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 Sobre a Deficiência Visual

 

A Visão Faria o Mel Ser Mais Doce?

Tracy Chevalier

A imagem mostra a dama sentada, segurando na mão direita um espelho. O unicórnio está ajoelhado, com a  pata direita no colo da dama, a quem contempla pelo reflexo no espelho. Ao lado esquerdo está um leão segurando um estandarte..
"A Visão" faz parte de um conjunto de 6 tapeçarias tecidas na Flandres, no final do séc. XV. À série - que se encontra hoje no Musée National du Moyen-Âge, em Paris - dá-se o nome de "A Dama e o Unicórnio".

 

Senti o olhar dos dois rapazes em mim como se fossem seixos batendo em minhas costas. É estranho eu sentir essas coisas sem saber como eles são, qual é a aparência deles.

Os dois me olhavam e eu sabia o que estavam pensando: como eu podia encontrar o mato e saber que era mato? O matinho é igual a qualquer planta, só que ninguém o quer: tem folhas, flores, cheiro, caule e seiva. Pelo tato e olfato, conheço-o tão bem quanto as demais plantas.

- Aliénor, precisamos da sua ajuda nas millefleurs das tapeçarias - disse Philippe.

- Desenhámos algumas no cartão, mas queremos que nos mostre flores para usarmos.

Pus-me de cócoras outra vez. Gosto quando me pedem ajuda. Sou muito prestativa. Assim, meus pais jamais me acharão um peso na vida deles e me mandarão embora de casa.

As pessoas elogiam sempre o meu trabalho:

"Como seu ponto é uniforme"; "Como suas flores são viçosas"; "Como são vermelhos os seus morangos; é uma pena que não possa vê-los."

Sinto dó na voz deles, assim como surpresa por eu ser tão útil. Não conseguem imaginar alguém sem a visão, da mesma forma que eu não consigo pensar em alguém com ela. Os olhos são apenas duas bolas que se mexem no meu rosto, como minha boca mastiga ou as narinas inflam. Tenho outras formas de conhecer o mundo.

Por exemplo: conheço as tapeçarias que faço. Posso sentir cada sulco da urdidura, cada saliência da trama, acompanhar o desenho das flores, seguir os pontos que dei com a agulha contornando a perna traseira de um cachorro, a orelha de um coelho ou a manga da túnica de um camponês.

Sinto as cores. O vermelho é de um macio sedoso, o amarelo espeta, o azul é escorregadio. As tapeçarias formam um mapa sob meus dedos.

As pessoas falam na visão com tal reverência que às vezes penso que, tivesse eu olhos, a primeira coisa que veria seria Nossa Senhora. Ela estaria com um sedoso manto azul e sua pele seria macia; o rosto, cálido. Ela teria cheiro de morango e poria as mãos em meus ombros, mãos que seriam leves e, ao mesmo tempo, firmes, e depois eu sentiria para sempre aquele toque.

Às vezes, também fico pensando se a visão faria o mel ser mais doce, a lavanda mais cheirosa e o sol mais quente no meu rosto.

FIM

 

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Tracy Chevalier é uma escritora americana, hoje radicada em Londres, que se notabilizou, nos primeiros livros, pelo diálogo com pinturas célebres. Era como se os seus romances, em particular Rapariga com Brinco de Pérola e A Dama e o Unicórnio, ambos já publicados em Portugal, quisessem oferecer às figuras representadas a narrativa que as levou ali, ao momento em que o pintor as eternizou. Essa inspiração visual deixou de estar presente nos seus livros, mas o poder descritivo e a revisitação de momentos históricos continuam a ser linhas com que cose os seus romances, nomeadamente o mais recente, A Última Fugitiva. in Jornal das Letras (2013)

 

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excerto de
'A Dama e o Unicórnio'
Tracy Chevalier
trad. Maria de Fátima St. Aubyn
Lisboa, Temas e Debates, 2005

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29.Nov 09
Publicado por MJA