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-excerto-

capa de 'Uma Rapariga Simples' (edições Teorema)
Uma tarde a porta rangente do elevador abriu-se e ela viu um homem elegante, na casa dos quarenta
― ou talvez já nos cinquenta e poucos anos ― com uma bengala numa mão e uma mala na outra. Com um andar estranho e muito direito entrou no elevador e Janice só percebeu que era cego quando ele se aproximou
muito dela e depois se virou para a porta levantando um dos pés em vez de se virar simplesmente. Tinha um corte da barba no queixo.
― Vamos para baixo, não vamos?
― Sim, para baixo. ― Sentiu um impulso repentino. Uma liberdade próxima, uma libertação quando ele, por
instantes, olhou cegamente para o rosto dela.
Na entrada, dirigiu-se directamente para a porta envidraçada que dava para a rua,
atravessando o chão de mosaico. Ela esperou por ele e empurrou as portas para que ele saísse.
― Posso ajudá-lo?
― Obrigado, muito obrigado.
Saiu para a rua e dirigiu-se
directamente para a Broadway. Caminhou ao lado dele.
― Vai apanhar o metro? Eu também vou se quiser que o acompanhe.
― Ah, seria óptimo. Obrigado apesar de eu conseguir ir sozinho.
Caminhou ao lado dele que,
surpreendentemente, mantinha uma boa passada. Que vida tinha nas pálpebras agitadas! Era como se acompanhasse um homem que via mas a liberdade que ela sentia ao
acompanhá-lo fazia com que lhe viessem lágrimas de alívio e gratidão aos olhos. Percebeu que tinha colocado toda a sua emoção na voz que subitamente lhe saía da boca com
a alegre inocência de uma menina.
A voz dele era rouca e monocórdica como se a usasse pouco.
― Vive
há muito tempo no hotel?
― Desde Março. Desde que me divorciei ― acrescentou sem embaraço. ― E você?
― Oh, já lá vivo faz agora cinco anos. As paredes do décimo segundo andar são insonorizadas, sabia?
― Toca algum instrumento?
― Piano. Trabalhei para a Decca, no departamento de música clássica, e ouço muitos discos em casa.
― Que interessante. ― Ela sentiu o prazer dele durante esta conversa sem tensão. À medida que caminhavam conseguia aperceber-se da
gratidão que ele sentia para com ela. Estava só. Provavelmente as pessoas evitavam-no ou
comportavam-se demasiado formalmente, ou qualquer coisa desse género. Por instantes deu largas ao seu instinto, nunca se tendo sentido tão segura de si própria, tão
livre.
Ao cimo das escadas do metropolitano, pegou-lhe gentilmente no braço como se ele fosse um pássaro que ela quisesse amparar. Ele
não opôs resistência e na cancela giratória insistiu em pagar o bilhete dela com as moedas que já tinha prontas na mão. Não fazia ideia para onde ele ia ou para onde é
que ela estava a fingir que ia.
― Como é que sabe onde deve sair?
― Conto as paragens.
― Claro, que estupidez.
― Vou para a 57.
― É para onde eu vou.
― Trabalha lá?
― Na verdade, ainda me estou a instalar... Mas estou à procura de qualquer coisa.
― Bom, não lhe vai ser difícil, parece-me muito nova.
― Na verdade, eu não ia para lado nenhum, só
queria ajudá-lo.
― A sério?
― Sim.
― Como se chama?
― Janice Sessions. E você?
― Charles Bucman.
Gostaria de lhe
perguntar se ele era casado mas, obviamente, não podia sê-lo, não devia sê-lo, havia qualquer
coisa nele profundamente organizada e não devia estar preso a nada nem a ninguém.
Na rua ele parou na curva que ia para a parte de cima
da cidade.
― Vou para o Athletic Club na 59.
― Posso acompanhá-lo?
― Claro. Faço uma hora de ginástica antes de ir para o escritório.
― Parece estar bastante em forma.
― Você também devia fazer ginástica. Apesar de achar que você também está em forma.
― Como é que
consegue saber?
― Pela maneira como pousa os pés.
― A sério!
― Sim, eles dizem muito. Dê-me a sua mão.
Rapidamente ela deu-lhe a mão esquerda que ele pegou com a direita. Fez pressão com o indicador
e o dedo médio na palma da mão dela e ela deixou a mão ir.
― Você está em bastante boa forma, mas devia fazer natação porque o seu
fôlego não é lá grande coisa.
Estava encantada, envolvida por o que ele estranhamente sabia acerca dela.
