Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual

Compensação e Cegueira

Daniela Leal

-excerto-

O Cego - Albano Vitturi, 1922
O Cego - Albano Vitturi, 1922

 

índice
Do conceito ao processo: os avanços na teoria da compensação
Compreendendo o sentido da visão
Compreendendo a compensação
Compensação e deficiência: a cegueira em evidência

 

Esta pesquisa teve por objetivo compreender o conceito e o processo de "compensação" no desenvolvimento da pessoa cega, ao longo da história, bem como a compreensão dos antecedentes da formulação de Vigotski. O interesse específico pelo processo de compensação das pessoas cegas encontra-se relacionado à prática profissional da pesquisadora (docência para alunos com cegueira em espaços regulares de ensino, mais especificamente no ensino superior), bem como dar seguimento à pesquisa de mestrado realizada entre os anos 2006/2008. Para tanto, optou-se por uma pesquisa de cunho histórico, buscando o conceito de compensação desde as origens mais remotas, até chegar às discussões propostas por Vigotski, como um processo que valoriza as capacidades das pessoas com deficiência, em vez de priorizar suas limitações, suas incapacidades ou seus “defeitos”. Busca-se, assim, a compreensão da ciência como produção humana que visa satisfazer suas necessidades, por elas determinadas e nelas interferindo, pois acredita-se que ao compreender um dado, um fato, um momento ou um conceito por intermédio da pesquisa histórica encontra-se na própria informação histórica o que tornará possível a compreensão de um conjunto de produções nas quais ela própria é um efeito. Com isso, chegamos à conclusão de que, ao compreender o processo de compensação como um recurso, como um instrumento que nos auxilia no desenvolvimento das pessoas cegas e, não somente como um meio de compensação do órgão – na ausência da visão, da audição ou do tato se encarregam de dar suporte à função –, conseguiremos encontrar um dos fundamentos para o que hoje denominamos de inclusão ou educação para todos. | Daniela Leal


Do conceito ao processo: os avanços na teoria da compensação

Muitos foram os filósofos e pensadores que se dedicaram aos estudos sobre os sentidos em geral; outros dedicaram-se, especificamente, ao sentido da visão e outros sobre como ocorre o processo de compensação durante a ausência de um dos órgãos. Dentre os teóricos estudados, encontramos em Aristóteles um dos exemplos dos que se dedicaram à explicação dos sentidos em sua totalidade.

De acordo com ele, o conhecimento começa pelos dados que são obtidos pelos sentidos, isto é, as percepções são transferidas à memória e à imaginação, que as agrupam em imagens segundo suas semelhanças e é sobre essas imagens retidas e organizadas que a inteligência exerce a triagem e reorganização, com base nas quais criará os conceitos abstratos com os quais construirá os juízos e raciocínios (ARISTÓTELES, ?a.C./2006). Ainda, em relação aos sentidos, Aristóteles destaca que cada um deles é “capaz de discriminar [krinei] e de não enganar [ouk apatatai] relativamente à percepção do que lhe é próprio” (ARISTÓTELES, ?a.C./2006, p.237, acréscimos do tradutor), ou seja, cada um dos órgãos do sentido, em hipótese alguma, confunde seu objeto de percepção. Afinal, cada órgão “é por sua natureza constituído de modo a ser afetado e alterado por seu próprio objeto correlato, o qual é percebido” (ARISTÓTELES, ?a.C./2006, p.238 .Como bem exemplifica,

[...] o sentido dispõe de órgão sensorial, pelo qual é percebido um objeto correlato e são discernidas as suas diferenças específicas – a visão, por exemplo, dispõe de olhos para perceber cores e discriminar todas as variações que são próprias a elas. É um fato evidente, contudo, que somos capazes de discriminar também os diferentes gêneros de objetos perceptíveis: distinguimos cor de sabor, bem como cores entre si e sabores entre si. Este é necessariamente um ato da percepção sensível, na medida em que envolve objetos perceptíveis. (ARISTÓTELES, ?a.C./2006, p.281).

 Querendo com isso dizer que,

[...] cada órgão dos sentidos percebe do mesmo objeto as características que são próprias de sua função. Parece ser viável usar como exemplo uma maçã. O olho tem a função de perceber a cor da maçã. O tato tem a função de sentir a textura, se é lisa, áspera, etc. Ao olfato cabe a função de sentir o aroma ou cheiro. O paladar, então, tem a função de sentir se é doce ou amarga. E por fim, podemos dizer, que o ouvido tem a função de ouvir o som que se produzirá quando a maçã for mordida. (VALDUGA, 2001, p.5).

Aristóteles vê na visão o sentido mais elevado, afinal é pela visão que o objeto perceptível é visto e identificado, além de permitir uma melhor compreensão e conhecimento do mundo. Sendo este, portanto, o sentido mais cognoscitivo, o filósofo crê que sua preeminência sobre os demais sentidos – conhecimento e julgamento dos sensíveis e ampliação das coisas e suas diferenças – permitem que a visão seja o sentido mais importante e considerado pelos homens.

Próximo a tais afirmações de Aristóteles em sua obra De Anima,

Ibn Sina, comumente conhecido como Avicena, em seu Livro da Alma também dedicou-se ao estudo dos sentidos. Todavia, apesar de manter os temas da tradição aristotélica – Lógica, Ciência Natural (Física), Matemática e Filosofia Primeira (Metafísica) –, os reelabora recorrendo à sua formação médica para detalhar os pontos que Aristóteles aborda mais superficialmente, como, por exemplo, o estudo dos sentidos internos. Como descreve Nascimento111, ao fazer o prefácio do livro de Avicena traduzido para o português, Ibn Sinã não só desenvolve e explicita o que se encontrava muito embrionariamente em Aristóteles, como recorre a outras fontes (sobretudo da linhagem da medicina galênica112) e fornece uma localização dos órgãos de tais sentidos nas partes do cérebro. (SINA, ±1027/2010, p.8).

Ao referir-se às faculdades da sensibilidade e da percepção que estão intimamente relacionadas aos sentidos, Avicena (SINA, ±1027/2010, p.78) diz,

[...] parece que toda percepção seria somente a apreensão, por um certo modo, da forma percebida. Ora, se a percepção é a percepção de algo material, então ela é a apreensão da sua forma [desse algo], abstraída da matéria, por uma certa abstração.

Ao tentar compreender a questão do sentido e da percepção presentes em cada um dos sentidos, faz-se necessário, primeiramente, diferenciar a sensibilidade da percepção, o sentido da imaginação, ou seja, quando falamos em sentido temos que ter em mente que este apreende a forma a partir da matéria e, no caso da imaginação, esta apreende a forma, mas não necessita da existência da matéria. Em suas palavras,

[...] todo sentido percebe seu sensível e percebe a ausência de seu sensível. [...] Quanto à percepção, enquanto percebe, [isso] não pertence à sensibilidade, pois a percepção não é uma cor que se vê ou um som que se escuta, mas somente se percebe isso por meio de um ato intelectual ou [pela] estimativa [...]. (SINA, ±1027/2010, p.85, acréscimos do tradutor).

Com isso quer dizer que a sensibilidade é uma recepção no âmbito dos sentidos da forma sensível e, portanto, um verificador que a alma possui. “É preciso, porém, que haja um verificador primário. Ele é que indica aquilo que corrompe e aquilo que [mantém] íntegro. Ele antecede os verificadores que indicam as coisas [...]” (SINA, ±1027/2010, p.86). Por exemplo, embora o paladar indique as coisas degustadas, se este inexistisse, o animal continuaria animal, pois outros sentidos cooperam com a busca de alimentos; entretanto, outros sentidos não ajudam “quanto ao conhecimento do ar que circunda o corpo, [se] está aquecido ou gelado” (SINA, ±1027/2010, p.86, acréscimo do tradutor). É somente o tato que desempenha esse papel e, por isso, é “o primeiro dos sentidos, inevitável para cada um dos animais terrestres” (SINA, ±1027/2010, p.87), pois nosso corpo inteiro é dotado de sensibilidade para o tato.

Com relação ao paladar, Avicena destaca o papel fundamental deste sobre os sabores que percebemos e a necessidade do “órgão salivante” para percebê-los, pois sua utilidade é a de sustentação do corpo, ou seja, sustentar o apetite para o alimento e sua escolha. Quanto ao olfato, Avicena (SINA, ±1027/2010, pp.94-95, acréscimos tradutor) faz uma análise interessante sobre o uso deste pelo homem “[...] dentre os animais em geral, [apesar do homem ter] a mais completa engenhosidade para farejar [...] o delineamento dos odores, em sua alma, é tramado para ser uma delineação fraca”, ou seja, o homem

[...] não recebe os odores [por] uma recepção forte, de modo que advenha em sua imaginação um similar estável, tal como o que se produz com os tangíveis e com os degustados. [...] nele, os odores não têm nomes, exceto sob dois aspectos: um deles, sob o aspecto do que é favorável ou desfavorável [delicioso ou podre] [...]. O outro aspecto [...], a partir da conformidade com o sabor [odor doce, odor ácido] [...]. (SINA, ±1027/2010, p.95).

Avicena leva-nos, assim, a pensar sobre como utilizamos cada um dos sentidos em nosso dia a dia, pois se nos atermos a cada uma de nossas percepções, mais frequentemente, estamos voltados à audição ou à visão. No caso da audição, especificamente, Avicena afirma que para compreendê-la faz-se necessário o discurso sobre o som e sua quididade113. Compreendendo por som

[...] alguma coisa que se produz; e que ele só se produz por um arrancamento ou um impacto. O impacto, por exemplo, é aquilo [que se tem] ao impactar uma pedra ou um pedaço de madeira, produzindo-se, assim, um som. Quanto ao arrancamento, este é, por exemplo, aquilo [que se tem] ao arrancar-se uma parte rachada da outra [...]. (SINA, ±1027/2010, p.99, acréscimos do tradutor).

Já, especificamente sobre à visão, Avicena coloca que para compreender esse sentido é necessário conhecer a respeito da luz, do diáfano (transparente) e da cor para verificar como o olho capta o seu sensível próprio.

Ainda caminhando pelos teóricos que se dedicaram aos estudos dos sentidos, John Locke considerava-os como a única fonte para surgimento de ideias, principalmente pela observação e reflexão. Para o autor, seria a sensação a responsável pela produção de percepções e, portanto, a “grande fonte da maior parte das ideias que temos, posto que estas dependem totalmente dos nossos sentidos e por eles são comunicadas ao entendimento” (LOCKE, 1690/2010, p.107).

Ao descrever como se dá a relação entre as sensações e a reflexão, Locke (1690/2010, p.108, grifos do autor) afirma que, “[...] as coisas externas materiais, como objetos de SENSAÇÃO, e as operações internas da nossa mente, como objetos de REFLEXÃO, são, para [ele], os únicos princípios de onde todas as nossas ideias originalmente procedem”. Nesse sentido,

[...] a primeira capacidade do entendimento humano consiste em que a mente está apta a receber as impressões que nela produzem quer os objetos exteriores por meio da sensação, quer as suas próprias operações quando sobre elas reflecte. Este é o primeiro passo que todo homem dá no caminho da descoberta de qualquer coisa, e o alicerce sobre o qual construirá todas essas noções de que de um modo natural há de ter neste mundo. (LOCKE, 1690/2010, pp.125-126).

Ou seja, para Locke (1960/2010), seja qual for a constituição dos corpos, não há como imaginar outras qualidades que não as conhecidas pelos sons, odores, sabores e pelas qualidades visíveis e tangíveis. Em suas palavras,

[...] se a humanidade tivesse sido dotada apenas de quatro sentidos, então, as qualidades que são objeto do quinto seriam tão inacessíveis ao nosso conhecimento, à nossa imaginação e à nossa concepção, como o seriam agora as que pudessem pertencer a um sexto, sétimo ou oitavo sentidos [...]. (LOCKE, 1960/2010, pp.1229-130).

E, no caso de algum dos sentidos não desempenharem adequadamente suas funções, Locke afirma que, por serem os órgãos (nervos) condutores que transmitem as ideias ao cérebro, qualquer confusão no desempenho de suas funções não fornecerá nenhuma porta de serviço que permita a entrada ou percepção de ideias pelo entendimento” (LOCKE, 1960/2010, pp.133-134). Afinal,

Sendo, pois, a percepção o primeiro passo e degrau para o conhecimento e a porta de entrada de todos os seus materiais, quanto menos forem os sentidos que qualquer homem, bem como qualquer outra criatura, possua; quanto menos e mais apagadas forem as impressões que esses sentidos causam, e quanto mais enfraquecidas estiverem as faculdades que deles se ocupam, mais afastados se encontrará daquele conhecimento que se encontra nalguns homens. (LOCKE, 1960/2010, pp.177-178).

Essa fala nos leva à reflexão e a vários questionamentos sobre como era a vista a pessoa que possuía não possuía algum dos sentidos, por Locke, pois em seus relatos não há menção a nenhum tipo de estudo sobre essas pessoas.

Avançando um pouco nas discussões sobre os sentidos, Rousseau (1759/2008) afirma-nos que além das ideias, os sentidos também revelam nossos sentimentos e o desejo de comunicar ao outro nossos pensamentos e sentimentos. Conforme sua descrição,

No momento em que um homem foi reconhecido por um outro como um ser sensível, pensante e semelhante a ele, o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe os próprios sentimentos e os próprios pensamentos fez com que procurasse os meios de fazê- lo. Esses meios somente podem ser extraídos dos sentidos, os únicos instrumentos através dos quais um homem pode agir sobre outro. Eis, portanto, a instituição dos sinais sensíveis para expressar o pensamento. (ROUSSEAU, 1759/2008, p.97).

