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Uma peça radiofónica
em acto único
"Todos os que Caem" encenação de João Mota
para a Comuna - Festival de Teatro de Almada (2006)
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Maddy Rooney: uma senhora por volta dos setenta anos
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Dan Rooney: marido de Mrs. Rooney, cego
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Christy: um carroceiro
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Mr. Tyler: um corretor aposentado
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Mr. Slocum: funcionário do campo de corridas
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Tommy: um carregador
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Mr. Barrell: chefe da estação ferroviária
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Miss Fitt: moça na casa dos trinta
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Uma voz de mulher
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Dolly: uma garotinha
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Jerry: um garotinho
Barulhos do campo. Carneiro, passarinho, vaca, galo, separadamente, depois
juntos. (Silêncio). Mrs. Rooney caminha pela estrada em direção à estação
ferroviária. Barulho de seus passos arrastados. De uma casa na
beira da estrada vem, baixinho, uma música: 'A Morte e a Donzela'. Os passos
diminuem, param.
MRS. ROONEY - Coitada. Sozinha nessa casa velha caindo aos pedaços. (Música mais
alto. A não ser pela música, reina o (Silêncio). Os passos recomeçam. A música
some. Mrs. Rooney cantarola a melodia, que aos poucos, desaparece. Barulho de uma carroça que se aproxima. A carroça pára. Os
passos diminuem, páram.)
MRS. ROONEY - É você, Christy?
CHRISTY - Ele mesmo, Madame.
MRS. ROONEY
- Bem que eu reconheci a mula. Como vai a coitada da sua mulher?
CHRISTY - Não melhorou, Madame.
MRS. ROONEY
- E sua filha, então?
CHRISTY - Não piorou, Madame. (Silêncio)
MRS. ROONEY
- Por que você se deteve? (Pausa.) Por que eu me detive? (Silêncio.)
CHRISTY
- Tempo bom para as corridas, Madame.
MRS. ROONEY - Claro, claro. (Pausa.)
Mas ele se manterá? (Pausa. Emocionada.) Manter-se-á? (Silêncio.)
CHRISTY - Por acaso, a senhora não precisaria de...
MRS. ROONEY
- Psiu! (Pausa.) Evidentemente o que eu estou ouvindo não pode ser o
expresso. (Silêncio.) A mula resfolega. (Silêncio.)
CHRISTY - Maldito expresso.
MRS. ROONEY
- Deus seja louvado! Eu poderia jurar que o ouvi, trovejando nos
dormentes, longe, bem longe. (Pausa.) Quer dizer então que burros zurram? Bem,
não é de espantar.
CHRISTY - Por acaso, a senhora não estaria precisando de um pequeno carregamento
de esterco?
MRS. ROONEY - Esterco? Que tipo de esterco?
CHRISTY - Esterco de porco.
MRS. ROONEY
- Esterco de porco... Admiro a sua franqueza, Christy. (Pausa.) Vou
perguntar ao meu esposo. (Pausa.) Christy.
CHRISTY - Sim, madame.
MRS. ROONEY
- Você acha algo estranho na minha maneira de falar? (Pausa.) Não
falo da voz. (Pausa.) Não, falo das palavras. (Pausa. Como que para si mesma.)
Eu sou apenas as palavras mais simples, suponho, e ainda assim, às vezes, acho
a minha maneira de falar muito estranha. (Pausa.) Misericórdia! O que foi
isso?
CHRISTY - Queira desculpá-la, madame, essa mula está muito abusada hoje.
(Silêncio.)
MRS. ROONEY - Esterco? O que é que se pode fazer com esterco a esta altura da
vida? (Pausa.) Por que é que você vai a pé, afora? Por que é que você não monta nesta
mula, junto com o carregamento de esterco e vai descansado? É dado a
vertigens, por acaso?
CHRISTY - (para a mula.) Éêê! (Pausa. Mais
alto.) Éêê! Anda! Anda logo! (Silêncio.)
MRS. ROONEY - Ela não move um músculo. (Pausa.) Eu também devia ir andando se
não quiser chegar tarde à estação. (Pausa.) Agorinha mesmo ela estava
relinchando e pateando. E agora se recusa a avançar. Dê-lhe uma boa lambada no
traseiro. (Barulho de chicote. Pausa.) Mais forte. (Barulho de
chicote. Pausa.) Bem! Se fosse comigo eu não ia achar graça nenhuma. (Pausa.)
Olha como ela me fita com os grandes olhos húmidos atormentados pelas mutucas!
Quem sabe se eu retornasse meu caminho, estrada afora, longe do seu campo de
visão... (Barulho de chicote.) Não, não, basta! Pegue-a pelo freio e tire
os olhos dela de cima de mim. Ai! Isso é horrível! (Ela caminha. Barulho de
seus passos arrastados.) Que fiz eu para merecer tudo isso? O quê? O quê? (Passos
arrastados. Cita.) "Busca dentro de ti, alguma coisa que conte a história
das coisas, criadas há muito tempo... e muito porcamente! (Ela estaca.)
Como posso prosseguir? Não, não posso. Ah, quem me dera ser um monte de bosta
esparramada na estrada como uma enorme gelatina fora da tigela e nunca mais dar
um passo! Uma meleira engrossada com areia e poeira e moscas; eles iam ter que
me recolher com uma pá. (Pausa.) Meu Deus, lá vem aquele expresso de novo, o que
será de mim! (Os passos arrastados recomeçam.) Ai! Sou mesmo uma megera
histérica, corroída pela tristeza e pelos achaques e pelas boas maneiras e pela
carolice e pela gordura e pelo reumatismo e pela esterilidade. (Pausa. A voz
entrecortada.) Minnie! Minniezinha! (Pausa.) Amor, era tudo o que eu
queria, um pouquinho de amor, todos os dias, duas vezes por dia, cinquenta anos
de amor duas vezes por dia, regularmente, como é hábito entre os reles
açougueiros de Paris. (1) Que mulher normal precisa só de
afeição? Uma bitoca pela manhã, perto da orelha e outra de noite, bico-bico até
você criar bigode. Olha aí de novo o meu belo labumo. (2)
(Barulho. Passos arrastados.
Barulho de buzina de bicicleta. É o velho Mr. Tyler vindo por detrás dela de
bicicleta, a caminho da estação. Barulho de freada. Ele diminui a velocidade e
pedala ao lado dela.)
MR. TYLER - Mrs. Rooney! Perdoe-me se eu não tiro o meu boné, eu cairia. Que dia
maravilhoso para as corridas.
MRS. ROONEY - Ai, Mr. Tyler, o senhor realmente me assustou vindo por trás de
mim, assim, traiçoeiramente! Ui!
MR. TYLER - (brincalhão.) Eu buzinei, Mrs. Rooney; assim que eu a avistei,
comecei a tilintar a minha buzina, e a senhora não me venha agora negá-lo.
MRS. ROONEY
- Sua campainha é uma coisa, Mr. Tyler, o senhor é outra. E sua
filha?
MR. TYLER - Vai indo. Eles tiraram tudo, a senhora compreende, todo o... hum...
os apetrechos íntimos. Nunca mais vou poder ter netos. (Passos arrastados.)
MRS. ROONEY
- Meu Deus, como o senhor cambaleia. Desça da bicicleta, pelo amor
de Deus, ou então pedale.
MR. TYLER - Quem sabe se eu pousasse a minha mão, de leve no seu ombro. Mrs.
Rooney, que tal? (Pausa.) A senhora consentiria?
MRS. ROONEY - Não. Mr. Rooney, quer dizer, Mr. Tyler, estou cansada dessas
"mãos leves"
nos meus ombros e em outros lugares insensíveis; estou por aqui com elas.
Meu Deus, aí vem Connoly na camionete! (Ela estaca. Barulho do motor da
camionete que se aproxima e passa chacoalhando pesadamente.) O senhor
está bem, Mr. Tyler? (Pausa.) Cadê ele? (Pausa.) Ah, o senhor está aí ! (Os
passos arrastados recomeçam.) Que freada! Por pouco!
MR. TYLER - Saltei bem na horinha.
MRS. ROONEY
- Sair de casa é suicídio. Mas ficar em casa, não adianta, Mr.
Tyler, não
adianta. É uma dissolução gradual. Estamos brancos de poeira dos pés à
cabeça. O senhor disse alguma coisa?
MR. TYLER - Nada, Mrs. Rooney, nada, estava apenas amaldiçoando baixinho Deus e
os homens, baixinho, e a chuvosa tarde de sábado em que fui concebido. Meu pneu traseiro esvaziou de novo. Antes de sair eu o bombeei até ele ficar
duro como pau. E agora me encontro nesta situação.
MRS. ROONEY - Ah! que pena!
MR. TYLER
- Se fosse o da frente eu não me importaria tanto. Mas o de trás. O de
trás! A corrente! O óleo! A graxa! O eixo! Os freios! O câmbio! Não, é demais!
(Passos arrastados.)
MRS. ROONEY - Estamos muito atrasados. Mr. Tyler. Não tenho nem coragem de olhar
as
horas.
MR. TYLER - (amargamente) - Atrasados! Se de bicicleta eu já estava atrasado,
agora
então estamos duplamente atrasados, triplamente, quadruplamente
atrasados. Eu devia era ter passado pela senhora sem trocar uma única
palavra. (Passos arrastados.)
