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Um Jardim para Cegos
Homem cego no seu jardim no
Alaska -
fotografia de Joel Sternfeld, 1984
Maio, 1860
“Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.” A recitação quotidiana do rosário
terminara. Durante meia hora, a voz calma do Príncipe havia recordado os
mistérios Gloriosos e Dolorosos; durante meia hora, outras vozes entremeadas
haviam tecido um sussurro ondulante em que sobressaíam as flores de oiro de
certas palavras insólitas: amor, virgindade, morte. Durante aquele sussurro o
salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas
irisadas na seda das tapeçarias haviam-se mostrado intimidados; e, entre as duas
janelas, Madalena, na qual todos habitualmente viam uma bela e opulenta loira,
perdida não se sabe em que sonhos, tinha tomado uns ares de penitente.
Calada, agora, a voz, tudo regressava à ordem na desordem do costume. Pela
porta por onde os criados haviam saído, Bendicó, o grande cão de fila, a quem a
forçada exclusão havia magoado, entrou e abanou o rabo.
Lentamente, as senhoras principiaram a erguer-se e, aos poucos, o refluxo
oscilante das suas saias ia deixando a descoberto os nus mitológicos desenhados
no fundo leitoso dos azulejos. Apenas permanecia escondida uma Andrómeda, a
quem a batina do Padre Pirrone, atrasado nas orações suplementares, impediu,
por um bom momento, de rever o seu prateado Perseu, que, sobrevoando as
vagas, corria a libertá-la e a beijá-la.
No fresco do tecto as divindades acordaram. Filas de tritões e dríades
precipitavam-se dos montes e mares, entre nuvens cor de framboesa e lilás, em
direcção a uma transfigurada Concha de Oiro, a fim de exaltar a glória da Casa
de Salina; tão transbordantes de satisfação se mostravam que as mais
elementares regras de perspectiva foram violadas. E os Deuses maiores, os
príncipes entre os Deuses, Júpiter o Fulgurante, Marte o Carrancudo, Vénus a
Langorosa, que haviam precedido a multidão dos Deuses menores, pareciam
agora sustentar de boa vontade o escudo azul com o Leopardo dançando.
Sabiam perfeitamente que durante vinte e três horas e meia voltariam a ser os
senhores da villa. Nas tapeçarias das paredes, os macacos voltavam a fazer
momices às catatuas.
Também os mortais da casa de Salina, sob aquele Olimpo palermitano, desciam
apressadamente das altas esferas místicas. As raparigas compunham as pregas
dos vestidos enquanto trocavam entre si rápidos olhares azulíneos e palavras na
gíria do pensionato. Há mais de um mês, desde os “motins” do quatro de Abril,
que as haviam mandado voltar do convento; agora, era com saudade que
recordavam os dormitórios de baldaquins e a intimidade colectiva do Convento
de Salvador. Os rapazes mais novos brigavam já pela posse de uma imagem de
S. Francisco de Paula; o primogénito e herdeiro, o Duque Paulo, começava já a
sentir vontade de fumar, mas, com receio de o fazer na presença dos pais,
contentava-se em apalpar, através da algibeira, a palha entrançada da
cigarreira.
Desenhava-se-lhe no rosto emaciado uma melancolia metafísica: o dia havia-lhe
corrido mal, pois Guiscardo, o alazão irlandês, tinha-lhe parecido em má forma e
Fanny não conseguira encontrar o meio (ou o desejo?) de fazer-lhe chegar à
mão o habitual bilhetinho cor-de-rosa. Para que se havia então sacrificado o
Redentor?
Com insegura autoridade a Princesa deixou cair, secamente, o terço na bolsa
bordada de azeviche, enquanto os seus belos olhos maníacos observavam os
filhos escravos e o marido tirano. O seu corpo minúsculo projectava-se para este
num vão desejo de domínio amoroso.
Entretanto, o Príncipe levantou-se e, ao choque do seu peso de gigante, o soalho
estremecia. Durante uns instantes, os seus olhos claros reflectiam o orgulho
daquela efémera confirmação do seu domínio sobre homens e coisas.
Depois, poisou o enorme missal vermelho que estivera na sua frente durante a
recitação do rosário e guardou o lenço em que apoiara o joelho; um pouco de
mau humor turvou-lhe o olhar, quando viu a pequenina nódoa de café que, desde
a manhã, havia ousado quebrar a vasta brancura do colete.
Não era gordo; era apenas imenso e forte. A sua cabeça tocava (nas casas
habitadas pelos mortais comuns) o florão inferior dos lustres, e os seus dedos
sabiam dobrar como papel as moedas de ducado. Havia sempre, entre a villa
Salina e a loja de um ourives, um contínuo vaivém a fim de se consertarem os
garfos e as facas que a sua ira contida, à mesa, fazia frequentemente dobrar em
arco. Aqueles dedos sabiam aliás usar de extrema delicadeza, quando
acariciavam ou se entregavam a certas brincadeiras; e disto, para sua desgraça,
se poderia lembrar Maria Stella, sua mulher; e, ainda, sob o seu toque delicado,
os parafusos, os aros e botões esmerilados dos telescópios, óculos e
“pesquisadores de cometas”, que enchiam, lá no alto da villa, o seu observatório
particular, não sofriam qualquer dano.
