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![El Reino de los Ciegos 3 - Verena Urrutia, 2009 [tinta da china, acrílico e lápis]](https://www.deficienciavisual.pt/Quadros/El%20Reino%20de%20los%20Ciegos3-VERENA%20URRUTIA-2009.jpg)
El Reino de los Ciegos - Verena Urrutia,
2009
O cego estava quebrando o ovo para fazer omelete quando o porco entrou na
cozinha. Sentiu-o aos seus pés; em silêncio, cheirava os seus pés. O cego estava
de sandálias e a saliva do porco era uma coisa quente e líquida molhando o seu
calcanhar direito. Os músculos do cego se retesaram. Sua
mulher e sua filha haviam saído. Elas sabiam do grande medo que ele tinha de
porcos e por isso os trancavam no chiqueiro. O cego percebeu, dentro da névoa do
seu medo, que eles haviam arrebentado as tábuas podres do chiqueiro e saído. A
mulher já o havia advertido: "As tábuas do chiqueiro estão podres. Precisamos
trocá-las.” Eram três porcos gordos e espremidos no chiqueiro cujas tábuas iam
apodrecendo debaixo das chuvas e dos carunchos. Viviam alucinados pelo calor,
engordando e envelhecendo com as moscas que lhes trepavam nos lombos.
O cego
estava sempre adiando a data de matá-los — esperava uma visita importante
qualquer, já não sabia há quanto tempo eles estavam em sua casa. Só sabia de sua
aversão por eles e de uma iminente visita importante, quando então os mataria.
Havia deixado a casca do ovo cair no chão e o porco agora a
comia. Pelo menos enquanto ele come não se lembra de mim, pensou. Os velhos e
agudos dentes do porco trituravam a casca e o cego pensou então que aqueles
dentes, apesar de velhos, rasgariam a carne de suas pernas como se elas fossem
manteiga. Tinha tanto medo do porco morder as suas pernas que elas não obedeciam
ao seu intenso desejo de correr, e permaneciam fincadas no chão, expostas aos
agudos dentes velhos do porco que agora, pelo silêncio, o cego sabia ter
terminado de comer a casca do ovo e começava a cheirar o ar com seu largo, sujo
e enrugado focinho de porco velho.
As tábuas da escada que dava do quintal para
a cozinha rangeram. Estão subindo os outros, pensou o cego e o seu terror nesse
momento foi tão intenso que ele sentiu, no escuro poço de sua vertigem, as
pernas bambearem. Não posso cair, murmurou, não posso cair.
Como um soco em sua
memória, o aviso da mulher: só chegaremos à noite. Haviam saído, ela e a filha,
para visitar uma parenta doente e o cego se rendeu, subitamente, à dolorosa
realidade — ter de permanecer durante longo tempo como um monumento lívido e
frágil em meio aos porcos. Eles agora rodeavam as suas pernas, grunhindo.
Misturado aos seus roncos, que ecoavam na cozinha como a nota mais grave de um
instrumento de sopro, o cheiro enjoativo do ovo sobre o prato. O cego
lembrou-se, com uma ponta de desespero, da omelete que nunca comeria e então fez
o gesto que talvez o salvasse da fome e do ódio dos seus porcos: com as mãos
trêmulas derramou o ovo no chão. Foi um gesto mecânico e tateante mas que
inaugurou nele uma certa paz — os porcos lambiam o ovo no chão e isso era a
trégua; enquanto eles se alimentavam não se lembrariam de suas pernas.
Sua
mulher tinha o
costume de deixar os mantimentos sobre a pia, na frente da qual se encontrava, e
ele tentava agora localizá-los. Sabia que a menina havia feito a feira naquela
manhã e que enquanto entregava os mantimentos para a mãe, ia nomeando-os. Estava
tudo na sua frente, além do vácuo negro dos seus olhos. Precisava detectar os
mantimentos e com eles saciar a dura fome dos porcos. Apalpando
a superfície húmida da pia, seus dedos tocaram num objeto morno. Era um objeto
morno e redondo, com uma haste encimando-o. Abóbora, pensou, e puxou-a pela
haste. O ruído seco da abóbora caindo no chão foi o ruído de uma abóbora que se
partia e que se ofertava, amarela e luminosa, à avidez dos porcos. O ruído que
se seguiu ao da abóbora se partindo foi o ruído dos porcos
mastigando. Mastigavam com pressa e grunhiam. Havia satisfação nos seus
grunhidos.
O cego, então, com uma escura dificuldade, foi localizando e atirando
ao chão o arroz, os quiabos, a couve, até que, não encontrando mais nada para
atirar, escutou: a bolha de saliva arrebentando. Pelo denso silêncio que subia
do chão ele entendeu que a bolha de saliva fora o final do festim. Entendeu
também, com a profunda e mágica percepção dos cegos, que os porcos ainda não
estavam saciados. E que o rodeavam, pensativos, os olhos fixos em suas pernas.
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Nascido em Mariana, MG, integrante da Geração 60, surgida
naquela década com o Suplemento Literário do Minas Gerais sob a liderança
editorial de Murilo Rubião, Duílio Gomes tornou-se referência nacional como
contista ao vencer prêmios literários de importância, como Minas-Caixa, Cidade
de Belo Horizonte, Guimarães Rosa, Status e Fernando Chinaglia. Textos de sua
autoria foram traduzidos para 8 línguas e se impôs como um dos escritores mais
incluídos em 33 antologias e coletâneas de contos curtos. Por duas vezes editou
o SLMG, em cuja gestão logrou, para o semanário, o Prêmio de Melhor Suplemento
de Cultura do país, outorgado pela UBE/Sp. Integrou a Comissão Organizadora das
Bienais Nestlé de Literatura em 1985 e 1988 e mantém produção de resenha
literária em jornais como Estado de Minas (caderno Pensar), Jornal do Brasil
(caderno Ideias). Formado em Direito pela UFMG, já teve contos adaptados para o
rádio, teatro e cinema, nesta arte por Breno Milagres, em Nada será como antes.
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O Ovo com Solenidade
conto
autor:
Duílio Gomes
in Os Melhores Contos Fantásticos
org.: Flávio Moreira da Costa
ed.:
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006
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1.Mai.2015
Publicado por
MJA
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