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360 a.C.

Platão segurando o Timeu - Rafael, 1510
À imagem da figura do universo, que é esférica,
as divindades prenderam as órbitas divinas, que são
duas, num corpo esférico: este a que chamamos cabeça,
que é a parte mais divina, e domina todas as outras
partes que há em nós; a ela os deuses entregaram todo
o corpo, como servo, ao qual a juntaram, percebendo
que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo
quanto ele tivesse. Para que não rolasse sobre a terra,
que tem altos e depressões de todo o tipo, e não tivesse
dificuldade em transpor umas e sair de outras, deram-lhe
este veículo para fácil deslocação; daí que o corpo
seja comprido, e tenha por natureza quatro membros
extensíveis e flexíveis, fabricados pelo deus para a
deslocação. Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar,
era capaz de se deslocar por todos os locais, enquanto
transportava no topo a morada daquilo que em nós é
mais divino e sagrado. Foi por este motivo e deste modo
que a todos foram anexadas pernas e mãos.
Considerando que a parte da frente é mais nobre
e própria para governar do que a de trás, os deuses deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse
sentido. Portanto, era preciso que a parte da frente do
corpo humano fosse distintiva e dissemelhante. Foi por
isso que, em primeiro lugar, estabeleceram neste lado da
parte exterior da cabeça o sítio do rosto, e em seguida
firmaram os instrumentos relacionados com todas as
capacidades de providência da alma, e estabeleceram
que, de acordo com a natureza, seria na parte anterior
que ficariam situados os órgãos que tomam parte na
governação.
Entre os instrumentos, fabricaram em primeiro
lugar os olhos, portadores da luz, tendo-os ali fixado pela
seguinte razão: essa espécie de fogo que não arde, antes
oferece uma luz suave, os deuses engendraram-no, de
modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado.
O fogo puro que há dentro de nós, irmão do outro,
fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com
suavidade e de modo contínuo, pelo que comprimiram
ao máximo o centro dos olhos, de tal forma que
sustivesse a outra espécie mais espessa, na sua totalidade,
e filtrasse apenas esta espécie pura. Deste modo, quando
a luz do dia cerca o fluxo da visão, o semelhante recai
sobre o semelhante, tornam-se compactos, unindo-se
e conciliando-se num só corpo ao longo do eixo da
visão; o que acontece onde quer que aquele fogo que
sai do interior contacte com o que vem do exterior.
Assim, gera-se uma homogeneidade de impressões,
pois o todo é muito semelhante; se esse todo tocar em
algo ou se algo tocar nele, distribui os seus movimentos
por todo o corpo até à alma, e produz a sensação a que nós chamamos “ver”.
Quando o fogo se afasta ao cair
da noite, separa-se do fogo de que é congénere; por
cair sobre algo que lhe é dissemelhante, ele altera-se e
extingue-se, pois a sua natureza não é congénere à do ar
que o rodeia, já que este não tem fogo. Então, a visão
acaba e gera-se o convite ao sono.
De facto, quando
se cerra a protecção que os deuses engendraram para a
visão ― as pálpebras ―, essa protecção sustém o poder do
fogo interno. Este dispersa-se e acalma os movimentos
do interior. Uma vez acalmados, gera-se o sossego, e,
uma vez gerado um sossego profundo, abate-se um
sono com poucos sonhos; mas quando restam alguns
movimentos fortes, conforme a sua natureza e os locais
onde ficam, produzem no interior simulacros que se
assemelham, quanto à natureza e ao número, ao exterior
e que serão recordados ao acordar.
Assim, já não é difícil
perceber a formação de imagens em espelhos e em todas
as superfícies reflectoras e lisas. Por causa da relação
recíproca que o fogo interior e o fogo exterior mantêm
entre si, cada vez que um deles encontra uma superfície
lisa, mudando constantemente de forma, todas estas
imagens aparecem, por necessidade, graças à conjunção
entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda
a visão, quando se deparam com uma superfície lisa e
brilhante. Aquilo que está à direita aparece à esquerda,
porque é com as partes contrárias da visão que as partes
contrárias do fogo exterior estabelecem contacto,
em oposição ao que habitualmente acontece quando
chocam entre si. Pelo contrário, a direita está à direita e a esquerda à esquerda, quando a luz muda de direcção por se fundir com o objecto com que se funde; o que
acontece sempre que a superfície lisa dos espelhos, por
adquirir uma saliência de um lado e de outro, empurra
para o lado esquerdo da visão a luz que vem do lado
direito e vice-versa. Mas, se o espelho for redondo
transversalmente, em relação ao rosto, fará com que
tudo apareça invertido, porque empurra para cima a luz
que vem de baixo e para baixo a que vem de cima.
