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 Sobre a Deficiência Visual

A Autoimagem de Quem não Vê: Recepção, Produção e Mediação de Sentidos por Mulheres Cegas numa Sociedade Visual

Marcelo Santos

Tatuagem braille [letra de canção da Bjork] - fotografia de Nadia Prigoda, 2005
Tatuagem braille [letra de canção da Björk] - fotografia de Nadia Prigoda, 2005


1. Visitando o Feminino

Numa troca de correspondências com Catherine Clément, Julia Kristeva (CLÉMENT e KRISTEVA, 2001, p. 24) propôs à amiga o “perfume” como metáfora da feminilidade, um “eu vaporoso”, possivelmente lembrando o Verflüchtigen ― evaporação ― usado por Freud (apud BREEN, 1998, p. 14) ao se reportar aos conceitos de masculino e feminino. Catherine respondeu-lhe que

a palavra é poética. Polida demais para ser honesta. De resto, a fabricação dos perfumes depende apenas das essências das flores e do almíscar que é uma secreção animal de origem genital; tudo está ligado. Mais que ‘perfume’, proponho secreção, humores, odores (CLÉMENT e KRISTEVA, 2001, p. 29).

À lista de Catherine, talvez o próprio Freud adicionasse medo, sangue, tabu, inveja, ódio, insatisfação, todas as palavras que habitam o “continente negro 2”, entendido posteriormente por Lacan como linguagem, um universo simbólico da falta, do Outro. É exatamente sobre este discurso, o do feminino, que se falará nas próximas linhas, um assunto a respeito do qual se debruçaram numerosos psicanalistas: Horney, Klein, Jones, Masters e Johnson, ou ainda Sherfey. Tal problemática, pesquisada detalhadamente em outras ocasiões (SANTOS 2010; SANTOS e RIBEIRO, 2012), será trabalhada aqui muito superficialmente, pois esta não é uma pesquisa psicanalítica. Para tanto, encontram-se convocadas exclusivamente concepções freudo-lacanianas, pois estas últimas permitem, como nenhuma outra, ler os processos de construção da masculinidade e feminilidade enquanto semióticos e, por consequência, comunicativos, submetidos à linguagem e suas vicissitudes.

Freud (apud BREEN, 1998, p.11) dizia “que os conceitos de ‘feminino’ e ‘masculino’, cujos significados parecem tão livres de ambiguidade para as pessoas comuns, estão entre os mais confusos da ciência”. Sempre tratando da questão pela interface entre aspectos anatômicos e psíquicos, o médico austríaco defendia que essas categorias estavam diretamente ligadas à forma como cada indivíduo lida com seu corpo 3 (BREEN, 1998, p.13). “Para Freud, não há sexualidade natural; é sempre psicossexualidade, sempre uma construção relativamente independente da biologia” (ibid.). Tanto que o que psicanalista descreve como feminino não se encontra circunscrito, exclusivamente, ao corpo da mulher; é o caso da noção de “masoquismo feminino”, discutido especificamente em relação aos homens (ibid.).

O interesse de Freud pelas mulheres surge ao mesmo tempo em que ele desenvolve as bases do campo psicanalítico, através do estudo das histéricas do século XIX na sociedade burguesa vienense (ROCHA, 2003, p.111). Esses distúrbios psíquicos seriam “uma forma de expressão possível da sexualidade reprimida (...) em direção a uma proposta, quem sabe, de subjetividade e singularidade feminina” (ibid.).

No “Tabu da Virgindade”, em 1917, Freud fala de uma mulher que é toda tabu, cuja vida sexual encontra-se atravessada pela virgindade, pelo sangue menstrual ― signo da morte, da mordida de um espírito ancestral ―, pela gravidez e pelo parto, simbolizando a angústia que, ademais do prazer, enevoa a sexualidade. Desde os primeiros tempos, existiria um temor em relação às mulheres; talvez

este receio se baseie no fato de que a mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por sua feminilidade e, então, mostra-se ele próprio incapaz. O efeito que tem o coito de descarregar tensões e causar flacidez pode ser o protótipo do que o homem teme; e a representação da influência que a mulher adquire sobre ele através do ato sexual, a consideração que ela em decorrência do mesmo lhe exige pode justificar a ampliação desse medo (FREUD, 2000).

Assim, o homem afasta-se da experiência feminina objetivando proteger-se, salvaguardar-se do estranho, os genitais da mulher, portal para um desconhecido ― o interior materno ― que antes lhe era familiar, Unheimliche (FARIAS, 2005, p.106). Em 1923, o texto “A Organização Genital Infantil” avança na compreensão da sexualidade: Freud defende a existência de uma similaridade entre a conformação da sexualidade no adulto e na criança, estabelecendo, porém, uma diferença – na organização genital infantil apenas o órgão masculino desempenharia o seu papel; é o chamado “primado do falo”.

O menino acredita que todos os seres têm pênis, considerando o clitóris como um “pênis em miniatura”, a desenvolver-se; posteriormente, ele conclui que, na verdade, o pênis havia estado naquele lugar e teria sido cortado: a possibilidade de castração é descoberta. Para não ser punido com tamanha penalidade, o garoto abandona ou reprime seu desejo de tomar o lugar do pai junto à mãe.

A menina, por sua vez, que também acreditava ser um menino, ao descobrir não possuir pênis, torna-se raivosa e invejosa, no sentido de que ela também tinha a mãe como objeto de amor, e nutria anseios fálicos em relação a ela vindos de seu clitóris. A partir da progressiva ― nunca, porém, total ― aceitação da “castração”, a menina transfere seu desejo do objeto-mãe para o objeto-pai e os bebês que ele possa lhe dar como substitutos para o pênis.

Esse seria um grande complicador da sexualidade da menina: enquanto, para o menino, a aceitação da diferença sexual e o medo da castração conduzem à dissolução do complexo de Édipo, “para a menina o reconhecimento da diferença sexual inicia o complexo de Édipo, ocasião em que ela abandona seu desejo de um pênis e o substitui pelo desejo de um filho” (BLOS, 1998, pp.51-52), tomando o pai como signo de amor e a mãe como objeto de ciúmes.

O caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto para a menina, até o ponto em que ele não se restrinja aos restos da ligação pré-edipiana com a mãe, que foi superada. Por esta mudança para o pai ser realizada com a ajuda das tendências passivas, uma atitude masoquista será importante na sexualidade feminina, enquanto a ferida narcísica da descoberta da diferença sexual a conduzirá a identificar seu corpo inteiro como falo (ibid., p. 52).
O masculino reúne o sujeito, a atividade e a possessão do pênis; o feminino, o objeto e a passividade. A vagina é apreciada agora como albergue do pênis, recebe a herança do ventre materno (FREUD apud FARIAS, 2005, p. 99).

A “castração” torna-se, pois, um signo para o menino e a menina: passa a ser a representação “do incompleto, das limitações humanas, do abandono da crença na própria onipotência e na posse de todos os atributos, inclusive na posse única do amor da mãe” (BREEN, 1998, p. 41). Signo esse, como falará Lacan anos depois, com o poder de lei; “refere-se, então, a uma proibição do incesto que vai além da experiência individual e que pertence à espécie humana” (ibid., p.40).

Evidentemente, considerando, como já se indicou, que na teoria freudiana o importante é a forma através da qual as pessoas lidam com sua anatomia, há um porém: o menino e a menina podem, também, assumir as identidades masculina ou feminina independentemente de serem macho ou fêmea da espécie: se a garota não supera a fase do primado do falo e continua a acreditar na fantasia de possuir um pênis, “seu desenvolvimento será masculino (...). O desenvolvimento do menino será feminino se seu medo da castração for tão grande a ponto de ele ‘renunciar’ a seu pênis, na fantasia” (ibid., p. 13).

Na “Sexualidade Feminina”, de 1931, Freud se esforça em entender o complicado processo no qual a menina é conduzida a trocar a mãe pelo pai como objeto de amor. Assim o autor abre o texto:

Durante a fase do complexo de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao genitor do sexo oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é predominantemente hostil. No caso do menino, isso não é difícil de explicar. Seu primeiro objeto amoroso foi a mãe. Continua sendo, e, com a intensificação de seus desejos eróticos e sua compreensão interna mais profunda das relações entre o pai e a mãe, o primeiro está fadado a se tornar seu rival. Com a menina, é diferente. Também seu primeiro objeto foi a mãe. Como encontra o caminho para o pai? Como, quando e por que se desliga da mãe? Há muito tempo compreendemos que o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pelo fato de a menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente constituiu sua principal zona genital — o clitóris [pretenso falo] — em favor de outra, nova, a vagina (FREUD, 2000).

Dessa forma, ainda nas palavras de Freud (2000), a vida sexual da mulher “é regularmente dividida em duas fases, a primeira das quais possui um caráter masculino, ao passo que apenas a segunda é especificamente feminina”. Logo, apesar de a bissexualidade estar presente tanto para os homens quanto para as mulheres, no caso delas, tal condição

vem para o primeiro plano muito mais claramente (...) do que nos homens. Um homem, afinal de contas, possui apenas uma zona sexual principal, um só órgão sexual, ao passo que a mulher tem duas: a vagina, ou seja, o órgão genital propriamente dito, e o clitóris, análogo ao órgão masculino (ibid.).

No seu “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” ― 1925 ― Freud (2000), todavia, escreve

que mesmo em meninos o complexo de Édipo possui uma orientação dupla, ativa e passiva, de acordo com sua constituição bissexual; o menino também deseja tomar o lugar de sua mãe como objeto de amor de seu pai — fato que descrevemos como sendo a atitude feminina.

Finalmente, em 1932, Freud (2000) afirma categoricamente na conferência “A Feminilidade” “que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia”. A sexualidade e, em especial, o feminino, são tidos por enigmas, longe de concepções simplistas e fechadas.

De meados dos anos de 1930 em diante, a sexualidade feminina cai em um ostracismo, voltando a despertar interesse apenas na década de 1960, tempo de difusão do movimento feminista (BREEN, 1998, p.17). Nessa época, Lacan e seus seguidores propõem uma inovação: a compreensão da sexualidade por meio da linguística estrutural, considerando a sexualidade como discurso (ibid, p.20). Nesse sentido, é assumido que o “feminino não existe como uma entidade por si só, mas apenas como uma divisão na linguagem; o feminino está sempre em oposição ao masculino, e, no sistema linguístico, ‘feminino’ se refere ao polo negativo, à ‘falta’ e ao ‘Outro’” (ibid, p.21).