No entanto, Rousseau (1759/2008, p.158) alerta-nos que para que ocorra essa expressão do pensamento cada um deve ser “afetado somente por acentos que lhe são familiares; [pois] seus nervos agem na medida em que seu espírito os "dispõem a isso: é preciso que ele entenda a língua que lhe falam para que o que lhe dizem possa pô-lo em ação”. Destaca, ainda, que na falta de um dos órgãos, para que esse processo se dê por completo, outro fá-lo-ia para o mesmo fim.

Ao descrever sobre o uso específico dos sentidos, Rousseau afirma que não somos donos destes por igual.

Há um, o tato, cuja ação jamais está em suspenso durante a vigília; foi distribuído pela superfície inteira de nosso corpo como uma guarda permanente, para avisar-nos de quando podem ofendê-lo. É também aquele cuja experiência, queiramos ou não, adquirimos antes devido a esse exercício contínuo; por conseguinte, não precisamos cultivá-lo de maneira tão particular114. (ROUSSEAU, 1762/2011, p.205).

Diferentemente do que ocorre com uma pessoa cega, que devido a sua condição física (ausência do sentido da visão) possui “[...] o tato mais firme e fino que o nosso, porque como não se guiam pela visão, são forçados a tirar do primeiro sentido unicamente os pensamentos que o outro nos proporciona”115 (ROUSSEAU, 1762/2011, p.205).

Ao estabelecer essa relação, Rousseau coloca que preferia que Emilio tivesse os olhos nas pontas dos dedos do que os olhos em veleiros, pois segundo ele estamos cegos a metade da vida; “com a diferença que os verdadeiros cegos sempre sabem guiar-se, enquanto nós não ousamos dar um passo no coração da noite”117 (ROUSSEAU, 1762/2011, p.205). Revela, assim, uma interpretação que pode caminhar por duas vias distintas, além de muito comumente divulgadas e discutidas nas pesquisas sobre a cegueira: de um lado encontramos uma cegueira que é social, como a descrita em obras como o Mito da Caverna, de Platão, ou Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago e, do outro lado, um pensar sobre a possibilidade ou a necessidade do desenvolvimento de todos os órgãos dos sentidos.

Apesar de afirmar que a função do tato jamais está em suspenso, Rousseau, assim como outros teóricos, crê que esse não é tão desenvolvido quanto a visão, até mesmo por se misturar a ela. Em suas palavras,

Mesmo que o tato seja, de todos os nossos sentidos, aquele com o qual fazemos um exercício mais contínuo, seus juízos, entretanto, seguem sendo, como já dissemos, mais imperfeitos e grosseiros do que qualquer outro, porque misturamos continuamente o sentido da visão ao seu uso e porque, como o olho chega ao objeto antes que a mão, o espírito quase sempre julga sem ele. (ROUSSEAU, 1762/2011, p.212).

E, se não bastasse tal julgamento, ainda acresce que a visão,

[...] por ser de todos os sentidos o que melhor nos instrui sobre a impressão que os corpos estranhos podem fazer sobre o nosso, resulta ser aquele cujo uso é mais frequente e que nos proporciona do modo mais imediato o conhecimento necessário para nossa conservação121. (ROUSSEAU, 1762/2011, pp.212-213).

Posto isso, e para não crermos que o desejo expresso sobre Emilio, de ter olhos nos dedos em vez de olhos de veleiro, não se torne deveras contraditório, Rousseau atenta-nos para que, “a visão é de todos os nossos sentidos o mais falível, precisamente porque é o mais amplo e porque, adiantando-se muito a todos os outros, suas operações são muito rápidas e amplas para poder ser retificadas por eles” (ROUSSEAU, 1762/2011, p.215). Afinal, o sentido da visão é aquele que menos se separa dos juízos do espírito e, portanto, precisa muito tempo para aprender a ver.

[...] muitas vezes, há que se comparar a visão com o tato para acostumar-se ao primeiro desses dois sentidos para então fazermos um relatório fiel das figuras e as distâncias; sem o tato, sem o movimento progressivo, os olhos mais penetrantes do mundo não poderiam nos dar nenhuma ideia da extensão123. (ROUSSEAU, 1762/2011, p.220).

Rousseau (1762/2011) ainda dá destaque aos estudos sobre um possível sexto sentido, que não estaria em um órgão particular, mas somente no cérebro.

Este sexto sentido [...], e suas sensações, puramente internas, chamam-se percepções ou ideias. Pelo número dessas ideias é medida a amplitude de nossos conhecimentos; é sua nitidez, sua clareza, o que forma a justeza da mente; é a arte de compará-las entre si o que se chama razão humana124. (ROUSSEAU, 1762/2011, p.245).

Semelhante às concepções de Rousseau, principalmente no que se refere ao papel dos sentidos na comunicação entre as pessoas, Lersch (1967) crê que são os órgãos dos sentidos que abrem as portas para o mundo, levando-nos a relacionamo-nos com o ambiente a nossa volta. Para o autor, a visão e a audição desempenham papel predominante nesse processo, pois

Vemos a conduta do outro, sua mímica, seus gestos e seus atos e ouvimos o que tem a dizer. Pela função social do ouvido se compreende [, por exemplo,] que os surdos tendem a desconfiança e a irritabilidade. Sofrem porque para eles se há rompido um laço importante da comunicação [...]. (LERSCH, 1967, p.43).

Tudo isso porque a visão, principalmente, exerce importância social-comunicativa no intercâmbio de dar e tomar conhecimento, ou seja, quando os olhos estão bem abertos, “quando dois seres humanos enfrentam-se, são percebidos por cada um deles como o acesso ao seu interior, como as portas que levam desde o mundo exterior ao seu próprio mundo interno” (LERSCH, 1967, p.44) e, por consequência, essa reciprocidade de olhares permite o contato mais íntimo entre esses dois seres humanos.

Em contrapartida, ao discutir os demais sentidos, denominados de inferiores, Lersch diz que estes possuem menor importância, apesar de dizer que,

De todos os modos também entra-se em comunicação mútua por intermédio do sentido do tato em certas demonstrações de simpatia, nas carícias da ternura e no aperto de mãos de amizade. [...] o sentido do olfato pode adquirir um significado social- comunicativo que se vê no modo de falar de que um não pode ‘nem cheirar’ o outro126 [– relacionado às simpatias e antipatias instintivas]. (LERSH, 1967, p.44).

Deixa claro, portanto, que independente do sentido que seja utilizado para manter as relações que denomina de sociais-comunicativas, “ainda não ficou clara a questão de se, e até que ponto, é possível entre seres humanos uma comunicação que não seja proporcionada pelos órgãos dos sentidos, ou seja, que dependa de uma percepção ‘extra-sensorial’”127 (LERSCH, 1967, p.45).

Posto isso e diferenciando-se um pouco das colocações feitas até o momento, Luria (1979), ao dedicar-se ao estudo dos sentidos, além de destacar a importância dos mesmos para a comunicação e o desenvolvimento do homem, descreve sua evolução dentro das linhas de pesquisa filosóficas e psicológicas, além de destacar o funcionamento de um, quando da ausência de outro.

Para começar a discutir sobre o sentidos, Luria traz o que é, para ele, a definição de sensação e sua importância para a compreensão do homem. Em suas palavras,

As SENSAÇÕES constituem a fonte básica dos nossos conhecimentos atinentes ao mundo exterior e ao nosso próprio corpo. Elas representam os principais canais, por onde a informação relativa aos fenômenos do mundo exterior e ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo ao homem compreender o meio ambiente e o seu próprio corpo. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sentidos não fornecessem a informação necessária, nenhuma atividade consciente seria possível. (LURIA, 1979, p.1, grifo do autor).

Com isso quer dizer que é por intermédio das sensações que o homem está ligado ao mundo exterior e são elas que representam a principal fonte de conhecimento e a condição fundamental do desenvolvimento psíquico do indivíduo. No entanto, de acordo com Luria (1979), apesar dessas evidências sobre as sensações, alguns filósofos idealistas as colocaram em dúvida alegando que, a

[...] fonte autêntica da nossa vida consciente não é constituída pelas sensações mas pelo estado interior da consciência e pela capacidade do conhecimento racional, que são dados pela natureza e independentes da afluência da informação que chega ao mundo exterior. (LURIA, 1979, p.2).

Essa afirmação refere-se à base da filosofia racionalista, que acreditava que os processos psíquicos não eram um produto do complexo desenvolvimento histórico, mas “uma propriedade primária e inexplicável do ‘espírito’ humano” (LURIA, 1979, p.3). Demonstra, desta forma, uma concepção oposta à primeira: “as sensações separam o homem do mundo exterior por serem uma muralha intransponível entre ele e esse mundo” (LURIA, 1979, p.3).

Luria aponta, ainda, que filósofos idealistas como Berkeley, Hume e Mach e psicólogos como Helmholtz e Müller formularam uma teoria específica, denominada “teoria da energia específica dos órgãos dos sentidos”. Segundo essa teoria, os órgãos dos sentidos

[...] não refletem a influência do mundo exterior nem informam acerca dos processos reais que ocorrem no meio ambiente [...] cada órgão dos sentidos possui sua própria ‘energia específica’ que é estimulada por qualquer ação procedente do mundo exterior. [...] Logo, os órgãos dos sentidos não refletem as influências exteriores mas são apenas excitados por elas e o homem não percebe os objetos do mundo exterior mas somente os seus próprios estados subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos. (LURIA, 1979, p.3).

Tenta demonstrar que, para esses autores, os órgãos dos sentidos não colocam o homem em contato com o mundo exterior, pelo contrário, os separam. Segundo Luria, essa teoria levou à afirmação: “o homem não pode perceber o mundo exterior e a única realidade são os processos subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos, estes sim criadores dos ‘elementos do mundo’ subjetivamente perceptíveis” (LURIA, 1979, p.3). Todavia, tal afirmação “foi a fonte de um profundo equívoco cuja essência se torna cada vez mais evidente com as sucessivas conquistas da ciência” (LURIA, 1979, p.4).

Com relação as sensações, especificamente, Luria (1979) descreve que na psicologia clássica constituiu-se uma concepção na qual um órgão dos sentidos (receptor) reagia passivamente aos estímulos constituídos pelas sensações correspondentes – teoria receptora das sensações. No entanto, essa teoria foi considerada inconsistente por se opor à concepção da sensação como processo ativo – teoria reflectora das sensações. Nessa segunda teoria procura-se indicar o caráter ativo e seletivo das sensações, ou seja, “em termos fisiológicos, a sensação não é absolutamente um processo passivo, mas sempre incorpora à sua composição componentes motores” (LURIA, 1979, p.7), como por exemplo, o plano rugoso de um objeto só pode ser percebido se a mão que o apalpa é ativa. Segundo Luria (1979, p.8),

O mesmo foi estabelecido em relação à percepção visual. Setchenov já indicara que, para perceber visualmente o objeto, é necessário que o olho o “apalpe”. Ultimamente foi estabelecido que cada percepção visual se realiza de fato com a participação ativa dos movimentos dos olhos, que às vezes têm caráter de grandes “movimentos de apalpação”, tomando às vezes o aspecto de pequenos movimentos dos olhos.

Demonstra, assim, que as sensações não são absolutamente processos passivos, mas possuem caráter ativo.

Luria (1979) elucida, ainda, que ao distinguir os grupos maiores das sensações, encontramos três tipos distintos: a) as sensações interoceptivas, que estão relacionadas aos processos internos do organismo (órgãos viscerais), b) as sensações proprioceptivas, que asseguram os sinais referente à posição do corpo no espaço e c) as sensações exteroceptivas, que fazem com que as informações procedentes do mundo exterior cheguem ao homem por intermédio do olfato, paladar, tato, visão e audição.

Contudo, apesar do terceiro tipo ser considerado o principal grupo de sensações, Luria (9179) afirma que esses não esgotam os cinco sentidos de sensibilidade. De acordo com ele, cabe acrescentar a essa relação duas categorias: as sensações intermediárias ou intermodais e os tipos não específicos de sensação. Afinal,

Existem formas de sensibilidade ainda não suficientemente estudadas às quais pertencem, por exemplo, o ‘sentido de distância’ (ou ‘sexto sentido’) dos cegos, que lhes permite perceber à distância o obstáculo que surge à sua frente. Há fundamentos para supor que a base do ‘sexto sentido’ é a percepção das ondas de calor pela pele do rosto ou o reflexo das ondas sonoras do obstáculo distante (essas ondas atuam à semelhança do radar). No entanto, essas formas de sensibilidade ainda não foram suficientemente estudadas, sendo ainda difícil falar dos seus mecanismos fisiológicos. (LURIA, 1979, p.15).