MRS. ROONEY - O senhor vai se encontrar com quem, Mr. Tyler?
MR. TYLER
- Com Hardy. (Pausa.) Praticamos alpinismo juntos. (Pausa.) Uma vez,
salvei-lhe a vida. (Pausa.) Nunca esqueci. (Passos arrastados. Eles param.)
MRS. ROONEY - Vamos nos permitir uma parada até que essa maldita poeira assente
sobre os ainda mais malditos vermes. (Silêncio. Sons do campo.)
MR. TYLER - Que céu! Que luz! Apesar de tudo, é uma bênção estar vivo num dia
como
esse e fora do hospital.
MRS. ROONEY - Vivo?
MR. TYLER - Semivivo, digamos.
MRS. ROONEY
- Fale por si, Mr. Tyler. Eu não estou semiviva nem nada de
semelhante. (Pausa.) Pra que é que estamos aqui parados? Essa poeira não vai
assentar tão cedo. E quando assentar, uma dessas geringonças barulhentas se
incumbirá de levanta-la de novo em gordas espirais até ao céu.
MR. TYLER - Bom, nesse caso, devemos continuar.
MRS. ROONEY
- Não.
MR. TYLER - Vamos, Mrs. Rooney.
MRS. ROONEY - Vá, Mr. Tyler, vá e deixe-me ouvindo o arrulhar das rolinhas.
(Arrulhar) Se o senhor vir Dan, o pobre e cego Dan, diga-lhe que eu estava a
caminho para encontrá-lo quando tudo desabou de novo sobre mim, como um dilúvio.
Diga-lhe: sua pobre esposa disse-me que lhe dissesse que tudo desabou sobre ela
de novo e... (A voz entrecortada)... ela simplesmente voltou para casa... direto
para casa...
MR. TYLER - Vamos. Mrs. Rooney, vamos, dá para aguentar? A máquina ainda não deu
sinal de vida; segure no meu braço que, devagarinho, a gente chega lá. O tempo
dá e sobra.
MRS. ROONEY - (soluçando) O que é? O que está havendo agora? (Mais calma.) O
senhor não vê que estou com problemas? O senhor não tem respeito pelo
sofrimento? (Soluçando) Minnie! Minniezinha!
MR. TYLER - Vamos. Mrs. Rooney, dá para aguentar? A máquina ainda não deu sinal
de vida; segure no meu braço que devagarinho a gente chega lá. O tempo dá e
sobra...
MRS. ROONEY - (abruptamente) Ela devia estar agora na casa dos quarenta, talvez
cinquenta, afivelando as suas lindas ligas, pronta para a mudança...
MR. TYLER - Vamos, Mrs. Rooney, vamos, dá para aguentar? A máquina...
MRS. ROONEY
- (explodindo) Será que o senhor podia ir andando, Mr. Rooney, quer
dizer... Mr. Tyler, será que o senhor podia ir andando agora e parar de me molestar? Que
espécie de país é esse onde uma mulher não pode derramar o seu coração por
estradas e atalhos sem ser atormentada por corretores aposentados? (Mr. Tyler
prepara-se para montar na bicicleta.) Misericórdia! O senhor não vai
me pedalar com o pneu vazio, vai?... (Mr. Tyler monta.) Vai estourar a sua câmara
de ar! (Mr. Tyler afasta-se. O barulho da bicicleta que roda aos solavancos vai
desaparecendo. Silêncio. Arrulhar.) Pássaros de Vénus! Beijando-se longamente
nos bosques durante todo o longo verão. (Pausa.) Ai, maldito corpete! Se
eu pudesse desabotoá-lo sem ultraje ao pudor. Mr. Tyler! Mr. Tyler! Volte aqui
para me desabotoar ali atrás da cerca! (Ela ri descontroladamente. Pára.)
O que é que há de errado comigo? O que é que há de errado comigo? Nunca
tranquila, as vísceras em erupção, rompendo a pele encarquilhada e dilacerando a
cabeça, ah! quem dera atomizar-me, atomizar-me em átomos! (Freneticamente)
ÁTOMOS! (Silêncio. Arrulhar. Baixinho.)
Jesus! (Pausa.) Jesus! (Barulho de carro que se aproxima por trás dela. O carro
diminui a velocidade e emparelha com Mrs. Rooney. Motor ligado. É Mr. Slocum,
funcionário do campo de corridas.)
MR. SLOCUM - Algo errado, Mrs. Rooney?
A senhora está se contorcendo toda. Está com dores de estômago? (Silêncio. Mrs. Rooney ri descontroladamente.
Finalmente.)
MRS. ROONEY - Ora, se não é o meu velho admirador, o homem das corridas, em sua
limusine.
MR. SLOCUM - Posso oferecer-lhe uma carona, Mrs. Rooney? Está indo na mesma
direção
que eu?
MRS. ROONEY - Estou, Mr. Slocum, estamos todos. (Pausa.) Como vai
a sua pobre mãe?
MR.
- SLOCUM - Bem, obrigado, vai indo. Conseguimos eliminar as dores. É o mais
importante, não é, Mrs. Rooney?
MRS. ROONEY - Sim, de facto, Mr. Slocum, é o mais importante, não sei como o
senhor
consegue. (Pausa. Ela bate no rosto com violência.) Ah! Estas vespas!
MR. SLOCUM
- (friamente) Posso então oferecer-lhe uma carona, minha senhora?
MRS. ROONEY
- (exageradamente entusiasmada) Ah, seria maravilhoso, Mr. Slocum,
simplesmente maravilhoso. (Em dúvida.) Mas será que eu conseguiria
entrar? O senhor parece tão longe do chão hoje. Acho que são esses novos
pneus-balão. (Barulho da porta que se abre. Mrs. Rooney tenta subir no
carro.) Essa capota não arria nunca! Não? (Esforços de Mrs. Rooney.) Não,
não vou conseguir nunca! O senhor tem que descer, Mr. Slocum, e ajudar-me por
detrás. (Pausa.) O que foi isso? (Pausa. lrritada.) Foi ideia sua, Mr.
Slocum, não minha. Pode ir, meu senhor, pode ir.
MR. SLOCUM - (desligando o motor) Estou quase, Mrs. Rooney, quase chegando,
espere um
pouco. Estou tão duro quanto a senhora. (Barulho do Mr. Slocum
deslocando-se do banco do motorista.)
MRS. ROONEY - Duro. Assim é que eu gosto. E eu aqui toda me balançando prá frente
e pra
trás. (Para si mesma.) Réprobo velho e seco!
MR. SLOCUM - (postado atrás dela) E agora. Mrs. Rooney, como é que a gente faz?
MRS. ROONEY
- Como se eu fosse um pacote. Mr. Slocum. não precisa ter medo.
(Pausa.
Barulho de esforços.) Assim. (Esforço) Mais embaixo! (Esforço) Espere! (Pausa.)
Não, não me largue! (Pausa.) Suponhamos que eu consiga subir, conseguirei depois
descer?
MR. SLOCUM - (ofegando) A senhora vai descer, Mrs. Rooney, vai descer. A senhora
pode até não subir, mas descer eu garanto que a senhora desce. (Ele retoma os
esforços. Barulho adequado.)
MRS. ROONEY - Ai! Mais em baixo! Não tenha medo! Já passámos da idade de... Ai!
Agora... coloque o ombro por baixo... Ah! (Risinhos.) Meu Deus! Mais! Mais! Ah!
Consegui! Até que enfim! (Mr. Slocum ofega. Bate a porta. Um grito.) O meu
vestido! O senhor prendeu o meu vestido! (Mr. Slocum abre a porta. Mrs. Rooney
solta o vestido. Mr. Slocum bate a porta. Ele resmunga furiosamente de forma
ininteligível enquanto dá a volta até a outra porta. Choramingando.) Meu lindo
vestido! Olhe o que fez com o meu lindo vestido. (Mr. Slocum senta-se, bate a porta
do lado do motorista, aperta a ignição. O motor não pega. Ele larga a ignição.)
O que é que o Dan vai dizer quando me vir?
MR. SLOCUM - Ele recuperou a visão?
MRS. ROONEY
- Não, quero dizer quando ele souber, o que é que ele vai dizer
quando
sentir o buraco? (Mr. Slocum aperta a ignição. Como antes. Silêncio.) O
que é que o senhor está fazendo, Mr. Slocum?
MR. SLOCUM - Estou olhando fixamente para frente, Mrs. Rooney, pelo pára-brisas,
para o
vazio.
MRS. ROONEY - Ligue o carro, eu lhe imploro, e vamos embora. Que horror!
MR. SLOCUM
- (sonhador) A manhã toda ele se portou dignamente, deslizou como num
sonho e agora esmorece. Esta é a minha recompensa por uma boa ação.
(Pausa. Esperançoso.) Talvez se eu puxasse o afogador. (Puxa o afogador,
aperta a ignição. O motor ronca. Gritando para ser ouvido.) Ar demais!
(Ele empurra o afogador, arranha uma primeira, o carro anda, ele passa a
marcha com barulho da caixa de marcha.)
MRS ROONEY - (angustiada) Olha a galinha! (Barulho de freios. Cacarejar.) Nossa
mãe! O
senhor a esmagou, vamos embora, vamos embora! (O carro acelera. Pausa.) Que
morte! Um minuto antes ciscando feliz seu esterquinho, na
estrada, ao sol, um banho de poeira aqui, outro ali e de repente, bum!
