Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual


Um Milagre Discreto

Isabel Allende

Convento de S. Francisco, Beja
 

A família Boulton provinha de um comerciante de Liverpul, que emigrara em meados do século XIX com a sua tremenda ambição como única fortuna, e se tornou rico com uma frota de barcos de carga no país mais austral e afastado do mundo. Os Boulton eram membros proeminentes da colónia britânica e, como tantos ingleses fora da sua ilha, preservaram as suas tradições e a sua língua com uma tenacidade absurda, até que a mistura com sangue crioulo lhes baixou a arrogância e lhes mudou os nomes anglo-saxões para outros mais castiços.

Gilberto, Filomena e Miguel nasceram no apogeu da fortuna dos Boulton, mas durante as suas vidas viram o tráfego marítimo declinar e esfumar-se uma parte substancial das suas receitas. Mas embora deixassem de ser ricos, puderam manter o seu estilo de vida. Era difícil encontrar três pessoas de aspecto e carácter mais diferente do que estes três irmãos. Na velhice acentuaram-se os traços de cada um, mas apesar das suas aparentes disparidades as suas almas coincidiam no fundamental.

Gilberto era um poeta de setenta e tantos anos, de feições delicadas e porte de bailarino, cuja existência decorrera sem necessidades materiais, entre livros de arte e antiguidades. Era o único dos irmãos educado em Inglaterra, experiência que o marcou profundamente. Ficou-lhe para sempre o vício do chá. Nunca se casou, em parte porque não encontrou a tempo a jovem pálida que tantas vezes surgia nos seus versos de juventude, e quando renunciou a essa ilusão era já demasiado tarde, porque os hábitos de solteirão estavam muito arreigados. Gozava com os seus olhos azuis, o seu cabelo amarelo e a sua ancestralidade, dizendo que quase todos os Boulton eram uns comerciantes vulgares, que de tanto se fingirem aristocratas tinham acabado convencidos de que o eram. No entanto, usava casacos de tweed com cotoveleiras de couro, jogava brídege, lia o Times com três semanas de atraso e cultivava a ironia e a fleuma atribuídas aos intelectuais britânicos.

Filomena, rotunda e simples como uma camponesa, era viúva e avó de vários netos. Era dotada de grande tolerância, que lhe permitia aceitar tanto as veleidades anglófilas de Gilberto como o facto de Miguel andar com buracos nos sapatos e o colarinho da camisa em fiapos. Nunca lhe faltava ânimo para atender os achaques de Gilberto ou escutá-lo a recitar os seus estranhos versos, nem para colaborar nos inumeráveis projectos de Miguel. Tricotava incansavelmente coletes para o irmão mais novo, que este vestia uma ou duas vezes e logo dava a outro mais necessitado. As agulhas eram um prolongamento das suas mãos, moviam-se com um ritmo travesso num tiquetaque contínuo que anunciava a sua presença e a acompanhava sempre com o aroma da sua colónia de jasmim.

