendar um pouco a realidade deste tipo de
crimes na sociedade portuguesa. Tal como foi possível verificar, neste
período de sete anos foram identificados 129 casos de violência contra
pessoas com deficiência em Portugal, que vão desde a violação, o abuso
sexual, a agressão física e o roubo até a escravização, a fraude e a
prostituição.
No que respeita ao perfil das vítimas, os dados compilados evidenciam uma
preponderância de vítimas do sexo feminino, de idades jovens, com
dificuldades de aprendizagem. Assim, 70% das vítimas são mulheres e,
destas, 37% têm idades inferiores a 20 anos. Pelo contrário, os abusadores
são majoritariamente homens (90%) e metade deles (50%) com idades
compreendidas entre os 30 e os 60 anos. Uma análise da familiaridade dos
abusadores face às vítimas demonstra que a grande maioria dos abusadores
(75%) são conhecidos das vítimas, quer por viverem na mesma comunidade
/ instituição ou por serem vizinhos, sendo bastante significativo o número de
abusadores que são membros da família das vítimas (36%). Este último
aspecto vem corroborar o questionamento da ideia de que os crimes de ódio
são perpetrados majoritariamente por estranhos (MASON, 2005; IGANSKI,
2008; MASON-BISH, 2010).
Uma análise pelo tipo de crime mais preponderante revela que a violação e
o abuso sexual contabilizam 50% dos crimes cometidos (32% e 18%,
respectivamente), a agressão física atinge 18% dos crimes identificados,
seguida do rapto e do homicídio, ambos com 4%. De assinalar a identificação
de sete crimes de homicídio de pessoas com deficiência com contornos de
crime de ódio deficientizador. Não obstante a elevada incidência dos crimes
de violação, abuso sexual e agressão física para homens (48%) e mulheres
(78%) com deficiência, uma análise comparativa de gênero por tipo de crime
demonstra que as mulheres constituem as principais vítimas deste tipo de
crimes, indicando também uma sobrerrepresentação de vítimas masculinas
em crimes de escravização, maus-tratos, ameaça verbal e roubo. Tal
observação é corroborada por relatórios internacionais que estimam que as
mulheres com deficiência apresentam uma probabilidade três vezes superior
à dos homens de serem vítimas de abuso físico e sexual (Michelle Bachelet,
ex-Diretora Executiva da ONU Mulheres).
Os dados apurados também são indicativos do caráter continuado da
vitimização das pessoas com deficiência. Assim, cerca de 48% dos crimes
prolongam-se ao longo de meses ou mesmo anos, sendo ainda mais gravoso
no caso das mulheres e raparigas com deficiência vítimas de violação, abuso
sexual e agressão física.
Não obstante a falta de representatividade dos dados recolhidos, uma vez
que se trata apenas de casos denunciados às autoridades e que conseguiram
atrair a atenção dos meios de comunicação pelo seu valor noticioso, estes
poderão ser utilizados como um barômetro desta realidade em nível
nacional. A grande maioria destes crimes continua a ser, pelo perfil traçado,
silenciada pelos meios de comunicação, pela sociedade, pelas vítimas e pelas
suas famílias, em resultado do seu não reconhecimento e consequente falta
de consideração, e devido a relações de poder existentes e / ou a noções de
vergonha.
O sistema legal português na proteção face a crimes deficientizadores
O principal documento de proteção das pessoas com deficiência em Portugal
é o Art.º 71.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Tal como
define este artigo:
Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam
plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na
Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles
para os quais se encontrem incapacitados.
O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de
tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de
deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia
que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e
solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva
realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos
pais ou tutores.
O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência.
A CRP representa, portanto, o ponto de viragem para as pessoas com
deficiência em Portugal, perspectivadas como cidadãs, e o início da
responsabilização do Estado por todos os seus cidadãos. A ausência de
legislação específica impediu, todavia, a eliminação de uma ideologia
menorizadora das pessoas com deficiência, sedimentada ao longo dos
tempos e que impactou em toda a legislação posterior.