Acabam-se as preocupações. (Pausa.) Nunca mais chocar, nunca mais criar
pintinhos. Acabou-se a galinhagem. (Pausa.) Um grito, um só e depois... O
descanso eterno. (Pausa.) De toda a maneira, mais cedo ou mais tarde,
acabariam mesmo por lhe torcer o pescoço. (Pausa.) Chegámos, deixe-me
descer. (O carro diminui a velocidade, pára, motor ligado. Mr. Slocum
buzina. Pausa. Mais alto. Pausa.) O que é que o senhor está aprontando
desta vez, Mr. Slocum? Quando estamos parados e o perigo já passou é que
o senhor buzina?... Em vez de buzinar agora, o senhor deveria era ter
buzinado para aquela infeliz. (Buzinada violenta. Tommy, o carregador,
aparece no alto da escada que leva à plataforma da estação.)
MR. SLOCUM - (chamando) Você quer descer até aqui Tommy e ajudar esta senhora a
sair?
Ela está imprensada. (Tommy desce a escada.) Abra a porta, Tommy, e tente
desenganchá-la. (Tommy abre a porta.)
TOMMY - Claro. Belo dia para as corridas. Algum palpite para...
MRS. ROONEY
- Não se incomode comigo. Faça de conta que não estou aqui. Eu não
existo
mesmo. É facto notório.
MR. SLOCUM - Faça o que eu mandei. Tommy, pelo amor de Deus.
TOMMY
- É pra já. Agora. Mrs. Rooney. (Ele começa a puxá-la para fora.)
MRS. ROONEY
- Espere, Tommy, espere um pouco, nada de afobação. Deixe eu me
virar e
pôr o pé no chão. (Esforços de Mrs. Rooney para conseguir o seu intento.)
Agora.
TOMMY - (puxando-a para fora) Cuidado com a sua pluma, madame. (Barulho de
esforço.) Calma, calma!
MRS. ROONEY - Espere, pelo amor de Deus, você vai me decapitar.
TOMMY
- Vamos. Mrs. Rooney, agache-se e ponha a cabeça para fora.
MRS. ROONEY - Agachar-me! A essa altura da vida! Que insensatez!
TOMMY - Empurre-a para cá, Mr. Slocum. (Barulho dos esforços que se somam.)
MRS. ROONEY - Merde! (3)
TOMMY - Agora! Quase, quase! Endireite-se, madame! Pronto! (Mr. Slocum bate a
porta.)
MRS. ROONEY - Consegui? (Voz furiosa de Mr. Barrell, chefe da estação.)
MR. BARRELL
- Tommy! Tommy! Aonde é que esse diabo se enfiou? (Mr. Slocum arranha a
marcha do carro.)
TOMMY - (afobado) Nenhum palpite para o Páreo das Damas? Me disseram que a
barbada hoje é Flash Harry.
MR. SLOCUM - (com desprezo) Flash Harry! Aquele pangaré!
MR. BARRELL
- (no alto da escada, urrando) Tommy! Vou te arrebentar os miolos. (
Vê Mrs.
Rooney.) Olá Mrs. Rooney... (Mr. Slocum arranca, com barulho de marcha
rangendo.) Quem é que está assassinando assim a caixa de mudanças, Tommy?
TOMMY - Slocum.
MRS. ROONEY - Slocum! Belo modo de se referir aos seus superiores. E logo você, um
enjeitado, Mister Slocum!
MR. BARRELL - (furioso, para Tommy) O que é que você está fazendo? Que negócio é
esse
de ficar se pavoneando aqui embaixo na rua? De jeito nenhum! Já para a
plataforma! Chispa! Você está cansado de saber que o expresso do meio-dia
e meia já vai chegar.
TOMMY - (amargamente) Essa é a paga que se recebe por um acto cristão.
MR. BARRELL
- (com violência) Anda logo ou faço queixa de você ao diretor!
(Tommy sobe
a escada a passos lentos.) Quer que eu lhe dê com uma pá na cabeça? (Os
passos se apressam, diminuem, páram.) Ai, que Deus me perdoe, mas essa
vida é muito dura. (Pausa.) Mrs. Rooney, que bom vê-la de pé e com saúde.
A senhora esteve na cama bastante tempo.
MRS. ROONEY - Menos do que eu gostaria, Mr. Barrell. (Pausa.) Quem me dera estar
deitada,
estirada na minha cama confortável. Mr. Barrell, consumindo-me
lentamente, sem sofrimento. Mantendo-me à base de mingau de araruta e
geleia de mocotó até que, por fim, não se visse mais nada entre os
cobertores. (Pausa.) Oh! sem tossir, claro, nem escarrar ou sangrar ou
vomitar, apenas deslizar docemente para a vida eterna, recordando,
recordando... (Voz entrecortada) "pequenas infelicidades." Como se elas
nunca tivessem existido... Onde foi que eu enfiei esse lenço? (Som de lenço
sendo barulhentamente utilizado.) Há quanto tempo o senhor é chefe desta
estação, Mr. Barrell?
MR. BARRELL - Nem me pergunte, Mrs. Rooney, nem me pergunte...
MRS. ROONEY
- O senhor seguiu os passos do seu pai e perpetuou-os quando ele
próprio já
não podia mais caminhar.
MR. BARRELL - Pobre papai! (Pausa respeitosa.) Não viveu o bastante para
desfrutar o
merecido sossego.
MRS. ROONEY - Eu me recordo nitidamente dele. Um viúvo baixinho, rubicundo, com
cara
de fuinha e surdo como uma porta, ranzinza e muito afobado. (Pausa.) O
senhor deve estar para se aposentar não é, Mr. Barrell? Vai se dedicar à sua
criação de rosas? (Pausa.) Será que ouvi mesmo o senhor dizer que o trem
do meio-dia e meia está para chegar?
MR. BARRELL - Exatamente.
MRS. ROONEY
- Mas no meu relógio, que está mais ou menos certo, ou estava pelo
noticiário
das oito, já é quase meio-dia e... (Pausa enquanto ela consulta o relógio.)
trinta e seis. (Pausa.) Contudo o expresso ainda não chegou. (Pausa.) Ou
será que ele passou tão rápido que eu nem percebi? (Pausa.) Porque houve
um momento, lembro-me bem, em que eu estava de tal forma mergulhada
na dor que não perceberia nada; nem se eu fosse atropelada por um rolo
compressor. (Pausa. Mr. Barrell vira-se para ir embora. Alto.) Mr. Barrell!
(Pausa. Mais alto.) Mr. Barrell! Mr. Barrell, volta.
MR. BARRELL - (irritado)
Que é, Mrs. Rooney? Tenho o meu serviço para fazer. (Silêncio.
Som de vento.)
MRS. ROONEY - Está começando a ventar. (Pausa. Vento.)
O melhor do dia terminou. (Pausa. Vento. Sonhadora.) Logo a chuva
começará a cair, e cairá por toda a tarde. (Mr. Barrell vai embora.)
Então, à tardinha, as nuvens vão embora, o sol poente vai brilhar por um
instante e depois vai desaparecer atrás das colinas. (Ela percebe que Mr.
Barrell foi embora.) Mr. Barrell! Mr. Barrell! (Silêncio.) Eles vêm a mim, por conta própria, cheios de amabilidades,
ansiosos por ajudar-me... (Voz entrecortada.)... sinceramente felizes... de
rever-me... tão bem-disposta. (Lenço) Algumas poucas palavras... do fundo
d'alma... e estou de novo só... uma vez mais... (Lenço. Com veemência.) Eu
não deveria sair, de forma alguma! Eu não deveria nunca ultrapassar o
jardim da minha casa! (Pausa.) Ah! Lá vem a tal da Miss Fitt. Pergunto-me
se ela vai me cumprimentar. (Ruído de Miss Fitt que se aproxima,
cantarolando, bocca chiusa, um hino. Ela começa a subir os degraus.) Miss
Fitt! (Miss Fitt estaca, pára de cantarolar.) Sou invisível, por acaso, Miss
Fitt? Será que esse cretone me assenta tão bem a ponto de me dissolver na
paisagem? (Miss Fitt desce um degrau.) Olhe, Miss Fitt, olhe mais de perto
e distinguirá, finalmente, o que outrora foi uma silhueta de mulher.
MISS FITT
- Mrs. Rooney! Eu vi-a, mas não a reconheci.
MRS. ROONEY - No último sábado nós, juntas, louvamos ao Senhor. Ajoelhamos lado
a lado
diante do mesmo altar. Bebemos do mesmo cálice. Terei eu mudado desde
então? Na igreja, Mrs. Rooney, na igreja...
MISS FITT - (chocada) Ah, mas estou sozinha com
o meu Criador. A senhora não?