― Se calhar até vou fazer ― Ela detestava fazer exercício mas desejava começar assim que pudesse. Debaixo do toldo cinzento do Athletic
Club ele parou e virou-se para ela. Pela primeira vez pôde olhar para as pálpebras agitadas dele mais do que uns instantes e olhar directamente para os seus olhos castanhos. Sentiu que se ia engasgar com tanta gratidão porque ele estava a
sorrir vagamente como se gostasse de a observar tão intimamente num sítio público. Percebeu que nunca estivera tão certa desde que nascera.
― Estou no número 1214 se quiser vir tomar um copo comigo.
― Adorava. ― Riu por aceitar tão depressa o
convite. ― Tenho de lhe dizer ― disse ela, ouvindo-se a si própria com o terror do embaraço, mas resolveu não desanimar antes que o
desejo explodisse nela ― que me fez imensamente feliz.
― Feliz? Porquê?
Ele começava a corar. Ficou
admirada que o embaraço pudesse aparecer no rosto quase esfíngico dele.
― Não sei porquê. O facto é que me fez feliz. Sinto que me
conhece melhor que ninguém. Desculpe se estou a ser idiota.
― Não... não. Por favor, venha ter comigo logo à noite.
― Venho, venho.
⁂
Ela sentiu que se podia aproximar e beijar-lhe os lábios e que ele não se importaria
porque ela era bonita. Ou era a mão dela que era bonita.
― Podes apagar a luz, se quiseres.
― Não
sei. Se calhar deixo-a acesa.
Ele despiu os calções e procurou a cama com a canela e deitou-se ao lado dela enquanto ela lhe olhava para o rosto cego. A mão dele descobriu o corpo belo e feliz dela. Era um toque puro, pura
verdade para lá de qualquer discurso. Tudo o que ela era mexia-se por baixo da mão dele, como água a derreter... Ela sentia-se liberta de toda a sua vida e beijou-o
ternamente, rezando para que existisse um deus que a livrasse de cometer qualquer erro em relação a ele, que ele pusesse as mãos onde ela desejava que ele as pusesse, que
o controlasse e que a escravizasse aos seus mais pequenos movimentos.
Num intervalo ele percorreu o rosto dela com os dedos e ela
suspendeu a respiração quando sentiu a respiração dele suspender-se ao sentir-lhe a curva do nariz, o lábio superior e a testa, pressionando-lhe levemente as maçãs do
rosto, a descoberta ― ela tinha a certeza ― de que lhe faltavam distinção e que estavam enterrados num rosto redondo, apesar de contraído.
― Não sou bonita ― perguntou mais do que afirmou.
― É sim, nos sítios que me interessam.
― Consegues ver como é que sou?
― Muito bem.
― A sério que sou?
― Mas que diferença é que isso pode fazer para mim?
Rolou para cima dela pondo a boca na dela. Depois
percorreu-lhe o rosto com os lábios. O prazer dele brotou novamente nela.
― Vou morrer aqui, o meu coração vai parar aqui mesmo debaixo
de ti, porque é tudo o que eu preciso e não aguento.
― Gosto do teu cicio.
― Gostas? Não parece
infantil?
― Parece, é por isso que gosto. De que cor são os teus cabelos?
― Consegues imaginar as
cores?
― Acho que consigo imaginar o preto, são pretos?
― Não, são cor de castanha, vagamente
avermelhados e muito lisos. Dão-me quase pelos ombros. Tenho a cabeça grande e a minha boca também é para o grande e um bocado proeminente. Mas tenho um andar bonito,
talvez até muito bonito na opinião de alguns, gosto de andar de uma maneira provocante.
― Tens um rabo lindo.
― Pois, esqueci-me de falar nele.
― Adorei pegar-lhe.
― Fico
contente. ― Depois acrescentou: ― Na verdade estou muda de contentamento.
― E como é que me achas?
― Acho que és um homem lindo. Tens pele morena e cabelo castanho com risca ao lado, e um queixo muito bem desenhado. Acho que a tua cara é oval, do género silencioso e que
transmite confiança. És mais alto do que eu uns dez centímetros e és magro, sem ser escanzelado. Acho que és espectacular!
Ele riu à
socapa. Ela pegou-lhe no pénis.
― E isto é perfeito. ― Ele riu e beijou-a ao de leve. Depois adormeceu de imediato. Deixou-se estar deitada ao lado dele não ousando mexer se para o não acordar novamente para a vida e
para os seus perigos.