Destaca que nem sempre os órgãos dos sentidos funcionam isoladamente, pois podem estar em interação uns com os outros, podendo essa interação assumir, por um lado, uma influência mútua – um órgão do sentido pode estimular ou reprimir o funcionamento de outro órgão – e, por outro lado, os órgãos dos sentidos podem trabalhar em conjunto, gerando uma nova modalidade de sensibilidade. Alguns estudos “mostraram que o funcionamento de um órgão dos sentidos não deixa de influir no processo de trabalho de outros órgãos dos sentidos [um assobio, por exemplo, pode aguçar a sensação visual] (LURIA, 1979, p.16). No entanto, sabemos que, às vezes, quase não percebemos as irritações táteis, visuais e auditivas isoladamente; por exemplo, “ao percebermos os objetos do mundo exterior, nós os vemos com os olhos, sentimos pelo contato, às vezes lhe percebemos o cheiro e o som etc. É natural que isso exige a interação dos órgãos do sentidos [modalidade de sensibilidade]” (LURIA, 1979, pp.17-18).

Diante de tais apontamentos, observamos que, até o momento, os teóricos citados dedicaram-se, como dito no início deste capítulo, a descrever a importância dos sentidos de uma forma ampla, envolvendo-os todos no processo de desenvolvimento do homem, bem como de sua relação com seu meio social. Passaremos, agora, ao segundo grupo de teóricos identificado pelas leituras: aqueles que se dedicaram à discussão específica do sentido da visão. Cabe destacar que tais discussões e conceituações sobre o processo de interpretação dos sentidos fazem-se fundamentais para a compreensão futura de como se construíram as concepções sobre o processo de compensação, principalmente no que se refere à pessoa cega.


Compreendendo o sentido da visão

Descartes, em 1637, em seus escritos sobre a Dióptrica apresentou vários desenhos baseados nas leis da reflexão e da refração, com os quais tentou entender como o olho humano formava as imagens e, principalmente, compreender a teoria da refração da luz que estabelece, pela primeira vez, a lei do seno e contém o estudo sobre novos instrumentos ópticos. Segundo ele, [...]

toda a conduta de nossa vida depende de nossos sentidos, e como a visão é o mais universal e o mais nobre dos sentidos, não resta a menor dúvida de que as intervenções que servem para aumentar seu poder estão entre as mais úteis que podem existir. (DESCARTES, 1637/2010, p.451).

Ao referir-se, por exemplo, sobre a importância da luz e suas propriedades para a visão, Descartes (1637/2010) traz o exemplo de uma caminhada pela noite escura sem uma tocha. Segundo ele, para essa tarefa seria necessário, em sua opinião, o auxílio de uma bengala, pois por intermédio da extremidade desta poderia constatar os diferentes objetos que se encontram em seu entorno. Nas palavras do teórico,

É verdade que esse tipo de sentimento é um pouco confuso e obscuro naqueles que não utilizam frequentemente a bengala ou que a usam pouco. Mas, considerando aqui aqueles que nasceram cegos e serviram-se da bengala durante toda a sua vida, encontrareis neles um uso tão perfeito e tão exato que se poderá quase dizer que eles veem pelas mãos, ou que a bengala deles é o órgão de algum sexto sentido, que lhes foi dado na falta da visão. (DESCARTES, 1637/2010, p.453).

Afinal, tal confusão de sentimento ocorre porque para os que veem, o conhecimento dos objetos se dá pela incidência de luz refletida na retina, o que permite distinguir cores e formas e, portanto, identificá-los. Esclarece Descartes, no entanto, que o cego, por intermédio da bengala e da mão, realiza o mesmo processo que os videntes, apenas utilizando-se de outros mecanismos e sentidos, independentemente da sensação que se obtém não ser semelhante às ideias que se concebe pela visão. Como bem exemplifica,

[...] Podereis até facilmente decidir a questão, que se dá entre eles, concernente ao lugar de onde vem a ação que causa a sensação da visão, pois, como nosso cego pode sentir os corpos que estão em torno dele, não somente pela ação desses corpos, quando eles se movem contra sua bengala, mas também pela ação de sua mão, quando eles não fazem mais que lhe resistir. Assim, deve-se admitir que os objetos da visão podem ser sentidos não somente por meio da ação que, estando neles, tende para os olhos, mas também por meio daquela que, estando nos olhos tende em direção a eles [...]”. (DESCARTES, 1637/2010, pp.453-453).

Cabe destacar que, apesar de não encontrarmos na obra de Descartes nenhuma menção ao conceito de compensação ou termo similar a ele, tais colocações nos levam a refletir sobre o processo de compensação que ocorre quando do aprendizado das pessoas cegas, seja de nascença ou adquirida, frente aos objetos, bem como sua locomoção no espaço. A relação estabelecida com as sensações obtidas por intermédio da bengala e da mão revelam de maneira significativa o que de fato ocorre com as pessoas que necessitam desse instrumento e do sentido do tato para conhecer e reconhecer o espaço onde se encontra.

Retomando a relação entre as ideias e a visão, Descartes (1637/2010) passa a descrever a relação que se obtém entre a impressão que se tem das imagens e o que de fato são. Segundo ele, devemos pensar que as imagens que se formam em nosso cérebro, apesar das inúmeras interpretações que fazemos dela, é apenas uma figura. Por exemplo, se olharmos para uma gravura feita com um pouco de tinta sobre o papel, esta pode representar florestas, cidades, homens, entre outras coisas, mas independente da infinidade de diferentes qualidades que elas concebam, há, aí, apenas uma figura. Acrescenta Descartes (1637/2010, p.469), “[...] é somente questão de saber como elas [imagens] podem servir de meios para a alma sentir todas as diferentes qualidades dos objetos aos quais elas se relacionam, e não como elas têm em si sua semelhança”.

Exemplifica, ainda, que quando um cego

[...] toca alguns corpos por meio de sua bengala, é certo que esses corpos não enviam outra coisa até ele, senão que, fazendo mover diversamente seu bastão segundo as diferentes qualidades que estão neles, eles movem pelo mesmo meio os nervos de sua mão e, em seguida, os lugares de seu cérebro de onde vêm esses nervos; o que dá ocasião a sua alma de sentir tantas qualidades diferentes nesses corpos, quantas são as variedades que se encontram nos movimentos que são causados por eles em seu cérebro. (DESCARTES, 1637/2010, p.469).

Saindo um pouco do campo da percepção da visão por incidência de luz e da formação de imagens, Berkeley (1709/2008) passa a discutir a questão da visão a partir do conceito de distância, ou seja, a partir dos juízos rápidos que fazemos ao olharmos os objetos; segundo ele, a ideia de distância que possuímos está sempre relacionada com as ideias anteriormente elaboradas e/ou relacionadas.

Por exemplo, quando percebo um grande número de objetos intermediários, tais como casas, campos, rios, e coisas semelhantes, que, por experiência, sei que ocupam um espaço considerável, formo a partir disso um juízo ou conclusão de que o objeto que vejo além deles está a uma grande distância. Além disso, quando vejo como pequeno e tênue (faint) um objeto que, por experiência, sei que produz uma aparência grande e vigorosa quando está próximo, concluo instantaneamente que ele está muito longe. E isto, evidentemente, é o resultado da experiência, sem a qual eu nada teria inferido acerca da distância dos objetos a partir de sua pequenez e pouco vigor (faintness). (BERKELEY, 1709/2008, p.15).

Para questionar a crença de que a relação distância-objeto nem sempre é verdadeira, Berkeley (1709/2008, p.27) traz o exemplo de um cego de nascença que adquire a visão:

[...] se um cego de nascença adquirir a visão, ele não terá, a princípio, nenhuma ideia de distância por meio da visão; o Sol e as estrelas, os objetos mais remotos bem como o mais próximos pareceriam estar todos em seu olho, ou antes, em sua mente. Os objetos introduzidos pela visão lhe pareceriam (como de fato o são) apenas um novo conjunto de pensamentos ou sensações, cada um dos quais está tão próximo a ele quanto suas sensações de dor e prazer, ou as mais íntimas paixões de sua alma.

De acordo com ele, se a relação distância-objeto fosse verdadeira, “seguir- se-ia que um cego de nascença, ao adquirir a visão, não precisaria de experiências adicionais para chegar a perceber a distância pela vista” (BERKELEY, 1709/2008, p.28). Acrescenta, ainda, que

[...] temos que reconhecer que nunca vemos e sentimos um mesmo objeto; o que se vê é uma coisa, e o que sente é outra. [...] a verdadeira conclusão é que os objetos da vista e do tato são duas coisas distintas [...]” (BERKELEY, 1709/2010, p.30).  

Aproxima-se, assim, da fala de Descartes, ao elucidar o exemplo da gravura feita com tinta no papel. Segundo Berkeley (1709/2010), isso ocorre porque o olho apreende dois tipos de objetos: um de forma primária e imediata – por exemplo, quando ouvimos pronunciar os sons de uma linguagem familiar, as ideias correspondentes apresentam-se em nossa mente, ou seja, som e significado adentram, no mesmo instante, no entendimento – e de forma secundária, por intermediação do primeiro – são sugeridos pela vista, afetam-nos muitas vezes com mais força e são levados mais em conta do que os objetos próprios daquele sentido com os quais adentraram a mente. No caso do cego, Berkeley (1709/2010, p.43) diz que,

[...] a quem se faz adquirir a visão, ao abrir os olhos, faria um juízo muito diverso do que é feito por outros quanto à magnitude dos objetos que adentram seus olhos. Ele não consideraria as ideias da vista com referência às do tato, nem suporia que têm alguma conexão com estas. Como sua concepção das ideias da vista esgota-se inteiramente nelas próprias, ele não pode julgá-las grandes ou pequenas a não ser à medida que contenham um número maior ou menor de pontos visíveis.

Especificamente com relação à posição dos objetos para os cegos, Berkeley considera que estes estão restritos àqueles perceptíveis pelo tato, ou seja, quando referir-se às coisas intangíveis ou de natureza espiritual – pensamentos e desejos, modificações da alma –, não aplicará os termos, por exemplo, “‘no alto’ e ‘embaixo, exceto apenas em sentido metafórico. [...] pois um cego de nascença, enquanto permanecer nesse estado, não pode dar aos termos ‘alto’ ou ‘baixo’ outra significação que não a de uma maior ou menor distância do solo [...]” (BERKELEY, 1709/2010, p.43). Todavia, o autor argumenta que, quando o cego estiver “curado”, será capaz,

[...] pela percepção que tem da posição das coisas visíveis em relação umas às outras, de avaliar de forma rápida e exata a posição de coisas tangíveis exteriores correspondentes a elas; e assim perceberá pela vista a posição das coisas externas que não caem propriamente no âmbito desse sentido. (BERKELEY, 1709/2010, p.51).

Além da questão da percepção, Berkeley atenta para as ideias que são formadas a partir da visão. Segundo ele, as ideias geralmente são classificadas por apresentarem uma semelhança ou conformidade, ou ainda por nos afetarem de uma forma particular; portanto, a ideia não precisa ser inteiramente nova, mas  deve ter em si algo que seja antigo, que já se tenha percebido. Retomemos o exemplo do cego de nascença:

[...] um cego de nascença, na primeira vez que [empregar] sua vista, não [irá] pensar que as coisas que [vê são] da mesma natureza que os objetos do tato, [...] mas [julgará tratar-se] de um novo conjunto de ideias, percebidas de uma nova maneira, e inteiramente distintas de tudo que percebera anteriormente; de modo que não irá chamá-las pelo mesmo nome, nem considerá- las como da mesma espécie que qualquer outra coisa que tivesse conhecido até então. (BERKELEY, 1709/2010, p.62).

Esse exemplo, não distante de nossos tempos, pode observado no relato de Oliver Sacks (1995), ao descrever as percepções de Virgil, um jovem cego, desde a mais tenra infância, que volta a enxergar após um procedimento cirúrgico, ou observado nas cenas do filme “À Primeira Vista”, que relata a história do mesmo rapaz.

Um do maiores conflitos de Virgil, como em todos os que acabam de recobrar a visão, era a incômoda relação entre tato e visão – sem saber quando tocar ou olhar. Isso será óbvio em Virgil desde o dia da operação e muito evidente no dia em que o vimos, quando mal conseguia ficar com as mãos longe do brinquedo de formas para crianças, ansiava tocar os animais e desistiu de cortar sua comida. Seu vocabulário, toda a sua sensibilidade e sua imagem do mundo eram expressos em termos táteis – ou, pelo menos, não visuais. Ele era, ou tinha sido até a operação, uma pessoa inteiramente tátil.

Berkeley chega com isso à conclusão de que, ao ver pela primeira vez, o cego de nascença não daria às ideias provenientes do tato os mesmos nomes. O cubo, por exemplo, é uma palavra que conheceu como aplicável à coisa percebida pelo tato. “Em suma, todas as ideias da vista são percepções novas, às quais ainda não há nomes anexados em sua mente [...]” (BERKELEY, 1709/2010, p.65). Chama à atenção Berkeley, com isso, para o erro de se pensar que a mesma coisa que afeta a vista afeta o tato, apesar de não ser fácil para nós “separar apropriadamente e distinguir em nossos pensamentos os objetos próprios da vista dos objetos do tato que a eles estão conectados” (BERKELEY, 1709/2010, p.73).

Voltaire (1738/1996), no entanto, ao estudar os elementos da filosofia de Newton, além das discussões sobre a relação tato-visão, passa à discussão da relação entre visão e os espelhos e as distâncias e grandezas, principalmente no que se refere ao uso de lentes corretivas para compensar a visão prejudicada.  