(Pausa.) Até o próprio sacristão, quando faz a coleta, sabe que é inútil deter-se diante de mim. Eu simplesmente não vejo a bandeja ou o saco, enfim,
aquilo que eles usam, sei lá. Como poderia ver? (Pausa.) Mesmo quando
está tudo terminado e eu saio para o ar fresco da rua, mesmo então, nos
primeiros duzentos metros, mais ou menos, vou tropeçando em meio a uma
espécie de deslumbramento, sem ver os meus irmãos de fé. E eles são muito
amáveis, devo admitir, em sua grande maioria, muito amáveis e
compreensivos. Já me conhecem e não me levam a mal. Lá vai ela, dizem,
lá vai Miss Fitt, aquela moça morena. Sozinha com o seu Criador; e o jeito
dela, não reparem. E eles descem da calçada para evitar que eu lhes dê um
encontrão. (Pausa.) Ah, sim. sou distraída mesmo, muito distraída, mesmo
nos dias de semana. Pergunte à mamãe, se não acredita em mim. Hetty, ela diz
quando eu começo a comer o meu guardanapo em vez da minha fatia de
pão com manteiga, Hetty, como é que você pode ser tão distraída?
(Suspiro) Acho que, na verdade, Mrs. Rooney, eu não sou daqui, realmente
não sou deste mundo, de forma alguma. Eu vejo, ouço, cheiro, e assim por
diante, executo os gestos habituais, mas o meu coração está longe, Mrs.
Rooney, muito longe. Entregue a mim mesma, sem ninguém para controlar-me,eu logo, logo alçaria vôo... em busca de meu verdadeiro lar. (Pausa.)
É
uma injustiça a senhora achar que eu não a vi, agorinha mesmo, Mrs.
Rooney. Tudo o que vi foi uma grande mancha pálida, apenas mais uma
grande mancha pálida. (Pausa.) Algo errado? Mrs. Rooney, a senhora
parece um pouco estranha. Tão caída e encurvada.
MRS. ROONEY - (amargamente) ...Maddy Rooney, néé Dunne
(4), uma grande pálida.
(Pausa.)
A senhorita tem olhos de lince, Miss Fitt, literalmente de lince, pena que
não se dê conta. (Pausa.)
MISS FITT - Bem... Já que estou aqui, em que lhe posso ser útil?
MRS. ROONEY
- Se me ajudasse a escalar esse penhasco, Miss Fitt, tenho a certeza
de que o
seu Criador a recompensaria, pelo menos Ele.
MISS FITT - Ora, ora, Mrs. Rooney, poupe-me do seu veneno. Recompensa! Presto-me
a
esses sacrifícios graciosamente, ou nada feito. (Pausa. Som dos passos de
Miss Fitt descendo a escada.) Suponho que a senhora queira apoiar-se em
mim, Mrs. Rooney?
MRS. ROONEY - Pedi a Mr. Barrell que me desse o braço, que me desse apenas o
braço!
(Pausa.) Ele deu meia volta e foi-se a passos largos...
MISS FITT - Então é
o meu braço que a senhora deseja? (Pausa. Impaciente.) É o meu
braço
que a senhora deseja, Mrs. Rooney, ou o quê?
MRS. ROONEY - (explodindo) ...Seu braço! Ou qualquer braço! Uma mão caridosa! Por
cinco
segundos, Cristo... que planeta!
MISS FITT - Realmente. Sabe do que mais, Mrs. Rooney, acho que não é nem um
pouco
prudente da sua parte sair de casa.
MRS. ROONEY - (com violência) Desça aqui, Miss Fitt, e dê-me
o seu braço antes que
eu faça
um escândalo. (Pausa. Vento. Som de Miss Fítt descendo os últimos
degraus.)
MISS FITT - (resignadamente) Bem, acho que é assim que deve agir uma boa
protestante.
MRS. ROONEY - As formigas procedem assim entre si. (Pausa.) Também vi lesmas
agirem
da mesma forma. (Miss Fitt oferece enfaticamente o braço.) Não, o outro
lado, queridinha, se não se incomodar. Como se não bastasse, ainda por
cima, sou canhota. (Ela toma o braço direito de Miss Fitt.) Meu Deus,
coitadinha, você é um saco de ossos, menina; precisa botar corpo! (Som de
seus esforços para subir, apoiada no braço de Miss Fitt.) Isso aqui é pior
que o Matterhorn. Já subiu ao Matterhorn, Miss Fitt? Lugar ideal para lua-de-mel! (Barulho de esforços.) Não entendo porque eles não põem um
corrimão. (Ofegante.) Espere eu tomar um pouco de ar. (Pausa.) Não me
largue! (Miss Fitt cantarola um hino. Depois de um instante, Mrs. Rooney acompanha-a com a letra da música.)
A escuridão que aprisiona (Miss Fitt
pára de cantarolar.) Me põõõe em fooogo. (Forte.) A noite é escura e estou
longe do la - ar, me põõõe, me põõõe...
MISS FITT - (histérica) Chega, Mrs. Rooney, pare com isso ou eu largo
a senhora!
MRS. ROONEY
- Não era isso que eles cantavam no Lusitânia? Ou no Rock of Ages?
Devia
ser comovente. Ou será que foi no Titanic? (Atraído pelo barulho, um
grupo... incluindo Mr. Tyler, Mr. Barrell, e Tommy, reúne-se no alto da
escada.)
MR. BARRELL - Que diab... (Silêncio.)
MR. TYLER - Dia maravilhoso para as corridas. (Gargalhada de
Tommy logo
interrompida por Mr. Barrell, que lhe dá um soco no estômago. Tommy
emite um som compatível com a agressão.)
VOZ/MULHER - (estridente) Olhe, Dolly, olhe!
DOLLY
- O quê, mamãe?
VOZ/MULHER - Elas estão imprensadas! (Riso agudo.) Elas estão imprensadas!
MRS. ROONEY
- Virámos motivo de chacota para os Vinte e seis condados. Ou será
que são
trinta e seis?
MR. TYLER - Bela maneira de tratar os seus indefesos subordinados, Mr.
Barrell,
desfechando-lhes, sem aviso prévio, socos na boca do estômago.
MISS FITT - Alguém
viu a minha mãe?
MR. BARRELL
- Quem é?
TOMMY - Miss Fitt, aquela moça morena.
MR. BARRELL - Não dá nem para ver a cara dela...
MRS. ROONEY
- Agora, queridinha, podemos ir, se quiser... (Elas vencem os
degraus que faltavam.) Afastem-se, grosseirões! (Arrastar de pés.)
VOZ/MULHER
- Cuidado, Dolly!
MRS. ROONEY - Obrigada, Miss Fitt, obrigada. Agora basta apoiar-me contra a
parede, como se eu fosse um rolo de lona. (Pausa.) Sinto muito por toda essa
confusão, Miss Fitt, tivesse eu sabido que estava à procura da sua mãe, não a
teria importunado, sei o que é isso...
MR. TYLER - (À parte, estarrecido.) Confusão!
VOZ/MULHER - Venha, Dolly, venha meu anjinho, vamos ficar a postos antes que
cheguem os fumadores da primeira classe. Dê a mão e segure bem, quem não toma
cuidado, pode até ser sugado...
MR. TYLER - Perdeu a sua mãe, Miss Fitt?
MISS
FITT
- Bom dia, Mr. Tyler.
MR. TYLER - Bom dia, Miss Fitt.
MR. BARRELL - Bom dia, Miss Fitt.
MISS FITT
- Bom dia, Mr. Barrell.
MR. TYLER - Perdeu a sua mãe, Miss Fitt?...
MISS
FITT
- Ela disse que viria no último trem.
MRS. ROONEY - Não pensem que, só porque estou em
silêncio, fui suprimida. Estou
bem
viva e atenta a tudo o que se passa.
MR. TYLER - (para Miss Fitt) Por último trem a senhorita entende...
MRS. ROONEY
- Não se iludam, nem por um momento. Não é porque pareço
indiferente que
os meus sofrimentos cessaram. Não. A cena completa, as colinas, a planície, o
campo de corrida com milhas e milhas de raias brancas e três tribunas
vermelhas e essa estaçãozinha linda a margem da cidade e até vocês
mesmos, é... vocês mesmos, não estou brincando e por sobre esse azul
nublado, eu vejo tudo, eu estou aqui e vejo tudo com olhos... (A voz
entrecortada) através de olhos... ah! se vocês tivessem seus olhos,
entenderiam. As coisas que esses olhos viram, e sem se desviarem... isso
não é nada... o nada... onde é que eu enfiei o lenço? (Pausa.)
MR. TYLER
- (para Miss Fitt) Por último trem a senhorita entende (Mrs. Rooney
assoa-se
demorada e ruidosamente. ) Quando a senhorita mencionou o último trem estava
se referindo ao do meio-dia e meia, não?
MISS FITT - É óbvio, Mr. Tyler. Que outro trem poderia ser?
MR. TYLER
- Então não precisa ficar nervosa, Miss Fitt, porque o expresso do meio-dia e
meia, ainda não chegou. Olhe. (Miss Fitt olha.) Não, acima da linha. (Miss
Fitt olha. Pacientemente. ) Não. Miss Fitt, siga a direção do meu dedo
indicador. (Miss Fitt olha.) Lá. Está vendo? O sinal. A verdade nua e crua
é
que o ponteiro aponta para o nove. (Num adendo amargo.) Quem me dera
que estivesse apontando para o três... (Mr. Barrell abafa uma gargalhada.)
Obrigado, Mr. Barrell.
MISS FITT - Mas já são quase...
MR. TYLER - (pacientemente) Todos nós sabemos, todos nós sabemos muito bem que
já
está ficando muito tarde, mas a verdade nua e crua e que o expresso do meio-dia e meia, ainda não chegou.
