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 Sobre a Deficiência Visual

Avaliação do Desenvolvimento de Crianças com Baixa Visão – adaptação preliminar do Inventário Portage Operacionalizado1

Cassiana Saraiva Quintão, Ana Lúcia Aiello & M.ª Stella Alcântara Gil 2 3 4

Menina com baixa visão lê com lupa de mão.

RESUMO A adaptação de instrumentos para avaliação do desenvolvimento de crianças com deficiência visual é imprescindível para garantir a qualidade e a confiabilidade no levantamento das habilidades e competências dessas crianças. Em relação a baixa visão, é preciso atentar para os diferentes graus de comprometimento visual a fim de propor alternativas viáveis de adaptação e aplicação. O Inventário Portage Operacionalizado (IPO) adaptado para o Brasil é composto por 580 itens e avalia o desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos e foi organizado em seis áreas: Estimulação Infantil; Socialização; Cognição; Linguagem; Autocuidados e Desenvolvimento Motor. Diante deste contexto, neste trabalho, o objetivo foi apresentar o procedimento inicial de adaptação do IPO especialmente para os componentes Material e Condição que compõem cada item do instrumento. A adaptação do IPO analisou os componentes: material, condição, critérios e resposta. Uma comissão de três especialistas examinou todos os itens e propôs mudanças em 248 itens para aplicação em crianças com baixa visão. As adaptações destinaram-se a acrescentar materiais com alto contraste e cores vivas, brinquedos que produzam som e livros com figuras adaptadas. As instruções gerais foram amplamente reformuladas para oferecer orientações específicas de aplicação. As instruções foram refeitas para incluir a descrição das condições do ambiente, localização e distância dos objetos e observação do comportamento visual da criança com baixa visão. As modificações constituem-se na etapa inicial da adaptação IPO visando oferecer um instrumento para avaliação do desenvolvimento dessa população.
 

1. Introdução

Uma pessoa com baixa visão apresenta algum resquício visual, mas tem dificuldade para realizar tarefas visuais mesmo com lentes corretivas prescritas, de acordo com Corn e Lusk (2010). A habilidade de realizar tais tarefas pode ser incrementada com o uso de estratégias visuais compensatórias, dispositivos para visão ou com modificações no ambiente. As autoras ainda afirmam que, dentre os recursos que podem ser utilizados para melhorar as capacidades visuais, estão os auxílios ópticos como lentes de ampliação, lentes filtrantes de luz e lupas e os não ópticos, como por exemplo, folhas com pautas grossas e ampliadas, objetos brilhantes com alto contraste ou com cores vivas e guia de escrita (CORN; LUSK, 2010).

Quando se trata de crianças, merece destaque a compreensão sobre o impacto significativo que o comprometimento do desenvolvimento estrutural e funcional da visão, seja ele ocular ou cortical, está na maneira de como a criança com deficiência visual se relaciona com o mundo. As suas interações com objetos ou pessoas e a capacidade de perceber o que acontece ao seu redor tem características específicas. Isto porque ela tem recursos próprios para o acesso ao ambiente e é exposta a muitas informações importantes para o desenvolvimento (COBO; RODRIGUEZ; BUENO, 2003).

O potencial de desenvolvimento da criança com deficiência visual, portanto, está estreitamente relacionado às oportunidades que lhe são oferecidas, precocemente, de participar das práticas da cultura e do grupo social do qual é parte. Contudo, é imprescindível contar com programas de intervenção que lhe proporcionem as habilidades e competências necessárias (MASINI, 1995).

Identificar quais habilidades e competências fazem parte do repertório da criança e quais delas devem ser promovidas é condição para implementar uma intervenção bem-sucedida.Ora, identificar aquisições e lacunas no desenvolvimento da criança, com baixa visão ou cegueira, requer a observação acurada das suas possibilidades e, mais do que isso, necessita de instrumentos apropriados para propor as tarefas adequadas à condição da deficiência visual. Os instrumentos de avaliação do desenvolvimento parecem atender a essa necessidade. Entretanto, há entraves e desafios no acesso a instrumentos especialmente destinados a essa população (OLIVEIRA; NUNES, 2015).