Miguel Boulton era sacerdote. Ao contrário dos irmãos, saiu moreno, de baixa estatura, quase inteiramente coberto por um velo negro que lhe teria dado um aspecto bestial se o seu rosto não tivesse sido tão bondoso. Abandonou as vantagens da residência familiar aos dezassete anos e só regressava a ela para participar nos almoços de domingo com os parentes, e para que Filomena o tratasse nas raras ocasiões em que adoecia com gravidade. Não sentia nem a mais pequena nostalgia pelas comodidades da sua juventude e, apesar dos arrebatamentos de mau humor, considerava-se um homem com sorte, contente com a sua existência. Vivia junto da lixeira municipal, numa povoação miserável fora dos muros da capital, onde as ruas não tinham pavimento, nem passeios nem árvores. A sua casa fora construída com tábuas e folhas de zinco. às vezes, no Verão, surgiam do chão fumaradas fétidas dos gases que se filtravam por debaixo da terra desde os depósitos de lixo. O mobiliário consistia num catre, uma mesa, duas cadeiras e estantes para livros e nas paredes cartazes revolucionários, cruzes de latão fabricadas pelos presos políticos, modestas tapeçarias bordadas pelas mães dos desaparecidos e galhardetes da sua equipa de futebol favorita. junto do Crucifixo, onde todas as manhãs comungava sozinho e todas as noites agradecia a Deus a sorte de ainda estar vivo, pendurava uma bandeira vermelha. O padre Miguel era um desses seres marcados pela terrível paixão da justiça. Na sua longa vida tinha acumulado tanto sofrimento alheio, que era incapaz de pensar na sua própria dor, que somada à certeza de actuar em nome de Deus o tornava temerário. Cada vez que os militares lhe vasculhavam a casa e o levavam, acusando-o de subversivo, tinham de o amordaçar, porque nem à cacetada conseguiam evitar que ele os cobrisse de insultos misturados com citações dos Evangelhos. Tinha sido preso tão amiúde, feito tantas greves de fome de solidariedade com os presos e amparado tantos perseguidos, que de acordo com a lei das probabilidades devia ter morrido várias vezes. A sua fotografia, sentado em frente de uma prisão da polícia política com um letreiro dizendo que ali torturavam gente, foi difundida por todo o mundo. Não havia castigo capaz de acobardá-lo, mas não se atreveram a fazê-lo desaparecer, como a tantos outros, porque já era demasiado conhecido. à noite, quando se sentava à frente do seu pequeno altar doméstico a conversar com Deus, perguntava a si mesmo se os seus únicos impulsos seriam o amor ao próximo e a ânsia de justiça, ou se nas suas acções não haveria também uma soberba satânica.

Aquele homem, capaz de adormecer uma criança com boleros e passar noites em claro a tratar de enfermos, não confiava na gentileza do seu próprio coração. Tinha lutado toda a vida contra a cólera, que lhe engrossava o sangue e o fazia explodir em arranques imparáveis. Em segredo perguntava a si próprio que seria dele se as circunstâncias não lhe oferecessem tão bons pretextos para desabafar. Filomena vivia dependente dele, mas Gilberto achava que se nada de grave lhe tinha acontecido em quase setenta anos a equilibrar-se na corda bamba, não havia razão para se preocupar, porque o anjo-da-guarda do irmão tinha demonstrado ser muito eficiente.

- Os anjos não existem. São erros semânticos – argumentava Miguel.

- Não sejas herege, homem!

- Eram simples mensageiros até que São Tomás de Aquino inventou toda essa patranha.

- Vais dizer-me que a pluma do Arcanjo São Gabriel, que se venera em Roma, provém do rabo de um abutre? - ria-se Gilberto.

- Se não acreditas nos anjos não acreditas em nada. Porque continuas a ser padre? Devias mudar de ofício – intervinha Filomena.

- Já se perderam vários séculos a discutir quantas criaturas dessas cabem na cabeça de um alfinete. Que mais dá? Não gastem energias com anjos, ajudem é as pessoas!

Miguel tinha perdido a vista aos poucos e estava quase cego. Do olho direito não via praticamente nada e do esquerdo bastante pouco, não podia ler e era-lhe muito difícil sair do seu bairro, porque se perdia nas ruas. Cada vez dependia mais de Filomena para se deslocar. Ela acompanhava-o ou mandava-lhe o automóvel com o motorista, Sebastián Canuto, aliás o Facas, um ex-convicto que Miguel arrancara do cárcere e regenerara, e que trabalhava com a família desde há cerca de vinte anos. Com a turbulência política dos últimos anos, o Facas tornou-se no discreto guarda-costas do padre. Quando corria o boato de uma marcha de protesto, Filomena dava-lhe o dia de folga e ele partia para a povoação de Miguel, armado de uma moca e um par de luvas de boxe escondidas no bolso. Ficava na rua à espera que o sacerdote saísse e imediatamente o seguia a certa distância, pronto para o defender da pancada ou para o arrastar para um lugar seguro se a situação o exigisse. A nebulosa em que vivia Miguel impedia-o de dar muita conta destas manobras de salvamento, que o teriam enfurecido, porque consideraria injusto dispor de tal protecção enquanto o resto dos manifestantes suportava as pancadas, os jactos de água e os gases.