MISS FITT - Deus queira que não tenha havido um acidente! (Pausa.) Oh! querida
mamãe! Com o linguado fresco para o almoço! (Gargalhada abafada de Tommy. Repreendido como antes por Mr. Barrell.)
MR. BARRELL - Estou farto das suas gracinhas, seu idiota. Chispa prá cabine e vê
se Mr. Case
tem alguma notícia. (Tommy vai.)
MRS. ROONEY - (tristemente) Pobre Dan!
MISS FITT
- (angustiada) - Que horror! O que será que aconteceu?
MR. TYLER - Ora, vamos, Miss Fitt, não...
MRS. ROONEY
- (com veemente tristeza) - Pobre Dan!
MR. TYLER - Ora, vamos, Miss
Fitt, não se deixe tomar pelo desespero, tudo vai
dar certo
no fim. (À parte, para Mr. Barrell.) Qual é, realmente, a situação, Mr.
Barrell? Quero crer que não se trata de uma colisão, não é mesmo, Mr.
Barrell?
MRS. ROONEY - (horrorizada) Uma colisão! Eu sabia!
MR. TYLER - Venha, Miss Fitt, vamos dar um pulo até a plataforma.
MRS. ROONEY
- Isso, vamos todos até lá. (Pausa.) Não? (Pausa.) Mudaram de ideia?
(Pausa.) Também acho, estamos melhor aqui, na sombra da sala de espera.
MR. BARRELL
- Desculpem-me um momento.
MRS. ROONEY - Por favor, Mr. Barrell, antes que o senhor escape, insisto em que
nos preste
algum esclarecimento. Raciocinemos: nenhum trem, por mais lento que
seja, se atrasa dez minutos num percurso tão curto como esse, sem uma boa
causa. (Pausa.) Todo o mundo sabe que a sua estação é a mais bem conservada
de toda a rede ferroviária. Porém isso não basta! Não basta de forma
alguma. (Pausa.) Mr. Barrell, pare de cofiar os bigodes. Estamos esperando
os seus esclarecimentos, nós, os parentes mais chegados e quiçá os mais
amados, e seus desgraçados passageiros (Pausa.)
MR. TYLER - (num tom ponderado) Realmente, acho que nos devem algum tipo de
explicação, Mr. Barrell, ao menos para tranquilizar-nos.
MR. BARRELL - Não sei de nada. Tudo o que sei é que houve um impedimento. O
tráfego
ficou retido.
MRS. ROONEY - (mordaz) Tráfego retido! Impedimento! Ah! esses celibatários!
Estamos
aqui, o coração apertado por causa dos nossos entes queridos e ele chama
isso de "impedimento"! Aqueles dentre nós que, como eu, têm o coração e
os rins abalados, podem até ser acometidos de um mal súbito. E ele chama isso de
um "impedimento"! Em nossos fornos, o assado de sábado está se
esturricando e ele chama isso de imp...
MR. TYLER - Olha, lá vem o Tommy! Correndo! Inacreditável! Valeu a pena ter
vivido até hoje só para presenciar esta cena.
TOMMY - (de longe, muito agitado) Está chegando. (Pausa. Mais perto.) Já está na
passagem de nível! (Imediatamente sons da estação bem exagerados.
Campainhas. Apitos. Crescendo do apito do trem que se aproxima. Barulho
do trem que entra na estação.)
MRS. ROONEY - (por sobre o barulho do trem) O expresso! O expresso! (O expresso
vai
parando, o vagão de passageiros se aproxima, entra na estação; o trem
freia com grande chiado de vapor e barulho de engrenagem. Barulho de
passageiros descendo, portas batendo. Mr. Barrell gritando "Boghill!
Boghill! etc. Grito estridente.) Dan! Você está bem?... Mas cadê ele?...
Dan! Viu meu marido? Dan!... (Barulho da estação se esvaziando. Apito do
guarda. Partida do trem que desaparece. Silêncio.) Ele não veio! E todo o
sofrimento que eu enfrentei para vir até aqui... Ele não veio no trem!... Mr.
Barrell... Como é possível? (Pausa.) O que é que há? Parece que o senhor
viu um fantasma. (Pausa.) Tommy!... Ele não veio?
TOMMY - Ele já vem, madame, Jerry está cuidando dele. (Mr.
Rooney de repente aparece na plataforma, caminhando, apoiado no braço do pequeno
Jerry. É cego e bate no chão com a bengala e ofega incessantemente.)
MRS. ROONEY
- Dan! Até que enfim! (Passos arrastados de Mrs. Rooney que se
apressa
para ele. Ela o alcança. Eles estacam. ) Onde é que você se enfiou?
MR. ROONEY
- (friamente) Maddy.
MRS. ROONEY - Onde é que você estava esse tempo todo?
MR. ROONEY
- No reservado.
MRS. ROONEY - Me dá um beijo!
MR. ROONEY - Beijar você? Em público? Na plataforma? Na frente do garoto? Perdeu
o
juízo?
MRS. ROONEY - O Jerry não se importa, não é Jerry?
JERRY - Não, madame.
MRS. ROONEY
- Como vai o seu pobre pai?
JERRY - Levaram-no embora, madame.
MRS. ROONEY - Então você está completamente só?
JERRY
- Sim, madame.
MR. ROONEY - Por que é que você veio sem me avisar?
MRS; ROONEY
- Queria fazer uma surpresa. Pelo seu aniversário.
MR. ROONEY - Meu aniversário?
MRS. ROONEY
- Não lembra? Eu disse: Que esta data se repita por muitos anos!
Lembra?
No banheiro.
MR. ROONEY - Não ouvi.
MRS. ROONEY - Mas eu até lhe dei esta gravata que você está usando agora.
(Pausa.)
MR. ROONEY - Quantos anos eu tenho agora?
MRS. ROONEY - Ora, não se preocupe com isso. Venha.
MR. ROONEY
- Por que você não cancelou os serviços do garoto? Agora vamos ter
que lhe
dar um trocado.
MRS. ROONEY - (infeliz) Esqueci! Levei tanto tempo para chegar aqui! Esse monte
de gente
horrenda e desagradável. (Pausa. Suplicante.) Seja bonzinho comigo, Dan.
Seja bonzinho comigo hoje!
MR. ROONEY - Dê um trocado ao garoto.
MRS. ROONEY
- Aqui duas moedinhas. Corre e vai comprar um pirulito.
JERRY - Sim senhora.
MR. ROONEY
- Venha na segunda, se eu ainda estiver vivo.
JERRY - Sim senhor. (Ele sai correndo.)
MR. ROONEY
- Poderíamos ter economizado seis pences. Economizámos cinco pences.
(Pausa.) Mas a que preço? (Eles caminham pela plataforma de braços
dados. Passos arrastados. Arquejar, barulho da bengala que bate no chão.)
MRS. ROONEY
- Você não está se sentindo bem? (Eles estacam por iniciativa de Mr.
Rooney.)
MR. ROONEY - De uma vez por todas, não me peça para falar e andar ao mesmo
tempo. Não
quero ter de repetir isso nunca mais na minha vida. (Eles andam. Passos
arrastados, etc. Eles estavam no alto da escada.)
MRS. ROONEY - Você não...
MR. ROONEY
- Primeiro vamos vencer este precipício.
MRS. ROONEY - Apoie-se no meu ombro.
MR. ROONEY
- Você andou bebendo de novo? (Pausa.) Está tremendo como um pudim.
(Pausa.) Você está em condições de me guiar? (Pausa.) Vamos acabar
caindo na vala.
MRS. ROONEY - Oh! Dan. Será como nos velhos tempos!
MR. ROONEY
- Contenha-se ou eu mando Tommy buscar o táxi. E então, em vez de
termos
economizado seis pences, não, cinco pences, teremos perdido... (Murmúrio
de cálculo.) Dois e três menos seis, um e zero mais um e zero mais três um e
nove e um dez e três dois e um. (Voz normal.) Dois e um, quando eu
concluir estes cálculos teremos ficado mais pobres dois shillings e um
penny. (Pausa.) Maldito sol; se escondeu. Como está o céu? (Vento.)
MRS. ROONEY
- Encoberto, encoberto, o melhor já passou. (Pausa). Logo as
primeiras gotas
grossas Vão cair, plaft, plaft, na poeira.
MR. ROONEY - É o barómetro indicando tempo firme... (Pausa.) Aviemo-nos para
casa... Vamos sentar diante do fogo. Cerraremos as cortinas. Você vai ler para
mim. Acho que Effie vai trair o marido com o major. (Breve arrastar de
pés.) Espere! (Cessam os passos. Bengala batendo nos degraus.) Já subi e
desci estes degraus cinco mil vezes e ainda não sei quantos são. Quando
acho que são seis são quatro ou cinco ou sete ou oito, quando eu lembro que
na verdade são cinco são três ou quatro ou seis ou sete, e quando afinal eu
chego à conclusão de que são sete, há cinco ou seis ou oito ou nove. Às
vezes eu me pergunto se eles não vêm à noite mudá-los. (Pausa. Irritado.)
Bem? E hoje? Quantos vão ser?
MRS. ROONEY - Não me peça para contar, Dan. Não agora.
MR. ROONEY
- Recusa-se a contar! Mas essa é uma das.... Poucas alegrias da vida!