Os raios do sol poente daquela tarde de Maio incendiavam a tez rosada e os
cabelos cor de mel do Príncipe. Eram estes que denunciavam a origem alemã de
sua mãe, aquela Princesa Carolina cuja soberba, trinta anos atrás, havia
enregelado a Corte um tanto negligente das Duas Sicílias. Mas no sangue
fermentavam-lhe outras essências germânicas, e estas mais incómodas para um
aristocrata siciliano, naquele ano de 1860, de que podiam ser atraentes uma pele
clara e uns cabelos loiros no meio daquela gente de pele olivácea e cabelos
negros. O seu temperamento autoritário, uma certa rigidez moral, a sua
propensão às ideias abstractas, no ambiente moral um tanto mole da sociedade
palermitana, haviam-se mudado, respectivamente, em tirania caprichosa,
perpétuos escrúpulos morais e desprezo pelos seus parentes e amigos, os quais
lhe pareciam andar à deriva nos meandros do vagaroso rio do pragmatismo siciliano.
Ele era, numa família que, durante séculos, não havia nunca sequer sabido fazer
a soma das despesas e a subtracção das dívidas, o primeiro e último a possuir
uma forte e mais que notória inclinação para as ciências matemáticas.
O Príncipe havia-as aplicado à astronomia e, desta forma, obtido com elas
razoáveis sucessos públicos e belíssimos prazeres privados. Com efeito, a tal
ponto, nele, o orgulho e a análise matemática se tinham associado, que
alimentava a ilusão de que os astros obedeciam aos seus cálculos (como aliás
pareciam fazer) e que os dois planetas que havia descoberto (chamara-lhes
Salina e Esbelto em homenagem à sua propriedade e a um inesquecível
perdigueiro) propagavam a fama da sua casa nas estéreis plagas do céu entre
Marte e Júpiter. E, assim, os frescos da villa representariam mais uma profecia
que a adulação de um pintor.
Solicitado, por um lado, pelo orgulho e intelectualismo materno, por outro, pela
sensualidade e condescendência do pai, o nobre Príncipe Fabrício vivia, sob a
carranca de Zeus, em perpétuo descontentamento, entregando-se à
contemplação da ruína da sua raça e do seu património sem dar mostras de
qualquer actividade e, o que é mais, sem tentar pôr-lhe um termo.
Aquela meia hora entre o rosário e o jantar era um dos momentos menos
irritantes do dia e, horas antes, já ele antegozava-lhes a calma equívoca.
Precedido de um Bendicó excitadíssimo, desceu a pequena escada que conduzia
ao jardim. Encerrado entre três muros e um dos lados da villa, esta clausura
conferia-lhe um ar de cemitério, acentuado ainda mais pelos montículos
paralelos que ladeavam os pequenos canais de irrigação e que lembravam
túmulos de gigantes magríssimos. Na argila avermelhada as plantas cresciam em
espessa desordem; as flores surgiam ao deus-dará e as sebes de murta pareciam
ali dispostas mais para impedir que para dirigir os passos.
Ao fundo, uma Flora, manchada por líquenes amarelo-negros, exibia, com
resignação, os seus mimos mais que seculares; de cada um dos lados um banco
sustentava uma almofada bordada, comprida e enrolada, talhada, também ela,
em mármore cinzento.
A um canto, o oiro de uma acácia introduzia uma nota de alegria intempestiva.
De todos aqueles torrões emanava uma sensação de beleza depressa amortecida
pela indolência.
Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas barreiras, exalava perfumes
untuosos, carnais, levemente pútridos, como os líquidos destilados das relíquias
de certos santos; o perfume apimentado das violetas sobrepunha-se ao aroma
convencional das rosas e ao oleoso das magnólias que se concentravam nos
cantos. Muito ao de leve, percebia-se ainda o perfume da hortelã-pimenta
misturado ao aroma infantil da acácia e ao cheiro a confeitaria da murta. O
perfume de alcova das primeiras flores das laranjeiras do pomar transbordava
por cima do outro muro.
Era um jardim para cegos. A vista constantemente se ofendia, mas o olfacto,
esse, podia extrair dele um prazer violento, embora grosseiro. As rosas Paul
Ney ron, cujas estacas ele próprio adquirira em Paris, haviam degenerado.
Primeiro estimuladas, depois extenuadas pelos sucos vigorosos e indolentes das
terras sicilianas, queimadas por Julhos apocalípticos, haviam-se transformado
numa espécie de couves cor de carne, obscenas, que destilavam, porém, um
aroma denso, quase desonesto, que nenhum criador francês teria ousado esperar.
O Príncipe levou uma delas ao nariz e foi como se aspirasse a coxa de uma
bailarina da Ópera. Bendicó, a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado
e apressou-se a ir procurar sensações mais saudáveis no meio do estrume e das
lagartixas mortas.
FIM
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excerto de:
'O Leopardo'
Giusepe Tomasi di Lampedusa
Título do original: Il gattopardo
Tradução de Rui Cabeçadas
Livraria Bertrand
5.Dez.2016 publicado
por
MJA
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