Lacan afirma essa posição em diversos momentos, como na seguinte fala: “É claro que uma mulher não tem pênis, mas, se vocês não simbolizarem o pênis como elemento essencial para se ter ou não ter, ela não saberá dessa privação” (LACAN apud TEIXEIRA, 2007, p.78). O psicanalista francês defende, também, a inexistência de uma feminilidade antes do complexo de castração, pois se “não há realidade pré-discursiva, não há feminino fora da linguagem” (BREEN, 1998, p.29). Dessa forma, como observa Safouan (apud BREEN, 1998, p.30), “‘a anatomia não é o destino’, embora determine a forma do complexo de castração”.

Um problema específico da sexualidade feminina seria o fato de não existir um elemento específico que simbolize a feminilidade, já que esse é, como propõe Lacan, o polo da falta. Enquanto os homens podem se reunir em torno do pênis, as mulheres ficariam sem referência simbólica, tornando-se, em graus variados, dependentes do imaginário. “Uma das consequências de tal dependência é que, por ser um registro que não oferece outra garantia senão a boa imagem, o sujeito é lançado na busca incessante de tal imagem, tão idealizada quanto inatingível” (TEIXEIRA, 2007, p.80).

Sabendo-se que são tempos de videosfera, inflação do imaginário, é de se esperar, portanto, que o esforço em se obter a “boa imagem”, especialmente nas mulheres, seja maior do que nunca; mas quando uma mulher é privada da visão e, assim, relaciona-se diferentemente com o mundo visual, como se processa a sua busca pelo feminino? Essa questão será investigada nas seções cinco e seis. Antes, todavia, de apresentá-las, é necessário introduzir certos assuntos, iniciando-se pelos significados sociais atrelados à cegueira desde tempos imemoráveis.

2. Algumas Ideias sobre o Olho e a sua Ausência

Em muitas culturas, a visão ou o olhar sempre foram identificados com a sabedoria (CIRLOT, 1984, p. 427) e a libido. São termos como “evidente” ou “sem sombra de dúvidas”, a evocar que “o conhecimento verdadeiro equivale à visão perfeita” (AMIRALIAN, 1997, p. 24).

Falamos em ‘visões de mundo’ quando nos referimos às diferenças culturais, de pontos de vista e enfoque, ao nos referimos a uma estrutura conceitual de referência, ou em ‘revisão’ quando queremos nos referir a mudanças ou correções de ideias. Assim, em nossa mente, identificamos o não-ver com a incompreensão, incompetência, ou incapacidade de compreender e conhecer com perspicácia e profundidade as verdades do mundo.(ibid.).

Na mitologia germânica, especialmente a escandinava, um caso a parte: o paladar, e não a visão, foi o sentido associado ao saber. Para obter o conhecimento, diluído nas águas do poço do gigante Mimir, Odim 4 arranca um de seus olhos e o entrega ao guardião da fonte da sabedoria, obtendo o direito de beber o precioso líquido, degustando-o (BISHOP, 2007, p.14). Essa relação ― saber/saborear ― foi também explicitada por Barthes (1989, p.47); certamente, ademais de uma correção epistemológica, o semioticista francês fez uma crítica à sociedade escópica ― e possivelmente ele estivesse certo: tal qual desvela a simbologia, multiplicidade, inclusive a da visão, é sinal de inferioridade. Foi o “caso do pastor de Argos 5, que com seus múltiplos olhos não pôde evitar a morte” (CIRLOT, 1984, p.428).

Quanto à ligação do olho com o desejo, encontra-se manifesta em palavras a exemplo de “vistosa”, ou expressões do tipo “ela (e) ‘limpa a vista’”, usadas para se referir à beleza de outrem. Na bíblia, o texto do Gêneses parece resumir essa dupla de significados – conhecimento e libido – imputada à visão:

1.  É de saber que a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra, que Deus tinha feito: e ela disse à mulher: Por que vos proibiu Deus que não comêsseis do fruto de todas as árvores do paraíso?
2.  Respondeu-lhe a mulher: Nós comemos dos frutos das árvores que há no paraíso.
3.  Mas o fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos proibiu não comêssemos, nem a tocarmos, sob a pena de morrermos.
4.  Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguro que não haveis de morrer:
5.  porque Deus sabe que tanto que vós comerdes desse fruto, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses pelo conhecimento, que terei do bem e do mal.
6.  A mulher, pois, vendo que o fruto daquela árvore era bom para se comer, e era formoso, e agradável à vista, tomou dele, e comeu, e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto com ela.
7.  No mesmo ponto se lhes abriram os olhos, e ambos conheceram que estavam nus; (...)
(BÍBLIA SAGRADA, 1950, pp.38-39).


Assim aconteceu o pecado original: Adão e Eva viram, souberam, perceberam, contrariaram Deus, a lei. Foram seus olhos que os expulsaram do Éden, apresentando-os ao bem e ao mal, marcando, para todo sempre, a eles e seus descendentes com o fardo do conhecimento e do desejo. Saboreando a doce e proibitiva fruta – estaria Barthes certo? -, viram-se o primeiro homem e a primeira mulher nus; a libido de ambos foi despertada - ou encontrava-se ela, a libido, já presente antes do suposto sêmen transgressor, na pulsão escópica que guiou os olhos de Eva à “formosa” e sedutora maçã, “agradável à vista”? O desejo vem antes do saber.

Atraída e traída, salvar-se-ia Eva fosse ela cega. E quem sabe por isso, até hoje, sejam os portadores de cegueira considerados, ademais de ignorantes, como seres puros, inocentes, incapazes de lançar o mau-olhado, assexuados, livres do pecado 6, do olhar ardente de desejo e, assim, “moralmente superiores aos videntes” (AMIRALIAN, 1997, p. 24). Nasceriam os sem visão castrados, como o Édipo 7 que fura os olhos ao dar-se conta do incesto, crime enxergado por Tirésias, um cego cujo olhar ia além das sempre enganadoras aparências (QUINET, 2004, p.113). Aí está outra representação dos cegos: a de possuidores de “de insights e poderes sobrenaturais”, um sexto sentido (AMIRALIAN, 1997, p. 23), pois a “posse dos dois olhos expressa a normalidade física e seu equivalente espiritual; por isto o terceiro olho é símbolo de sobre-humanidade ou divindade” (CIRLOT, 1984, p. 427), e era usado pelos faraós a fim de marcar a sua condição de deidade.

No antigo Egito, Hórus, o deus falcão, rebento de Ísis e Osíris, trazia nos olhos o Sol e a Lua (HART, 1992, pp. 33-34). Seu nome traduz-se como “Aquele das Grandes Alturas”, cujo destino seria o de reinar sobre o Nilo. Chegando à maturidade, Hórus decide por reclamar o seu trono a um tribunal presidido pelo Deus Sol Rá de Heliópolis, escolhendo um auspicioso momento: Tot, deus da sabedoria, acabara de presentear o Deus Sol “com o ‘Olho Sagrado’, símbolo da ordem cósmica, justiça e realeza” (ibid.). A empreitada de Hórus foi, todavia, interrompida por Seti, com quem o deus falcão precisou lutar para ascender ao trono, perdendo um de seus olhos numa batalha,

o olho esquerdo, o olho lunar (...). Tot, o deus letrado, patrono dos escribas, voltou a colocar no seu lugar o olho ferido, restabelecido pela sua magia e que fica a ser conhecido como o ‘intacto’, símbolo da vitória do bem sobre o mal. Sendo o símbolo divino do bem, também era associado à prosperidade. (...). A partir de finais do Império Antigo dois udjat [outro nome para o olho de Hórus] eram pintados à entrada dos túmulos, ladeando a porta os dois reconfortantes símbolos mágicos: o olho direito representando o Sol, e o olho esquerdo a lua. Também aparecem nos sarcófagos para garantir a segurança eterna do defunto contra o mau-olhado. O sepultado teria a possibilidade de ‘ver’, através deles, o que se passava no mundo exterior, quem ia à sua casa de eternidade levar as oferendas e proferir as invocações que o manteriam vivo pela eternidade. O udjat tornou-se o signo de protecção por excelência e ainda um dos mais poderosos signos da realeza (o faraó era o Hórus vivo reinando sobre a terra legada por Osíris). O olho divino era mesmo considerado uma entidade autônoma tão impregnado de divindade como o seu possuidor (MUSEUS NA ESCOLA, 2007)

Ver a luz seria ver deus, perceber a energia cósmica criadora (CIRLOT, 1984, p. 357) e, assim, conhecer a “essência” do universo, num jogo onde o homem é alçado à condição divina; como profetizara a serpente no Paraíso: “se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses pelo conhecimento”. O filósofo grego Plotino (apud. CIRLOT, 1984, p. 427) defendia que o olho não poderia ver o Sol se não fosse um sol, o fogo do olhar, havendo, então, uma “relação de causalidade analógica em que somente o semelhante pode agir sobre o semelhante” (QUINET, 2004, p. 20): olhar é conversar com o sagrado e, assim, fazer parte dele. Mas adentrar no mundo do divino exige uma paga, às vezes, a própria vida. O horror da Gorgó 8 que, fitada nos olhos, transmuta o sujeito em objeto, pedra opaca. Nesse momento, o homem e o deus se miram frente a frente, e “o voyeur é arrancado a si mesmo, destituído de seu próprio olhar, investido e como que invadido pelo da figura que o encara e, pelo terror que seus traços e seu olho mobilizam, apodera-se dele e o possui 9 (VERNANT, 1988, pp.103-104).

Imunes à Gorgó, mais uma vez, estão os cegos. Todavia, ao não poderem encarar o olhar de frente, ou saber que esse os persegue, eles se encontrariam, também, livres do vigia, do gozo barrado aos filhos do pai primitivo em Totem e Tabu 10 (QUINET, 2004, p.113), e, desse modo, seriam “protótipos da maldade e imoralidade” (AMIRALIAN, 1997, p.23), impossibilitados de conhecer a lei. “Desde a antiguidade, a cultura grega identificava pela linguagem o ver e o pensar. Eidos, forma ou figura, é afim à Idéia. Sócrates, em Fédon, descreve a cegueira como a perda do olho da mente” (ibid., p. 24). Sem globos oculares, adentra-se na mais profunda ignorância, impede-se o conhecimento do simbólico, guia da vida em sociedade, da humanização 11, permanecendo-se, logo, num estágio anímico.

Possivelmente em função disso, ao estudar os personagens cegos na literatura clássica, romântica e nas novelas ianques do século XX, a escritora norte-americana Débora Kent (apud AMIRALIAN, 1997, pp. 27-28) deparou-se, além de uma concepção da cegueira igualada ao castigo e à superioridade, com o seu entendimento enquanto encarnação da maldade, em vilões como o pirata “Pew”, na “Ilha do tesouro”, de Robert Lewis Stevenson, ou, em outros momentos, com a elevação dos cegos à categoria de “poderosos amantes” ― afinal, eles não teriam pudores, tabus, e seriam dotados de uma sensibilidade especial. Frente à grande quantidade de significações descobertas por Kent, um denominador comum: “a descrença da sociedade com relação aos cegos, e a solução frequente é uma miraculosa recuperação da visão” (ibid., p.28) e, consequentemente, da dita condição humana.