Resultando parcialmente de processos mais amplos de modernização e
europeização da sociedade portuguesa, mas também de inquietações
manifestadas pelas organizações de pessoas com deficiência (FONTES,
2011), em 2006 foi publicada a lei antidiscriminação das pessoas com
deficiência em Portugal (Lei 46/2006, de 28/08/2006). O impacto desta lei
tem sido, todavia, limitado, como revelam os relatórios anuais apresentados
pelo INR (INR, 2013, 2014). Entre 2007 e 2012, a média anual de queixas
apresentadas cifrou-se nas 82, com um máximo de 131 queixas no ano de
2012 e um mínimo de 47 no ano de 2009 (INR, 2013). Em 2013 foi atingido
em Portugal um número recorde de queixas (366) por discriminação com
base na deficiência (INR, 2014).
Não obstante o fato de o aumento
acentuado do número de queixas no último relatório do INR vir
acompanhado de uma maior diversificação dos setores de incidência das
queixas, só os próximos anos permitirão verificar o caráter conjuntural ou
estrutural dos dados apurados recentemente. Fatores como a concentração
até muito recentemente das queixas apresentadas na área das
acessibilidades (INR, 2013) e a elevada percentagem de pessoas com
deficiência que num estudo de 2007 revelaram nunca se terem sentido
discriminadas na sociedade portuguesa (entre 92% e 97%) (CRPG / ISCTE,
2007: 96) parecem reveladores não só de um desconhecimento das pessoas
com deficiência face aos seus direitos, mas também de uma fraca politização
das pessoas com deficiência em Portugal. Por outro lado, o caráter
inconsequente da grande maioria das queixas apresentadas, para além de
poder constituir um fator desmotivador à apresentação de novas queixas e à
reivindicação de direitos por parte das pessoas com deficiência, parece
também evidenciar uma distância entre a lei formal e a prática social,
aspecto revelador das insuficiências, inconsistências e risco de “captura”
(KRIEGER, 2003) desta lei. Finalmente, trata-se de uma legislação de
natureza mais reativa que proativa. Na verdade, a lei antidiscriminação
apenas define as práticas que devem ser consideradas discriminatórias, as
compensações devidas aos queixosos e as penalizações dos infratores, o
papel das organizações de pessoas com deficiência e o papel do INR na
monitorização da aplicação da lei. Todavia, continua a faltar a definição do
que se entende por deficiência, a implementação de medidas proativas de
promoção de práticas não discriminatórias, bem como de mecanismos de
monitorização das barreiras à participação das pessoas com deficiência
(ROULSTONE e WARREN, 2006).
O Código Penal Português (CPP) constitui uma terceira fonte de proteção
das pessoas com deficiência face a fenômenos de violência de natureza
diversa. Na sua seção sobre crimes contra a identidade cultural e
integridade pessoal, o artigo 240.º define aquilo que podemos considerar,
lato senso, uma disposição de crimes de ódio, sem nunca referir este termo,
definindo os campos com base nos quais a discriminação deve ser definida e
a respectiva penalização. A atual formulação deste artigo, tal como resulta
da Lei Orgânica n.º 1/2015, de 8 de janeiro, identifica e pune os crimes
cometidos com base nos seguintes fatores: “raça, cor, origem étnica ou
nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (Artigo
240.º do Código Penal). Esta enunciação resulta, contudo, de alterações e
acréscimos ao longo dos tempos. A punição do genocídio e da discriminação
de “uma comunidade ou um grupo nacional, étnico, racial, religioso ou
social” já se encontrava prevista no artigo 189.º do Código Penal de 1982,
sendo reforçada no CP de 1995, que desdobra o artigo anterior nos artigos
239.º e 249.º, reiterando a formulação de 1982. A revisão do CP de 1998
(Lei n.º 65/98, de 2 de setembro) acrescentou a “origem nacional” à “origem
étnica” na lista de fatores motivadores do crime. Em 2007, foi dado um novo
passo na atualização desta disposição ao introduzir o sexo e a orientação
sexual (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro) e, em 2013, foi acrescentada a
identidade de gênero (Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro). Como este
capítulo revela, a deficiência encontra-se ainda ausente dos crimes
resultantes de fenômenos de discriminação previstos no CPP.