MRS. ROONEY
- Degraus, não, Dan, por favor, eu sempre me engano. Aí você poderia
cair
sobre a sua ferida e eu teria mais essa no meu rol de culpas, além de todas as
outras, claro. Não, agarre-se em mim e tudo vai dar certo. (Barulho confuso
de descida. Arquejos, tropeços, jaculatórias, ímprecações. Silêncio.)
MR. ROONEY
- Certo! É isso que você chama de "dar certo!"
MRS. ROONEY - Ao
menos, chegámos. Sãos e salvos. Dos males o menor. (Silêncio).
Um
burro zurra. (Silêncio.) Eis aí um burro de verdade. Burro de pai e mãe.
Legítimo. (Silêncio.)
MR. ROONEY - Sabe que mais... acho que vou me aposentar.
MRS. ROONEY
- (boquiaberta) Se aposentar! E ficar em casa? Vivendo de pensão?
MR. ROONEY - Nunca mais ter de pôr os pés nestes malditos degraus. Nunca mais
ter de me
arrastar por esta maldita estrada. Sentar em casa sobre o que restou do meu
traseiro, contando as horas até à refeição seguinte. (Pausa.) Só de pensar
nisso recobro o ânimo. Depressa, antes que ele arrefeça. (Eles caminham.
Passos arrastados, arquejos, bengala, tacteando.)
MRS. ROONEY - Agora cuidado com a calçada. Suba!... Ótimo! Agora estamos a salvo
e na reta de casa.
MR. ROONEY - (sem estocar, entre arquejos) A salvo. Uma reta! Ela acha que isso
é uma reta...
MRS. ROONEY - Psst! Não fale enquanto caminha, você sabe que não é bom para suas
coronárias. (Passos arrastados, etc.) Concentre-se apenas em pôr um pé
diante do outro, compreende? (Passos arrastados, etc.) Assim. assim,
estamos indo muito bem. (Passos arrastados, etc. Eles estacam subitamente
por iniciativa de Mrs. Rooney.) Céus! Eu sabia que tinha uma outra coisa!
Com toda essa agitação, acabei esquecendo!
MR. ROONEY - (calmamente) Meu Deus, vai começar.
MRS. ROONEY
- Mas você tem que saber, Dan, claro, você, estava lá. Afinal, o que
foi que
aconteceu? Conte!
MR. ROONEY - Não me consta que tenha acontecido nada.
MRS. ROONEY
- Mas você tem que...
MR. ROONEY - (Com violência.) Essa história de parar e andar, parar e andar é
infernal.
Infernal! Quando venço a inércia e o movimento se apodera de mim, você
pára de repente! Cem quilos de celulite! Que diabo! O que é que te deu pra
resolver vir me esperar? Me larga!
MRS. ROONEY - (muito agitada) Não, eu tenho que saber, não vamos dar um passo
enquanto
você não me contar. Quinze minutos de atraso num trajeto de meia hora! É
inacreditável!
MR. ROONEY - Não sei de nada. Larga-me, antes que eu te dê um safanão.
MRS. ROONEY
- Mas você tem que saber. Você estava lá! Foi na partida? Vocês
saíram na
hora? Ou foi no caminho? (Pausa.) Aconteceu alguma coisa no caminho?
(Pausa.) Dan! (Voz entrecortada.) Por que é que você não me quer
contar? (Silêncio. Eles caminham. Passos arrastados, etc. Eles estacam. Pausa.)
MR. ROONEY
- Pobre Maddy! (Pausa. Gritos de crianças.) O que foi isso? (Pausa
para
Mrs. Rooney verificar.)
MRS. ROONEY - Aqueles gémeos zombando de nós. (Gritos)
MR. ROONEY
- Será que hoje eles vão nos atirar lama? O que é que você acha?
MRS. ROONEY - Vamos dar meia-volta
e encará-los. (Gritos. Eles viram-se. Silêncio.) Ameace-os com a bengala.
(Silêncio.) Fugiram. (Pausa.)
MR. ROONEY - Algum dia você já desejou matar uma criança? (Pausa.) Decepar um
jovem
destino em flor. (Pausa.) Muitas vezes, na escuridão das noites de inverno, a
caminho de casa, eu estive prestes a atacar o garoto. (Pausa.) Pobre Jerry!
(Pausa.) O que será que me deteve? Não foi o medo dos homens. (Pausa.) Que tal
agora andar um pouco de costas?
MR. ROONEY - É. Ou você de frente e eu de costas. O par perfeito. Como os
condenados de
Dante, com o rosto ao contrário. Nossas lágrimas vão molhar nossos
traseiros.
MRS. ROONEY - O que é isso, Dan? Você não está bem...
MR. ROONEY
- Bem! Quando foi que você me viu bem? No dia em que você me conheceu
eu deveria ter ficado na cama. No dia em que você me pediu em casamento,
os médicos me desenganaram. Você sabia disso, não sabia? Na noite em que
você casou comigo, eles vieram me buscar de ambulância. Você não se
esqueceu disso, não é? (Pausa.) Não, não se pode dizer que eu esteja bem.
Também não piorei. Inclusive estou melhor do que antes. A perda da visão
foi um grande estímulo. Se eu também me tornasse surdo e mudo acho que
poderia me arrastar até aos cem anos. Ou será que já tenho cem anos?
(Pausa.) Fiz cem anos hoje? (Pausa.) Fiz cem anos, Maddy? (Silêncio.)
MRS. ROONEY
- Tudo quieto. Não se vê viva alma. Ninguém a quem perguntar. O
mundo se
alimenta. O vento (Breve lufada) agita de leve as folhas e os pássaros (Breve
chilreio.) cantam exauridos. As vacas (Breve mugido.) e os carneiros (Breve
balido.) ruminam em silêncio. Os cães (Breve latido.) mergulharam no
sono e as galinhas (Breve cacarejar.) adormeceram esparramadas na poeira.
Estamos sós. Ninguém a quem perguntar. (Silêncio.)
MR. ROONEY - (limpando a garganta, tom de narração) Saímos na hora prevista...
posso
assegurar. Eu estava...
MRS. ROONEY - Como é que você pode assegurar?
MR. ROONEY
- (tom normal, mas com raiva) Eu posso assegurar, estou dizendo! Quer
que
eu fale ou não? (Pausa. Tom de narração.) Na hora exata. Eu estava
sozinho na cabine, como sempre. Pelo menos espero que sim, porque não fiz
nada para me refrear. Meu pensamento... (Tom normal.) Por que não
nos sentamos em algum lugar? Será que estamos com medo de não podermos nunca
mais levantar-nos?
MRS. ROONEY - Sentar onde?
MR. ROONEY - Num banco, por exemplo.
MRS. ROONEY
- Nenhum banco por perto.
MR. ROONEY - Então no barranco. Vamos nos acomodar no barranco.
MRS. ROONEY
- Nenhum barranco por perto.
MR.RoONEY - Então não podemos. (Pausa.) Sonho com outras estradas, em outros
países. Com outro lar, outra... (Hesita.) Outra casa. (Pausa.) O que é que eu
estava mesmo tentando dizer?
MRS. ROONEY - Algo sobre o seu pensamento.
MR. ROONEY
- (assustado) Meu pensamento? Tem a certeza? (Pausa. lncrédulo.) Meu
pensamento? (Pausa.) Ah, sim. (Tom de narração.) Sozinho na cabine,
o meu
pensamento começou a trabalhar, como frequentemente me acontece, depois
do expediente, a caminho de casa, no trem, embalado pelo uivo dos
fantasmas. Mas como eu ia dizendo, o ticket económico custa 12 pounds
por ano e ganha-se, em média, sete vírgula seis por dia, o que significa que
mal dá para você se manter vivo e ativo à base de sanduíche, cafezinho,
cigarro, jornais e revistas, até finalmente conseguir chegar a casa e
desabar na cama. Acrescente-se a isso, ou subtraia-se desse total aluguel,
papelada, assinaturas disso e daquilo, passagens de trem pra baixo e pra
cima, luz e aquecimento, alvarás e licenças, barbeiros e mais barbeiros,
gorjetas para os guias. Manutenção do prédio e das aparências, e mil
inespecificáveis variedades, e é óbvio que, ficando em casa dia e noite,
deitado na cama, inverno e verão, trocando de pijama cada quinze dias, você
pode aumentar consideravehnente os próprios ganhos. Negócios, eu ia
dizendo... (Um grito. Pausa. Novamente. Tom normal.) Foi mesmo,um
grito?
MRS. ROONEY - É Mrs. Tully, acho. O coitado do marido dela sofre muito
e bate nela sem dó nem piedade. (Silêncio.)
MR. ROONEY - Mas agora foi de leve. (Pausa.) O que era mesmo que eu estava
tentando
dizer?
MRS. ROONEY - Negócios.
MR. ROONEY - Negócios. (Tom de narração.) Negócios, meu velho, falei com
os meus
botões: aposente-se deles já que, eles se aposentaram de você. (Tom normal.) A
pessoa às vezes tem desses momentos de lucidez.
MRS. ROONEY - Estou com muito frio e me sentindo muito fraca.