Nessa sintética, porém reveladora incursão à dicotomia visão/cegueira, o que se consegue constatar é a simbolização dos cegos como pertencentes a um gênero específico dentre as criaturas, em alguns momentos, inferiores, em outros, superiores; nunca, contudo, ordinariamente humanos.

3. O Cego Hoje: Definição da OMS e alguns Dados Estatísticos

A Organização Mundial de Saúde - OMS - sugeriu em 1980 a classificação das deficiências visuais a partir da medida da acuidade, a precisão visual 12 (MARTIN e RAMÍREZ, 2003, p. 40). Desde então 13, esse tem sido o parâmetro mais utilizado para aferir a “visão útil” dos indivíduos (ibid.), tanto que, ao “se consultar Masini (1994), Cavalcante (1995), Carvalho et al. (1992), Brasil (1994) e Almeida & Conde (2002), observa-se que as definições dos termos relacionados à deficiência visual são muito semelhantes” (PORTO, 2005, p.21), e sempre fundamentadas nesse elemento: a capacidade de distinguir os detalhes dos objetos captados pelos olhos (ibid.).

Partindo da acuidade como balizador, dois grandes grupos são então tipificados: os portadores de baixa visão ou visão subnormal e os cegos. No primeiro caso, englobam-se as pessoas onde se conserva uma capacidade visual 14, ainda que extremamente limitada, como a habilidade de distinguir contornos, sombras ou pontos de luz, permitindo-se o planejamento ou execução de uma tarefa com o auxílio da visão 15 (PORTO, 2005, p. 21). Já a cegueira, conceito unificado em quase todos os países ocidentais (MARTIN e RAMÍREZ, 2003, p. 40), indica um portador de acuidade visual insignificante ou até nula; “um olho é cego quando sua acuidade visual com correção é 1/10 (0,1), ou cujo campo visual se encontre reduzido a 20° 16 (ibid.), ou ainda menos.

Em 2002, noticia a OMS (2004), havia 37 milhões de portadores de cegueira no mundo, dos quais por volta de 82% tinham 50 anos ou mais; independentemente da faixa etária, a prevalência da deficiência era superior em mulheres. Segundo dados de 2000 (BRITO e VEITZMAN, p. 2000), todos os anos, por volta de 500 mil crianças ficavam cegas e, desse total, entre 70% e 80% morriam ainda nos primeiros 12 meses de vida, pois a cegueira estaria associada à pobreza: informações referentes a 1992 apontavam que dos 1,5 milhão de cegos menores de 16 anos existentes no mundo naquele ano, 90% estavam nos chamados países em desenvolvimento 17 (ibid.). “Estudos populacionais indicam baixa prevalência da cegueira infantil, de 0,2 a 0,3 por 1000 crianças em países desenvolvidos, e de 1,0 a 1,5 por 1000 crianças em países em desenvolvimento” (ibid.). O mais surpreendente ― ou revoltante ― é que, com os avanços das ciências médicas na atualidade, “pelo menos 60% das causas de cegueira e severo comprometimento visual infantil são preveníveis ou tratáveis 18 (ibid.), e, hoje, cerca de 36 milhões de cegos poderiam estar enxergando caso tivessem sido assistidos a tempo (AGÊNCIA SENADO DE NOTÍCIAS, 2006).

Sem ações de prevenção, o número de cegos em todo o mundo deve chegar a 76 milhões em 2020, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda de acordo com a OMS, 51 milhões dessas pessoas não ficarão cegas se tiverem acesso aos atuais recursos da medicina e a melhores condições de vida (ibid.).

No Brasil, informações conflitantes. O censo demográfico realizado em 2000 pelo IBGE revelou um total de 14,48% da população como portadora de, no mínimo, uma das deficiências investigadas pela pesquisa 19. No tocante às deficiências visuais, isso representa 16.644.842 pessoas (Censo Demográfico 2000 – IBGE, 2000), cerca de 9,8% 20 do total de habitantes, dos quais aproximadamente 55% seriam mulheres ― confirmando a tendência mundial ― e quase 80% viveriam nas áreas urbanas. Ainda segundo o IBGE (ibid.), 148 mil pessoas seriam portadoras de cegueira, e 2,4 milhões teriam grande dificuldade de enxergar. A Agência Senado de Notícias (2006), por sua vez, afirma que o número de cegos no Brasil seria de 1,2 milhão 21, dado obtido em um estudo desenvolvido em 2004 pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia - CBO -, entidade vinculada ao Departamento de Oftalmologia da Associação Médica Brasileira (CBO, 2008; UNIVERSO VISUAL, 2004).

Também de acordo com o CBO, a associação da cegueira à pobreza parece confirmar-se no país: um estudo divulgado no ano de 2007 apontou que 90% dos casos de cegueira no Brasil ocorrem em pessoas de baixa renda (Conviva – Jornal da Associação de Deficientes Visuais e Amigos: 2007). Entre as maiores causas desse mal, destacam-se enfermidades tratáveis, a exemplo do glaucoma, da catarata e da retinopatia diabética (ibid.).

Como se não bastasse o fato de serem, muitas vezes, o reflexo do descaso com a saúde, especialmente nos países pobres, os cegos enfrentam outro tipo de problema, mais complexo do que possam aferir os estudos demográficos e estatísticos. Trata-se do preconceito, a estigmatização citada na segunda seção deste artigo, cujas raízes, profundas e caudalosas, remontam às concepções construídas ao longo dos séculos a respeito do olho e sua ausência, acondicionando os cegos num gênero segregado; esse fato, inevitavelmente, traz repercussões ao desenvolvimento as pessoas cegas, e será o tema do texto subsequente. A discussão encontra-se estruturada sobre alguns aspectos psíquicos e cognitivos do portador de cegueira.

4. Considerações Psíquicas e Cognitivas sobre a Cegueira Congênita

Para um vidente, o mais próximo que se pode imaginar de ser cego é fechar os olhos e, em função disso, enfrentar uma série de dificuldades cognitivas, físicas e emocionais: “A situação de ficarmos momentaneamente privados de visão é sem dúvida traumática e perturbadora. (...). E acreditamos ser este o estado constante dos sujeitos cegos” (AMIRALIAN, 1997, p. 22). Evidentemente, a perda visual é uma perda de informação, mas, obrigatoriamente, nada além disso (AMIRALIAN, 1997, p. 21; ORTEGA, 2003. Pp. 81-82). São outros os fatores que serão responsáveis pela qualidade da aquisição de conhecimento e a formação da personalidade do portador de cegueira.

Logo ao nascer, o primeiro problema: é preciso lidar com os sentimentos confusos dos pais, que sonhavam com uma “criança perfeita”:

O choque, a frustração, o sentimento de pena ou culpa influenciam profundamente a maternagem e a interação mãe-filho, e podem ser por si sós, responsáveis pela não construção de um vínculo saudável e pela desestruturação da dinâmica e relação familiar (BRUNO, 1993, p. 9).
Um diagnóstico de cegueira é provavelmente um dos maiores choques que os pais podem suportar, e Sonksen (...) entende que há uma qualidade específica no choque a este diagnóstico em comparação com as outras condições crônicas, explicado pela simbologia da cegueira (...). Algumas reações familiares são consistentemente apontadas (...): depressão dos pais (especialmente da mãe), narcisismo ferido e sentimentos de culpa e ansiedade, que vão progressivamente evoluindo para atitudes compensatórias de rejeição, superproteção ou aceitação (AMIRALIAN, 1997, p. 58).

Ortega (2003, p. 82) chama a atenção para a necessidade de separar a cegueira não congênita, que “não afeta o estabelecimento do vínculo mãe-filho no seu início”, daquela presente já na chegada do bebê ao mundo; nesse segundo caso, “a mãe tem grande dificuldade para estabelecer o vínculo com o filho, por que tem de enfrentar, às vezes, (...) [a] perda da sua criança ideal sonhada, e aceitar seu interlocutor real, a criança cega” (ibid., p. 85). Os estudos mais importantes sobre psicanálise a respeito do desenvolvimento nos primeiros anos de vida “salientam as dificuldades dos primeiros contatos da mãe com seu bebê cego, em contraste com o orgulho e o prazer das mães de bebês normais” (AMIRALIAN, 1997, p. 59).

O olhar é a primeira linguagem social 22. O contato conota cumprimento e reconhecimento muito antes de ter significado para a criança. O contato ocular provoca o sorriso e, mais tarde, a discriminação visual conduz ao sorriso preferencial. Por isso, diante da ausência de visão, a mãe pergunta, implícita ou explicitamente, como seu filho vai reconhecê-la (ORTEGA, 2003, p. 85).

Num dos períodos mais vulneráveis do seu desenvolvimento, o bebê reage passivamente ao afastamento materno; esse momento crítico é considerado por alguns psicanalistas como irreversível (AMIRALIAN, 1997, p. 59). Até os quatro meses, Sandler (apud AMIRALIAN, 1997, p. 59) admite que tanto as crianças cegas quanto as videntes tenham um desenvolvimento semelhante, encontrando-se no estado do narcisismo primário, ou seja, incapazes de diferenciar o “eu” do “não eu”, experimentando o prazer e a sua ausência conforme as suas necessidades são satisfeitas. Após esse período, o bebê percebe uma ameaça à sua onipotência original, sendo coagido a sair do narcisismo primário e, ao mesmo tempo, lançar-se na busca de regressar a tal estágio (AMIRALIAN, 1997, pp.59-60). É nesse momento que o infant, cuja boca era até então o órgão-mor de busca do prazer, começa a usar as mãos e os olhos: progressivamente separadas do orifício oral, essas “ferramentas” ganham cada vez mais autonomia da sucção e da mordida como fontes de libido e agressão, transferindo, parcialmente, o interesse da criança do próprio corpo para uma interação social direta (ibid, p. 60). O jogo de olhar e mexer as mãos, abrindo e fechando-as até a aquisição de coordenação viso-tátil-sinestésica, “prepara a mão para a apreensão dos objetos e para as primeiras ações intencionais” (BRUNO, 1993, pp.16-17).

Como dizem Fraiberg e Fredman (1964), a falha na aquisição da autonomia da mão e uma percepção centrada na boca são uma das características principais das crianças cegas com sérias perturbações de desenvolvimento. Embora grande parte das crianças cegas conserve a boca como um órgão importante de discriminações perceptivas por toda a vida, o uso de uma zona altamente carregada de força pulsional para a percepção traz implicações para a formação do ego. Um objeto para ser desejável precisa satisfazer necessidades ou estar associado à estimulação oral; permanecendo a boca como órgão primário de percepção, restringe experiências com objetos e põe obstáculos ao desenvolvimento que conduz à descoberta da natureza dos objetos (AMIRALIAN, 1997, p. 60).