Alguns aspectos importantes do acesso a instrumentos de avaliação do desenvolvimento para as pessoas com deficiência são indicados por Masini (1995). Segundo a autora, é essencial oferecer igualdade de oportunidades e garantir a qualidade e confiabilidade dos instrumentos empregados no exame e avaliação dessa população. É imprescindível que os instrumentos adotados respeitem a especificidade das pessoas com deficiência, entre elas, as crianças com deficiência visual. O rigor na qualidade e na utilização de estratégias para atender as necessidades de crianças com baixa visão, por exemplo, permite ressaltar as reais potencialidades e limitações do desempenho delas visando auxiliar o profissional, pais e educadores, em geral, na tomada de decisão em relação aos possíveis programas de intervenção (MASINI, 1995).

No Brasil, entretanto, os instrumentos utilizados por psicólogos são comumente adotados em formatos tradicionais. Os materiais e condições de aplicação são padronizadas para pessoas sem deficiência e empregam lápis e papel, pranchas, ilustrações em papel ou placas de papel cartão ou madeira, sem contraste e cores vivas. O recurso a esse tipo de material é considerado uma tecnologia reduzida ou ultrapassada. Essas características dos instrumentos, tanto quanto o modo de realizar as avaliações, dificultam o seu emprego para pessoas com deficiência visual, pois a acessibilidade não é contemplada (OLIVEIRA; NUNES, 2015).

Há pouco mais de uma década, as pesquisas em Avaliação Psicológica no Brasil e as orientações do Conselho Federal de Psicologia (CFP), indicam novos direcionamentos para a avaliação das populações específicas. A orientação atual propõe novos formatos e diretrizes para a construção e a adaptação de instrumentos destinados às pessoas com deficiência. No caso da avaliação do desenvolvimento infantil, o reconhecimento da importância de atender às crianças em geral é contemplada nos documentos, que apresentam dados e uma nota técnica que chama a atenção para a escassez de instrumentos traduzidos, construídos ou adaptados para aquela finalidade. A carência de instrumentos apropriados, bem formulados e rigorosos, acentua-se ainda mais quando se trata de crianças com deficiência. O alerta sobre a necessidade de formular instrumentos apropriados enfatiza a importância de pesquisas especificamente destinadas às crianças com deficiência (OLIVEIRA; NUNES, 2015; CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).

De modo geral, o desafio para os pesquisadores que trabalham com a construção e adaptação de instrumentos psicológicos está em ultrapassar as barreiras impostas pela apresentação de poucos materiais acessíveis e pela adequação das instruções ou das condições de aplicação. Oliveira e Numes (2015) afirmam que um requisito para construir ou adaptar instrumentos acessíveis a pessoas com deficiência é o de pensar condições apropriadas para avaliação específica em função da deficiência considerada.

A construção e utilização dos instrumentos destinados às pessoas com baixa visão implica reconhecer e satisfazer a especificidade desta condição ao formular ou adaptar um instrumento para atender a diferentes graus de comprometimento visual. Geralmente, a diversidade de acesso visual entre as pessoas com baixa visão tolhe a elaboração de instrumentos psicológicos no formato tradicional (OLIVEIRA; NUNES, 2015). O mesmo entrave atinge as crianças e, portanto, o requisito de respeitar as peculiaridades do acesso visual é igualmente relevante para aquelas com baixa visão. Produzir ou adaptar instrumentos apropriados para esta população exige reconhecer e considerar as particularidades do desenvolvimento das crianças com baixa visão.

Adicionalmente, parece oportuno levar em conta o número considerável de pessoas com baixa visão no país. Uma consulta ao último Censo realizado no Brasil em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicou a existência de mais de 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual. Dessas, 6.056.654 declararam que tinham baixa visão ou visão subnormal e 528.624 disseram que eram incapazes de enxergar (cegos). Mesmo sem dispor de informações exatas ou de estimativas sobre o número de crianças com baixa visão, na faixa etária dos 0 aos 6 anos, os dados do Censo são expressivos e fundamentam o investimento na adaptação de um instrumento para avaliar o desenvolvimento desse público.

A ausência de instrumentos de qualidade, elaborados ou adaptados para atender às crianças com baixa visão, e o requisito de contar com uma ferramenta capaz de atender ao máximo as especificidades impostas pela deficiência, foram decisivos para se empreender o longo e exigente processo de adaptação do Inventário Portage Operacionalizado (IPO) para esta população específica. A médio prazo, a expectativa é a de oferecer o Inventário Portage Operacionalizado-Baixa Visão (PIO-BV) aos profissionais e pais interessados. De imediato, uma primeira etapa da adaptação foi concluída e aqui descrita.