Ao aproximar-se a data em que Miguel fazia setenta anos o seu olho esquerdo sofreu um derrame e em poucos minutos ficou na mais completa escuridão. Encontrava-se na igreja numa reunião nocturna, com os moradores falando na necessidade de se organizarem para enfrentar a lixeira municipal, porque já não se podia continuar a viver entre tanta mosca e tanto cheiro a podridão. Muitos vizinhos estavam no bando oposto da religião católica, na verdade para eles não havia provas da existência de Deus, pelo contrário, os padecimentos das suas vidas eram uma demonstração irrefutável de que o universo era uma pura contradição, mas também eles consideravam o local da paróquia como o centro natural da povoação. A cruz que Miguel levava pendurada ao peito parecia-lhes apenas um inconveniente menor, uma espécie de extravagância de velho. O sacerdote passeava enquanto falava, como era seu costume, quando sentiu que as fontes e o coração disparavam a galope, e todo o corpo se lhe humedecia num suor pegajoso. Atribuiu isso ao calor da discussão, passou a manga pela testa e por um instante fechou os olhos.

Ao abri-los julgou estar afundado num torvelinho no fundo do mar, só percebia marulhos profundos, manchas, negro sobre negro. Esticou um braço em busca de apoio.

- Faltou a luz - disse, pensando noutra sabotagem. Os seus amigos rodearam-no assustados. O padre Boulton era um companheiro formidável, que tinha vivido entre eles desde que se conheciam. Até então julgaram-no invencível, um homenzarrão forte e musculoso, com um vozeirão de sargento e mãos de pedreiro que se juntavam na prece, mas que na verdade pareciam feitas para a luta. Logo compreenderam como estava gasto, viram-no encolhido e pequeno, um menino cheio de rugas. Um grupo de mulheres improvisou os primeiros remédios, obrigaram-no a estender-se no chão, puseram-lhe panos molhados na cabeça, deram-lhe a beber vinho quente, fizeram-lhe massagens nos pés: mas nada surtiu efeito, pelo contrário, com tanta manipulação o enfermo estava a ficar sem respiração. Por fim, Miguel conseguiu tirar as pessoas de cima de si e pôs-se de pé, disposto a enfrentar a nova desgraça cara a cara.

- Estou em dificuldades - disse sem perder a cabeça. – Por favor chamem a minha irmã e digam-lhe que estou em apuros, mas não lhe dêem pormenores para não se preocupar.

Apareceu Sebastián Canuto, insociável e silencioso como sempre, dizendo que a senhora Filomena não podia perder o capítulo da telenovela e que lhe mandava algum dinheiro e um cesto de provisões para a sua gente.

Desta vez não se trata disso, Facas, parece que fiquei cego.

O homem subiu-o para o automóvel e sem fazer perguntas levou-o através de toda a cidade até à mansão dos Boulton, que se erguia cheia de elegância no meio de um parque um pouco abandonado, mas ainda senhorial. Chamou todos os habitantes da casa com buzinadelas, ajudou a descer o doente e transportou-o quase em andas, comovido por vê-lo tão leve e tão dócil. A sua rude cara de perdulário estava molhada de lágrimas quando deu a notícia a Gilberto e Filomena.

- Puta que me pariu, Dom Miguelito ficou sem olhos! Era só isto que me faltava! - chorou o motorista sem poder conter-se.

- Não digas palavrões em frente do poeta - disse o sacerdote.

- Põe-no na cama, Facas - ordenou Filomena. - Isso não é grave, deve ser algum resfriado. Estás assim por andar sem colete! - O tempo parou - noite e dia é sempre Inverno - e há um puro silêncio – de antenas pelo negrume... começou Gilberto a improvisar.

- Diz à cozinheira que prepare uma canja - disse a irmã para o calar.