Dessa maneira, é negada à criança cega a possibilidade de “tatear” o mundo com os olhos. Em função disso, autores como Cutsforth (1969, p. 21) afirmam que os bebês portadores de cegueira tendem a trilhar o caminho da introversão, resumindo seus contatos àqueles em que são o centro do mundo, tornando-se, inevitavelmente, egocêntricos (ibid, p.23), e se concentrando “sobre suas próprias experiências corporais, a experienciar uma constante auto-sedução” (AMIRALIAN, 1997, p.61). Mas não existe fatalismo:

Um bebê que não pode ver a mãe desenvolve novas habilidades e novas formas de contato. Somente se torna odiento e invejoso se não contiver, diante da frustração, sua tendência natural de absolutizar o relativo e de ser dominado por insaciável fome narcísica. (...) Têm sido amplamente descritas as possibilidades de se construir a personalidade sob novas bases de sensibilidade 23, de aguçamento e de alargamento mentais. Por difíceis que sejam as condições, os recursos humanos são imensos e, às vezes, inacreditáveis (TRINCA, 1997, p. 11).

Nesse sentido Bruno (1993, p.17), apesar de concordar com a existência das supracitadas dificuldades no desenvolvimento da criança cega, chama a atenção, pragmaticamente, para ações simples que podem minimizá-las. Sem o olho para antecipar a sua conduta de preensão, a criança portadora de cegueira “deve ser avisada auditivamente pelo barulho do objeto e alertada concomitantemente pelo toque à parte externa da mão, de que o objeto se encontra no seu campo tátil de ação. Desta forma ela poderá coordenar os esquemas audição-preensão” (ibid.), integrando sistemas “táteis-cinestésicos-auditivos através das condutas de sucção e preensão” (ibid.).

Isso também contribuirá para que o cego adquira autonomia na mobilidade, que é constantemente apontada como “atrasada” em relação a das crianças videntes (AMIRALIAN, 1997, p.61; BRUNO, 1993, p.19; FELIPPE e FELIPPE, 1997; HEIMERS, 1970, p.13). Na verdade,

muitas crianças com deficiência visual têm plena condição motora para a marcha, porém não se deslocam por insegurança e medo de se moverem sem a orientação e controle do ambiente, por isso adquirem a marcha por volta de um ano e meio ou mais. Necessitam de alguém para caminhar junto, que lhes dê segurança pelo contato físico e antecipe os acontecimentos auditivamente para que possam se organizar motoramente e para que adquiram o padrão motor de marcha pela experiência com o outro (BRUNO, 1993, p.19).

Ou seja, o que a criança cega precisa é ser acolhida pelo ambiente, encontrar condições favoráveis ao seu desenvolvimento, como as que são ofertadas aos outros bebês, pois “a limitação na orientação e mobilidade é considerada como o mais grave efeito da cegueira sobre o indivíduo 24” (WELSER apud FELIPPE e FELIPPE, 1997, p.107). Outro fator importante é atentar para a necessidade de se ensinar ao cego, desde cedo, gestos e expressões faciais, tão importantes na comunicação 25 e usualmente quase ausentes em pessoas privadas do sentido visual, impossibilitadas de imitar 26 pela observação (BRUNO, 1993, pp.21-22; LORA, 1997, pp.105-106; ORTEGA, 2003, p.86). Quanto à aquisição da linguagem oral, não há nenhum tipo de impedimento causado pela falta da visão (ORTEGA, 2003, p.81). Amiralian (1997, p.63) chega a afirmar, inclusive, que às vezes a fala torna-se uma ferramenta da criança cega para expressar coisas que ela não enxerga, como características do ambiente, dos objetos e das pessoas. Existe, todavia, um fator complicador: o cego é alienado do mundo daquele ― o vidente ― que lhe transmite a oralidade; “se considerarmos a linguagem como uma tradução de experiências de modelos de mundo, devemos considerar o mundo da criança cega” (SIMMONS apud AMIRALIAN, 1997, p. 61) distinto daquele usado pelos pais e educadores portadores de visão para ensiná-la. “Enquanto o cego experimenta o mundo pelo tato, audição, cinestesia, olfato e gosto, o mundo lhe é explicado pela linguagem daqueles que pouco se utilizam deste conjunto de experiências sensoriais” (AMIRALIAN, 1997, p.63). Face a essa situação, o cego é, repetidamente, confrontado com a constante necessidade de solucionar problemas (ibid., p.64).

Uma questão apontada por Bruno (1993, p.49) é a frequência da tipificação de crianças cegas como autistas por conta do chamado “blindismo”, movimentos rítmicos produzidos pelo corpo. “Estas crianças são descritas como apresentando comportamento estereotipado de movimento de mãos, balanço ou rotação corporal, mutismo ou fala ecolática” (AMIRALIAN, 1997, p.70) – referir-se a si mesmo em terceira pessoa repetindo tudo que já foi dito (KANNER, 1997) –, e não esboçam reações afetivas, seja em relação à mãe ou outras pessoas (AMIRALIAN, 1997, p.70).

Por fim, é preciso dizer que, até onde esta pesquisa conseguiu avanças, não há dados conclusivos e ou fartos sobre as repercussões da cegueira no desenvolvimento cognitivo e psíquico humano ― nesse último caso, o hiato parece ser ainda maior ―, apesar de existirem alguns pontos consensuais: “A criança cega apresenta desenvolvimento mais lento se compara à criança vidente. Este tempo maior exigido pelo cego parece estar relacionado à sua maior dificuldade na apreensão do mundo externo na ausência da visão” (AMIRALIAN, 1997, p.65), ou, ao que se pôde perceber, na impossibilidade de acessar um exterior – o qual precisa ser introjetado para construção da alteridade e das funções cognitivas ― que é simbolizado pelos seus interlocutores segundo experiências imagéticas. O cerne da questão parece ser, pois, a tradução de um mundo pensado para os videntes àqueles portadores de cegueira, que não têm limites maiores ou menores que os ditos “normais”, e sim possibilidades diferentes.

5. A Mulher cega e sua Autoimagem: um Estudo Empírico

Nas seções anteriores, foram descritas algumas características gerais de dois sistemas humanos: os categorizados como pertencentes ao gênero feminino e os portadores de cegueira. Agora, será apresentado um estudo realizado com mulheres cegas ― intercessão dos sistemas “feminino” e “ausência de visão” ―, tentando-se compreender de que modo, destituídas da possibilidade de receber sentidos visuais, elas se comunicam em uma sociedade fortemente imagética, atentando-se, especialmente, para o modo pelo qual os sujeitos em questão constroem a tão necessária noção de autoimagem, vetor fundamental da comunicação contemporânea e da estruturação do feminino (cf. SANTOS, 2008).

5.1 Delimitação do Objeto de Estudo

O primeiro passo metodológico adotado foi a criação de “filtros” para delimitação dos sujeitos que estariam aptos a fazer parte do estudo. Instituíram-se, então, as seguintes condições:

1. Os sujeitos deveriam ser portadores de cegueira, desconsiderando-se aqueles com baixa visão, onde, mesmo que numa escala ínfima, existisse a possibilidade de percepção das imagens;
2. Era preciso ter cegueira congênita, pois naqueles que já enxergaram, resguarda-se uma memória visual;
3. Não se poderiam possuir outras deficiências além da cegueira, pois elas se constituiriam como formadoras de sistemas distintos daqueles apenas privados da visão;
4. Todos os entrevistados deveriam ser mulheres portadoras de 18 anos ou mais, e assim aptas a responder por si legalmente.

É importante dizer que o critério escolhido para aferir a veracidade dos itens “1”, “2” e “3” foi a autodeclararão 27. No caso do item “4”, seria necessário comprovar a informação pela apresentação de documento, como o Registro Geral (RG) ou certidão de nascimento.

5.2 Coleta de dados

Entre os meses de janeiro e março de 2008, contataram-se diversas instituições frequentadas por portadores de deficiência visual na cidade de São Paulo, capital do Estado da Federação com o maior número de cegos, um total de 23.900 pessoas, segundo o IBGE (Censo Demográfico 2000). Então, três locais foram então escolhidos para a realização da pesquisa, por se mostrarem os mais receptivos ao estudo:

  • Associação de Deficientes Visuais e Amigos (ADEVA): Fundada em 1978, como organização da Sociedade Civil sem fins lucrativos, oferece desde cursos profissionalizantes ― informática, telemarketing, vendas... ―, até atividades recreativas, a exemplo de aulas de dança de salão;

  • Biblioteca Braille do Centro Cultural São Paulo: Idealizada por Dorina Nowill, iniciou seus trabalhos oficialmente em 29 de abril de 1947. O objetivo inicial era o de transcrever para o sistema Braille o acervo da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, mas hoje o espaço, alocado desde 1986 no Centro Cultural São Paulo, oferece aos usuários vários gêneros literários, além de acesso a periódicos e internet adaptada ao uso de deficientes visuais;

  • Unidade de Reabilitação do Deficiente Visual (U.R.D.V): É uma das unidades da Associação Cívica Feminina (A.C.F.), fundada em 20/12/1932 como uma entidade filantrópica. No local, são oferecidos diversos cursos para portadores de deficiência visual, como aulas de braile.

As perguntas do questionário foram cuidadosamente estruturadas no intento de, com o mínimo possível de enquetes, obter as informações de relevância para o estudo; assim, antes de elaborá-las, foi preciso definir quais dados objetivavam-se apreender através da investigação empírica. Chegaram-se aos seguintes pontos:

1. Aferir o nível de escolaridade e financeiro dos sujeitos, para posterior triagem;
2. Investigar quais eram as mídias mais usadas e, dentro de cada universo midiático, descobrir que produtos eram os mais consumidos; tratavam-se das mídias visuais da sociedade em geral, ou de outras?
3. Compreender qual era o modelo ideal dos sujeitos em questão, além de, superficialmente, perceber que estratégias de representação eles usavam para se aproximar de tal conceito; se espelhavam em alguém? Como tentavam imitar esse alguém?
4. Questionar sobre a autoimagem: como se percebiam através do olhar do outro?
5. Saber se, para as cegas, os conceitos de mulher/feminino/beleza caminhavam juntos, como parece se verificar no restante da sociedade;
6. Compreender como percebiam o corpo, que significado atribuíam a ele? O de identidade, beleza, saúde?
7. Finalmente, investigar que tipo de “desejo” os sujeitos em questão mantinham, e se havia alguma relação entre esse desejo e a importância da imagem na contemporaneidade.