Surge aqui, a primeira menção, até o momento, do termo compensação. Todavia, não há como tecer considerações mais precisas sobre como o autor compreendia esse conceito, pois o mesmo aparece uma única vez, quando Voltaire descreve que, ao ter a visão prejudicada ou não receber a luz adequada na retina, ou pela reunião cedo demais de raios (miopia), há a necessidade de uma lente corretiva para compensar, isto é, “quando esta força se perde, a indústria humana compensa: uma lente é colocada entre o objeto e o olho enfraquecido” (VOLTAIRE, 1738/1996, p.93, grifo nosso).

Ao se referir aos cegos de nascença que após intervenção cirúrgica passam a enxergar, Voltaire destaca que durante o processo de reaprendizagem – conhecer o mundo sensível pela visão e não pelos olhos das mãos – o cego possui dificuldade de consentir tudo o que experiencia, pois é difícil conceber “o quanto o sentido da visão [poderá] aumentar seus prazeres” (VOLTAIRE, 1738/1996, p.103), afinal, ainda segundo o autor, “esta indiferença, que é impossível ser infeliz pela privação de bens dos quais não se tem nenhuma ideia: [é uma] verdade bem importante” (VOLTAIRE, 1738/1996, p.103) e que deve ser considerada e analisada quando a encontramos.

Para que seja possível que a pessoa que era cega e que começa a enxergar usufrua dos benefícios que a visão venha a lhe oferecer, Voltaire coloca que é necessário o auxílio da experiência e dos outros sentidos, pois somente a experiência ensinará as distâncias, as grandezas, as coisas sensíveis que se encontrarão à sua frente e que acompanharão a sensação da visão. Em suas palavras, “Aprendemos a ver exatamente como aprendemos a falar e a ler. A diferença é que a arte de ver é mais fácil e que a natureza é igualmente a mestra de todos nós” (VOLTAIRE, 1738/1996, p.105).

Com relação ao auxílio dos demais sentidos, Voltaire destaca que o homem engana-se ao pensar que somente necessita da visão, pois se só a tivesse, o homem não teria nenhum meio para conhecer a extensão, o comprimento, a largura e a profundidade. Concluindo, assim, que

Cada um dos nossos sentidos executa a função para qual a natureza o destinou. Eles se auxiliam mutuamente para enviar à nossa alma, pelas mãos da experiência, a medida dos conhecimentos que nossa alma comporta. Gostaríamos quenossos olhos nos  ensinassem o que é a solidez, a grandeza, a distância etc. Mas é preciso que o tato, neste caso, se ajuste à visão, e que a experiência os auxilie. (VOLTAIRE, 1738/1996, pp.105-106).

Diderot, em 1749, em seu texto “Carta sobre os cegos para o uso dos que veem”, ao discutir à eliminação da catarata de cegos de nascença, teceu algumas considerações sobre a readaptação e o aprendizado dessas pessoas a partir do uso da visão, pois, para ele, a apreensão do mundo por aqueles que nunca enxergaram e tiveram a possibilidade de ver não ocorria automaticamente, ou seja, o que era percebido pelo tato não passa a ser denominado pela visão sem que ocorram experiências. Ao referir-se a aprendizagem do cego, com o uso dos demais sentidos, Diderot (1749/2000, p.105) questiona: “Como é que um cego de nascença forma ideias das figuras?”. Ele próprio dá a resposta:

Creio que os movimentos de seu corpo, a existência sucessiva de sua mão em vários lugares, a sensação não interrompida de um corpo que passa entre seus dedos, fornecem-lhe a noção de direção. [...] depende dele combinar essas sensações ou pontos, e formar com elas figuras [...] o cego de nascença refere tudo à extremidade dos dedos. Nós combinamos pontos coloridos; ele, de seu lado, combina apenas pontos palpáveis ou, para falar mais exatamente, apenas sensações do tato de que tem memória [...].

Ainda, no que se refere ao tato, Diderot (1749/2000, p.106) acrescenta:

Não conheço nada que demonstre tão bem a realidade do sentido interno quanto esta faculdade, fraca em nós, porém forte nos cegos de nascença: sentir ou recordar a sensação dos corpos, mesmo quando eles se acham ausentes e não mais atuam sobre eles.

O que o leva a descrever e afirmar que, apesar de possuirmos três portas de acesso para que se leve o conhecimento à alma – audição, visão e tato –, comumente trancamos o último por falta de sinais. Alerta ainda que, se negligenciarmos as duas outras, nos reduziremos à condição de animais. Para Diderot (1749/2000, p.109),

[...] é preciso carecer de um sentido a fim de conhecer as vantagens dos símbolos destinados aos que restam; e pessoas que [tiverem] a desgraça de ser surdas, cegas ou mudas, ou que [vierem] a perder esses três sentidos por qualquer acidente, [ficarão] muito encantadas se [existir] uma língua nítida e precisa para o tato.

Essa afirmação leva à reflexão, mais uma vez, de quanto nos utilizamos de todos os sentidos que possuímos para o nosso desenvolvimento, bem como para a percepção total dos objetos que estão a nossa volta. Façamos aqui um pequeno exercício de reflexão. Neste momento, abandone sua atenção de tudo o que está a fazer; tente durante os próximos cinco minutos perceber o que está a sua volta e, principalmente, se ater a quais sentidos utiliza para fazer isso. Bom, tenho certeza que nesses breves minutos que se passaram ouviram o som de alguém falando ou de uma música tocando, por exemplo; viram os objetos sobre à mesa ou as pessoas andando; enfim, boa parte das pessoas que se dedicaram a fazer esse pequeno exercício de reflexão utilizaram-se apenas da visão ou da audição como demonstrou Diderot: na maior parte do tempo trancamos a porta para o último sentido e, em vez de tentarmos reconhecer seus sinais, preferimos confiar naqueles que já nos habituamos a utilizar e, consequentemente, muitos apenas aprenderão a desenvolver o terceiro sentido somente quando um dos outros dois vier a faltar.

Gerard Lebrun (1972), em termos de curiosidade e para finalizar esta parte, utiliza-se dos textos de Voltaire, Locke e Diderot – mencionados ao longo desse capítulo – para fazer uma análise filosófica do que denomina “a visão pelos olhos do outro” por intermédio da cegueira. Segundo o autor,

[...] não se trata mais da desconfiança em relação aos sentidos, tema favorito dos autores do século XVII. Trata-se ao contrário, de saber em que medida podemos criticar, em nome da Razão, as ilusões da visão. Sabemos somente até onde elas se estendem, mas será que não nos tornamos seus prisioneiros inconscientes justamente no momento em que as denunciamos? Temos consciência disso, será que acaso podemos medir, em toda a sua amplitude, a importância de tal fato? Haveria apenas um meio de responder com certeza a essa pergunta – interromper totalmente nosso comércio com o visível, tornando-nos cegos de nascença. (LEBRUN, 1972, p.55).

No entanto, como isso não é possível, Lebrun descreve que se faz necessário solicitar ao cego de nascença a resposta a tais questionamentos. Lembra, também, que muito antes de Diderot o cego de nascença já era um dos personagens principais da metodologia do século.  

Referindo-se especificamente a cegueira e aos questionamentos e colocações dos demais teóricos sobre como o cego de nascença ou recém operado irá compreender o mundo visível, Lebrun (1972, pp.59-60) descreve,

A questão, por conseguinte, não é de modo algum a de saber como o cego vai traduzir o mundo visível: tanto para o recém- nascido como para o cego operado, o espaço jamais é o resultado de uma tradução [...]. Não se tem o direito de fazer do cego operado o modelo do aprendiz da visão, de procurar no nível do patológico a verdade da percepção visual; o cego só verá realmente quando deixar de relacionar o espaço a suas coordenadas musculares e tácteis, quando esquecendo que foi cego, puder mover-se com desembaraço e sem espanto, no vazio movediço que se cava a sua volta.

Afinal, a visão é algo que o cego somente se refere por metáforas, pois mesmo quando utiliza a linguagem dos videntes, as palavras não têm para ele os mesmos sentidos. Por exemplo, quando um cego diz: “isso é belo, não está julgando, está apenas repetindo o julgamento dos que veem [...]. Para um cego a beleza separada da sua utilidade é mera palavra [...]” (LEBRUN, 1972, p.61). Portanto,

[...] o cego pode saber muito bem que coisas nós estamos vendo [...]. Contudo, essas coisas jamais serão às mesmas, pois não são dadas no relance de um olhar. O saber do cego pode ser tão exato e minucioso quanto o nosso – mas não pode transformar-se em espetáculo. [LEBRUN, 1972, p.61).

Para concluir, Lebrun (1972, pp.64-65, grifo do autor) faz uma analogia entre a situação do cego e a do filósofo. Para ele,

A situação do filósofo é essa situação ambígua, entre o cego e o vidente, o entendimento e a intuição: ao cego objeta que a beleza, se não é uma aparência, ao menos existe como aparência; ao vidente, que, se considera o objeto da arte belo é apenas por convenção cultural.

Complementa, “[...] É certo que não passamos de seres vivos de cinco sentidos; mas essa finitude não deve ser tomada como tema de zombaria e sim como objeto de compreensão” (LEBRUN, 1972, p.66).

Postas todas as considerações que serviram de referência tanto para a compreensão dos sentidos, como do sentido da visão especificamente, notamos que até o momento nenhum dos teóricos, com exceção de Voltaire, fez menção ao conceito ou ao processo de compensação em si, apesar de, ao trazerem à discussão exemplos de cegos que adquiriram a visão após cirurgia e que precisaram se reorganizar para compreender que o que era sentido pelo tato possuía diferençassem relação àquilo que se enxergava com a visão, já anunciaram, se assim se pode dizer, pequenos indícios do que futuramente se revelaria como processo de compensação. Isso suscita, uma vez mais, um dos questionamentos que dão origem a esta pesquisa: em que momento histórico o conceito de compensação ganha sentido e consistência como processo a ser estudado? Passemos, então, a essa discussão.


Compreendendo a compensação

Como descrevemos no segundo capítulo desta tese, o conceito de compensação foi descrito pela primeira vez por Alfred Adler, aproximadamente por volta do ano de 1912, quando descreveu sua teoria sobre a inferioridade. De acordo com Ramos128 (1934, pp.46-47),

Os primitivos trabalhos de Adler foram sobre a inferioridade orgânica, demonstrando que esta inferioridade corporal (Organminderwertigkeit) determina um sentimento correspondente (Minderwertigkeitsgefühl), creando uma posição psycha especial, com o fito de corrigir este sentimento. [...] Onde ha uma inferioridade surge a ‘compensação psychica’, que num gráu mais elevado, dá ao nervoso a ilusão de uma superioridade pela qual elle tanto lucta durante toda a sua vida.

Ou, ainda, como descreve Allport (1937/1966, p.172), todos nós temos a experiência frequente de fracasso,

[...] quando isso ocorre, normalmente aumentamos nossos esforços, ou mudamos nosso objetivo, e não nos preocupamos mais. [No entanto,] quando os fracassos são contínuos e têm significação para o propium129, não podemos deixá-los de lado.

Para Adler (1917/1956), o estudo sobre a compensação psíquica foi o ponto de partida para um novo conceito médico, o qual se constituiu pelo levantamento de novas questões sobre as correlações entre indivíduo, família, sociedade, corpo e alma por intermédio da psicologia individual. Tal afirmação apóia-se no pressuposto de que a criança, desde o nascimento, devido a sua fragilidade, necessita a ajuda de outro ser, isso porque

Ainda sem saber, sempre pressupõem-se as relações sociais. Os seres humanos não vêm ao mundo com seus instintos focados em uma direção [...]. [...] Tudo o que uma criança traz ao mundo, com suas possibilidades congênitas é colocado em um campo social, ao qual a criança tem que considerar como o mais importante, pois sua debilidade, sua inferioridade tende em direção a isso130. (ADLER, 1930/1959, p.23).

Estabelece, assim, como “lei fundamental que as crianças que vieram ao mundo com inferioridades orgânicas, se empenham desde cedo em uma renhida luta pela existência” (ADLER, 1927/1967, p.72).

Para que se possa compreender melhor as argumentações de Adler faz-se necessário, primeiro, entender os princípios e conceitos de sua psicologia do indivíduo, especificamente os que se referem aos sentimentos de inferioridade, para depois partirmos para a compreensão da compensação.

De acordo com o teórico, apesar dos avanços extraordinários na medicina, os profissionais e estudiosos dessa área esquecem-se, por vezes, que muitas crianças já chegam ao mundo dotadas de condições desfavoráveis, que exigem adaptação à vida. Essas situações desfavoráveis ou inferioridades, como denomina Adler, quase sempre originam-se de alterações orgânicas adquiridas ou herdadas. Após seu nascimento, algumas dessas crianças “desaparecem” cedo ou tarde; no entanto, a maioria sobrevive e, com isso, “um grande número desses sobreviventes sofre durante toda a sua vida debilidades orgânicas; outros [...] conseguem certo equilíbrio; outros, como consequência do que denominamos uma sobrecompensação, apresentam um excesso funcional”131 (ADLER, 1930/1948, p.60).

Para que se consiga superar tais debilidades orgânicas e buscar equilíbrio faz-se necessária uma luta entre o estado psicológico que engendra caracterizar-se pelo sentimento de inferioridade e o surgimento da necessidade de libertar-se do sentimento de insegurança gerado pela inferioridade. Ou seja, todas as funções psíquicas da criança perdem a serenidade e se colocam ao serviço do objeto final: a compensação dos sentimentos de inferioridade.