2. O Inventário Portage Operacionalizado (IPO)

O IPO compreende a avaliação de crianças de 0 a 6 anos de idade e é composto por 580 itens, organizados em seis áreas do desenvolvimento: Estimulação Infantil, específico para a faixa etária de 0 a quatro meses de idade (45 itens); Desenvolvimento Motor (140 itens); Autocuidados (105 itens); Cognição (108 itens); Socialização (83 itens); Linguagem (99 itens) (WILLIAMS; AIELLO, 2018).

Cada um dos itens de avaliação, em cada área, informa o aplicador sobre componentes que constituem o item. De modo geral, os componentes dos itens informam sobre o material a ser empregado; as condições que o adulto deverá oferecer para a criança realizar a tarefa; as respostas esperadas das crianças e os critérios estabelecidos para considerar a tarefa cumprida ou não. São, portanto, quatro classes de informação que podem estar especificadas independentemente umas das outras ou podem estar implícitas no título da tarefa ou em outro aspecto da descrição do item. Em síntese, a apresentação de um item é organizada, pelos componentes, na seguinte ordem: material, condição, resposta e critério (WILLIAMS; AIELLO, 2018).

Williams e Aiello (2001) produziram a adaptação transcultural do instrumento para as crianças brasileiras. Além disso, as autoras propuseram a operacionalização de cada um dos comportamentos originalmente previstos no Guia Portage. A operacionalização consistiu em: estabelecer critérios para verificar se as respostas atendiam ao item; explicitar as condições de avaliação; descrever o material a ser utilizado e especificar a(s) resposta(s) que a criança deveria apresentar.

De acordo com as autoras, um dos pontos fortes do Inventário é o de informar o repertório da criança, além de propor parâmetros para estabelecer a relação entre o desempenho esperado e o desempenho observado com o uso do instrumento. Uma outra vantagem do instrumento é a possibilidade de reaplicação por profissionais de diversas áreas e por leigos treinados, por diversas vezes, sem perder o valor de realizar o levantamento do desenvolvimento.

As qualidades do instrumento vêm contribuindo para dar o suporte ao planejamento e à realização de intervenção precoce com crianças pequenas, principalmente com deficiência ou atraso no desenvolvimento (WILLIAMS; AIELLO, 2018).

Em uma revisão sistemática dos artigos sobre o uso do IPO, publicados nos últimos 14 anos, foram recuperados 42 estudos. Cada um deles foi analisado em relação ao objetivo, procedimento, delineamento, resultados e limitações do emprego do instrumento. O IPO foi utilizado em diferentes contextos, (residência, clínicas, escolas, instituições ou centros universitários) e em diversas regiões do país e foi aplicado em cerca de 1000 crianças, com 19 síndromes diferentes. Mostrou-se útil, principalmente, em caracterizar o repertório comportamental, avaliar e acompanhar o desenvolvimento de crianças com idade de até 6 anos, na realidade brasileira. As pesquisas apresentaram resultados satisfatórios na utilização do instrumento (AIELLO; WILLIAMS, 2021).

Algumas adaptações assistemáticas do IPO para crianças cegas e com baixa visão foram realizadas por França-Freitas e Gil (2012; 2019) e Canosa (2013) no contexto do levantamento de repertório dos participantes das pesquisas. Estas adaptações ativeram-se a faixas etárias específicas ou a uma ou outra área de avaliação, sem oferecer uma proposta de adaptação do instrumento na íntegra, para que atendesse à especificidade da população. As tentativas de adaptação, mesmo que incipientes e incompletas, indicaram a possibilidade de investir em um trabalho sistematizado, que atendesse às regras e orientações para a adaptação de instrumentos de avaliação destinados às crianças com baixa visão.

Diante das informações da leitura científica na área de Avaliação Psicológica no país e das características e qualidades presentes no IPO (WILLIAMS; AIELLO, 2001) passou-se a investir no planejamento e realização das tarefas de adaptação do IPO para crianças brasileiras com baixa visão. Neste trabalho, o objetivo foi apresentar o procedimento inicial de adaptação do Inventário Portage Operacionalizado (IPO) especialmente para os componentes Material e Condição que compõem cada item do instrumento.