Eram, certamente, muitas as questões; procurando, na medida do possível, contemplar a todas, chegou-se ao seguinte modelo de questionário semiestruturado:
 

1. Você tem alguma fonte de renda?
□não (vá para a pergunta 3)  □ sim – qual:  Quanto você ganha?
2. Qual é a renda mensal de sua família, juntando a sua com a das pessoas que moram com você?
3. Qual é o seu nível de escolaridade:
4. Você está: □ Namorando □ Casada □ Solteira □ Viúva □ Outros:
5. Que mídias você usa no seu dia-a-dia?
□ Assiste TV:
□ Usa a internet:
□ Lê em braile:
□ Escuta livro falado 28:
□ Escuta rádio:
□ Outros:
6. Qual dessas atividades é a sua preferida e por que?
7. Você tem algum ídolo: □ não (vá para pergunta 10) □ sim – quem?
8. Por que ela (e) é seu ídolo?
9. Você gostaria de ser parecido com seu ídolo:
□ não □ sim – O que você faz para ficar parecido com ele:
10. (Além do seu ídolo – para quem respondeu até a 9) – Você gostaria de ser parecido com alguém?
□ não □ sim – Quem e por quê?
11. O que você faz para ficar parecido com essa pessoa (resposta 10)?
12. Para você, o que é beleza?
13. Para você, o que é ser mulher?
14. Quem é um modelo de mulher bonita? Por que ela é bonita?
15. O quanto você se preocupa com a sua aparência:
□ nada □ pouco □ mais ou menos □ muito □ é a coisa mais importante da minha vida
16. Você gosta de usar cosméticos? □ não □sim – enumere:
17. Segue a moda? □não □sim – como?
18. Faz exercícios: □não □sim – Com quais objetivos? Frequenta academia de ginástica □não □sim
19. Complete a frase: meu corpo é: ...
20. Você se considera uma mulher bonita? □ não □ sim – Por que?
21.Você acha que as pessoas também consideram você uma (resposta 20) □ sim □ não Por que?
22. Que tipo de imagem você acha que as pessoas têm de você?
23. Como você gostaria de ser vista pelas pessoas?
24. Se eu pudesse ser outra pessoa eu seria? Por que?
25. Você tem algum sonho? □ não □ sim – qual:

 

O modelo semi-estruturado foi o escolhido por não se ter a intenção de trabalhar com uma amostragem muito grande e, ademais, por ele minimizar o discurso hegemônico do pesquisador, possibilitando aos sujeitos, ainda que dentro de campos pré-determinados, a livre expressão.

As perguntas de 1 a 4 objetivaram aferir o “item 1” entre os destacados como objetivos do questionário, ou seja, traçar um breve perfil socioeconômico; as perguntas 5 e 6 reportaram-se ao “item 2” dos objetivos, investigar as mídias consumidas pelos sujeitos em questão, bem como qual era a “mídia” preferia; as questões de 7 a 11 tentaram observar, ainda que superficialmente, as relações com o “ideal de Eu”, “item 3”; no caso das perguntas de 12 a 19, elas se formularam segundo os “itens 5 e 6” dos objetivos, as relações entre identidade feminina e um corpo construído através da moda, de exercícios, cosméticos...; quantos às perguntas de 20 a 24, tentaram perceber a autoimagem dos sujeitos, como se veem e pensam serem vistos pelo outro; finalmente, a pergunta 25 reportou-se ao “objetivo 7”, numa tentativa de construir alguma relação entre os desejos dos sujeitos estudados e o macro-sistema da sociedade escopofílica.

Resolveu-se que todos os questionários seriam aplicados pelo pesquisador responsável, de modo individual. Para esse procedimento, foi solicitado, nas instituições onde se desenvolveram a pesquisa, um local reservado para tal. Percebendo, contudo, que não se conseguiriam tantos sujeitos quanto esperado, o pesquisador passou a solicitar às entrevistadas que lhe fornecessem nomes e telefones de amigas cegas; também lhes foi entregue um cartão em braile 29, para que, caso lembrassem de alguém para participar do estudo, telefonassem ao pesquisador e repassassem a informação.

Quando as primeiras entrevistadas começaram a ligar para recomendar conhecidas, o pesquisador percebeu que elas estavam bem mais à vontade que no momento da aplicação do questionário. Ao refletir sobre tal assunto, chegou-se à conclusão que, além de não estarem sendo interrogadas, ao telefone, entrevistador e entrevistado estavam igualados: a voz intermediava a comunicação de ambos ― um vidente e um cego ―, equiparando, ao menos parcialmente, a relação de poder. Em função disso, resolveu-se que, feita a triagem com os sujeitos que efetivamente entrariam na pesquisa, todos teriam seus questionários reaplicados por telefone.

Os questionários nos quais houve recusa de resposta a algum dos itens perguntados foram excluídos, assim como aqueles pertencentes aos três sujeitos que, após participarem da pesquisa, solicitaram a sua retirada do estudo. O prazo limite para tal foi o dia 14 de março de 2008.

5.3 Procedimentos de Avaliação e Análise dos Questionários

Um total de 69 questionários foi aplicado, dos quais três foram posteriormente retirados, como informado há pouco, por solicitação dos sujeitos participantes. Dos 66 questionários restantes, 24 referem-se aos obtidos a partir de pessoas indicadas por outros entrevistados, e 42 aos sujeitos encontrados nas instituições que concordaram em permitir a realização do estudo em suas dependências. Por questão de espaço, apenas parte dos resultados obtidos serão apresentados.

A primeira análise incidiu sobre as perguntas de 1 a 5, objetivando-se fechar um grupo com um nível de instrução e poder aquisitivo o mais próximo possível. Isso se revelou um grande problema, pois as características individuais eram bastante heterogêneas: havia sujeitos com primeiro grau incompleto e outros com pós-graduação; alguns não tinham fonte de renda, enquanto outras pessoas ganhavam perto de R$3.000,00. Chegou-se, então, a dois grupos distintos, compreendendo um total de 36 sujeitos: no primeiro, estavam os que possuíam idades entre 20 e 40 anos ― 17 ― segundo, os com idades entre 41 e 61 anos ― 19 ―. Todas as pessoas escolhidas deveriam ter segundo grau completo ou formação superior, além de uma fonte de renda 30 entre três e quatro salários mínimos ― na época da pesquisa, o salário mínimo era de R$380,00, o que dá uma renda de entre R$1104,00 e R$1472,00. Para avaliação das demais respostas, foram usados os referenciais semiótico, psicanalítico e sistêmico.

5.4 Apresentação e Análise dos Dados Obtidos

No grupo que possuía entre 20 e 40 anos, a maior parte das entrevistadas, ou precisamente 12, declarou estar namorando; nas mulheres com idade entre 41 e 61 anos, as relações mostram-se mais distribuídas: 7 declaram namorar; 8 falaram estar casadas; e 4 informaram ser solteiras. No segundo grupo parece manter-se a média nacional aferida pelo IBGE no censo de 2000, com 49,5% da população total do país casada. As respostas obtidas, no referente às duas faixas etárias, quebram o estigma de mulheres deficientes como “fadadas à solidão”, ao “isolamento amoroso”.

Na investigação a respeito do “consumo de mídias”, os dados alusivos aos dois grupos também foram distintos. No das mulheres entre 20 e 40 anos, as mídias rádio, música 31 e televisão aparecem empatadas em primeiro lugar, tendo sido citadas por todas as entrevistadas. No caso do grupo com idades entre 41 e 61 anos, o rádio e a música também foram citados por todas das entrevistadas, mas a televisão ocupou o terceiro lugar, obtendo 16 referências. Nos dois grupos, contudo, um dado em comum: a internet quase não foi escolhida, talvez, revelando as dificuldades cognitivas que os deficientes visuais ainda tenham para usar essa “mídia”.

Para proceder a uma análise qualitativa dos dados acima expostos, sugere-se, antes de tudo, desconsiderar as “mídias” citadas e entendê-las como medias, a partir dos sentidos visual, tátil e auditivo. Esse último está presente, para os dois grupos em questão, em todas as opções apontadas como as mais utilizadas: rádio (auditivo), música (auditivo) e televisão (audiovisual). Pode-se, ainda, pensar que as qualidades da audição sejam preferidas em relação às táteis para obtenção de conhecimento, pois o livro falado foi mais citado que a leitura em braile pelas entrevistadas das duas faixas etárias tipificadas. Por fim, considerando, por um lado, que a linguagem “hipermidiática” da internet seja basicamente traduzida na forma de áudio para os deficientes visuais, através de programas específicos, e, por outro, que a quantidade de informações perdidas em tais processos ― todos os sentidos visuais de fotografias, vídeos, infográficos, diagramação, cores... ― e que as dificuldades neles existentes devam ser grandes, não causa estranheza o baixo uso do “mundo digital”.

Pensando-se, também, que à exceção do braile, todas as outras “mídias” citadas são ― ou tornam-se para os cegos ― medias auditivas, pode-se indicar que o som seja o meio de comunicação com o qual os portadores de cegueira tenham mais familiaridade ― até porque, além da visão, ausente para o caso especificado, é a audição o outro sentido que goza de intimidade com o cérebro (SANTAELLA, 2001, pp. 70-75). Além disso, é possível sugerir que, apesar de ser o melhor método pala leitura tátil até agora desenvolvido, o braile ainda esteja longe da sofisticação conseguida pela leitura feita por meio da visão, aperfeiçoada há séculos, o que levaria os cegos a se sentirem mais confortáveis ouvindo os livros que os tateando, por ser este um processo tecnicamente ainda pouco desenvolvido; também é preciso lembrar que o tato é um sentido cujo potencial semiótico foi socialmente restrito ― pela proibição cultural do toque... (NÖTH, 1990, p.407) ―, isto é, há um problema simbólico, o que talvez induza os portadores de cegueira a, inconscientemente, assumirem uma predileção ou um maior conforto através do uso do código auditivo, e não do tátil, para a tradução da linguagem verbal feita no ato de ler. Por fim, é preciso lembrar que o ouvido, ao contrário do tato e de modo análogo à visão, é fonte de pulsão, a energia da qual se alimenta a psique, isto é, o inconsciente (cf. SANTOS e RIBEIRO, 2012).