No entanto, como alerta Adler (1930/1948), nem sempre esses valores ocasionados pelos sentimentos de inferioridade geram comportamentos inteiramente adaptáveis, pois, em alguns casos, a inferioridade pode permanecer por muito tempo inalterada ou, ainda, contida apenas no órgão ou em parte dele. É somente por meio de uma análise do ponto de vista psicológico que se conseguirá observar as diferenças quantitativas apresentadas pela compensação.

Afinal, se o desenvolvimento da criança normal é marcado pela harmonia entre as capacidades física e físico-funcional – paralelismo psicofísico – no caso de uma criança com um órgão inferior, isso é bem diferente, pois se há um retardamento específico no desenvolvimento dos órgãos, assim como nas vias nervosas relacionadas, todas as tentativas de cultura que forem mal sucedidas, condições como “idiotismo” e “imbecilidade” podem ser resultantes (ADLER e JELLIFFE, 1923/2012). Todavia, não podemos encarar tal afirmação como uma verdade absoluta ou como resultado para todos que apresentem uma inferioridade orgânica. Há casos mais moderados em que o órgão inferior espontaneamente começa a ganhar vontade e, contrariando a interferência física, passa a introduzir um esforço duradouro para as atividades compensatórias.

Como descreve Adler (ADLER e JELLIFFE, 1923/2012, pp.68-69),

Se, contudo, nele e nos órgãos inferiores, incapazes de realizar a compensação, deparar-se com uma destruição mais rápida ou mais lenta sob a pressão do mundo exterior, a natureza, por outro lado, pela criação de uma compensação, formará mecanismos de função e morfologia variáveis que se mostrarão, em muitos casos, funcionalmente capazes e até mesmo mais bem adaptados às condições externas, já que eles tiram sua força adicional de superação dos obstáculos externos.

Cabe lembrar que não existe uma única causa para as inferioridades. Entre as mais evidentes encontramos as deficiências dos órgãos sensoriais, as deficiências respiratórias, do aparelho digestivo, dos órgãos excretores, das glândulas endócrinas, do cérebro e da medula espinhal; mas há, ainda, as causas de inferioridades originadas pela condição de vida à qual se está submetido: situação econômica, alimentação inadequada, carência de sentimentos etc. O que há em comum em todas essas causas é que ambas, segundo Adler (1930/1948, p.61), tornam a resolução de tarefas mais ou menos difícil, impondo-lhes, no caso da deficiência dos órgãos, um treinamento

[...] que se traduz em uma potente hipertrofia das funções psíquicas, exigidas ao extremo. Com esforço redobrado, [por exemplo], ouvidos e olhos defeituosos buscarão assimilar-se e utilizar os matizes que ainda lhes são acessíveis, e em algumas ocasiões conseguir um uso artístico deles.

No caso da situação econômica ou da ausência de sentimentos, pode ocorrer a contenção do desenvolvimento de sentimentos altruístas, bem como a sociabilidade e a confiança nos humanos. Pode-se dizer que, consequentemente, ao se deparar com as dificuldades que lhe são impostas orgânica ou socialmente, a criança mostrará sua força ou dificuldade para resolver tais situações, bem como lutar para vencer ou não.

Posto isso, verifica-se que o mérito da psicologia do indivíduo, segundo Adler (1930/1948), se encontraria em mostrar ao sujeito que o sentimento de continuidade constitui um elemento afetivo fundamental, que se encontra em todas as manifestações psíquicas, além de ser o sentimento de inferioridade um elemento afetivo capital, que provoca a aspiração contínua ao poder e à autovalorização do sujeito. É por intermédio da psicologia do indivíduo que se conseguirá, por exemplo, “discernir na conduta do homem nervoso o programa de vida viciado, o método de vida defeituoso de uma pessoa que crendo ser incapaz de responder às obrigações normais da existência, toma outra direção” (ADLER, 1930/1948, pp.69-70). Em outras palavras,

[...] a Psicologia do indivíduo representa uma tentativa de moderar, de temperar os assaltos da natureza contra o homem. Esses assaltos são cruéis e a natureza é mais despiedada que nós mesmos: ameaça o nervoso, o louco, o criminoso, de quase completa destruição. [...] Os conceitos fundamentais da Psicologia do indivíduo são de tal índole que pode ajudar-nos a compreender o destino original do homem, configurado pela ignorância e pelo erro. A concepção do mundo que preconiza, constitui o mais enérgico meio de segurança, pois não repousa sobre a fraqueza e sim na força135. (ADLER, 1930/1948, pp.73-74).

Em síntese, pode-se dizer que a inferioridade dos órgãos afeta a vida psíquica diminuindo o indivíduo diante de si mesmo e aumentando seu sentimento de insegurança; são precisamente esses sentimentos que darão origem à luta para a afirmação de sua personalidade.

À medida que a força de ação do órgão inferior compensado aumenta qualitativa e quantitativamente, a criança com predisposição neurótica, presa em seu sentimento de inferioridade, encontra em si mesma os meios, com frequência surpreendentes, para elevar o sentimento de seu próprio valer [...]136. (ADLER, 1912/1993, p.54).

Encontram-se aí os primeiros indícios de se desenvolver, sob o influxo do senso de inferioridade e do propósito dele originado, a compensação ou supercompensação pelo sistema nervoso central. Como descreveu Adler (1912/1993, p.53, grifos do autor), em uma de suas publicações,

Eu já havia comprovado uma notável correlação entre a inferioridade dos órgãos e a supercompensação psíquica, fato que me permitiu formular a seguinte tese fundamental: o sentimento de padecer uma inferioridade orgânica age sobre o indivíduo como um estímulo contínuo em seu desenvolvimento psíquico. Desde o ponto de vista fisiológico, esse desenvolvimento implica um reforço, em quantidade e qualidade, dos trajetos nervosos, e se esses trajetos apresentam também uma inferioridade originária, suas particularidades tectônicas e funcionais acusam-se no quadro de conjunto.

Ou seja, a existência de um órgão com condições inferiores impõe às vias nervosas novos esforços para que ocorra a compensação. Por exemplo, se o órgão da visão estiver originariamente comprometido, ocorrerá uma visão psíquica reforçada, portanto, a capacidade funcional do sistema nervoso central cumprirá o papel de agente compensatório e, consequentemente, se manifestará por reflexos, por reações sensíveis e sensações intensificadas. “A superestrutura psíquica compensadora desenvolverá, especialmente, os fenômenos psíquicos de previsão e antecipação pelo pensamento, assim como seus elementos ativos: memória, intuição, introspecção, compreensão, atenção, hipersensibilidade [...]”138 (ADLER, 1912/1993, pp.59-60). Todavia,

Quando o senso de inferioridade se avoluma ao ponto de [...] recear jamais ser capaz de compensar sua fraqueza, surge o perigo de que, em sua luta pela compensação, [não se] satisfaça com uma simples realização do equilíbrio das forças; exigirá uma supercompensação, procurará o superequilíbrio das conchas da balança! (ADLER, 1927/1967, p.77).

Ou seja, “a luta pelo poder e dominação poderá tornar-se tão exagerada e intensa, que deverá ser tachada de patológica. Quando isto sucede, as relações ordinárias da vida deixam de ser satisfatórias” (ADLER, 1927/1967, p.77) e acabam, por vezes, caminhando para o orgulho, a vaidade e o desejo de a todos dominar – alto senso de importância individual. Ou, como descreve Collette (1963, p.46), baseado em Adler, “essa desvalorização de si mesmo acarreta um agravamento dos sentimentos de insegurança. Consequentemente, o indivíduo vai tentar superar esse estado, quer por meios normais, quer por meios excessivos [...]”.  

Ramos (1939, p.405), a esse respeito, acrescenta que a inferioridade corporal está em íntima conexão com a vida psíquica e, portanto,

Uma creança com excessivos defeitos orgânicos não pode desenvolver-se como as outras. Desde cedo, no intuito de superar a sua inferioridade, crêa um plano falso de vida, no afan de conseguir uma situação em que triumphe de sua debilidade. É o mecanismo da supercompensação.

Segundo Adler (1912/1993), em virtude do poder de abstração e intuição, o entendimento humano sensualiza os pensamentos e lhes dá uma interpretação sensível, ou seja, procura-se adquirir um ponto de vista que permita apreciar e medir a distância que o separa da solução dos principais problemas da vida. Os sentimentos de inferioridade que experimentam a criança, por exemplo, servem de base para as sensações de desprazer e descontentamento que provocam um impulso interno para um objetivo final fictício. Nas palavras de Adler (1912/1993, pp.76-77), “[...] corresponde com a tendência do espírito humano a utilizar ficções e hipóteses úteis para capturar em quadros circunscritos e bem delimitados tudo o que o mundo tem de inapreensível, de caótico, de fluido”. Afinal, são inúmeros os casos de pessoas que procuram introduzir um esquema abstrato e irreal na vida real e concreta. Collette (1963, p.198) sintetiza tal discussão dizendo-nos que,

A compensação apresenta-se, pois, como um mecanismo de defesa importante e muito satisfatório nas adaptações do indivíduo. Frequentemente, é fonte de ação e defende os homens contra a tentação da retração do ego diante das situações difíceis de sobrepujar. Quando o mecanismo se manifesta excessivamente, porém (em muitos casos de supercompensação, entre outros), poderá fazer com que o indivíduo perca a visão objetiva da realidade exterior e de sua própria realidade. A submissão a normas formais exteriores, por compensação, faz o indivíduo perder toda a sua plasticidade e o senso de sua própria personalidade, dando-lhe uma fachada frágil que oculta mal seu verdadeiro ego.

Dessa forma, faz-se necessário, segundo Adler (1917/1956, p.50), procurar a origem desse processo incômodo

[...] na plasticidade e na possibilidade de adaptação que caracterizam com frequência o órgão inferior, certamente também na vigilância interior e na concentração psíquica que se exerce sobre o órgão fraco assim como em um maior desenvolvimento dos complexos nervosos e psíquicos que dele resultam.

Ao retomar o aspecto das origens da supercompensação, Adler (1927/1967, p.79) coloca que, em muitos momentos,

Não podemos censurar a uma pessoa que tem um defeito físico ou um desagradável traço de caráter por se mostrar irritadiça. Ela não tem culpa disso. Devemos admitir seu direito de levar a irritação aos últimos limites ter a consciência de que merecemos nossa parte de censura comum por aquela circunstância. A censura nos cabe, também, pela nossa responsabilidade parcial por não havermos tomado precauções adequadas contra o atraso social que produziu aquele efeito. Se nos ativermos a este ponto de vista, poderemos eventualmente melhorar a situação.

Devemos nos aproximar dessa pessoa não a vendo como um ente degenerado, mas como um ente humano nosso igual, proporcionando-lhe um ambiente em que encontre possibilidades de sentir-se igual em seu meio. Como polemiza Adler (1927/1967, p.79), “Como achamos desagradável a vista de um indivíduo cujos defeitos físicos são visíveis!”. Mostra, assim, o quanto necessitamos nos educar para conseguir um senso exato de valores sociais, bem como nos pormos em harmonia com um verdadeiro senso social. Afinal,

Nada mais natural do que se sentirem as pessoas que vieram ao mundo com inferioridades orgânicas, sobrecarregadas, nesta existência, desde os mais tenros anos, de um fardo adicional, do que resulta ficarem pessimistas em seu modo de encarar a vida. Em semelhante situação também se encontram as crianças cujos defeitos orgânicos não são notáveis, mas que, por qualquer motivo, tiveram o seu senso de inferioridade intensificado e exacerbado. (ADLER, 1927/1967, p.79).

Adler (1912/1993), ao diferenciar seu modo de pensar sobre a inferioridade dos órgãos em relação aos demais autores, chega à conclusão de que o equilíbrio mediante a compensação é sempre assegurado, ou seja, o defeito, a inadaptação, a insuficiência, não são apenas um menos, uma negativa, mas também um estímulo para a compensação ou supercompensação. Em suas palavras,

A única diferença que existe entre a minha maneira de ver e a de outros consiste em que eu considero assegurado o equilíbrio mediante a compensação. A partir do momento em que o indivíduo separa-se do corpo materno, os órgãos e aparelhos inferiores se vêm obrigados a entrar em luta com o mundo exterior; luta inevitável e mais violenta que deve sustentar os órgãos normais. [...] os órgãos inferiores estão dotados de uma grande potência de compensação e sobrecompensação, que aumenta a capacidade de adaptação do indivíduo aos obstáculos comuns e extraordinários, e que favorece a criação de formas e de funções novas e superiores140. (ADLER, 1912/1993, p.56).

Opõe-se, desta forma, aos esquemas biológicos de Kretschmer, para quem a constituição inata determina a estrutura do corpo e do caráter (VYGOTSKI, 1927/1983/1997), e à visão de Freud, que reduz tudo a causas sexuais, limitando o indivíduo a suas pulsões sexuais. “Enquanto Freud crê na universalidade e na primazia do instinto sexual, Adler crê na universalidade e na primazia da inferioridade” (COLLETTE, 1963, p.45).

Diante de tais afirmações, cabe aqui fazermos um pequeno parênteses para elucidar a incorporação do conceito de compensação desenvolvido por Adler pela psicanálise de Freud e, posteriormente, pela psicologia analítica de Jung, bem como o conceito de adaptação da personalidade descrito por Kretschmer, apesar de que ambos apresentam concepções diferentes das de Adler.