3. Método

3.1. Participantes

Três profissionais do gênero feminino, com formação em Psicologia, participaram da proposta de adaptação do Inventário. Todas tinham expertise em um domínio específico: baixa visão, desenvolvimento infantil e adaptação do Inventário Portage Operacionalizado (IPO) para o Brasil e compuseram uma Comissão de Especialistas. A expert na adaptação do Inventário era uma das autoras da operacionalização do instrumento para a população brasileira (WILLIAMS; AIELLO, 2001; 2018). A expert em baixa visão era, ela mesma, uma pessoa com baixa visão congênita.

3.2. Procedimento

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Carlos com o parecer de número CAAE 03494218.9.0000.5504, conforme a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

Quatro tipos de atividade, com seus respectivos produtos, foram desenvolvidos pela Comissão de Especialistas em uma sequência de tarefas destinadas à adaptação do instrumento.

Inicialmente, cada especialista recebeu um exemplar do Inventário Portage Operacionalizado (IPO) (WILLIAMS; AIELLO, 2018 5). Individualmente, e de forma independente, cada uma das especialistas examinou item a item todas de as faixas etárias, observando o conjunto de áreas previsto no IPO (estimulação infantil, linguagem, autocuidados, desenvolvimento motor e socialização). Neste exame, as especialistas identificaram os itens que julgavam necessitarem de modificações para serem adotados junto às crianças com baixa visão, considerando a descrição dos componentes dos itens analisados, tal como foram formulados na operacionalização do IPO: condição; material, definição da resposta e critério.

Em seguida ao trabalho independente das especialistas da Comissão, diversas reuniões foram realizadas para cotejar o julgamento de cada uma delas a fim de estabelecerem, consensualmente, as alterações que deveriam ser realizadas. Após a obtenção do consenso da Comissão sobre a necessidade de alteração dos itens, aqueles que seriam submetidos à adaptação foram selecionados. Todos os itens que requeriam adaptação foram reescritos, considerando-se a necessidade de reformular, acrescentar, ou substituir informações na formulação dos itens originais.

Cada componente foi considerado, revisto e reescrito para atender às necessidades da aplicação à população de crianças com baixa visão: material; condição; resposta e critério.

Em uma atividade subsequente, as especialistas dispunham de uma relação de todos os itens adaptados para as faixas etárias em cada área. De posse da relação, a Comissão analisou a redação e composição dos itens modificados. Este trabalho resultou na síntese das alterações apresentada em uma tabela. Na tabela estavam apresentadas a quantidade bruta e a porcentagem dos itens modificados por área e para o total dos itens. A par da compilação numérica dos itens adaptados, a modificação de cada item selecionado foi registrada em seis protocolos. Cada um deles reunia os itens do instrumento reelaborados, um para cada área do IPO original (WILLIAMS; AIELLO, 2018) e do IPO adaptado.

Por fim, foram elaboradas a Instrução Geral e as Instruções Específicas. O trabalho de modificação dos itens favoreceu a decisão de produzir um conjunto de orientações para os aplicadores nomeada de “Instrução Geral” para compor o manual do IPO-BV. O objetivo foi auxiliar o usuário aplicador do IPO-BV quanto à especificidade das condições de acesso às informações pelas crianças com baixa visão, antes de utilizar o instrumento.

As instruções gerais teriam a finalidade de permitir aos aplicadores identificarem as informações específicas sobre: do que trata e qual a finalidade do IPO; definições imprescindíveis à compreensão do instrumento; classificações e considerações para aplicação do IPO-BV; questões sobre o desenvolvimento das crianças com baixa visão; a diversidade de baixa visão e as possibilidades de acesso visual em crianças com diferentes condições de baixa visão e os principais aspectos da percepção visual das crianças com baixa visão (preferência do campo visual; sensibilidade aos contrastes; preferência por iluminação e avaliação da visão funcional).

No Inventário, os itens que fazem parte de cada área são precedidos por um conjunto de observações e instruções específicas da área. Na adaptação do IPO para as crianças com baixa visão, “Instruções Específicas” foram acrescentadas aquelas que já constavam do início da apresentação dos itens de cada área. Visou-se facilitar a identificação do comportamento visual da criança, a área do campo visual de preferência e a distância em que melhor localiza e fixa objetos para favorecer a discriminação visual.

Uma vantagem adicional das “Instruções Específicas”, por área, inseridas imediatamente antes da apresentação dos itens de avaliação, foi oferecer para o aplicador o acesso às instruções na avaliação de cada área. Com esta organização, o aplicador poderia considerar a área de interesse sem buscar informações na “Instrução geral” que, se espera, façam parte inicial do manual de aplicação e avaliação.