No tocante à “mídia preferida”, os dois grupos apontaram o rádio, citado por 11 mulheres com idade entre 20 e 40 anos, e por 18 das pertencentes à faixa etária circunscrita entre os 41 e os 61 anos de idade. A televisão, no grupo das mulheres com idades entre 20 e 40 anos, ainda conseguiu chegar a expressivas 05 referências como preferida, e o número ganha ainda mais força quando se observa que, no grupo com idade entre 41 e 61 anos, a mídia televisiva não foi citada por nenhuma entrevistada. Quanto às qualidades apontadas nos dois grupos para a preferência pelo rádio, elas foram analisadas em conjunto 32, por estarem muito próximas em ambas as situações ― as duas faixas etárias; seguem as expressões mais faladas para aludir à predileção por essa mídia: “é rápido 33” (32); “levo para todo canto” (30); “gosto mais” (30); “é melhor (30)”; “é melhor que a TV, porque é só a voz” (27); “sempre escutei, me acostumei (22)”. Assim, além de se reportarem a algumas características da própria mídia radiofônica, ou se prenderem a qualidades ― “é melhor”, “gosto mais”, “é rápido”... ― as entrevistadas parecem se sentir mais confortáveis com um meio onde a visão não seja solicitada. Aqui, todavia, cabe noticiar, como o faz Machado (2001, p. 17),

que [quando] se fala em ‘civilização das imagens’, pensa-se evidentemente na atual hegemonia da televisão, mas ela, na verdade, é um meio bem pouco imagético. (...) a esmagadora maioria dos programas de televisão está fundada predominantemente no discurso oral e (...) neles as imagens servem apenas como suporte visual para o corpo que fala. Tanto isso é verdade que a grande maioria das pessoas deixa a televisão ligada enquanto executa outras tarefas, sendo suficiente, em termos significantes, o que se diz na pista do som 34.

No tocante ao “item 7” do questionário, o qual investigava se as entrevistadas tinham algum ídolo 12 das mulheres com idades entre 20 e 40 anos responderam que sim, contra 5 das com idades entre 41 e 61 anos. Esse, por si só, já é um dado interessante, e que se repetirá em vários momentos: nos sistemas mais jovens cronologicamente, a incorporação dos padrões da sociedade escópica ― como a profusão de ídolos, ideais de eu ― parece se dar de modo mais intenso quando comparada aos com mais idade. Assim, os dados colhidos através das mulheres com entre 20 e 40 anos sugerem que, ao terem vivenciado desde cedo padrões de outros seres humanos visualmente hipertrofiados, com os quais interagiram, eles se deixaram contaminar por tais paradigmas ― afinal, o ser humano é um sistema aberto e evolutivo. E como a curva do tempo se confunde, do século XIX em diante, com a progressão da importância da imagem na sociedade, estabelece-se o binômio ― lei ― mais jovem/mais escópico, ou mais padrões escópicos incorporados ― mesmo para os cegos!

No grupo com idades entre 20 e 40 anos, 8 das mulheres que responderam ter ídolos se referiram a alguém famoso ― ator, cantor, apresentador de programa de televisão, escritor ou esportista ; as outras 4 apontaram como ídolo algum amigo ou parente. No caso das mulheres que tinham entre 41 e 61 anos, o resultado foi o oposto: 1 declarou idolatrar alguém famoso, contra 4 que se referiram, em todos os casos, à mãe, sempre destacando a importância materna na sua formação e aceitação de sua deficiência. Aqui, novamente um indicativo de que os “sistemas jovens”, quando contrapostos aos com mais idade, incorporam mais os “padrões escópicos”.

Perguntadas se gostariam de parecer com seus ídolos, 3 entrevistadas com idade entre 20 e 40 anos e 4 das com idade entre 41 e 61 anos responderam que sim; em repetidos casos, as mulheres se sentiam incomodadas com uso da palavra “parecer”, classificando a pergunta como “idiota”, ou tendo dificuldade em entendê-la; questionavam ao pesquisador: “como assim, parecer?”. Possivelmente, houve um problema de tradução não verificado na realização do pré-teste com o questionário, que poderia ter sido evitado com o uso de algum outro termo; ou, quem sabe, esse “incômodo” seja advindo das dificuldades em entender um “parecer”, ou um espelhamento baseado, assim como hoje se faz, quase que integralmente na imagem de signos visuais, e não nas outras possibilidades semióticas.

Pôde-se perceber a clara identificação com o ideal materno nas mulheres do grupo possuidor de idades entre 41 e 61 anos; todas que responderam terem a mãe como ídolo declararam querem imitá-la; no lado oposto, as “jovens” que afirmaram majoritariamente admirar famosos, não se mostraram muito interessadas em imitá-los: poucas assinalaram a opção “gostaria de ser parecido com meu ídolo”; quem sabe, ao responderem terem como ídolos pessoas da mídia, elas estivessem apenas reproduzido o discurso hegemônico.

Na pergunta 10, onde se insistia em saber se as entrevistadas, mesmo sem ter declaradamente um ídolo, espelhavam-se em alguém, índices importantes: somente 3 das mulheres com idades entre 20 e 40 anos informaram que gostariam de parecer com alguém, e apenas uma mulher das que possuíam entre 41 e 61 anos disse querer parecer com alguma outra pessoa – tratava-se de um caso especial; a entrevista era “testemunha de Jeová ”, e declarou seguir os preceitos de “Jeová Rei”, objetivando imitá-lo. No grupo dos sujeitos com idades de 20 a 40 anos, ninguém afirmou fazer algo para imitar o objeto de admiração.

Questionadas sobre o que entendiam por “beleza”, 14 entrevistadas com idade entre 20 e 40 anos declararam uma mescla da “aparência” com “qualidades internas, o caráter, a essência”; no caso das mulheres que tinham entre 41 e 61 anos, prevaleceu a resposta de que a beleza, como indicado por 15 das entrevistadas, seria “apenas interna”. Quando, todavia, questionadas se davam importância à própria aparência, todas entrevistadas com 41 aos ou mais se declararam preocupadas com o tópico; desse total, 18 responderam se preocupar muito, e apenas uma “mais ou menos”. Para quem tinha afirmado valorar apenas a “beleza interna”, um dado que soa contraditório; talvez, este dado indique que, inconscientemente, a autoimagem seja importante, ou, em outro sentido, que sabendo da importância da imagem corporal para o resto da sociedade, o cuidado estético com a mesma surja. Das mulheres com idade entre 20 e 40 anos, todas as entrevistadas responderam se preocupar muito com a aparência.

Analisando-se conjuntamente os dados obtidos sobre a “preocupação com a aparência”, torna-se possível apontar que a importância do imaginário, registro no qual circunscreve-se a feminilidade, mantenha-se para as mulheres cegas, pois nenhum dos sujeitos ouvidos declarou não dar atenção ao tópico “aparência”. No caso das com idades entre 41 e 61 anos, elas podem até pensar que a beleza seja “interna”, como apontou a maioria; mas devem considerar que o “feminino” esteja na superfície.

Ainda nos dois grupos estudados, mais um ponto de confluência: todas as entrevistadas de ambas as faixas etárias tipificadas declararam usar cosméticos, especialmente cremes para pele e perfumes. Interessante notar que a maquiagem tenha sido apontada, ainda que timidamente, apenas no grupo com idades entre 20 e 40 anos. Trata-se de um código inteiramente visual, confirmando, outra uma vez, que os sistemas com menos idade incorporam mais os “padrões escópicos”. Uma questão que não foi contemplada seria aferir o meio pelo qual essas mulheres cegas conseguem se maquiar: Alguém faz isso para elas? O fazem sozinhas? 

Das entrevistadas pertencentes ao grupo mais jovem, cinco afirmaram seguir a moda, resposta fornecida por três sujeitos no grupo das mulheres com idade entre 41 e 61 anos. Parece não tratar-se de um assunto que desperte muito interesse entre os cegos – afinal, a moda é um código basicamente imagético. Proporcionalmente, ela foi citada pelo dobro das mulheres com idades entre 20 e 40 anos quando relacionadas às de entre 41 e 61 anos. Muitas – 32 do total dos dois grupos avaliados em conjunto - afirmaram adotar um “estilo clássico”, para assim “estar bem em todas as ocasiões”. Entre as que afirmaram seguir a moda, nos dois grupos se verificaram as mesmas três respostas no sentido de saber como elas “descobriam as últimas tendências”: disseram perguntar a parentes, amigas e/ou vendedoras videntes ― a dependência de alguém que enxerga para inserir-se numa linguagem visual fica clara.

Ao se referirem ao conceito de mulher, não houve diferenças significativas entre os dois grupos: as palavras empregadas, quase sempre todas juntas, foram, “mãe”, “profissional”, “tudo ao mesmo tempo”, uma série de conceitos que se reportam, exatamente, à grande quantidade de papéis sociais vivenciados na contemporaneidade. As entrevistadas eram livres para falarem o que quisessem, mas apenas as opções indicadas foram reportadas, com variações do tipo ao invés de falar “trabalhar”, dizer “ter uma carreira”; também se podia escolher mais de uma opção. O interessante é que nenhuma pessoa usou para traduzir “mulher” alguma palavra que denotasse especificamente à imagem, como “bonita” ou “elegante”, tal qual seria esperado de um “feminino” construído sobre o registro do imaginário, da “boa figura”. Conscientemente, talvez não seja assim que elas percebam a questão da feminilidade, o que, contudo, foi apontado quando os sujeitos estudados informaram se preocupar com a aparência.

Perguntadas se se consideravam mulheres bonitas ― os conceitos de mulher e beleza foram anteriormente suscitados antes de se chegar a esse ―, todas as entrevistadas com idade entre 20 e 40 anos afirmaram que sim; desse total, todas disseram achar isso porque outras pessoas lhes diziam, e quatro ― podia-se responder mais de uma opção ― afirmaram saber, ademais da opinião alheia, por sua auto-percepção: o toque, altura, a textura da pele. No grupo das mulheres com faixa etária dos 41 aos 60 anos, também todas declararam-se como “mulheres bonitas”; as 19 mulheres pesquisadas afirmaram saber disso, mais uma vez, porque lhes era dito. Isso revela que, possivelmente, a autoimagem do cego não use de mecanismos tão mirabolantes quanto se poderia supor para construir-se; há uma introjeção, tanto quanto possível, do outro para a construção do eu imaginário. Desse modo, o discurso das outras pessoas adentra na psique do deficiente visual por caminhos distintos da visão, mas ele está lá, em movimento, numa relação especular de constante reconstrução. Todas as entrevistadas, em ambos os grupos, declararam-se “mulheres bonitas” e afirmaram supor serem vistas assim pelos outros; logo, são eles, os outros, os construtores da sua auto-noção como “bonita”.


O “item 24” do questionário, onde se pedia para completar a frase “Se eu pudesse ser outra pessoa eu seria:” foi o que causou mais controvérsia – ou desconforto - durante a pesquisa. Ao ler-se a questão, as entrevistadas, quase sempre descontraídas, esboçavam raiva, indignação ou surpresa, quem sabe descrentes da proposta, por julgá-la “absurda, sem sentido”, nas palavras delas; não raramente, pediam que a sentença fosse novamente lida. Então, de pronto, a maior parte das mulheres ouvidas tiveram a mesma resposta: um seco “eu!”. Todas as que responderam que “seriam eu”, independentemente da faixa estaria, afirmaram que se bastavam, que estavam satisfeitas consigo, possivelmente apontando os problemas de saída do narcisismo primário enfrentados pelos cegos. É preciso, ainda, recordar que quase nenhuma das mulheres ouvidas, em todas as faixas etárias investigadas, afirmou se “espelhar” em outra pessoa; talvez, outro índice a apontar questões mal resolvidas do narcisismo primário, ou, como já dito, as dificuldades em elaborar conscientemente um espelhamento não embasado majoritariamente na imagem de signos visuais.