De acordo com Collette (1963), na teoria de Freud sobre os mecanismos de defesa encontramos o conceito de atividades compensatórias, isto é,

Em sua qualidade de mecanismo de defesa, o processo é inteiramente inconsciente; é muito provável, de fato, que seja o próprio inconsciente que conduz o indivíduo no caminho de atividades compensatórias, quando as atividades normais derivadas de uma necessidade não sejam satisfatórias. Porém, é preciso acrescentar, também, que certas atividades compensatórias são empreendidas de modo voluntário e consciente [...]. (COLLETTE, 1963, p.194).

Em seu artigo “A Concepção Psicanalítica da Perturbação Psicogênica da Visão”, Freud traz alguns relatos que podem servir de exemplo de como o mecanismo de defesa da compensação atua na gênese dos distúrbios. De acordo com ele,

O paciente histérico fica cego, não em consequência de uma ideia auto-sugestiva de que ele não pode ver, mas como resultado de uma dissociação entre os processos inconscientes e conscientes no ato de ver; sua ideia de que não vê é a expressão bem fundada da condição psíquica e não sua causa. (FREUD, 1910, n/p).

Ainda, de acordo com suas palavras, “as pessoas histericamente cegas só o são no que diz respeito à consciência; em seu inconsciente elas veem. Observações como essas nos levam a distinguir os processos mentais conscientes dos inconscientes” (FREUD, 1910, n/p).

Jung (1928/2011) ao discutir o processo de individuação do homem, evidencia o que ele denomina de relação compensatória entre o inconsciente e consciente. Para o teórico, o inconsciente nunca está em repouso; sua atividade parece ser contínua e, consequentemente, seus processos têm uma relação compensatória em relação à consciência, isso porque

Os processos inconscientes compensadores do eu consciente contêm todos os elementos necessários para a autorregulação da psique como um todo. No nível pessoal, tais processos inconscientes são construídos por motivos pessoais que a consciência não reconhece, mas que afloram [...]. Entretanto, quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmos através do autoconhecimento, atuando consequentemente, tanto mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que cobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho, susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo mais amplo de interesses objetivo. (JUNG, 1928/2011, pp.67-68).

Quer com isso dizer que,

Os processos inconscientes coletivo não dizem respeito somente às relações mais ou menos pessoais de um indivíduo com sua família, ou com um grupo social; dizem respeito à comunidade humana em geral. Quanto mais ampla e impessoal for a condição que desencadeia a reação inconsciente, mais estranha e irresistível será a manifestação compensadora. Esta última não só impele à comunicação particular, como à sua revelação ou confissão; poderá até mesmo pressionar o indivíduo a assumir um papel representativo. (JUNG, 1928/2011, pp.68-69).

Não se querer com isso dizer que quanto mais a consciência se embrenha nos problemas universais, maior será o alcance das compensações produzidas pelo inconsciente. Afinal, há que se lembrar que nos problemas impessoais sempre há um interesse legítimo e outro ilegítimo. Legítimo quando surgem de uma profunda e autêntica necessidade individual e ilegítimos quando representam apenas uma curiosidade intelectual ou tentativa de evadir-se de uma realidade desagradável – produção de compensações demasiado pessoais –, aproximando- se esta última, muito mais do conceito de supercompensação do que do de compensação em si.

Kretschmer (1949/1954), ao referir-se à formação da personalidade, em vez de utilizar-se dos termos compensação, mecanismos de defesa de compensação ou relação compensatória, como os teóricos anteriores, afirma que

[...] muitos fenômenos psicológicos complicados da neurose referem-se, em último lugar, às claras bases clínicas de nossos firmes conceitos científicos fundamentais [...], e ao problema da luta pela vida e da adaptação ao meio ambiente. (KRETSCHMER, 1949/1954, p.98).

Portanto, ao deparar-se com a doença congênita deve-se estudar à constituição de seus componentes, além das condições de seu espaço vital para que se possa criar adaptações biológicas para uma nova situação estável na luta pela vida.

Paralelamente ao conceito de compensação, como observamos em Kretschmer, encontraremos em Piaget e Zangwill a definição do conceito de adaptação que, assemelha-se com o conceito de compensação descrito por Adler e, posteriormente, por Vigotski, como veremos. Deve-se lembrar que, o conceito de adaptação que descreveremos aqui teve uma de suas primeiras menções, por volta de 1859, por Charles Darwin, em sua obra “A Origem das Espécies”. Nela Darwin (1859/2010) descreve que o processo de adaptação pode ser visto de duas formas: ora como o convívio de espécies representativas que habitam uma região contínua, ora como meio de sobrevivência das espécies. Segundo um próprio exemplo do autor,

Ora, estando cada um deles [animais de uma espécie] envolvido na luta pela sobrevivência, precisa necessariamente adaptar-se bem ao lugar que ocupa na natureza. Assim, a Mustela vision da América do Norte tem os pés palmados e parece-se com a lontra quanto à pele, pelas patas curtas e pela forma da cauda. Durante o estio, este animal alimenta-se de peixes e mergulha para se sustentar; porém, durante o longo inverno das regiões setentrionais, deixa as águas congeladas e, como as demais doninhas, nutre-se de ratos e animais terrestres. (DARWIN, 1859/2010).

Darwin, ao descrever o processo de adaptação das espécies, faz menção, também, à evolução e à probabilidade de transformação da função dos órgãos. Segundo ele,

Dois órgãos diferentes, ou o mesmo órgão sob duas formas distintas, podem desempenhar, simultaneamente, a mesma função no mesmo indivíduo, o que constitui um método muito importante de transição. [...] um dos dois órgãos poderia facilmente modificar-se de forma a desempenhar a função por si só; então, o outro órgão, depois de ter auxiliado o primeiro no decurso do seu aperfeiçoamento, poderia, por seu turno, modificar-se para desempenhar uma função diversa [...]. (DARWIN, 1859/2010, p.136).

Mostra, assim, que é importante ter presente uma probabilidade de transformação de uma função em outra, quando se consideram as transições do órgãos, o que torna essa fala, portanto, muito próxima do que ocorre com a pessoa cega: na ausência do órgão da visão, os demais auxiliarão nas funções que o outro não poderá cumprir. Além de nos levar à reflexão de que, já em meados do século XIX, anunciava-se o que futuramente denominou-se compensação.

Posteriormente, já no início do século XX, Piaget, ao estudar a formação dos esquemas sensório-motores e o mecanismo de assimilação mental, pautou- se no conceito de adaptação para explicar os processos de desenvolvimento. Para o teórico, adaptação

[...] é um estabelecimento de equilíbrio progressivo entre um mecanismo assimilador e uma acomodação complementar. O espírito só pode encontrar-se adaptado a uma realidade se houver uma acomodação perfeita, isto é, se nada mais vier, nessa realidade, modificar os esquemas do sujeito. Mas, inversamente, não há adaptação se a nova realidade tiver imposto atitudes motoras ou mentais contrárias às que tinham sido adotadas no contato com outros dados anteriores: só há adaptação se houver coerência, logo, assimilação. (PIAGET, 1936/1966, p.18).

Piaget (1936/1966, p.369) traz, ainda, a definição de Claparède: “a inteligência constitui, segundo Claparède, uma adaptação mental às novas circunstâncias ou, mais precisamente, à capacidade de resolver pelo pensamento os novos problemas”. Mostra, assim, que ao observar o processo de adaptação mental é possível identificar os processos de acomodação dos esquemas interiores e a assimilação dos objetos que se explora.

Todavia, cabe destacar que Piaget não faz a transposição do conceito de adaptação para as funções do sentido, como os demais teóricos mencionados; foca-se, exclusivamente, na importância desse conceito para o mecanismo de assimilação mental. O que não o torna menos importante que os demais teóricos, pois da mesma forma que as pessoas “normais”, as pessoas com algum comprometimento sensorial realizará assimilações mentais.

Zangwill (1950), ao discutir o processo de adaptação, pautado na psicologia experimental, em vez de discutir o mecanismo de assimilação mental, focou-se especificamente os processos sensoriais, pois, para o teórico, o conceito de adaptação “indica mudanças na excitabilidade de um órgão sensorial devidas à aplicação continuada de um estímulo constante143” (ZANGWILL, 1950, p.26), ou seja, é por intermédio de estímulos contínuos que o órgão sensorial se adaptará a uma nova situação.

Além disso, Zangwill afirma que os fenômenos de adaptação, no nível psicológico, dependem de processos puramente fisiológicos de adaptação dos órgãos receptores sensoriais adequados. Como exemplo, o autor relata uma experiência de adaptação do olho:

[...] a percepção da discriminação visual no homem está intimamente relacionada com o estado de adaptação do olho. A agudeza visual adquire um grau máximo quando a iluminação do objeto é a mesma que aquela a que se adaptou previamente o olho. Se o olho havia sido adaptado a algumas iluminações que se encontram muito em cima ou debaixo do objeto, a discriminação visual sofre uma diminuição144. (ZANGWILL, 1950, p.28).

Mostra, assim, que a adaptação pode ser relacionada com variações puramente fisiológicas nos receptores periféricos.

Stern (1938/1951), diferentemente de Piaget e Zangwill, dedica-se a descrever a substituição sensorial, principalmente nas relações que se constituíram entre os conceitos de normalidade e anormalidade ou, ainda, de percepção e sensação, pois para ele

Umas das distinções mais radicais da vida humana é a que se faz entre ‘sadio’ e ‘doente’. Com relação à alma, essa antítese costuma designar com as expressões ‘normal’ e ‘anormal’. Neste setor, a separação é levada ao extremo de que duas ciências inteiramente diferentes que se ocupam de cada um desses dois grupos: a psicologia, da atividade psíquica normal, a psicopatologia, da anormal145. (STERN, 1938/1951, p.73).

Ao que se refere especificamente à percepção, Stern (1938/1951) descreve-a como sendo um processo pelo qual o indivíduo registra de forma consciente o que experimenta e, para isso, é necessário que o estado da pessoa e do objeto a ser experimentado estejam em sintonia. No entanto, quando, por exemplo, algum órgão do sentido não estiver em total sintonia ou seu funcionamento estiver incapacitado (temporária ou permanentemente), crê-se que é possível que um outro órgão entre em função – substituição do órgão sensorial. De acordo com Stern (1938/1951, p.285),

Todos nós temos noção de um funcionamento substitutivo ocasional dos sentidos; na mais profunda obscuridade, o tato passa subitamente ao primeiro término e nos dá uma informação que de outra sorte só poderíamos recebê-la pela visão.

No caso dos que carecem de um dos órgãos sensoriais, Stern (1938/1951, p.285, grifo autor) acrescenta que a substituição de sentidos opera em maior escala, ou seja,

O mundo perceptual do cego seria incompreensível se tudo o que fosse conhecido pela visão tivesse que ser eliminado do mundo como este é para os que têm cabal sentido, pois grande parte do que nós geralmente apreender com a visão é palpado ou ouvido pelo cego.

Lembra Stern, que o funcionamento da substituição nunca é uma equivalência absoluta, pois nem o mais hábil dos dedos não pode transmitir, por exemplo, a cor e o brilho de um objeto; “No entanto, já é bastante curioso que um sentido possa compensar em tão alto grau outro sentido que se tenha perdido” (STERN, 1938/1951, p.286). Revela que, além da substituição do sentido em si, devemos estar atentos à distinção que há entre a experiência substitutiva e o ato substitutivo.

No que diz respeito à experiência, destacam-se aqueles traços da impressão que são comuns a toda sensação; o importante neste caso é o fundo pessoal, em cujo plano não há separação específica entre os distintos sentidos. [...] [Por exemplo, em relação ao cego], a percepção de espaço está fortemente enraizada em sua própria especialidade e mobilidade; sobre essa base (que é comum a todas as pessoas) eles erigem um espaço externo, principalmente por meio do sentido do tato. Sem dúvida, seu espaço, quando experimentado, é muito limitado em amplitude de movimento e experiência se é comparado com ele os que têm visão normal; mas, facilita o acesso a todos os atributos espaciais essenciais das coisas [...]. (STERN, 1938/1951, p.286, grifos do autor).

O ato substitutivo não se refere a um tipo específico de experiência, mas da execução por meio de outros sentidos da atividade. Nas palavras de Stern (1938/1951, p.287),

[...] não se trata do tipo específico de experiência: tudo o que se necessita é executar por meio de outros sentidos certas atividades que as pessoas normais levam a cabo com a ajuda da visão ou da audição. A projetada produção desses substitutos e o treinamento sistemático de seu uso aumenta em grandes proporções a eficiência pessoal e social das pessoas de sentidos defeituosos.

O relato de trabalhos com surdos-mudos e os escritos de Helen Keller, são uma prova eloquente dos resultados do funcionamento substitutivo sistemático dos sentidos, como expresso nas citações anteriores. Stern mostra que a experiência substitutiva dos órgãos é suscetível de aprendizagem, portanto, sujeita à influência da educação. Afinal, por intermédio dos canais sensoriais o educador tem a possibilidade de colocar em ação cada percepção sensorial da pessoa e, consequentemente, a atividade psíquica em geral, como podemos observar no relato de Helen Keller, a seguir.