Vale enfatizar que a Comissão de Especialistas trabalhou em todos os “componentes” dos itens, (material, condições, resposta e critério) ao longo da avaliação dos itens que necessitariam de adaptação. Neste trabalho, optou-se por destacar as modificações relacionados aos componentes material e condição e a elaboração das Instruções Gerais e Específicas na adaptação do Inventário Portage Operacionalizado (IPO) para crianças com baixa visão. O exame de todo o material indicava que tais componentes foram frequentemente modificados para atender às necessidades da população específica.

É essencial destacar a relevância da apresentação das adaptações para os componentes Material e Condição neste trabalho. O destaque dado a esses componentes deve-se às peculiaridades das adaptações necessárias para a população em questão. O componente Material informa quais são os recursos mínimos necessários, que o aplicador deve reunir antes de iniciar a avaliação do item. O componente Condição descreve a organização do ambiente físico e social que o adulto deve proporcionar para a produção da resposta pela criança na execução do item.

Não só as alterações propostas para Material e Condição foram relevantes para atender as peculiaridades do acesso ao ambiente pelas crianças com baixa visão, como também, foram criados esses mesmos componentes para itens que não os previam. Nos itens que apresentam notas ou observações, não houve alteração e as informações foram mantidas.

De posse da nova descrição dos itens, as especialistas verificaram o grau de concordância entre elas a respeito dos itens que deveriam ser adaptados. O índice de concordância entre as especialistas, para cada área, deveria alcançar, no mínimo, 90% “empregando-se a equação: acordo/ acordo + desacordo x 100” (WILLIAMS; AIELLO, 2018, p. 199). As concordâncias e discordâncias foram examinadas para cada item. Durante a análise de concordância havia quatro possibilidades de avaliação:

1. Acordo sobre a dispensa de alteração e, portanto, a manutenção do item tal como especificado no IPO original (WILLIAMS; AIELLO, 2018). Essa situação foi registrada como exemplo de concordância entre as especialistas;

2. Acordo sobre a necessidade de modificação do item, em qualquer um de seus componentes (material, condição e/ou critério e quando necessário em relação a resposta) e inclusive, na descrição do próprio item, portanto.

3. Quando uma ou duas especialistas discordassem sobre a necessidade de modificação de um determinado item, considerando qualquer dos componentes ou descrição, neste caso, a necessidade de modificação era discutida pelas profissionais. Persistindo a dúvida, eram consultadas as fichas de atividades de intervenção precoce que faziam parte do Guia Portage de Educación Preescolar: Manual de Bluma, Shearer, Frohman e Hilliard (1978). Depois da consulta ao guia, se todas as especialistas concordassem com a modificação do item, este era registrado como consenso para a modificação e acrescentado em uma lista de itens a serem modificados nas respectivas áreas.

4. A discordância sobre a necessidade de modificação do item implicava a retirada da lista dos itens selecionados para adaptação.


4. Resultados

Apresenta-se, de início, uma visão geral da adaptação proposta pela Comissão de Especialistas para a íntegra do Instrumento. A proposta do IPO adaptado da Comissão de Especialista foi constituída por 248 itens modificados (43,10%) e por 332 itens que permaneceram os mesmos da versão original do instrumento.

A Comissão indicou alterações (ALT) e ou acréscimos (ACR) em todos os componentes dos itens modificados (material, condição, critério e resposta) e mudou a descrição em alguns. Essas modificações não interferiram no tipo de tarefa e nem na finalidade do item conforme o instrumento original.

A área com menor número de itens modificados foi a de Autocuidados (15,23%) e com maior número de itens foi a de Cognição, (67,6%) e houve diferença no número de itens modificados em cada área contemplada no IPO original.

Na Tabela 1 foram apresentados um exemplo do item do IPO Original e da proposta do IPO Adaptado para crianças com baixa visão por área.
 

Tabela 1. Exemplos dos itens do IPO Original e da proposta do IPO Adaptado para crianças com baixa visão

Área de Estimulação Infantil

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

29 - Golpeia objetos com as mãos.

Material: Objetos pequenos, atraentes, móveis e de forma irregular ou balão de gás.

Resposta: Tocar, empurrar ou bater em objetos amarrados em um fio, próximos do rosto da criança cerca de 10 a 20 cm.