O médico da família determinou que não se tratava de um resfriamento e recomendou que Miguel fosse visto por um oftalmologista. No dia seguinte, depois de uma apaixonada exposição sobre a saúde, o dom de Deus e o direito do povo, que o infame sistema vigente transformara em privilégio de uma casta, o doente aceitou ir a um especialista. Sebastián Canuto levou os três irmãos ao Hospital da Area Sul, único sítio aprovado por Miguel, porque era ali que atendiam os mais pobres dos pobres. Aquela súbita cegueira tinha posto o padre de péssima disposição, não podia compreender o desígnio divino que fazia dele um inválido justamente quando eram mais necessários os seus serviços. Nem se lembrou da resignação cristã. Desde o começo negou-se a aceitar que o guiassem ou amparassem, preferia avançar aos tropeções mesmo com riscos de partir um osso, não tanto por orgulho mas para se acostumar o mais depressa possível a essa nova limitação. Filomena deu discretas informações ao motorista para que desviasse o caminho e os levasse à Clínica Alemã, mas seu irmão, que conhecia demasiado bem o cheiro da miséria, teve as suas suspeitas mal entraram no edifício e confirmou-as quando ouviu música no ascensor. Tiveram de o tirar dali a toda a velocidade, antes que armasse uma briga. No hospital esperaram durante quatro horas, tempo que Miguel aproveitou para perguntar pelas desgraças dos outros doentes da sala, Filomena para começar outro colete e Gilberto para compor o poema sobre as antenas pelo negrume que tinha surgido no seu coração no dia anterior.

- O olho direito não tem remédio e para voltar a dar alguma coisa de vista ao esquerdo teríamos de o operar de novo - disse o médico que, por fim, os atendeu. - já fez três operações e os tecidos estão muito debilitados, isto requer técnicas e instrumentos especiais. Creio que o único sítio onde podem tentar fazer isso é no Hospital Militar..

- Nunca! - interrompeu-o Miguel. - Nunca porei os pés nesse antro de desalmados! Assustado, o médico fez uma careta de desculpa à enfermeira, que retribuiu com um sorriso cúmplice.

- Não sejas chato, Miguel. Será apenas por um ou dois dias, não penso que isso seja uma traição aos teus princípios.

Ninguém vai para o Inferno por isso! - disse Filomena, mas o seu irmão argumentou que preferia ficar cego para o resto dos seus dias a dar aos militares o gosto de lhe devolver a vista. à porta o médico agarrou-o um instante pelo braço.

- Olhe, padre... já ouviu falar na Clínica da Opus Dei? Ali também têm recursos muito modernos.

- Opus Dei! - exclamou o padre -. Disse Opus Dei?

Filomena tratou de o levar para fora do consultório, mas ele atravessou-se no umbral para informar o médico de que também nunca iria pedir um favor a essa gente.

- Mas como... não são católicos?

- São fariseus reaccionários.

- Desculpe - balbuciou o médico.

Mal entrou no carro Miguel disse aos irmãos e ao motorista que a Opus Dei era uma organização sinistra, mais ocupada em tranquilizar a consciência das classes altas de que em alimentar os que morrem de fome, e que mais facilmente entra um camelo pelo olho de uma agulha que um rico no reino dos céus, ou qualquer coisa deste estilo. Acrescentou que o sucedido era mais uma prova de como no país as coisas estavam mal, onde só os privilegiados se podiam curar com dignidade e os restantes se tinham de conformar com ervas de misericórdia e cataplasmas de humilhação. Por fim pediu que o levassem directamente para casa porque tinha de regar os gerânios e preparar o sermão de domingo.

- Estou de acordo - comentou Gilberto, deprimido pelas horas de espera e pela visão de tanta desgraça e tanta porcaria no hospital. Não estava acostumado a essas diligências.

- De acordo com quê?

- Que não podemos ir ao Hospital Militar, seria um acto criminoso. Mas poderíamos dar oportunidade à Opus Dei, não lhes parece?

- Mas de que é que estás a falar? - perguntou o irmão. - já te disse o que penso deles.

- Qualquer um diria que não tínhamos dinheiro para pagar! - acrescentou Filomena quase a perder a paciência.

- Não se perde nada em perguntar - sugeriu Gilberto, passando o seu lenço perfumado pelo pescoço.

- Essa gente está tão ocupada a mover fortunas nos bancos e a bordar casulas de padre com fios de ouro, que não tem vontade de ver as necessidades dos outros. O céu não se ganha em genuflexões, mas com...

- Mas o senhor não é pobre, Dom Miguelito – interrompeu Sebastián Canuto, agarrado ao volante.

- Não me insultes, Facas. Sou tão pobre como tu. Dá meia volta e leva-nos a essa clínica, para provar ao poeta que anda na lua, como sempre.

Foram recebidos por uma senhora amável, que os fez preencher um formulário e lhes ofereceu café. Quinze minutos depois passavam os três para o consultório.