Todas estas são causas acessórias que um deus
utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete,
conforme pode, a ideia do melhor. No entanto, a
maioria considera que não são causas acessórias mas sim
as causas de tudo, visto que produzem o arrefecimento
e o aquecimento, a solidificação e a fusão e efeitos
desse tipo. Mas não é possível que tais causas possuam
razão ou intelecto em relação ao que quer que seja.
Temos que dizer que, entre todos os seres, o único ao qual é adequado possuir intelecto é a alma ― pois
esta é invisível, enquanto que o fogo, a água, a terra e
o ar foram todos gerados como corpos visíveis ― e que
o amante da intelecção e do saber persegue, por
necessidade, as causas primeiras do que na natureza é racional; aquelas que são movimentadas por outros seres e que, por necessidade, transmitem o movimento
a outras, essas são causas secundárias. Também nós
devemos fazer isso; devemos falar de ambos os géneros
de causas, distinguindo as que fabricam coisas belas e
boas com o intelecto das que, isentas de intelecção,
cada vez que produzem algo, o fazem ao acaso e sem
ordem. Coube-nos então falar das causas acessórias,
pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora têm.
Da obra mais importante, do ponto de vista da sua
utilidade, razão pela qual o deus no-la ofereceu, é sobre
ela que nós devemos falar.
Em meu entender, a visão foi gerada como causa
de maior utilidade para nós, visto que nenhum dos
discursos que temos vindo a fazer sobre o universo
poderia de algum modo ser proferido sem termos visto
os astros, o Sol e o céu. Foi o facto de vermos o dia
e a noite, os meses, o circuito dos anos, os equinócios
e os solstícios que deu origem aos números que nos
proporcionam a noção de tempo e a investigação sobre
a natureza do universo.
A partir deles foi-nos aberto o
caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer
outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie
mortal, oferecido pelos deuses. Afirmo que este foi
o maior bem facultado pelos olhos.
Por que razão
havemos de celebrar os outros que são inferiores a estes,
pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse cego,
com lamentos em vão?
Quanto a nós, declaremos que esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo: o deus descobriu e concedeu-nos a visão em nosso favor, para
que, ao contemplar as órbitas do Intelecto no céu, as
aplicássemos às órbitas da nossa actividade intelectiva que são congéneres daquele, ainda que as nossas tenham
perturbações e as deles sejam imperturbáveis. Só depois
de termos analisado aqueles movimentos, calculando-os
correctamente em conformidade com o que se passa
na natureza, e de termos imitado esses movimentos
do deus, absolutamente impassíveis de errar, podemos
estabilizar os que em nós são errantes. [...]
FIM
ﳚ

A Academia de Platão em Atenas
-
mosaico em Pompéia, séc I
O diálogo platónico Timeu pertence ao grupo dito da velhice, em que as
idéias de Platão são apresentadas por inteiro. Nele, o filósofo apresenta a sua Cosmologia, i.e., a sua teoria sobre a origem e a formação do mundo natural. As ideias
desenvolvidas têm sequência noutro diálogo, Crítias. Para Platão, a ordem e a beleza que vemos no Cosmos resulta de uma intervenção racional, intencional e benigna de um
divino artesão, um "demiurgo", que impôs uma ordem matemática a um caos preexistente e, assim, produziu um Universo divinamente organizado, a partir de um modelo eterno e
imutável (Pl. Ti. 26a). A visão platónica da origem do Universo também teve enorme influência na filosofia, especialmente na neoplatónica, no ocultismo e na teologia
desde o século IV a.C. até aos nossos dias. Este diálogo passa-se no dia seguinte ao da conversa descrita no diálogo A República. Os personagens são Sócrates, Timeu de
Locri, Hermócrates e Crítias. in Graecia antiqua
ϟ
excerto do
Timeu de
Platão
circa 360 a.C.
in Timeu -
Crítias
[44D-47C]
pp 123-128
tradução do grego, introdução e notas: Rodolfo Lopes
editor: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
3.Mar.2014
Publicado por
MJA
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