Gradualmente acostumei-me ao silêncio e à escuridão que me rodeavam e esqueci que algum dia fora diferente, até que ela chegou – minha professora, a que iria libertar meu espírito. Mas durante os primeiros 19 meses de vida eu vislumbrava os extensos campos verdes, um céu luminoso, árvores e flores que a escuridão posterior não conseguiu apagar inteiramente. Se vemos uma vez, ‘o dia é nosso e o que o dia mostrou’” (KELLER, 1902/2008, p.7).

Como se pôde perceber, apesar dos teóricos adotarem palavras diferenciadas: compensação, adaptação ou substituição, quando da explicação do processo que envolve cada um dos conceitos, verifica-se que estes possuem em sua essência o mesmo propósito: ativar uma estrutura para que se compense o órgão ou a incapacidade existente, de forma que o sujeito se reestruture para apreender o mundo sensível.

Posto isso e demonstrado a relação entre os conceitos, retomaremos agora as considerações tecidas até o momento, principalmente as que se referem ao conceito de compensação descritos por Adler – se algum órgão, causa de um uma insuficiência, não pode cumprir plenamente sua função, o sistema nervoso junto com aparato psíquico assumirão a tarefa de compensar o funcionamento defeituoso, criando uma estrutura psíquica que tenda a reforçar o organismo no seu ponto fraco e ameaçado –, para compreender as concepções de teóricos como Vigotski, Luria e Lowenfeld, anunciados anteriormente, ao discutirem o processo de compensação no desenvolvimento das pessoas com algum tipo de deficiência, no nosso caso, especificamente a cegueira.


Compensação e deficiência: a cegueira em evidência

De acordo com Vigotski (1927/1983/1997), até o momento que se dedicou aos estudos sobre o conceito de compensação, não se possuía uma teoria orgânica exaustiva e abrangente que se dedicasse aos estudos da compensação, mas, um grande número de áreas que estudavam esse fato e sua utilização na prática. Na psicologia, por exemplo,

[...] este fenômeno foi utilizado amplamente quando começou-se a estudar a psique, não isoladamente do organismo, como uma alma alienada do corpo, mas dentro do sistema do organismo, como sua função peculiar e superior. Resultou que no sistema da personalidade, a supercompensação desempenha um papel igualmente importante. [Ou seja,] [...] O sistema nervoso central assume a compensação de um órgão ímpar deficiente, precisando e aperfeiçoando o funcionamento do órgão. O aparelho psíquico cria, sobre tal órgão, uma superestrutura psíquica a partir das funções superiores que facilitam e elevam a eficiência do seu trabalho150. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, pp.42-43).

Com isso acredita-se que o sentimento ou a consciência de menos valia, que surge em decorrência do defeito, origina ou se converte em força motriz do desenvolvimento psíquico, permitindo, como observamos em Adler, uma lei psicológica fundamental sobre a transformação dialética da insuficiência orgânica e, consequentemente, produzindo aspirações psíquicas de compensação e supercompensação. Afinal, nessa concepção acredita-se que,

Toda a vida psíquica do indivíduo é uma substituição de atitudes combativas orientadas com a finalidade de resolver uma única tarefa – ocupar determinada posição com respeito à lógica imanente da sociedade humana, às exigências da existência social. O que decide o destino da personalidade, em última instância, não é o defeito em si, mas suas consequências sociais, sua realização sociopsicológica151. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, pp.44-45).

A teoria que elucida os conceitos de compensação e supercompensação torna-se, portanto, de fundamental importância, além de servir de base psicológica para o desenvolvimento e aprendizagem da criança com alguma função ou órgão comprometido. Nas palavras de Vigotski (1927/1983/1997), em relação à teoria de Adler, é somente mediante a dificuldade, ao obstáculo, que se faz possível o avanço para outros processos psíquicos, ou seja, será por intermédio do defeito e das alterações que se desenvolverão forças psíquicas para a superação.

[...] por isso Adler chama o efeito de força motriz fundamental do desenvolvimento e objetivo final do projeto de vida. A linha ‘defeito supercompensação’ é precisamente a linha diretriz do desenvolvimento da criança com defeito de alguma função ou órgão. [...] o ‘objetivo’ está dado de antemão [...]. Na verdade é a causa inicial do desenvolvimento. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.47).

Anterior à teoria de Adler, o defeito era considerado como menos valia e, consequentemente, as forças positivas que este colocava em ação estavam à margem dos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Tanto psicólogos quanto educadores não conheciam a teoria sobre a “contraposição entre a deficiência dada organicamente e as tendências psíquicas à compensação, [para ambos] tinham presente somente a primeira, ou seja, somente a deficiência” (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.47). Afinal, para Adler não se poderia esquecer que “o defeito não é só uma debilidade, mas também uma força. [E,] Nesta verdade psicológica reside o alfa e o ômega da educação social das crianças com deficiências” (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.48).

Apesar de tais apontamentos e do avanço sobre a forma de se pensar a questão dos defeitos, Vigotski acredita que tais concepções necessitam mais esclarecimentos, pois existem quatro pontos que geram questionamentos sobre a relação defeito/compensação. O primeiro seria que as ideias expostas anteriormente tenham sido produzidas pelo otimismo científico: “Se junto com o defeito estão dadas as forças para superá-los, qualquer defeito é um bem” (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.48); o que leva Vigotski a argumentar que a compensação é apenas um dos possíveis desfechos desse processo, um dos polos desse desenvolvimento.

O outro polo é o fracasso da compensação, o refugiar-se na doença, a neurose, a completa associabilidade da atitude psicológica. Uma compensação frustrada converte-se em uma luta defensiva com a ajuda da doença, em um fictício, que orienta todo o trajeto de vida por um caminho falso. Entre esses dois polos, entre os casos extremos, situam-se todos os possíveis graus de compensação, desde os mínimos até os máximos156. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.49).

O segundo ponto refere-se à facilidade de confundir tais concepções com outras diretamente opostas, vendo nelas um retorno ao passado e às concepções místicas do defeito e seu sofrimento, além de penetrar junto à ideia de uma valorização elevada da doença em detrimento da saúde, uma valoração do sofrimento. O que não é verdade, pois a nova teoria “não valoriza positivamente o sofrimento em si, mas sua superação; não a resignação perante o defeito, mas a rebelião contra ele; não a debilidade em si, mas os impulsos e mananciais de energia que compreende”157 (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.49). Mostrando, portanto, que é completamente diferente das concepções místicas do defeito e do sofrimento, como vimos em capítulos anteriores.

No terceiro ponto questiona-se que a teoria da compensação do defeito deve ser delimitada em relação à antiga teoria biológica ingênua da compensação dos órgãos, isto é, da teoria da substituição dos órgãos do sentido; pois “é indubitável que esta já incluía a primeira presunção científica de uma verdade: a perda de uma função impulsiona o desenvolvimento de outras funções que ocupam seu lugar”158 (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.49). Vigotski, no entanto, alerta que essa suposição está expressa de modo ingênuo e distorcido. Afinal, as teorias que afirmam que as relações entre os órgãos dos sentidos são diretamente equiparadas às relações entre os órgãos gêmeos, como por exemplo, o tato e o ouvido supostamente compensarem de imediato a perda da visão, foram há muito desmascaradas pela prática e pela ciência.

Uma pesquisa factual demonstrou que a criança cega não experimenta uma elevação automática do tato ou da audição, no lugar da vista faltante (K. Bürklen, 1924). Pelo contrário, não é a visão em si que se substitui, mas que se resolvem as dificuldades derivadas de sua ausência mediante o desenvolvimento de uma superestrutura psíquica. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.49).

Levando Vigotski a afirmar que de fato nessa teoria há um “grão” de verdade, que reside na compreensão de que qualquer defeito não se limita simplesmente à perda da função, mas sofre uma reorganização radical da personalidade e coloca em vigência novas forças psíquicas. Contudo, não se pode deixar de levar em consideração que,

Somente uma noção ingênua sobre a natureza puramente orgânica da compensação, a ignorância do aspecto sociopsicológico neste processo, só o desconhecimento da orientação final e da índole geral da supercompensação separam a velha teoria da nova160. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.50).

Chega-se ao quarto ponto proposto por Vigotski para discussão: a necessidade de se estabelecer uma verdadeira relação entre a teoria de Adler e a pedagogia social terapêutica soviética. Afinal,

A delimitação desses dois conjuntos de ideias reduz-se a que a teoria sobre os reflexos condicionados brinda a base científica para construir o próprio mecanismo do processo educativo, e a teoria sobre a supercompensação – para compreender o próprio processo de desenvolvimento da criança161. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.48).

Segundo análises realizadas por Vigotski e demais autores, frente à aprendizagem dos cegos ou dos surdos, do ponto de vista dos reflexos condicionados,

[...] não existe diferença essencial alguma entre a educação de uma criança vidente e uma criança cega, os novos vínculos condicionados começam a criar-se do mesmo modo com qualquer analisador, a influência das ações exteriores organizadas é a força determinante da educação162. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.50).

Não querendo dizer com isso que se elimina teoricamente toda a diferença entre a educação da criança cega, surda e “normal”, mas compreende-se que, do ângulo da pedagogia, a criança cega ou surda pode ser comparada à criança “normal”, pois ambas obtêm, mesmo que por modos e meios distintos, os conhecimentos necessários para se desenvolver.

No que se refere ao processo de supercompensação, Vigotski coloca que este está determinado por dois momentos distintos: no primeiro encontra-se “a gama, o grau de inadaptação da criança, o ângulo de divergência de sua conduta e das exigências sociais que se apresentam à sua educação”163 (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.53) e, no segundo momento, o fundo compensatório, a riqueza e diversidade de funções. Tais momentos se tornarão fundamentais se, como resultado de todas essas delimitações, obter-se a possibilidade de plena validez social e de sobrevalor para as crianças com deficiência. No entanto,

Crer que qualquer defeito será compensado inevitavelmente é tão ingênuo como pensar que qualquer doença termina inevitavelmente na recuperação. Antes de tudo necessitamos lucidez de critério e realismo na valorização; sabemos que as tarefas da supercompensação de tais defeitos como a cegueira e a surdez são enormes, enquanto que o caudal compensatório é pobre ou escasso; o caminho é extraordinariamente difícil, mas, por isso, é muito mais importante conhecer a direção correta164. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.53).

Para resumir tal discussão, Vigotski se detém ao exemplo da vida de Helen Keller que, segundo ele, apesar de muitas críticas científicas tentarem destruir a lenda sobre ela, seu destino esclarece muito bem as ideias desenvolvidas até o momento.

[...] suas graves deficiências colocaram em jogo as enormes forças da supercompensação. Mas isso não é tudo, já que seu fundo compensatório era pobre ao máximo. [...] isto implica que, de não ser essa excepcionalmente feliz coincidência de fatos que converteram seus defeitos em vantagens sociais, seria uma habitante pouco desenvolvida e imperceptível [...]. [...] Para ela, seu defeito foi socialmente proveitoso, não lhe criou um sentimento de inferioridade165. (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.54).

Mostra, assim, que o processo de supercompensação, ou conforme pontuamos anteriormente na teoria Adler, o sentimento de padecer de uma inferioridade orgânica, que age sobre o indivíduo como um estímulo contínuo em seu desenvolvimento psíquico, está inteiramente determinado pelas exigências sociais que se apresentam ao desenvolvimento e à educação e às forças intactas da psique. “Seu defeito não foi só um freio, mas também converteu-se em impulso e garantiu o desenvolvimento. É por isso que Adler tem razão quando aconselha considerar qualquer ato em sua vinculação com o projeto de vida única e com seu objetivo final”166 (VYGOTSKI, 1927/1983/1997, p.55).

Ao retomar a ideia de que não se pode supor que a compensação sempre termina em conquista, pois como em qualquer processo de superação e luta, há sempre desfechos extremos: vitória ou derrota, Vigotski (1929/1983/1997, p.16, grifos do autor) explica que,

[...] seja qual for o desenlace que o processo de compensação espere, sempre e em todas as circunstâncias o desenvolvimento agravado por um defeito constitui um processo (orgânico e psicológico) de criação e recriação da personalidade da criança, sobre a base da reorganização de todas as funções de adaptação, da formação de novos processos superestruturados, substitutivos, niveladores, que são gerados pelo defeito e da abertura de novos caminhos sinuosos para o desenvolvimento167.

Há, portanto, a possibilidade de um mundo de novas formas e vias para o desenvolvimento; há a possibilidade, com o desaparecimento de uma função, de nascer novas formações que representam em sua unidade a reação da personalidade ao defeito, a compensação no processo de desenvolvimento (VYGOTSKI, 1929/1983/1997). Por exemplo,

A criança cega ou surda pode conseguir, em seu desenvolvimento, o mesmo que uma criança normal; as crianças com defeitos também conseguem o mesmo, entretanto de modo diferente, por um caminho diferente, com outros meios [...]. A chave da peculiaridade é brindada pela lei de transformação do menos do defeito no mais da compensação168. (VYGOTSKI, 1929/1983/1997, p.17, grifos do autor).

Posto isso e apesar de concordar e afirmar a importância da compensação para o desenvolvimento das pessoas e/ou crianças com algum defeito, Vigotski levanta mais algumas considerações que, a seu ver, não podem ser deixadas de lado: primeiro, os processos de compensação não fluem livremente, se não estão orientados para determinado fim e, segundo, a questão do condicionamento social.