- Antes de mais nada, doutor, quero saber se o senhor também é da Opus Dei ou se apenas trabalha aqui - disse o sacerdote.

- Pertenço à Obra - sorriu suavemente o médico.

- Quanto custa a consulta? - O tom do padre não dissimulava o sarcasmo.

- Tem problemas financeiros, padre?

- Diga-me quanto.

- Nada, se não puder pagar. Os donativos são voluntários.

Por um breve instante o padre Boulton perdeu o aprumo, mas a reacção não lhe durou muito.

- Isto não parece uma obra de beneficência.

- É uma clínica privada.

- É isso... Aqui vêm só os que podem fazer donativos.

- Olhe, padre, se não gosta sugiro que se vá embora - respondeu o médico. - Mas não irá sem que eu o examine. Se quiser traga-me os seus protegidos, que aqui os atenderemos o melhor possível, para isso pagam os que têm de seu. E agora não se mexa e abra os olhos.

Depois de uma meticulosa revisão, o médico confirmou o diagnóstico prévio, mas não se mostrou optimista.

- Aqui contamos com uma equipa excelente, mas trata-se de uma operação muito delicada. Não posso enganá-lo, padre, apenas um milagre lhe pode devolver a vista - concluiu.

Miguel estava tão deprimido que mal o ouviu, mas Filomena agarrou-se a uma esperança.

- Um milagre, foi o que disse?

- Bom, é uma maneira de falar, minha senhora. A verdade é que ninguém pode garantir que volte a ver.

- Se o que o senhor quer é um milagre, eu sei onde pode consegui-lo - disse Filomena, metendo o tecido na sua bolsa. - Muito obrigado, doutor. Vá preparando tudo para a operação, logo estaremos de volta.

De novo no carro, com Miguel mudo pela primeira vez em muito tempo e Gilberto extenuado pelos sobressaltos do dia, Filomena deu ordens a Sebastián Canuto que enfiasse para a montanha. O homem deu uma olhadela de soslaio e sorriu entusiasmado. Tinha conduzido de outras vezes a sua patroa por aqueles caminhos e nunca o fazia de bom grado, porque a estrada era uma serpente retorcida, mas desta vez animava-o a ideia de ajudar o homem que mais apreciava neste mundo.

- Onde vamos agora? - murmurou Gilberto, deitando mão à sua educação britânica para não cair de cansaço.

- É melhor dormires, a viagem é longa. Vamos à gruta de Juana dos Lírios - explicou-lhe a irmã.

- Deves estar louca! - exclamou o padre surpreendido.

- É santa.

- Isso são puros disparates. A Igreja não se pronunciou sobre ela.

- O Vaticano demora cem anos a reconhecer um santo. Não podemos esperar tanto - concluiu Filomena.

- Se Miguel não acredita em anjos, menos acreditará em beatas crioulas, sobretudo se essa Juana provém de uma família de terratenentes - suspirou Gilberto.

- Isso não tem nada que ver, ela viveu na pobreza. Não metas ideias na cabeça de Miguel - disse Filomena.

- Se não fosse porque a sua família está disposta a gastar uma fortuna para ter um santo próprio, ninguém saberia da sua existência - interrompeu o padre.

- É mais milagrosa do que qualquer dos teus santos estrangeiros.

- De qualquer modo, parece-me muita petulância esta coisa de pedir um tratamento especial. Seja como for, eu não sou ninguém e não tenho o direito de mobilizar o céu com pedidos pessoais - resmungou o cego.