Material: Objetos pequenos, atraentes, móveis e de forma irregular ou balão de gás. Importante que os objetos tenham alto contraste.
Condição: O adulto leva as mãos da criança aos objetos de modo a ajudar a localizá-los. Afastar as mãos das crianças e pedir que ela bata nos objetos.
Resposta: Tocar, empurrar ou bater em objetos amarrados em um fio, conforme campo visual da criança. (Instrução geral)

Área de Socialização

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

8 - Acaricia ou toca no rosto de adultos (puxa cabelo, nariz, óculos etc).

Condição: O rosto do adulto deve estar próximo da criança de 20 a 25 cm.

Resposta: Acariciar = bater, dar tapinhas ou tocar no rosto do adulto, ou ainda puxar seu cabelo ou óculos.

Material: Lanterna ou lâmpada (Se necessário acrescentar um foco de luz em direção ao rosto do adulto para melhor a visualização da criança).
Condição: O rosto do adulto deve estar no campo visual da criança. Deixar a criança se aproximar mais do rosto do adulto conforme acuidade visual.
Resposta: Acariciar = bater, dar tapinhas ou tocar no rosto do adulto, ou ainda puxar seu cabelo ou óculos.

Área de Cognição

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

34 - Emparelha três cores.

Resposta: Cada tentativa diz respeito a colocar próximo dois objetos da mesma cor, sendo que pelo menos três cores primárias diferentes devem ser utilizadas.

Material: Círculos ou brinquedos vermelhos, amarelos e azuis.

Material: Círculos ou brinquedos grandes com alto contraste ou com cores vivas. Exemplo: vermelhos, amarelos e azuis.
Condição: Apresentar os objetos no campo visual da criança. Se necessário deixar a criança se aproximar ou pegar para explorá-lo.
Resposta: Cada tentativa diz respeito a colocar próximo dois objetos da mesma cor, sendo que pelo menos três cores primárias diferentes devem ser utilizadas.

Área de Linguagem

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

78 - Consegue identificar absurdos em figuras.

Resposta: Dada uma figura contendo uma situação “absurda” ou impossível e à pergunta: “O que tem de “errado” nesta figura? Responder adequadamente, apontando ou verbalizando sobre a situação absurda.

Material: Figuras com alto contraste ou com cores vivas.
Condição: Apresentar as figuras no campo visual da criança. Se necessário poderá ampliá-las ou deixar que a criança se aproxime, antes de dar as ordens.
Resposta: Dada uma figura contendo uma situação “absurda” ou impossível e à pergunta: “O que tem de “errado” nesta figura? Responder adequadamente, apontando ou verbalizando sobre a situação absurda.

Área de Autocuidados

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

3 - Estende as mãos em direção à mamadeira, tentando pegá-la.

Resposta: Estender as mãos em direção a uma mamadeira distante cerca de 20 cm da criança.

Material: Tecido colorido com alto contrate para encapar a mamadeira
Condição: Adulto põe a mamadeira com a capa colorida no campo visual da criança, se necessário permitir que a criança se aproxime e movimente a cabeça, ou tronco para favorecer a visualização.
Resposta: Estender as mãos em direção a uma mamadeira distante cerca de 02 a 20 cm da criança.

Área de desenvolvimento Motor

 Itens

IPO Original

IPO Adaptado

38 - Derruba um objeto que está dentro de um recipiente.

Material: objeto pequeno tal como um cubinho ou bala.

Recipiente: xícara inquebrável.

Material: Objeto pequeno com alto contraste ou com cores vivas, tal como um cubinho ou bala.
Recipiente: Xícara inquebrável, com alto contraste ou com cores vivas.
Condição: Colocar o recipiente e objeto no campo visual dela. Se necessário deixar a criança aproximar-se antes de derrubar.

   
Fonte: Autoria própria.

 

A maior parte das modificações realizadas pela Comissão de Especialistas foi para os componentes Condição (242), sendo 170 acréscimos (ACR) e 71 alterações (ALT) seguidos do componente Material (201), com 113 acréscimos (ACR) e 88 alterações (ALT). Um exemplo de acréscimo (ACR) do componente Material está no item 29 da área de Estimulação infantil, descrito na tabela 1 (Ver tabela 1) e um exemplo de acréscimo no componente Condição está no item 8 da área de Socialização, também descrito na tabela 1 (Ver tabela 1).