MR. ROONEY
- (tom de narração) Por outro lado, eu disse a mim mesmo, há os
horrores da vida doméstica, espanação, varreção, arejação, esfregação,
enceração,
arrumação, lavação, passação, secação, cortação de grama, aparação de
planta, jardinação, afofação de terra, esburacação e plantação, moeção,
rasgação, sovação, socação e bateção. Sem falar nos pirralhos endiabrados
da vizinhança gritando sem parar a plenos pulmões todo o santo dia. E é pior
ainda nos fins - de-semana. Não respeitam nem o sagrado dia do descanso.
Mas afinal, o que é um dia útil? Uma quarta-feira? Uma sexta-feira? O que é
afinal uma sexta-feira! E eu pus-me a pensar naquela silenciosa rua sem
saída, e no subsolo do edificio onde uma placa esmaecida indica o meu escritório:
o meu divã, as tapeçarias de veludo... Pus-me a pensar no que
significa ser um enterrado-vivo, ainda que só das dez às cinco, tendo à mão
filé de peixe defumado cortado em fatias finas e a cerveja habitual... Nada,
como eu ia dizendo, nem mesmo a morte sacramentada, pode substituir isso.
Foi então que eu percebi que estávamos num impasse. (Pausa. Tom normal.
Irritado.) Por que é que você está se pendurando assim em mim?
Desfaleceu?
MRS. ROONEY - Estou muito fraca e com muito frio. O vento. (O vento zune.) sopra
através
do meu vestido de verão como se eu estivesse só de calçinha. Não comi
nada de sólido desde as onze da manhã.
MR. ROONEY - Você nem liga. Eu falo e você ouve o vento.
MRS. ROONEY
- Não, não, sou toda ouvidos, conte tudo. Depois, apressar-nos-emos
e, sem
trégua nem repouso, trilharemos nosso caminho até alcançarmos incólumes,
o porto. (Pausa.)
MR. ROONEY - Nem trégua nem repouso... incólumes ao porto... Sabe, Maddy, às
vezes
parece que você luta com uma língua morta.
MRS. ROONEY - Deveras, Dan, compreendo perfeitamente o que você está dizendo,
muitas
vezes tenho essa sensação; é indizivelmente insuportável.
MR. ROONEY - Devo confessar que, às vezes, sinto a mesma coisa, quando me
acontece
ouvir, por acaso, o que eu próprio estou dizendo.
MRS. ROONEY - Bom, verdade seja dita, a língua vai acabar morrendo mesmo, mais
cedo ou
mais tarde, exatamente como o nosso pobre e querido gaélico. (Balido
insistente.)
MR. ROONEY - (atónito) Bom Deus!
MRS. ROONEY - Ah! O carneirinho branquinho berrando para chamar a mamãe! Ele quer
mamar! A deles não mudou desde a Arcádia. (Pausa.)
MR. ROONEY - Onde é que eu parei o meu relato?
MRS. ROONEY
- Numa parada.
MR. ROONEY - Ah, é! (Limpa a garganta. Tom de narração.) Concluí, naturalmente,
que tínhamos entrado numa estação e que logo retomaríamos a viagem, então,
continuei sentado sem me preocupar. Nenhum ruído. As coisas estão muito
paradas hoje, pensei com os meus botões, ninguém sobe, ninguém desce desse
trem. Como o tempo foi passando e nada aconteceu, compreendi o meu erro.
Não tínhamos entrado numa estação.
MRS. ROONEY - E por que você não deu um salto? E pôs a cabeça para fora da
janela?
MR. ROONEY - E de que é que isso ia me valer?
MRS. ROONEY - Ora, chamasse alguém e perguntasse o que é que estava acontecendo.
MR. ROONEY
- E isso lá me importava?... Não, eu continuei sentado, pois mesmo se
aquele trem nunca mais saísse do lugar eu não ligaria a mínima. Então, aos
poucos um como se diz? Um desejo pungente de... compreende? Um desejo
irrompeu dentro de mim... Nervoso, provavelmente. Agora tenho certeza:
era a sensação de estar enclausurado, compreende?
MRS. ROONEY - Sei, sei, já passei por isso.
MR. ROONEY
- Se ficarmos aqui por muito tempo, disse para mim mesmo, não sei o
que é
que sou capaz de fazer. Levantei-me e comecei a andar pra lá e pra cá entre os
assentos, como fera enjaulada.
MRS. ROONEY - Às vezes isso ajuda.
MR. ROONEY
- Depois do que me pareceu uma eternidade, simplesmente recomeçámos a
viagem. A primeira coisa que escutei depois disso foi Barrell, berrando o
nome execrável. Desci e Jerry me levou ao reservado, ao toalete - com a -
pela nova ortografia. (Pausa.) O resto você já sabe. (Pausa.) Você não diz
nada? Diga alguma coisa, Maddy. Diga que acredita em mim.
MRS. ROONEY - Lembro de ter assistido uma vez a uma conferência de um desses
novos
médicos de cabeça, esqueci como se chamam. Ele disse...
MR. ROONEY - Um especialista em lunáticos?
MRS. ROONEY
- Não, não, espíritos atormentados, apenas. Eu tinha a esperança de
que ele
pudesse esclarecer algo que tem me preocupado por toda a minha vida:
minha obsessão por ancas de cavalo.
MR. ROONEY - Um neurologista.
MRS. ROONEY
- Não, não falo da exaustão mental, o nome me escapa, tenho certeza
de que,
à noite, o nome me virá. Lembro dele contando - nos a história de uma
menina, muito estranha e infeliz e de como ele a tratou, sem resultado,
durante anos a fio, sendo finalmente, obrigado a desistir do caso. Ele não
conseguiu encontrar nada de errado nela, segundo o que nos disse. O único
problema que ele pôde detectar é que ela estava morrendo. E ela
efetivamente morreu, pouco depois de ele ter abandonado o caso.
MR. ROONEY - E daí? O que é que há de tão extraordinário nisso?
MRS. ROONEY
- Nada. Foi uma coisa que ele disse que me assombra desde aquela
época. Não tanto o que ele disse mas a forma de o dizer.
MR. ROONEY - E você passa noites e noites virando de um lado para o outro na
cama e remoendo isso.
MRS. ROONEY - Isso, e outros... horrores. (Pausa.) Quando acabou a história da
menina, ele ficou lá, parado, imóvel, durante algum tempo, uns dois minutos,
talvez, olhando fixamente para baixo, para a mesa. Aí, de repente, ele levantou
a cabeça e exclamou, como se tivesse tido uma revelação: o problema é que
ela nunca tinha realmente nascido! (Pausa.) Ele falou de improviso, sem ler
nada, do começo ao fim. (Pausa.) Eu saí antes de terminar.
MR. ROONEY - Nada sobre
as suas ancas? (Mrs. Rooney chora. Num tom de queixa
afetuosa.) Maddy!
MRS. ROONEY - Não há nada que se possa fazer por essas pessoas!
MR. ROONEY
- Nem por essas nem por ninguém. (Pausa.) Seja como for, isso não faz
nenhum sentido. (Pausa.) Estou de frente para onde?
MRS. ROONEY - O quê?
MR. ROONEY
- Esqueci para que lado estou virado.
MRS. ROONEY - Você virou de lado e está debruçado sobre a vala.
MR. ROONEY
- Tem um cachorro morto lá.
MRS. ROONEY - Não, não. São só folhas apodrecendo.
MR. ROONEY
- Em junho? Folhas apodrecendo em junho?
MRS. ROONEY - Meu querido, são as
folhas do ano passado e as do ano retrasado e as do ano anterior. (Silêncio. Vento de chuva. Eles caminham. Passos arrastados, etc.)
Olha aí de novo o meu lindo laburno. Coitado, está perdendo todos os cachos.
(Passos arrastados.) Chuvisco de ouro. (Passos arrastados, etc.) Não ligue.
Estou falando sozinha. (Chuva mais forte. Passos arrastados, etc.) As mulas
podem procriar, acho. (Eles estacam por iniciativa de Mr. Rooney.)
MR. ROONEY
- Repita.
MRS. ROONEY - Vamos, bem, bem, não ligue para mim, estamos ficando encharcados.
MR. ROONEY
- (com violência) - Quem pode o quê?
MRS. ROONEY - Mulas, procriar. (Silêncio.) Você sabe, as mulas ou asnos. Eles
não são
improlíficos ou estéreis nem nada no género. (Pausa.) Não foi no lombo de
um potro, não, sabe? Perguntei ao Professor de Teologia. (Pausa.)
MR. ROONEY
- Ele deve saber.
MRS. ROONEY - Claro. Foi numa mula; Ele entrou em Jerusalém ou sei lá aonde,
montado
numa mula. (Pausa.) Isso deve significar algo. (Pausa.) É como os pardais
que, muitos dos quais valem menos do que nós. Eles não eram
absolutamente pardais.
MR. ROONEY - Que muitos dos quais... você está, exagerando Maddy.
MRS. ROONEY (emocionada) Não eram absolutamente pardais, de jeito nenhum.
MR. ROONEY - Isso aumenta o nosso preço? (Silêncio. Caminham. Vento e chuva.
Passos
arrastados, etc. Eles estacam.)
MRS. ROONEY - Você quer um pouco de
esterco? (Silêncio. Eles caminham. Vento e
chuva,
etc. Eles estacam.) Por que você parou? Quer dizer algo?
MR. ROONEY - Não.
MRS. ROONEY
- Então por que parou?