A proteção oferecida às pessoas com deficiência no âmbito do CPP baseia-se
na ideia de vulnerabilidade, incluindo a referência a esta condição de
vulnerabilidade no seu articulado para justificar uma maior perversidade ou
gravidade dos atos praticados e agravar as penas a aplicar. Isto é visível, por
exemplo, no artigo 132.º do Código Penal, que contempla o “homicídio
qualificado”, em que se refere:
2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a
que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
c) Praticar o fato contra pessoa particularmente indefesa, em razão de
idade, deficiência, doença ou gravidez;
(…)
f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor,
origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela
identidade de gênero da vítima;
Como resulta do artigo anterior, a deficiência da vítima, tal como acontece
com o grupo racial, religioso, político, a origem étnica ou nacional, o sexo, a
orientação sexual ou a identidade de gênero, emerge como uma das
condições reveladoras da especial perversidade do criminoso. A diferença da
deficiência face às restantes condições suscetíveis de produzirem um
agravamento da pena aplicável advém da sua natureza diferencial aos olhos
do legislador.
Assim, contrariamente às restantes condições aqui
enunciadas, a deficiência emerge não como uma condição particularmente
exposta ao ódio ou ao preconceito face às pessoas com deficiência, mas, sim,
como uma forma de vulnerabilidade, retratando as pessoas com deficiência
como vulneráveis e indefesas, equiparáveis a crianças, idosos, mulheres
grávidas ou pessoas doentes. Esta mesma lógica é reproduzida de forma
clara noutros artigos do CPP, nomeadamente no artigo 145.º (Ofensa à
integridade física qualificada), no artigo 152.º (violência doméstica), no
artigo 155.º (agravação dos crimes de ameaça e coação previstos nos artigos
153.º e 154.º, respectivamente), no artigo 158.º (sequestro), no artigo 161.º
(rapto) e no artigo 218.º (burla qualificada).
Esta concepção emerge ainda de forma velada nos artigos 160.º (Tráfico de
pessoas), 165.º (Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência), 169.º
(Lenocínio) e 175.º (Lenocínio de menores). Aqui, o legislador considera
como agravante da pena prevista para cada um dos casos enunciados
situações de “incapacidade psíquica ou de situação de especial
vulnerabilidade da vítima”, sem que haja uma referência explícita à
deficiência. Não questionando o agravamento das penas previsto para
crimes exercidos sobre pessoas com deficiência, urge, todavia, alertar para
a necessidade de reconhecimento do preconceito e do ódio que enforma
muitas destas agressões, violações e abusos sofridos pelas pessoas com
deficiência.
Tal como acontece no caso inglês, onde a lei constrói os crimes de ódio de
uma forma distinta dos crimes direcionados a pessoas consideradas
vulneráveis (ROULSTONE et al., 2011: 352), também em Portugal a lei
funciona com noções estereotipadas de ódio e vulnerabilidade. A legislação
portuguesa apresenta assim uma abordagem diferente para os crimes
cometidos com base na origem étnica, cor da pele ou raça, origem nacional,
religião, gênero, orientação sexual e para os crimes cometidos com base na
deficiência.
Se, no primeiro caso, o legislador difunde a mensagem que
quaisquer formas de violência baseadas nesses aspectos são fortemente
censuráveis pela sociedade, no caso da violência contra pessoas com
deficiência, o Estado usa uma visão normalista, que se baseia na ideia de
“normal” para desvalorizar a deficiência e representar as pessoas com
deficiência como vulneráveis e “fracas”, e desta forma culpando-as também
pela sua própria vitimização e aumentando o estigma associado à
deficiência. Se, no primeiro caso, parece tratar-se de um problema social e
coletivo a necessitar de solução, no caso da deficiência, parece tratar-se de
um problema individual a necessitar de medidas de proteção
individualizadas.
Em suma, a ausência de uma visão social da deficiência por
parte do legislador impediu o reconhecimento do preconceito e do ódio face
à deficiência e às pessoas com deficiência como fator motivador de muitos
dos crimes cometidos contra as pessoas com deficiência. Urge, assim,
reconhecer que a maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência
identificada pelo quadro legal português resulta de ideias preconcebidas
sobre a deficiência. Importa, desta forma, reconhecer a importância dos
processos culturais e dos discursos na criação da deficiência, entendida
como uma forma de opressão. A discriminação e opressão das pessoas com
deficiência nas sociedades modernas é um fenômeno multifacetado com
diferentes dimensões, em que se inclui o preconceito face à deficiência.