Entre as entrevistadas que afirmaram que, caso pudessem, seriam pessoas famosas, todas justificaram a opção indicando o “dinheiro” (4 mulheres), o “reconhecimento” (4 mulheres) e a “facilidade de comunicação” (2 mulheres) como atrativos para imitação; na última opção apontada, transparece o desejo de conseguir se fazer entender, em sendo-se cego, numa sociedade baseada na comunicação visual. Para as que falaram que seriam a mãe ― todas pertenciam ao grupo com idades entre 41 e 61 anos ―, elas disseram admirar na figura materna a “força” em ajudá-las a aceitar a própria deficiência e o carinho recebido.


6. Algumas Reflexões

Este artigo abordou muitas temáticas e, possivelmente, cada uma delas poderia originar uma investigação em separado. O objetivo aqui almejado, entretanto, não foi o de se aprofundar em todos os assuntos referidos, mas o de propor ligações entre eles. Talvez, o percurso tenha sido cansativo, todavia, a partir dele, se poderão, agora, sugerir algumas reflexões acerca da sociedade visual e de como a mulher cega, tendo por base o seu corpo, comunica-se com outros sistemas psiquico-cognitvo-sociais visualmente hipertrofiados.


O desafio do cego é grande: ainda bebê, ele tem que descobrir os mecanismos táteis-sinestésicos-auditivos para interagir com uma mãe não raramente “frustrada”, que esperava dele a troca de olhares, o reconhecimento da face e, como resposta, um sorriso preferencial. Repetidamente, a sua tarefa será a de solucionar os problemas em entender e se fazer entendido por uma sociedade escópica – existe, portanto, uma questão semiótica, de tradução. Desse modo, o trabalho realizado pelo portador de cegueira será o de converter, para a sua percepção, códigos visuais em auditivos, táteis, olfativos, palatáveis, sinestésicos e, talvez, sobre todos os outros, verbais/sonoros, já que é pela fala que a criança cega parece conseguir melhor expressar aos videntes suas sensações, pensamentos, emoções, e organizar mentalmente as informações captadas pelos seus sistemas cognitivo e psíquico. Além disso, ao contrário do tato, que poderia ser melhor explorado pelo portador de cegueira, a fala não conta com severas restrições culturais ao seu uso. Num sentido oposto, além de perceber um “exterior visual”, será necessário, também, traduzir signos de outras naturezas em representações visuais no intento de comunicar-se.

Para o deficiente visual que assume a condição feminina ― supõe-se serem predominantemente as mulheres ―, esses processos comunicacionais devem revelar-se ainda mais complexos, pois, conforme anteriormente reportado, o feminino é um gênero extremamente ligado ao imaginário, à “boa imagem”. Nesse sentido, tal qual constatado na pesquisa empírica apresentada na seção anterior, as mulheres cegas, ao se declararam “bonitas”, afirmaram obter esse conceito pela fala do outro; destituídas da percepção do “outro do espelho” visual, é sobretudo pelo verbal que elas introjetam as expectativas e valorações alheias e, assim, assumem uma feminilidade.

A possibilidade de falhas nessa comunicação é grande, especialmente no momento de corporificar o discurso do outro no próprio corpo, assumindo uma persona frente à sociedade; é preciso fabricar os signos visuais aos quais não se tem acesso. Quem sabe em função disso, por exemplo, a maior parte das entrevistadas tenha declarado usar “roupas clássicas”, pretensamente independentes da moda e, assim, “seguras”, ou ainda falarem “odiar” maquiagem, código inteiramente visual. Certamente, é de difícil operacionalização para alguém sem a capacidade de enxergar usar a corporeidade em sua qualidade de media visual, o que deve ser profundamente angustiante quando se sabe da importância dada pelos outros com os quais se convive aos sentidos visuais.

Um índice interessante foi o que indicou, conforme os dados apresentados na pesquisa empírica, que para as cegas o binômio mulher/aparência não se encontra estruturado conscientemente como um par; é como se o feminino ― a imagem ― e o “ser mulher” fossem dois conceitos distintos, ao contrário do proposto para a grande parcela da sociedade, onde feminino e “boa imagem” são quase sinônimos. Ainda assim, o supracitado binômio conceitual fez-se presentificado quando todas as mulheres ouvidas declararam-se vaidosas, preocupadas com o quesito “aparência”. Isso sugere pensar que, apesar do imaginário não se estruturar por signos imagéticos visuais para as cegas, ele seja, mesmo nelas, o registro da imagem, da aparência do objeto. O problema é que as outras pessoas com as quais a mulheres sem visão convivem estruturam seu ego predominantemente nas imagens visuais, e as portadoras de cegueira assumem um Outro visual sem, muitas vezes, o compreenderem: seria um eu ainda mais alienado? Aqui, cabe fazer uma correção, quase uma abdução ocorrida nessas reflexões finais: no decorrer deste trabalho, em inúmeros momentos, usou-se a palavra imagem como sinônimo de signo visual, o que acarretaria na impossibilidade dos cegos possuírem imaginário. Peirce, contudo, ao expandir os hipoícones imagéticos para além do visual, resolve o que seria um impasse, explicando como, mesmo sem enxergar, os cegos conseguem apreender signos imagéticos – sonoros, táteis, gustativos... – e assim edificarem seu eu: a cegueira é uma deficiência visual, e não imagética.

Outro dado interessante, e que confirma uma maior “desenvoltura” dos portadores de cegueira no uso dos signos verbais/sonoros, foi a escolha das entrevistas pelo rádio como mídia preferida, um canal inteiramente auditivo – extensão técnica do ouvido. Além disso, todas as outras mídias citadas como mais usadas – televisão, livro falado e “música” – são ou tornam-se sonoras para os cegos. Por isso, sugere-se que os esquemas táteis-cinestésicos-auditivos dos primeiros meses de vida sejam posteriormente reorganizados com a audição ficando na primeira posição.

A partir do exposto, essas breves reflexões enceram-se com a certeza de que o universo dos portadores de cegueira ainda tem muito a revelar, e que a pesquisa aqui desenvolvida foi muito mais uma “carta de intenções” e uma tentativa de compreensão de estruturas gerais, do que qualquer outra coisa. Ainda assim, foi possível inferir algumas ideias; recapitulando: sugere-se que os cegos edifiquem seu imaginário ― e assim sua identidade ― da mesma forma que os videntes, no sentido de incorporar o discurso do outros, mas diferentemente desses por não usarem nesse procedimento as imagens visuais; acredita-se, também, que os signos verbais/sonoros sejam os mais permeáveis ao sistema psico-cognitivo dos portadores de cegueira, bem como que poderia existir um melhor aproveitamento dos potenciais semióticos do tato, através, por exemplo, de um aperfeiçoamento do braile; pensa-se, ademais, que o feminino, estruturalmente, seja também para as cegas um signo baseado no imaginário, inclusive no tocante aos signos visuais, pois todas as entrevistadas reportaram dar atenção à vaidade.


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NOTAS

  • 1 Marcelo Santos é professor permanente do Mestrado em comunicação da Faculdade Cásper Líbero. Contato: masmoraes@casperlibero.edu.b

  • 2 A expressão, famosa, é utilizada por Freud em 1926, no texto “A questão da análise profana”.

  • 3 Por isso, a confusão de alguns e perceber a teoria freudiana enquanto um modelo biologizante, quando ela enfoca sua abordagem na simbolização das diferenças anatômicas (BREEN, 1998, p.13).

  • 4 No panteão nórdico, Odin era o “pai universal, deus da inspiração poética, do mistério e da magia, patrono dos guerreiros” (PAGE, 1999, p.7).

  • 5 Filho de Zeus e sua primeira amante mortal, Argos herdou uma parte do Peloponeso, batizando-a Argólida. Seu bisneto, homônimo, possuía, segundo algumas versões, “apenas um olho, segundo outras, quatro: dois voltados para a frente e dois para trás. A tradição mais seguida, todavia, é a de que Argos era um verdadeiro gigante, dotado de cem olhos” (BRANDÃO, 1991, p. 115). Encarregado por Era de vigiar Io, a bela filha de Ínaco e Mélia por quem Zeus se apaixona, Argos é derrotado por Hermes, que o faz dormir com a flauta mágica de Pã e corta sua cabeça (ibid.; ibid., p.610).

  • 6 “Victor Hugo, em O homem que ri, refere-se à garota cega Déa como capaz de êxtase e profunda harmonia com Deus, como se estas qualidades fossem peculiares à cegueira” (AMIRALIAN, 1997, p. 27).

  • 7 No mito de Édipo, o protagonista, sem saber, mata seu pai e casa-se com a Mãe-coisa proibida. Ao se darem conta do ocorrido, Jocasta, a mãe, mata-se, e Édipo fura seus olhos por não ter conseguido reconhecer a sua genitora, assim transgredindo a necessária lei (QUINET, 2004, pp.112-114). “Sófocles [autor da tragédia Édipo Rei] descreve a cegueira como uma condição pior que a morte, uma autopunição para o pecado do incesto. Por outro lado, quando a vista de Tirésias (...) é destruída pelos deuses, ele é recompensado com o dom da profecia” (AMIRALIAN, 1997, p.26). Na Idade Média, a significação da cegueira como punição, tal qual se passou em Édipo, tornou-se comum, associando-se a perda da visão, a lepra, a hidrocefalia e uma série de mazelas com o pecado próprio ou dos ascendentes; isso levou ao extermínio de muitos deficientes pela Inquisição (CAIADO apud DALL’ACQUA, 2002, pp. 52-53).

  • 8 Na mitologia grega, as três Górgonas, Medusa, Ésteno e Euríale (BRANDÃO, 1991, p. 115), “pertencem à descendência de Fórcis e Ceto, cujo nome evoca ao mesmo tempo uma enormidade monstruosa e, no mais profundo do mar ou da terra, abismos cavernosos” (VERNANT, 1988, pp. 65-66). Elas vivem “para além das fronteiras do mundo, junto à Noite, no país das Hespérides de voz estridente (...). A Górgona mortal, cujo nome é Medusa” (ibid.), petrifica aqueles que cruzam sua face, à qual “nenhum humano pode olhar sem expirar imediatamente” (ibid., p. 67).