⁂
Nos finais dos anos setenta, quando vivia na Village, leu nos jornais que o Crosby Hotel estava a ser demolido
para lá construírem um complexo de apartamentos. Nessa altura estava a trabalhar para uma organização de direitos civis, controlando a violação destes quer na costa Leste
quer na Oeste. Decidiu tirar uma hora a mais no intervalo do almoço e foi até à parte alta da cidade para ver, pela uma última vez, o velho hotel antes que ele
desaparecesse. Agora estava na casa dos sessenta. Charles tinha morrido durante o sono há pouco mais de um ano. Saiu do metropolitano e desceu pela rua lateral e
verificou que o andar de cima, o décimo segundo, já tinha desaparecido. Encostou-se a um prédio e ficou a observar os homens a demolirem as paredes de tijolo com uma
facilidade surpreendente. Por tanto, era apenas a gravidade que sustentava os prédios! Conseguia ver o interior, as várias cores com que tinham pintado as paredes, o
cuidado que tinham posto na escolha dos tons! A cada bocado de alvenaria que caía formavam-se vagalhões de nuvens de pó no ar. Todas as gerações levam bocados da cidade,
como as formigas arrastando pequenos galhos. Brevemente chegariam ao seu antigo quarto. Uma estupefacção vazia invadia-a lentamente. Dos sessenta e um anos de vida tinha tido catorze anos bem passados. Nada
mau.
Lembrou-se das dúzias de recitais e de concertos, dos jantares em restaurantes, do total amor e confiança que Charles tinha por ela, que se tinha transformado nos olhos
dele. De certo modo, ele tinha-a virado do avesso de tal modo que ela olhava para o mundo em vez de suster a respiração quando o mundo olhava para ela e a desaprovava.
Aproximou-se das portas da frente do hotel e ficou do outro lado da rua, sentindo o cheiro fantasmagórico de terra fria que um edifício em ruínas tem, tentando recordar
se daquela primeira vez em que tinha saído com ele para a rua e depois entrado no metropolitano, o último dia da sua despresunção. Tinha comprado um perfume novo que a
envolvia no meio do ar poeirento e que lhe agradava.
Regressou à Broadway e passou pelos lugares de fruta, pelos restos deixados pelos
acidentes de automóveis às esquinas, pelos restos de massa de pizza que os citadinos deitavam para o chão, pelas cascas e caroços de fruta, por uma bota perdida e por uma
gravata podre, por uma mulher sentada no passeio a pentear o cabelo, pelos rapazes negros empolgados a jogar basketball ruidosamente, pela implosão das causas e
desígnios que conhecera desse passado a desaparecer rapidamente e que já não tinha forças para relembrar Charles de braço dado com ela aqui, caminhando imperturbável
de chapéu muito direito na cabeça e de lenço escarlate ao pescoço, e assobiando baixinho mas
convictamente o tema principal de Harold in Italy.
― Oh Morte, oh Morte, ― disse quase em voz alta, esperando à esquina que a luz
mudasse, e maravilhando-se com a sorte que tivera ao viver em beleza.
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Arthur Miller (1915 — 2005)
Foi um dos maiores dramaturgos norte-americanos de sempre.
A sua peça, de 1949, "Morte de um Caixeiro Viajante" (Death of a Salesman) ganhou o Prémio Pulitzer e três Prémios Tony, bem como o prémio do Círculo de Críticos de Teatro de Nova Iorque. Foi a
primeira peça a conseguir os três prémios simultaneamente.
Ao longo da sua obra, faz uma crítica contundente à sociedade de seu país. Destaca-se também por protestar contra a falta de liberdade de expressão e a perseguição a
comunistas no período do McCarthyismo.
Obras mais importantes:
• All My Sons (1947)
• Death of a Salesman (1949)
• The Crucible (1953)
• A View from the Bridge (1955)
• After the Fall (1964)
• Broken Glass (1994)
• Resurrection Blues (2002)
• Finishing the Picture (2004)
Em 1956, comparece perante o "Comité parlamentar das actividades anti-Americanas", após ter sido denunciado por Elia Kazan como
tendo participado em reuniões do Partido Comunista. No mesmo ano casa-se com Marilyn Monroe.
A 31 de Maio de 1957, Miller é considerado culpado de desobediência ao Congresso por recusar-se a revelar os nomes dos membros de um círculo literário suspeito de
pertencer ao Partido Comunista. A sua condenação foi anulada pelo Tribunal Federal de Apelação a 8 de Agosto de 1958. No mesmo ano reune e publica as suas
peças na colectânea Collected Plays.
Morre em 2005 de insuficiência cardíaca crónica, com 89 anos, em Roxbury, Connecticut. [in Wikipedia]
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Uma Rapariga Simples
[excerto]
Arthur Miller, 1992
Novela
Titulo original: Homely Girl (EUA) / Plain Girl (GB)
Tradução: Carla Fonseca da Costa
Diário de Notícias: Biblioteca de Verão
Lisboa, 2000fonte do texto integral: SCRIBD
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