O preconceito face à deficiência, longe de ser um fenômeno isolado,
apresenta-se como um traço dominante das nossas sociedades, só assim é
possível entender as condições objetivas de existência da grande maioria
das pessoas com deficiência, marcadas por fenômenos de pobreza,
isolamento social, não consideração das suas necessidades e dos seus
direitos, e não reconhecimento das suas competências. Estes fenômenos,
que se consubstanciam em situações de opressão nas mais variadas esferas
da vida pública e privada das pessoas com deficiência, e que nos permitem
conceitualizar a deficiência como uma forma de opressão social, têm na sua
base a ideia da pessoa com deficiência como um ser menos válido,
porventura menos humano e, portanto, com menos direitos face às pessoas
sem deficiência, consideradas normais neste modelo de entendimento
dicotômico do que seja a natureza humana. Todos estes preconceitos têm,
assim, complexos fenômenos de alterização da pessoa com deficiência na
sua base, que permitem a sua desqualificação e desumanização, em que a
corporalidade das pessoas com deficiência ⁵ emerge como a face visível da
diferença, e o diferente é rejeitado e desqualificado à categoria de subhumano.
Conforme argumenta Shakespeare (1997), o preconceito não existe
apenas nas relações interpessoais, mas está implícito também nas
representações culturais, na linguagem e na socialização.
Em suma, a lei portuguesa denota, pois, a ausência de uma articulação
efetiva com uma dimensão política e um reconhecimento histórico que
perceba a opressão das pessoas com deficiência dentro do mesmo quadro
paradigmático que naturaliza a deficiência, individualiza as experiências dos
sujeitos percepcionados como deficientes, e que faz equivaler a ideia de
deficiência a uma vulnerabilidade tida como dada, no fundo, a uma
vitimização prévia à própria violência que agride.
O não reconhecimento do preconceito e do ódio como estando a montante
de muita da violência sobre as pessoas com deficiência e a porosidade do
sistema legal português face a concepções socialmente dominantes da
deficiência faz com que o nosso sistema de justiça criminal continue a falhar
àqueles e aquelas que, supostamente, deveria proteger.
Em primeiro lugar,
uma análise das sentenças e extratos de sentenças a que tive acesso nesta
área revela que, por exemplo, é muito difícil a uma pessoa com deficiência
provar que foi vítima de abuso sexual ou violação caso não existam provas
médicas de penetração e / ou outras testemunhas sem deficiência. Na
verdade, as vítimas com deficiência são frequentemente consideradas
testemunhas não credíveis, o que faz com que os abusadores acabem sem
qualquer punição ou punidos por abusos isolados e não pelo abuso
continuado das vítimas.
Em segundo lugar, existe uma dupla penalização das pessoas com
deficiência. Por um lado, por parte dos juízes, que fazem avaliações pouco
sensíveis da vulnerabilidade das vítimas face aos agressores, sem
consideração pelas relações de poder ou de dependência econômica
existentes. Por outro lado, esta penalização é produzida pelos serviços
sociais, que frequentemente promovem medidas de intervenção que,
enveredando pela institucionalização da vítima como forma de afastamento
face aos agressores, acabam por ditar o seu afastamento da comunidade.
O quadro legal português cria, desta forma, uma hierarquia entre fatores de
discriminação que, para além de ser injusta, ao favorecer determinados
grupos em detrimento de outros, não protege as pessoas com deficiência
face ao preconceito.
Tendo em conta as palavras de Neil Chakraborti face à mudança operada no
contexto britânico – “a emergência do discurso dos crimes de ódio facilitou a
mudança das atitudes políticas e culturais face ao preconceito relativamente
a uma diversidade de minorias étnicas” (2011: 4) –, bem como o impacto da
violência sobre as pessoas com deficiência em Portugal e a falta de eficácia
jurídica na proteção das pessoas com deficiência no dia-a-dia, urge proceder
a uma desconstrução das ideias dominantes sobre ódio e vulnerabilidade de
forma a reconhecer legalmente os crimes de ódio sobre pessoas com
deficiência ou deficientizadores como uma materialização da discriminação
social.
Conclusão
Como foi possível verificar ao longo deste capítulo, apesar dos avanços
verificados em Portugal após 1974, com o restabelecimento da democracia e
estabelecimento de direitos civis, políticos e sociais, a discriminação das
pessoas com deficiência continua a ser uma realidade na sociedade
portuguesa, colocando as pessoas com deficiência numa situação de grande
dependência e vulnerabilidade face às suas famílias e comunidades.