Em relação as modificações por faixa etária, a que apresentou menor número de acréscimos e alterações foi as de 4 a 5 anos, nas áreas de Socialização e Autocuidados, com zero acréscimos (ACR) e zero alterações (ALT). A faixa etária de 5 a 6 anos, também na área Autocuidados, tive zero acréscimos (ACR) e zero alterações (ALT). O maior número de acréscimos (ACR) foi na faixa etária de 2 a 3 anos na área de Linguagem (21) e o maior número de alterações foi na faixa etária de 3 a 4 anos na área de Cognição (22). (Ver tabela 2)
 

Tabela 2. Síntese da modificação dos itens por acréscimos (ACR) ou alteração (ALT) para a área, faixa etária nos componentes Material e Condição

   

Componentes

Áreas

 Faixa Etária

Material

Condição

   

ACR

ALT

ACR

ALT

Estimulação Infantil

0-4 meses

2

9

2

16

Socialização

0-1
1-2
2-3
3-4
4-5
5-6

5
1
1
2
-
-

2
1
-
-
-
-

3
-
-
2
-
-

13
5
2
1
-
-

Cognição

0-1
1-2
2-3
3-4
4-5
5-6

3
-
4
8
2
5

5
4
7
8
9
11

3
-
2
2
2
6

7
6
9
14
9
10

Linguagem

 

0-1
1-2
2-3
3-4
4-5
5-6


5
16
 4
 4
 3

-
3
1
2
3
-

3
8
5
-
2
-

1
3
13
5
5
4

Autocuidados

0-1
1-2
2-3
3-4
4-5
5-6

2
-
4
1
-
1

-
-
-
1
-
-

2
1
4
-
-
1

1
1
4
2
-
-

Desenvolvimento motor

0-1
1-2
2-3
3-4
4-5
5-6

13
6
4
3
5
8

7
3
4
3
2
3

7
2
2
2
5
6

14
7
6
5
2
5

Total Geral

 

 113

88

72

170

Fonte: Adaptação da tabela de (QUINTÃO, 2020)

 

5. Discussão

A adaptação do IPO para crianças com baixa visão tem um alto potencial para auxiliar os profissionais (psicólogos, professores, terapeutas ocupacionais etc.) na avaliação do desenvolvimento das crianças pequenas com baixa visão. O instrumento ganha em acessibilidade e possibilita a criação de programas de intervenção precoce mais assertivos para promover o desenvolvimento desta população.

De acordo com Williams e Aiello (2018), o IPO favorece a elaboração de um ensino individualizado orientando o treinamento dos pais, familiares e profissionais na realização de atividades de estimulação, quanto às tarefas e registro, visando ao acompanhamento do desenvolvimento infantil de zero a seis anos e o levantamento do real potencial das crianças durante a idade pré-escolar.

A manutenção do maior número de respostas esperadas das crianças e dos critérios de desempenho propostos sugere que esta versão do IPO-BV tem a possibilidade de cumprir o objetivo de avaliar o desenvolvimento de crianças de zero a seis anos de idade baseando-se nos mesmos critérios de avaliação do instrumento original.

Os resultados obtidos na adaptação empreendida até o momento sugerem que futuros estudos de validação do instrumento adaptado será oportuna de acordo com Borsa et al. (2012), pois, na visão dos autores, ao se adaptar um instrumento não se pode perder sua consistência nem seu objetivo. Deve-se, ainda, buscar preservar ao máximo suas características originais fazendo com que o instrumento seja aplicável para o público a qual a adaptação se destina.

Em relação às mudanças no componente Condição, todas foram pensadas cuidadosamente para que os objetos, brinquedos, pessoas ou situações estivessem no campo visual de preferência da criança e que se necessário o adulto poderia deixá-la se aproximar conforme a sua necessidade. Essas orientações foram necessárias para aumentar a possibilidade do melhor uso da visão pela criança, conforme orienta a literatura, ou seja, que a criança alcance uma eficiência visual (CORN; ERIN, 2010). Deste modo a criança conseguirá cumprir o item com melhor desempenho possível e, dentro do que é esperado, em termos de área e faixa etária de desenvolvimento. A Condição foi acrescentada ou alterada em todos os itens modificados que exigiam alguma resposta visual ou sensorial da criança.

No componente Material as modificações realizadas foram sugestões da utilização de material com alto contraste ou com cores vivas ou do uso da lanterna ou objetos que produzam som para aumentar a probabilidade de a criança localizar os objetos e realizar o item.