O prestígio de Juana havia começado depois da sua morte numa idade prematura, porque os camponeses da região, impressionados pela sua vida piedosa e pelas suas obras de caridade, rezavam pedindo-lhe os seus favores. Logo correu o boato de que a defunta era capaz de realizar prodígios e o assunto foi subindo de tom até culminar no Milagre do Explorador, como lhe chamaram. O homem esteve perdido na cordilheira durante duas semanas, e quando as equipas de salvação já tinham abandonado as buscas e estavam prestes a dá-lo como morto, apareceu cansado e faminto, mas intacto. Nas suas declarações à imprensa contou que num sonho vira a imagem de uma rapariga vestida com uma túnica e um ramo de flores nos braços. Ao despertar sentiu um forte aroma de lírios e soube, sem ter qualquer dúvida, que se tratava de uma mensagem celestial. Seguindo o penetrante perfume das flores conseguiu sair daquele labirinto de desfiladeiros e abismos e, por fim, chegar às proximidades de um caminho. Ao comparar a sua visão com um retrato de Juana, verificou que eram idênticos. A família da jovem encarregou-se de divulgar a história, de construir uma gruta no sítio onde apareceu ao explorador e de mobilizar todos os recursos ao seu alcance para levar o caso ao Vaticano. Até esse momento, no entanto, não havia resposta dos jurados cardinalícios. A Santa Sé não acreditava em resoluções precipitadas, vivia muitos séculos de parcimonioso exercício e esperava dispor de muitos mais de futuro, de modo que não tinha pressa para nada. Recebia numerosos testemunhos provenientes do continente sul-americano onde por tudo e por nada apareciam profetas, santinhos, predicadores, estilitas, mártires, virgens, anacoretas e outras personagens que as pessoas veneravam, mas não coisa de entusiasmar-se com cada um.

Pedia-se grande cautela nestes assuntos, porque qualquer escorregadela podia levar ao ridículo, sobretudo naqueles tempos de pragmatismo, quando a incredulidade prevalecia sobre a fé. No entanto, os devotos de Juana não aguardaram o veredicto de Roma para a tratarem como santa.

Vendiam-se estampas e medalhas com o seu retrato, e todos os dias se publicavam anúncios nos jornais agradecendo-lhe alguns favores concedidos. Plantaram tantos lírios na gruta que o cheiro atordoava os peregrinos e tornava estéreis os animais domésticos dos arredores. As lanternas de azeite, os círios e as tochas encheram o ar de uma fumarada rebelde e o eco dos cânticos e as orações ecoavam por entre os cerros, atrapalhando os condores no seu voo. Em pouco tempo o lugar encheu-se de placas comemorativas, toda a espécie de aparelhos e réplicas de órgãos humanos em miniatura, que os crentes deixavam como prova de alguma cura sobrenatural. Mediante uma colecta pública juntou-se dinheiro para pavimentar a estrada e em dois ou três anos havia um caminho cheio de curvas, mas transitável, que ligava a capital à capela.

Os irmãos Boulton chegaram ao destino ao cair da noite.

Sebastián Canuto ajudou os três velhos a percorrer o carreiro até à gruta. Apesar da hora tardia, não faltavam devotos, uns arrastavam-se de joelhos sobre as pedras, seguros por algum parente solícito, outros rezavam em voz alta ou acendiam velas em frente de uma estátua de gesso da beata. Filomena e o Facas ajoelharam-se para fazer o seu pedido. Gilberto sentou-se num banco a pensar nas voltas que a vida dá, e Miguel ficou de pé, resmungando que se o problema era solicitar milagres porque não pediam antes que caísse o tirano e voltasse a democracia de uma vez por todas.

Poucos dias depois, os médicos da clínica da Opus Dei operaram-lhe o olho esquerdo gratuitamente depois de advertir os irmãos que não deviam alimentar demasiadas ilusões. O sacerdote pediu a Filomena e a Gilberto que não fizessem o mais pequeno comentário sobre Juana dos Lírios, bem bastava ele ser socorrido pelos rivais ideológicos. Logo que lhe deram alta, Filomena levou-o para casa, fazendo caso omisso dos seus protestos. Miguel mostrava um enorme penso cobrindo-lhe metade da cara. Estava debilitado por todo aquele assunto, mas a sua vocação de modéstia permanecia intacta. Declarou que não desejava ser atendido por mãos mercenárias, de modo que tiveram de despedir a enfermeira contratada para a ocasião.

Filomena e o fiel Sebastián Canuto encarregaram-se de tomar conta dele. Tarefa nada fácil, porque o doente estava de péssimo humor, não suportava a cama e não queria comer.