A violência contra as pessoas com deficiência, não obstante a sua
invisibilidade e invisibilização social, constitui um problema incontornável
em Portugal. Este fenômeno assume na sociedade portuguesa diferentes
facetas que, na grande maioria dos casos, emergem de forma interligada e
justaposta, e que vão desde a violência social e econômica resultante de um
Estado-Providência incapaz de proporcionar vidas condignas às pessoas com
deficiência, a um mercado de trabalho que as torna dispensáveis, a um
ambiente construído que restringe a sua atividade e liberdade de
movimento, até à violência física, psicológica e sexual que se alimenta de
ideias menorizadoras e deficientizadoras das pessoas com deficiência.
A proteção das pessoas com deficiência diante destes fenômenos de
violência física, psicológica e sexual, alicerçados no ódio e preconceito face
às pessoas com deficiência, baseia-se apenas na ideia de vulnerabilidade. A
inclusão desta condição de vulnerabilidade emerge como o requisito
necessário para o aumento das penas a aplicar sobre aqueles e aquelas que
exerçam alguma forma de violência sobre as pessoas com deficiência,
negligenciando o preconceito e o ódio que, muitas vezes, subjaz e a esse tipo
de fenômenos, tal como acontece no caso da violência contra pessoas de
outro grupo racial, religioso, político, de origem étnica ou nacional
diferenciada, de sexo, orientação sexual ou a identidade de gênero
diferente. Assim, a deficiência apresenta aos olhos do legislador uma
natureza diferencial das diferentes formas de discriminação social
legalmente reconhecidas.
A análise aqui apresentada do Código Penal português é bastante reveladora
em reação a isso. Em primeiro lugar, a proteção oferecida por este
documento legal às pessoas com deficiência face a fenômenos de violência
alicerça-se na ideia das pessoas com deficiência como vulneráveis ao crime e
à violência em vez de se estruturar em torno da ideia de que as pessoas com
deficiência são vulneráveis ao risco de serem vitimizadas devido à sua
menorização e a ideias pré-concebidas de deficiência. Em segundo lugar,
assinala-se a presença de uma visão normalizadora, que tem por base um
conceito abstrato e uniformizador de cidadania. Finalmente, este documento
angular de proteção de todos os cidadãos nacionais apresenta o fenômeno
de violência sobre pessoas com deficiência como um problema individual
que necessita de medidas de proteção individualizadas.
Urge, pois, desconstruir ideias preconcebidas de ódio e de vulnerabilidade,
reconhecer os crimes de ódio na área da deficiência como uma forma de
discriminação social e depurar o sistema legal existente de alguns dos
preconceitos socialmente dominantes sobre a deficiência e as pessoas com
deficiência.
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NOTAS:
-
1
Em inglês: Disablist hate crime .
-
2 Para mais informações, ver < http://www.adl.org/about-adl >. Acesso em:
25/08/2015.
-
3 Association of Chief Police Officers .
-
4 Tradução livre do autor. No original: “Any hate incident, which constitutes
a criminal offense, perceived by the victim or any other person, as being
motivated by prejudice or hate” .
-
5 Entendida como os aspectos biológicos e médicos de cada um/a, tais como
não ter uma parte ou a totalidade de um órgão, mecanismo ou membro do
corpo, ou tê-lo com algum defeito.
Fernando Fontes | Doutorado em Sociologia e Políticas Sociais pela Universidade de Leeds,
Reino Unido, com a tese: “Social Citizenship and Collective Action: The case
of the Portuguese Disabled People’s Movement”. Mestre em Sociologia pela
Universidade de Coimbra com a dissertação: “Deficiência na Infância: políticas e representações sociais em Portugal” (2006). Investigador do
Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra onde desenvolve
atualmente o projeto “Decide - Deficiência e autodeterminação: o desafio da
‘vida independente’ em Portugal”.
ϟ

Deficiência e violência em Portugal: do preconceito ao crime de ódio
autor: Fernando Fontes
in
'Deficiência em questão: para uma crise da normalidade'
organização Marcia Moraes … [et al.].
1.ª ed. - Rio de Janeiro
© NAU Editora, 2017.
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