Martín e Ramírez (2003) destacam que algumas pessoas com baixa visão podem ter lesões que geralmente afetam a sensibilidade para o reconhecimento do tamanho do objeto e o contraste entre o próprio objeto e o ambiente. Nesses casos é muito importante trabalhar com objetos utilizando materiais que favoreçam o contraste melhorando a discriminação visual. É importante destacar que o componente “Material” foi acrescentado na maior parte dos itens nos quais não existia o componente. A decisão de incluir a descrição do material tinha por objetivo criar condições que favorecessem a discriminação do objeto pela criança, em relação a outros aspectos do ambiente.

A Comissão de Especialistas avaliou todos os itens e Componentes do IPO original e verificou a necessidade de adaptação dos itens de modo que atendessem às necessidades das crianças com baixa visão. A análise cuidadosa e a proposta de adaptação do Material e da Condição de aplicação, bem como a elaboração de instruções gerais e específicas para auxiliar o aplicador, correspondem de forma integral à perspectiva de acessibilidade defendida por Oliveira e Nunes (2015) que afirmam a importância da adaptação de instrumentos que visam não somente modificações em materiais, nas formas tradicionais, mas que compreendam as necessidades específicas do público que utilizará o instrumento, e elaborem condições e instruções explorando as novas possibilidades de aplicação e realização dos itens ou tarefas previstas.


6. Considerações Finais

Considera-se que essa foi uma proposta preliminar da adaptação IPO-BV que auxiliou na continuidade das etapas de adaptação. Menos da metade do instrumento foi selecionada e modificada pela Comissão de Especialistas (248 itens) permanecendo 332 exatamente como no IPO original propõe. Como destacado neste trabalho as maiores mudanças nos itens foram relacionadas aos componentes “Condição e Material” buscando-se preservar ao máximo as características originais do Inventário.

Este trabalho trouxe duas contribuições sociais relevantes: a primeira delas foi a oportunidade de se oferecer um instrumento na área do desenvolvimento infantil adaptado para crianças com baixa visão, que pode ser usado por diversos profissionais e familiares treinados; e a segunda foi a possibilidade de um novo delineamento para adaptação de instrumentos psicológicos para populações específicas dentro de uma mesma cultura.

Vale a pena destacar que a população de crianças com baixa visão é muito heterogênea. Geralmente, ela apresenta uma grande variabilidade quanto às patologias e ao uso eficiente da visão e das habilidades visuais, mesmo quando possuem diagnósticos clínicos iguais, isto porque o uso funcional da visão está relacionado as experiências visuais existentes e o quanto e como aconteceu a estimulação.

Buscou-se por tanto, nesta proposta, focar em adaptações relacionadas a aspectos gerais da visão como preferência pela iluminação, campo visual de preferência, sensibilidade aos contrastes e capacidade de fixação e localização de objetos e sempre esclarecendo, que durante a aplicação do instrumento, o aplicador deve atentar para as necessidades de a criança aproximar-se ou não dos objetos, por exemplo.

Parece promissor envolver na adaptação de instrumentos psicológicos, diferentes expertises a fim de melhorar a acessibilidade e de se obter um instrumento mais adequado para avaliar a necessidade das crianças com deficiência, sobretudo, as com baixa visão. Sugerem-se novos estudos voltados para adaptação de instrumentos para essa população no Brasil, e que contem com a participação de pessoas que tenham experiência e vivência, como pessoas com deficiência visual, como é o caso da proposta de adaptação do IPO.


Referências

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NOTAS

  • 1 Este trabalho é parte da dissertação da primeira autora com a orientação da segunda e terceira autoras, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Contou com o apoio de bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Está vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (INCT-ECCE) - CNPq/processo 465686/2014-1; CAPES/processo 88887.364096/2019-00 e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP/ processo 2014/50909-8).

  • 2 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Doutoranda em Psicologia pela UFSCar E-mail: cassianasqpsi@gmail.com

  • 3 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: alaiello@ufscar.br

  • 4 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: mscagil@ufscar.br

  • 5 As autoras do Inventário Portage Operacionalizado (WILLIAMS; AIELLO, 2018) autorizaram formalmente a adaptação do instrumento.

 

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Avaliação do desenvolvimento de crianças com baixa visão
– adaptação preliminar do Inventário Portage Operacionalizado
autoras: Cassiana Quintão, Ana Lúcia Aiello & Maria Stella Gil
in Revista Benjamin Constant, Rio de Janeiro, v. 27, n. 63, e276310, 2021

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15.Mar.2023
Maria José Alegre