Cada função do aparelho neuropsíquico do cego possui particularidades, com frequência muito consideráveis em comparação com o vidente. Abandonado a sua própria sorte, esse processo biológico de formação e acumulação de particularidades e desvios do tipo normal (no caso da vida de um cego em um mundo de cegos) levaria inevitavelmente à criação de uma espécie particular de homens169. Entretanto, sob a pressão das exigências sociais, idênticas para cegos e videntes, o desenvolvimento dessas particularidades conforma-se de tal modo que a estrutura da personalidade do cego, em seu conjunto, tem a tendência a conseguir determinado tipo social normal170. (VYGOTSKI, 1929/1983/1997, pp.17-18).

Isto ocorre porque, segundo Vigotski, há fatores básicos implicados no condicionamento social do desenvolvimento da criança com deficiência: um primeiro fator indica que a própria ação do defeito resulta secundária, ou seja, a criança acometida pela deficiência não a sente diretamente, mas percebe as dificuldades que dela derivam; a consequência direta do defeito é o declínio da posição social da criança. Nas palavras do próprio autor, “as causas orgânicas inatas não atuam por si mesmas, conforme se destaca na escola de Adler, não diretamente, mas de forma indireta, através da redução e posição social da criança [...]”171 (VYGOTSKI, 1929/1983/1997, p.18).

Apenas para recordar, para Adler a inferioridade dos órgãos que conduz à compensação, cria uma particular posição psicológica, na qual qual o defeito influência o desenvolvimento da criança, gerando, assim, um processo entre defeito-sentimento de inferioridade-compensação. Todavia, Vigotski (1929/1983/1997) insiste na questão de que, apesar de serem inúmeros os exemplos em que o sentimento de inferioridade leva à valorização psicológica, não devemos nos esquecer que,

[...] o processo de desenvolvimento de uma criança deficiente está condicionado socialmente de forma dupla: a realização social do defeito (o sentimento de inferioridade) [...] [e] a orientação social da compensação em direção da adaptação às condições do meio, que foram criadas e que se formaram para um tipo humano normal172. (VYGOTSKI, 1929/1983/1997, p.19).

Encontra-se aqui uma dupla perspectiva do passado e do futuro dos estudos sobre o desenvolvimento agravado por um defeito. Já que, tanto o ponto inicial quanto o final estão socialmente condicionados, faz-se necessário compreender cada um dos momentos, ou seja, junto com o conceito de compensação introduz-se o conceito de orientação para o futuro, e cada processo, de forma única, transmite sua necessidade objetiva pautada e orientada por um ponto de chegada levantado, previamente, pelas exigências sociais. Vincula-se a esta questão o conceito de integridade e unidade da personalidade da criança em desenvolvimento, pois esta se desenvolve como um todo único, não como uma soma ou amontoado de funções separadas.

Vigotski esclarece, ainda, pautado na concepção de Stern, que

A criança com defeito não é inevitavelmente uma criança deficiente. O grau de seu defeito e sua normalidade dependem do resultado da compensação social, ou seja, da formação final de toda a sua personalidade. Por si só a cegueira, a surdez e outros defeitos parciais não convertem seu portador em defeituoso. A substituição e a compensação de funções não só se produzem, não só alcançam em ocasiões enorme envergadura criando talentos a partir do defeito, mas também, inevitavelmente, como lei, surgem em forma de aspirações e tendências ali onde há um defeito173. (VYGOTSKI, 1929/1983/1997, p.20, grifos do autor).

Isso nos permite ver que a questão da compensação e do condicionamento social incluem todos os problemas da organização da coletividade da criança, do movimento infantil, da educação político-social, da formação da personalidade, entre outros (VYGOTSKI, 1927/1983/1997), chegando à conclusão de que, não se deve levar em conta somente a característica negativa ou os aspectos desfavoráveis, mas também o retrato positivo da personalidade que apresenta todo o quadro dos complexos caminhos de desvio do desenvolvimento.

A esse respeito Luria (in: VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996, p.221) afirma que,

[...] o cego e o surdo não poderiam viver se não compensassem suas deficiências com alguma coisa. Seu defeito físico impede-o de adaptar-se bem. [...] No correr da experiência, a criança aprende a compensar suas deficiências naturais; com base no comportamento natural defeituoso, técnicas e habilidades culturais passam a existir, dissimulando e compensando o defeito. O comportamento cultural compensatório sobrepõe-se ao comportamento natural defeituoso.

Em suas palavras, não se pode olhar o defeito como algo estático e permanente, pois ele coloca em ação um

[...] grande número de dispositivos que não só podem enfraquecer o impacto do defeito, como por vezes até mesmo compensá-lo (e até supercompensá-lo). Um defeito pode funcionar como poderoso estímulo no sentido da reorganização cultural da personalidade e o psicólogo só precisa saber como descobrir as possibilidades de compensação e como fazer uso delas. (LURIA in: VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996, p.226).

Afinal, se pensarmos no mecanismo básico da compensação e da supercompensação, “o defeito torna-se o centro da preocupação do indivíduo e sobre ele se constrói uma certa ‘superestrutura psicológica’, que busca compensar a insuficiência natural com persistência, exercício e, sobretudo, com certo uso cultural” (VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996, p.226).

Especificamente em relação à cegueira, Vigotski afirma que,

[...] ao criar uma nova e peculiar configuração da personalidade, origina novas forças, modifica as direções normais das funções, reestrutura de forma criativa e organicamente a psique do homem. Por conseguinte, a cegueira não é só um defeito, uma deficiência, uma debilidade, mas também, em certo sentido, uma fonte de revelação de aptidões, uma vantagem, uma força (por mais estranho e paradoxal que isso soe)174. (VYGOTSKI, s.d/1983/1997, p.99).

Ou, ainda, como descreve Luria (in: VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996), se há um fenômeno que nos faz avançar sobre a compreensão do processo de compensação, esse fenômeno é a psicologia do cego; pois, ao estudar a vida dos cegos e as crenças de um “sexto sentido” excelentemente afinado, verificou-se que nem o sentido da audição, nem o do tato, nem qualquer outro órgão dos sentidos representam qualquer excepcionalidade no cego, apesar de ser fato que a pessoa cega com relação a esses sentidos possui resultados significativamente melhores que um vidente.

Afinal, como recorda Vigotski e pudemos observar ao longo da história da cegueira, a compensação e a existência de um suposto “sexto sentido” nos cegos foi interpretada de várias maneiras:

Foram criadas lendas sobre a agudeza subnormal do tato nos cegos; falava-se da sabedoria e da bondosa natureza que, com uma mão tira e com a outra devolve o que foi tirado e preocupa-se com suas criaturas; acreditavam que qualquer cego, graças somente ao fato de sê-lo, era um músico, ou seja, uma pessoa dotada de um ouvido aguçado e excepcional; descobriram nos cegos um novo sentido, especial, o sexto sentido, inalcançável para os videntes175. (VYGOTSKI, s.d/1983/1997, p.101).

No entanto, de acordo como o teórico, tais suposições revelaram-se inconsistentes teoricamente. Afinal, provaram que não há nos cegos um desenvolvimento acentuado das funções do tato e da audição ou de outros órgãos dos sentidos; pelo contrário, essas funções somente se desenvolvem em decorrência da situação ocasionada pela ausência da visão.

A explicação de Luria e demais estudiosos para esse fenômeno deriva da seguinte afirmação: “embora uma pessoa cega possua órgãos sensoriais idênticos aos das videntes, desenvolve para si mesma uma capacidade de utilizar esses órgãos de um modo que ultrapassa de longe essa capacidade nos videntes” (VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996, p.223). Luria complementa ainda tal afirmação dizendo que,

As sensações auditivas e tácteis que, numa pessoa vidente, permanecem adormecidas, sob o domínio de sua visão, são mobilizadas pelo cego e utilizadas com um grau incomum de plenitude e sensibilidade. A atividade auditiva e táctil surpreendentemente desenvolvida do cego não resulta de uma acuidade fisiológica, inata ou adquirida, desses receptores, mas é produto ‘da cultura dos cegos’, resultado de uma capacidade de utilizar culturalmente os demais órgãos dos sentidos [...]. (VYGOTSKI e LURIA, 1930/1996, p.223).

Lowenfeld (1981, pp.73), a esse respeito, traz uma descrição bem precisa de como se dá o aprendizado das pessoas cegas com o auxilio dos demais sentidos:

Sua audição está constantemente ativa observando todos os tipos de sons, incluindo ecos; ele interpreta odores que vêm de vários locais de origem; ele nota mudanças de temperatura e correntes de ar; seus pés sentem a qualidade do chão [...]176.

Outra suposta crença sobre as habilidades das pessoas cegas, de acordo com Vigotski (s.d/1983/1997), encontra-se no desenvolvimento elevado de sua memória. No entanto, segundo ele, o desenvolvimento ou não da prática acentuada da memória depende de várias circunstâncias que podem ser explicadas à luz da teoria da compensação; afinal, com o intuito de conquistar uma posição na vida social, a pessoa cega se vê obrigada a desenvolver todas as suas funções compensatórias.

A esse respeito, segundo Vigotski, existem dados diferentes e contraditórios, pois alguns autores veem no cego uma atividade acentuada da memória e outros, sobretudo os professores de cegos, afirmam que a atenção desses é menos desenvolvida que nos videntes. No entanto, segundo Vigotski, não é correto estabelecer o problema do desenvolvimento comparativo das funções psíquicas dos cegos e dos videntes como um problema quantitativo, pois o que realmente importa é a análise das particularidades qualitativas. Em suas palavras,

A peculiaridade da atenção do cego consiste na especial força de concentração das excitações do ouvido e do tato que entram sucessivamente no campo da consciência, diferentemente das sensações visuais que entram simultaneamente, de golpe, no campo visual, e que provocam uma rápida substituição e dispersão da atenção por causa da concorrência de muitos estímulos simultâneos177. (VYGOTSKI, s.d/1983/1997, pp.105- 106).

Desfeita essa crença, Vigotski (s.d./1983/1997) aponta para um outro fator de suma importância na vida da pessoa cega: a fonte da compensação não é somente o desenvolvimento do tato ou a sutileza da audição, mas também a utilização da linguagem; afinal, esta é um produto social que permite a progressão do pensamento conceitual. Querendo com isso demonstrar que a compensação além da diferenciação do tato e a sutileza da audição necessita do uso da linguagem para compreender conceitos que, a princípio, podem se parecer abstratos aos cegos, mas que farão sentido em seu discurso. Para exemplificar, vejamos a descrição de F. Hischtmann, citada por Vigotski (s.d/1983/1997, p.109).: “O vermelho para o cego – disse – tem a mesma relação significativa para o vidente, mesmo que isto possa ser para ele [o cego] somente um objeto de significado e não de percepção”. Ou como descreve Lowenfeld (1981, p.71),

[...] a percepção da cor é unicamente uma função visual, a qual não pode ser realizada por nenhum outro órgão. [...] No entanto, eles [os cegos] adquirem ideias substitutivas de cores, pois vivem em um mundo que enxerga, que faz uso constante de observações e referências sobre as cores. Essas ideias são baseadas em associações verbais, sensoriais e emocionais. A cor vermelha, por exemplo, pode ser determinada para uma criança pela sensação agradável e associações emocionais dessa cor com um vestido no qual ela foi admirada por seus amigos que possuem visão e, no qual ela teve a experiência agradável [...].

O autor deixa claro, também, que tais ideias substitutivas não ficam apenas no campo da imaginação da pessoa cega, mas servem como parte do vocabulário necessário para se comunicar com o social que está repleto de pessoas videntes.

As discussões e suposições feitas até o momento – da história da cegueira, passando pelo sentimento de inferioridade até chegar à compensação ou supercompensação dos órgãos ou das questões psíquicas –, principalmente as que se referem ao sentido da visão, nos levam a concluir que a cegueira não é em absoluto uma desgraça, como muitos proclamavam ao longo da história, especialmente quando nos referimos ao desenvolvimento dos demais órgãos dos sentidos para seu desenvolvimento. Contudo, assim como Vigotski descreve em seus estudos, a compensação que primeiramente é biológica, deve ser substituída pela compensação social; afinal, devemos ter em mente que a cegueira

[...] somente priva [o cego] de um ‘puro estímulo físico’, não fecha hermeticamente as janelas do mundo, não priva da ‘realidade completa’. Somente compele à interpretação social destes estímulos físicos a transladar-se a outros estímulos e a vínculos com estes. O importante é [, por exemplo,] aprender a ler e não simplesmente ver as letras. O importante é reconhecer as pessoas e compreender seu estado, e não olhá-las nos olhos 179. (VYGOTSKI, 1972/1983/1997, p.83, grifos do autor).

Nisto consiste o “salto vital”, segundo Vigotski (1972/1983/1997, p.84), para a compreensão da psicologia e da pedagogia da cegueira: uma educação político- social que retire o cego do âmbito estreito que lhe confina sua deficiência para a educação compartilhada entre cegos e videntes, na qual o cego possa, portanto, adquirir “seu microscópio e seu telescópio, que ampliam incomensuravelmente sua experiência e o inserem estreitamente na trama comum do mundo”.

FIM

ϟ


excerto de
COMPENSAÇÃO E CEGUEIRA: um estudo historiográfico
autora: DANIELA LEAL
Tese de doutoramento apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Educação: Psicologia da Educação
2013
fonte do texto integra: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/16078/1/Daniela Leal.pdf

Δ

9.Fev.2022
publicado por MJA