  • 9 Um dos Ilos citados na mitologia grega – no total são três heróis - perde a visão ao entrar no Paládio – templo de Palas Atena – em chamas para salvar a estatueta sagrada da deusa; como não era permitido ver o ídolo divino – a própria Atena – Ilo fica cego (BRANDÃO, 1991, p. 606); essa é a mesma lógica da Górgona – um mortal só pode ver o sagrado na hora de sua morte. Depois, reconhecendo o mérito do sacrifício de seu adorador, Atena lhe restitui a visão (ibid.).

  • 10 Em Totem e Tabu, Freud (2000) sugere que nos tempos primitivos o pai chefe do grupo, que detinha o monopólio sobre todas as mulheres, teria sido assassinado e devorado por seus filhos, desejosos de ocupar seu lugar. Como esse pai era também objeto de admiração, sua morte o torna ainda mais forte: ele passa a simbolizar a culpa, o olho repressor, sempre vigilante.

  • 11 Rousseau (apud MASSIP, 2001, p.207), ao tipificar os estágios de desenvolvimento da humanidade, destaca exatamente a importância do “contrato social”, a lei, na transformação do indivíduo em cidadão imprimida no estado social

  • 12 Aqui, segue uma definição mais detalhada: a acuidade visual “exprime a capacidade discriminativa de formas; ou como o método com que se mede o reconhecimento da separação angular entre dois pontos no espaço (isto é, distância entre eles, relacionada ao primeiro ponto nodal do olho); ou da resolução (visual) de suas respectivas imagens sobre a retina, relacionadas ao segundo ponto nodal do olho. Nessas ‘definições’, a primeira com ordenação psicobiológica, as outras duas operacionais, não fica claro o que seja ‘forma’ ou ‘reconhecimento’ ou ‘resolução de imagens’. De fato, os próprios conceitos a que tais termos ficam subordinados não são facilmente delimitados. Assim, a resolução visual depende dos níveis diferenciais de iluminação (contrastes) entre as partes do estímulo (por exemplo, entre as tonalidades dos traços de uma figura e as de seu fundo)” (BICAS, 2002, p.376). Desse modo, apesar de amplamente usada, a media da acuidade é ainda um método impreciso para aferir a capacidade visual.

  • 13 Num estudo de 1966, a OMS encontrou “mais de 65 diferentes definições de cegueira que eram usadas em vários países” (COLEMBANDER apud DALL’ACQUA, 2002, p.77).

  • 14 Nos últimos anos, a OMS “tem mostrado preocupação com o uso de uma definição que se baseia na acuidade visual tomada à distância e conclui que seria necessário formular uma nova definição” (DALL’ACQUA, 2002, p.78) para diagnosticar os portadores de visão subnormal, pautada na “utilidade da visão residual [grau de visão não aferido numérica, mas clinicamente, por meio da percepção da luz, objetos, dedos...] e a importância de se testar a visão de perto” (ibid.).

  • 15 Por muito tempo, pessoas com baixa visão foram erroneamente enquadradas como cegas. Relatórios do início da década de 1960 “apontavam que em torno de 60% das crianças legalmente cegas registradas na American Printing House for the Blind apresentavam um nível de visão que excedia à percepção de luz, o que significava que tais crianças, embora categorizadas como cegas, percebiam mais coisas no ambiente além da luz” (DALL’ACQUA, 2002, p.71). Em virtude da falta de uma estimulação precoce, portadores de baixa visão tomados por cegos acabavam por atrofiar a sua, ainda que limitada, capacidade visual. Mesmo, todavia, quando se tinha o diagnóstico de visão subnormal, as crianças eram tratadas como cegas, “com base na crença de que a visão se desgastava e o uso poderia ser prejudicial à pessoa, acelerando o processo da doença ocular” (PIÑERO apud MONTILHA, GASPARETTO e NOBRES, 2002, p.188). Hoje, novas práticas metodológicas permitem uma maior precisão no detalhamento das perdas visuais, possibilitando diferenciar com menos inseguranças os portadores de visão subnormal e cegueira, e assim imprimir os procedimentos adequados (DALL’ACQUA, 2002, pp.77-81).

  • 16 Para efeito de comparação, uma pessoa com a visão em perfeito funcionamento apresenta acuidade entre 0,3 e 1,0, e um campo de visão que chega a até 180º (UNESP: 2007).

  • 17 Com o término da II Guerra Mundial, em 1945, a Organização das Nações Unidas, ONU, foi implementada e passou a ter como foco de ação a temática do desenvolvimento. Até 1970, esse conceito era definido a partir da geração de dividendos, tomando por parâmetro o Produto Interno Bruto - PIB -, ou seja, a soma das riquezas produzidas por um país (NEGRINE, 2007, p. 25). Com o passar dos anos, o desenvolvimento econômico começou a ser entendido enquanto meio, e não como fim, não podendo “ser associado automaticamente ao desenvolvimento social e cultural” (ibid., p. 31). No ano de 1990, propôs-se o Índice de Desenvolvimento Humano ― IDH ― para aferir o estágio de qualidade de vida em um Estado, que além de considerar o poder de compra per capita, abrange a longevidade e a educação como parâmetros (ibid.: 40). “Não obstante, logo se verificou que a liberdade humana e avanços no domínio cultural são itens extremamente importantes, não contemplados no IDH. Contudo, atualmente, apenas os fatores anteriormente citados são contemplados” (ibid., p. 41). A partir do exposto, o termo “país em desenvolvimento”, para cujo uso não há unanimidade, refere-se às nações possuidoras de indicadores econômicos e sociais – normalmente, os primeiros são mais valorados - abaixo dos verificados nos países onde há uma melhor qualidade de vida, os quais concentram 20% da população mundial e 86% de todo PIB gerado no globo (ibid., pp. 142-146).

  • 18 Se considerada apenas a cegueira e também os adultos, o número de casos evitáveis chega a chocantes 75% (OMS, 2008).

  • 19 No senso de 2000, investigaram-se as seguintes categorias de deficiência: 1) metal permanente; 2) tetraplegia, paraplegia ou hemiplegia permanente; 3) falta de membro ou de parte dele; 4) incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de enxergar; 5) incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de ouvir; 6) incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de caminhar ou subir escadas. Os sujeitos ouvidos foram considerados deficientes mesmo sem portar declaração que comprovasse esse fato (Censo Demográfico 2000 – IBGE, 2000a).

  • 20 Considerando uma população de 169.872.856 habitantes (Censo Demográfico 2000 – IBGE, 2000a).

  • 21 O número é expressivo; corresponde, por exemplo, a praticamente a população de países como a Estônia, possuidora de 1,3 milhão de habitantes (G1, São Paulo: 2007),ou a mais de quatro vezes o número de moradores de Florianópolis, que em 2007, segundo dados do IBGE, tinha 396.723 residentes.

  • 22 Para mais informações sobre as possibilidades semióticas do olhar, ver Nöth (1990, pp.405-406).

  • 23 Nasio (1995, p 64) informa que “Lacan voltou à dialética do estádio do espelho e assinalou que a visão da imagem do outro não basta, por si só, para constituir a imagem do próprio corpo, caso contrário, o cego não disporia de um eu!”. Não foi possível encontrar, entretanto, ao menos até onde esta pesquisa conseguiu levantar, informações detalhadas sobre os “recursos” usados pelos cegos na construção de seu ego. O que talvez valha a pena referir dentro da bibliografia estudada, no tocante à formação egóica, é a seguinte passagem de Bruno (1993, p.22): as crianças cegas “necessitam ter vivências corporais significativas para poderem organizar suas ações no tempo e no espaço. A construção da imagem corporal [ou seja, do ego] advém também da oportunidade de relacionar-se com crianças de sua idade, para poder perceber o próprio corpo em relação ao outro, e construir desta forma a noção de eu-outro e a noção da permanência do objeto” (grifos meus). Logo, pode-se supor que os cegos se utilizam de signos não visuais para construir imagens mentais, inclusive a autoimagem.

  • 24 Burlinghan (apud AMIRALIAN, 1997, p.62) afirma, por outro lado, “que o controle da movimentação é uma forma essencial de autoproteção adotada pelos cegos, podendo-se notar a determinação com que algumas destas crianças desde cedo fecham este caminho”; daí, mais ainda, a necessidade de estimular a mobilidade de portador de cegueira desde cedo.

  • 25 A semiótica da face e dos gestos é exposta panoramicamente por Nöth (1990, pp.392-404). Para mais, consultar autor.

  • 26 O termo “imitação” foi usado, historicamente, na explicação dos mais diversos tipos de comportamento humano; o filósofo francês Gabriel Tarde chegou a propor a imitação como base de uma teoria para compreensão do desenvolvimento e das mudanças sociais. Para Bandura (apud CARMICHAEL 1975b, pp.46-47), a palavra “imitação” deve ser tomada como sinônimo de “identificação” ou “aprendizagem por observação”, referindo-se às “modificações de comportamento que resultam de exposição a estímulos que servem de modelo”.

  • 27 Certamente, um critério questionável, mas o único à mão do responsável pela pesquisa. É bom lembrar que, mesmo enevoado por uma “imprecisão subjetiva”, tal critério é amplamente usado e foi, por exemplo, o adotado pelo IBGE no censo demográfico realizado em 2000 pelo citado órgão.

  • 28 Consiste na reprodução em áudio de obras da literatura escrita.

  • 29 Este cartão também servia para que, em querendo se retirar do estudo, os sujeitos entrevistados pudessem entrar em contato com o pesquisador. Sua confecção foi uma sugestão e uma gentileza de uma das entrevistadas.

  • 30 Para o quesito “fonte de renda”, além do salário, eram consideradas as outras rendas da família da entrevistada: pais, marido, filhos, as pessoas com as quais ela morava e contribuíam na renda familiar.

  • 31 A palavra “música” foi um termo introduzido pelas entrevistadas para se referir a quando não escutavam músicas através do rádio, mas por outros equipamentos, como tocadores de discos compactos.

  • 32 Nesse caso, consideram-se os 36 sujeitos pesquisados.

  • 33 Palavras como rápido, veloz ou ligeiro foram tomadas por sinônimos a fim de se fazerem as porcentagens; esse critério foi o adotado para análise quantitativa de todas as respostas abertas.

  • 34 No final do texto em questão, Machado (2001, p. 17) afirma que a atual civilização é marcada pela hegemonia da palavra sobre a imagem; a partir do percurso até aqui desenvolvido nesta dissertação, discorda-se, contudo, dessa posição assumida pelo autor.
     

FIM

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A Autoimagem de Quem não Vê: Recepção, Produção e Mediação de Sentidos por Mulheres Cegas numa Sociedade Visual
Autor: Marcelo Santos
in 'Comunicação, mídia e sociedade'  (pp.169-202)
São Paulo: Editora Intermeios, 2015, v. 1, p. 169-202

fonte: https://www.researchgate.net/publication/303988532
 

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24.Mai.2023
Maria José Alegre