MR. ROONEY - É mais fácil.
MRS. ROONEY - Você está muito molhado?
MR. ROONEY
- Até aos ossos...
MRS. ROONEY - Até aos ossos?
MR. ROONEY - Osso, do latim
ossu.
MRS. ROONEY
- Vamos pôr nossas roupas para secar e enfiar nossos roupões.
(Pausa.) Passe
o braço em volta de mim. (Pausa.) Seja bonzinho comigo! (Pausa. Grata.)
Isso, Dan! (Eles caminham. Chuva e vento. Passos arrastados, etc. A
mesma música ao longe, como antes. Eles estacam. Música mais nítida.
Silêncio, ouve-se apenas a música. A música some.) O dia todo o mesmo
velho disco. Sozinha nesse casarão. Ela agora já deve estar bem velhinha.
MR.
ROONEY - . (indistintamente) 'A Morte e a Donzela'. (Silêncio.)
MRS. ROONEY - Mas você está chorando... (Pausa.) Está chorando?
MR. ROONEY
- (com violência) Estou! (Eles caminham. Vento e chuva. Passos
arrastados,
etc. Eles estacam. Caminham. Chuva e vento. Passos arrastados, etc. Eles
estacam.) Que pastor vai se encarregar do sermão de amanhã? O pastor-titular?
MRS. ROONEY - Não.
MR. ROONEY - Deus seja louvado! Quem então?
MRS. ROONEY
- Hardy.
MR. ROONEY - Como ser feliz embora casado?
MRS. ROONEY - Não, não, ele morreu, lembra? Nenhuma relação.
MR. ROONEY
- Ele já anunciou o tema?
MRS. ROONEY - O Senhor sustém todos os que caem e
eleva a todos os que estão prosternados. (Silêncio. Caem ambos numa gargalhada selvagem. Caminham. Vento e
chuva. Passos arrastados, etc.) Me abrace mais forte, Dan! (Pausa.) Assim! (Eles
estacam.)
MR. ROONEY - Ouvi alguma coisa atrás de nós. (Pausa.)
MRS. ROONEY
- Parece o Jerry. (Pausa.) É o Jerry. (Som dos passos de Jerry que
se aproxima correndo. Ele estava ao lado deles, ofegante.)
JERRY - (ofegante)
- O senhor deixou cair essa...
MRS. ROONEY - Calma, calma, rapazinho, você vai acabar rompendo uma veia.
JERRY
- (ofegante) - O senhor deixou cair isso aqui. Mr. Barrell me mandou vir
correndo atrás do senhor.
MRS. ROONEY - Deixe ver. (Ela pega o objeto.) Que é isso? (Ela o examina.) O que
é que é isso, Dan?
MR. ROONEY - Talvez não seja meu.
JERRY - Mr. Barrell disse que era.
MRS. ROONEY
- Parece uma espécie de bola. Mas não é exatamente uma bola.
MR. ROONEY - Me dê isso.
MRS. ROONEY
- (dando) - O que é isso, Dan?
MR. ROONEY - É algo que eu carrego comigo.
MRS. ROONEY
- Sim, mas o que é?
MR. ROONEY - (com violência) É algo que eu trago
comigo! (Silêncio). Mrs. Rooney
procura uma moeda.)
MRS. ROONEY - Não tenho dinheiro trocado. Você tem?
MR. ROONEY
- Não tenho dinheiro nenhum.
MRS. ROONEY - Não temos trocado, Jerry. Lembre a Mr. Rooney, na segunda-feira e
ele lhe dará uma gorjeta pelo trabalho que você teve.
JERRY - Certo.
MR. ROONEY
- Se eu estiver vivo até lá.
JERRY - Certo. (Jerry começa a correr de volta para a estação.)
MRS. ROONEY
- Jerry! (Jerry estaca.) Você sabe qual foi o problema? (Pausa.)
Você sabe o
que reteve o trem por tanto tempo?
MR. ROONEY - Como é que ele poderia saber? Vamos.
MRS. ROONEY
- Foi o quê, Jerry?
JERRY - Foi uma...
MR. ROONEY - Deixa o garoto em paz, ele não sabe de nada. Vamos!
JERRY
- Foi uma criancinha, madame. (Mr. Rooney solta um ganido.)
MRS. ROONEY - “Foi uma criancinha." O que é que você está querendo dizer com
isso?
JERRY - Foi uma criancinha que caiu do trem, madame. Na linha, madame. (Pausa.)
Sob as rodas, madame.
(Silêncio. Jerry sai correndo. Seus passos se perdem na
distância. Tempestade de vento e chuva. Ela abranda. Eles caminham. Passos
arrastados etc. Eles estacam. Tempestade de chuva e vento.)
FIM
Personagens
Mantivémos os nomes das personagens
no original por ser este o procedimento
mais convencionalmente adotado nas
traduções de línguas estrangeiras para o
português. Fica ao critério de cada encenação
traduzi-los ou não. Gostaríamos entretanto
de chamar a atenção para o facto
de que em «Todos os que caem» muitos dos
nomes das personagens parecem ser trocadilhos, apontando para um duplo sentido,
algumas vezes, sexual. A seguir alguns
exemplos:
-
Maddy Rooney - Maddy, do inglês
mad, que significa louco ou zangado.
Rooney apresenta semelhança fonológica
com ruined, que significa arruinado, destruído.
-
Mr. Slocum - Fonologicanente idêntico
à expressão slow come. Slow significa
vagaroso; come em inglês coloquial
significa orgasmo e em inglês vulgar,
porra.
-
Christy - Semelhante a Christ, Cristo,
é o nome do carroceiro cuja carroça
é puxada por uma mula.
-
Miss Fitt - Fonologicamente idêntico
ao inglês misfit que significa fracasso,
pessoa mal-ajustada. Separadamente, fit
significa chilique, acesso, ataque, compondo,
juntamente com Miss (senhorita) o codinome
Senhorita Chilique.
-
Mr. Barrell - Pronunciado à maneira
britânica identifica-se com bar all que significa barra tudo. (N. da T.)
Notas
Traduzido a partir do original ALL THAT
FALL - New York, Grove Press (1957).
Consultámos ainda a tradução francesa de
Robert Pinget - TOUS CEUX QUI TOMBENT - Paris,
Minuit (1957).
1. No original "Paris
horsebutcher" que significa, literalmente, açougueiro de carne de
cavalo, comum em Paris.
2. Laburno (do lat. laburnu)
s.m. Arbusto ornamental europeu, da família das leguminosas (cytisus
laburnum ), de profusas flores amarelas, arrumadas em racemos terminais
pêndulos, folhas com três foliolos. e legume comprido e linear. (Cf.
Aurélio.)
3. Em francês, no original.
4. Em solteira, Dunne (em
francês, no original). (N. da T.)
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TODOS OS QUE CAEM | Não é das peças mais conhecidas do autor, muito por culpa de ele teimar na não autorização a que o texto conheça outra forma de encenação que não a radiodifusão para a qual foi concebida. Beckett sempre afirmou que estas figuras só lhe fariam sentido emergindo da escuridão («coming out from the dark») (Knowlson, p. 565), isto é, brotando o seu acontecer de um universo que o receptor mentalmente constrói pela audição das vozes e dos sons, destituídos de imagem concreta. Beckett chegaria ao cúmulo da «demiurgia» autoral, ao recusar a proposta que lhe foi feita pessoalmente (entre outros) pela dupla Laurence Olivier e Joan Plowright, em 1969 (Knowlson, p. 565), desejosos de interpretar em palco ou no cinema os protagonistas deste Todos os que Caem; peça que retrata as misérias da condição humana com um humor patético e cúmplice, a partir de um casal de idosos, o cego Mr. Rooney e a sua mulher, Maddy, que o vai esperar à estação ferroviária. A espera é um motivo que se prolonga da peça de Godot, ainda que ela se preencha agora de um modo diverso e de tal modo objectivo, que, não obstante a sua destinação radiofónica (e também graças a ela), All That Fall prescreve um
conjunto de elementos sonoplásticos de carácter naturalista (em texto didascálico), que por vezes, para o leitor/ouvinte mais desarmado, podem parecer não mais que pitorescos (e estou a pensar nos sons ilustrativos de animais, sobretudo domésticos e insectos, que se vão nomeando e ouvindo ao longo da peça; porém, esta insistência na fauna, como se algo houvesse aqui de testemunho de Noé, o salvador mítico das espécies animais, encontrará outras ressonâncias que adiante pretendo destacar). A espera agora é activa e constitui-se na peregrinação de Mrs. Rooney em direcção ao caminho de ferro de Boghill - nome da localidade forjada onde decorre a acção; ao contrário da espera abstracta e estática de Vladimir e Estragon, sempre tagarelando junto da sua árvore solitária. Contraste aqui também porque a espera diz respeito a uma pessoa identificável, o velho marido cego de Maddy, e não, como no caso de Godot, por um indivíduo do qual nunca se descortina devidamente a identidade.
Armando Nascimento Rosa.
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-texto integral- TODOS OS QUE CAEM
Uma peça radiofónica
Samuel Beckett
(1956)
Tradução de Fátima Saadi
Revisão técnica de Aniela Improta França
Biblioteca da UNIRIO
Banco de Peças Teatrais
23.Abr.2016
Publicado por
MJA
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