A presença do sacerdote alterou completamente os trabalhos da casa. As rádios da oposição e a voz de Moscovo em onda curta atroavam os ares a toda a hora e havia um desfile perpétuo de tristes habitantes do bairro de Miguel, que vinham para visitar o doente. O seu quarto encheu-se de humildes presentes: desenhos dos meninos da escola, bolinhos, matagais de ervas e flores criadas em latas de conserva, uma galinha para a sopa e até um cachorro de dois meses, que mijava nos tapetes persas e roía as pernas dos móveis, que alguém levara com a ideia de o treinar como cão de cego. No entanto, a convalescença foi rápida e, cinquenta horas depois da operação, Filomena chamou o médico para lhe comunicar que o seu irmão via bastante bem.

- Mas eu não lhe disse para não mexer no penso?! - exclamou o médico.

- Ele tem ainda o penso. Agora vê pelo outro olho – explicou a senhora.

- Qual outro olho?

- O do lado, claro, doutor, o que estava morto.

- Não pode ser. Vou para aí. Não lhe mexam seja por que motivo for - ordenou o cirurgião.

No casarão dos Boulton encontrou o doente a comer papas fritas, olhando a telenovela com o cão nos joelhos. Incrédulo, verificou que o sacerdote via sem dificuldade pelo olho que estivera cego oito anos e ao tirar o penso foi evidente que via também pelo olho operado.

O padre Miguel comemorou os seus setenta anos na paróquia do seu bairro. A irmã Filomena e as suas amigas formaram uma caravana de carros atulhados de tortas, pastéis, sanduíches, cestos com fruta e jarros de chocolate, capitaneada pelo Facas, que levava litros de vinho e aguardente disfarçados em garrafas de orchata. O padre desenhou a sua vida em grandes papéis que pendurou nas paredes da igreja. Neles contava com um tom de ironia os altos e baixos da sua vocação desde o momento em que o escolhido por Deus o golpeou com uma paulada aos quinze anos e a sua luta contra os pecados mortais, primeiro os da gula e da luxúria, e mais tarde o da ira, até às suas aventuras recentes nos quartéis da Polícia, numa idade em que outros velhotes se embalavam numa cadeira de balanço contando estrelas. Tinha pendurado um retrato de Juana, coroado por uma grinalda de flores, junto das inevitáveis bandeiras vermelhas. A reunião começou com uma missa animada por quatro guitarras, a que assistiram todos os vizinhos.

Puseram altifalantes para que a multidão espalhada pela rua pudesse seguir a cerimónia.

Depois da bênção, algumas pessoas adiantaram-se para testemunhar um novo caso de abuso da autoridade, até que Filomena avançou a grandes passadas para dizer que bastava de lamúrias e que era altura de se divertirem. Saíram todos para o pátio, alguém pôs música e começou imediatamente o baile e a comezaina. As senhoras do bairro alto serviram as comidas, enquanto o Facas acendia fogos-de-artificio e o padre dançava um charleston, rodeado por todos os seus paroquianos e amigos, para demonstrar que não só podia ver como uma águia, mas ainda que além disso não havia quem o igualasse numa festança.

- Estas festas populares não têm nada de poesia – observou Gilberto depois do terceiro copo de falsa orchata, mas os seus ares de lorde inglês não conseguiram disfarçar que estava a divertir-se.

- Diz-nos, padre, conta-nos que milagre foi! - gritou alguém, e o resto do público uniu-se na prece.

O sacerdote fez calar a música, compôs a roupa, em desordem, ajeitou com as mãos os poucos cabelos que tinha na cabeça e com a voz quebrada pelo agradecimento referiu-se a Juana dos Lírios, que se não fosse a sua intervenção todos os artifícios da ciência e da técnica teriam resultado infrutíferos.

- Se pelo menos fosse uma beata proletária seria bem mais fácil ter confiança nela - disse um atrevido, e logo uma gargalhada geral rematou o comentário.

- Não me fodam com o milagre, olhem que a santa se chateia e fico outra vez cego! - rugiu o padre Miguel, indignado. – E agora ponham-se todos em fila, porque me vão assinar uma carta para o papa!

E assim, no meio de risadas e goles de vinho, todos os paroquianos assinaram o pedido de beatificação de Juana dos Lírios.

FIM

 

ϟ

 

Resultado de imagem para Um milagre discreto  Isabel Allende


Um milagre discreto
Isabel Allende
in Contos de Eva Luna
(1987)

 

Δ

11.Mai.2016
Publicado por MJA