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Marco António de Queiroz
-excerto-
Cego e Diabético - Mohamed Osman, 2009
Marco António de Queiroz descobriu-se diabético aos três anos, sofreu com o fantasma da impotência ainda jovem, ficou cego aos 21 e teve de enfrentar dois transplantes: de rim e pâncreas. Porém, quem espera se debulhar em lágrimas ao ler
este livro terá uma decepção (ou, melhor, uma boa surpresa), pois Marco António optou por narrar sua vida da mesma forma que a leva, com bom humor e suavidade. Em momento algum o autor demonstra pieguismo e auto-complacência ou ousa dar
lição de moral, mas não há como não tirar uma lição de vida desta sua narrativa simples e direta.
RiMa Editora
[...]
O sol anunciara mudanças para 78, mas Janeiro ficou entre a solidão
das leituras em que procurava me isolar e a solidão dos programas
em que procurava gente. O tempo passava, as pessoas passavam e eu
não me liguei no tempo, nem nas pessoas, nem em mim, e sim no
vinho, na vodca, no drake, nos xaropes, no optalidon, no fumo, na coca.
Eu não me ligava, algo me ligava em nada.
Pensei em morar em qualquer lugar para deixar de ser carioca.
Olinda, Arembepe, São Lourenço, Curitiba, qualquer lugar. Mas me
lembrava de Curitiba e percebia que nunca poderia ficar na mesa de
um bar indo embora. O problema não era a cidade, nem seu rebu
maravilhoso; era eu.
Em Fevereiro, no entanto, uma grande mudança estava para
acontecer: pane em minha visão. Dizem que Deus “dá o frio conforme
o cobertor”, mas no meu caso penso que ele exagerou no frio,
e que o agasalho poderia ser mais caprichado. Como se não bastassem
a morte de meu pai e o processo de impotência sexual pelo
qual estava passando, outro processo começou a entrar no ápice.
Uma pessoa se diz diabética quando tem insuficiência de insulina
no corpo. A insulina digere os açúcares ingeridos pela pessoa,
transformando-os em energia. Quando há insuficiência dela, sobra
açúcar no sangue. As moléculas de açúcar vão se aglomerando e
entupindo os menores vasos sangüíneos. As manifestações mais alarmantes
desse processo em mim foram no sexo, como já vinha
acontecendo, e nos olhos. Pode-se chegar, no entanto, a outras conseqüências
crônicas, como perda das funções renais, neuropatias,
cardiopatias, etc.
Percebera pequena diminuição em minha visão em Novembro
daquele ano, 1977, antes do Natal, mas que não me afetou em nada.
Continuava a ler, dirigir, enfim, a fazer tudo o que fazia antes.
Preferi não usar óculos. Não sabia, porém, que a questão não era
usar ou deixar de usar óculos, mas algo muito mais problemático.
Fora as dosagens de insulina, o controle que eu estava fazendo
da diabetes era, praticamente, nenhum. A maioria dos diabéticos,
pela própria proibição de comer doces, como também por questões
orgânicas, tem compulsão a entrar nas padarias mais próximas, atacar
a geladeira à noite e se lambuzar do proibido. Assim, acabam
comendo mais doces do que qualquer pessoa comum ou, no mínimo, igual. Acho que isso faz parte de uma coisa de cabeça que vai
crescendo dentro da pessoa. Lembro-me, com nitidez, de minha
sensação ao tomar Coca-Cola na praia; se pudesse, eu o faria com
um grande letreiro na testa: “Vejam, estou tomando Coca-Cola, sou
igual a todo mundo...” Mas é lógico que, apesar de sempre ter feito
tudo o que uma pessoa pode fazer, tendo ou não diabetes, a questão
é que eu não me sentia igual a todo mundo. E, efetivamente, não
sou, porque nem todo mundo é diabético.
Além de meu descontrole alimentar, eu ainda estava sendo
sobrecarregado pelo álcool, rico em calorias e açúcares, e pelas drogas.
Algumas drogas até ajudam a queimar açúcar pela agitação que
produzem na pessoa, mas eu me servia muitas vezes, por exemplo,
de chá de cogumelo, feito de cogumelos, é óbvio, mais vinho e mel.
Na sexta-feira, antes do Carnaval, resolvi dar uma volta de carro
pela praia, como sempre gostava de fazer. Ir até o Arpoador, parar o
carro, ligar o rádio, observar um pouquinho as pessoas que passavam
e o mar... (Hoje já não se pode mais parar o carro no Arpoador.)
Sempre morei perto do mar e tive uma relação incrível com ele.
Sempre o achei uma coisa misteriosa e bonita, aparentemente, pelo
menos, muito mais intocável que a terra. O homem faz construções
em cima da terra e a transforma. O mar está eternamente ali, igual
a si mesmo. Sou da época, também, em que se podia fazer amor em
alguns recantos da praia de Ipanema e Leblon, pois não havia luz
fria nem assalto.
Ia passar pela Vinícius de Moraes, era sexta-feira antes do Carnaval,
eram quatro e meia da tarde, e o dia estava claríssimo. De
repente, duas luzes vermelhas. Estremeço. Fixo a vista: um carro
branco, parado, perto. Piso no freio, jogo o carro para a direita, estou
em apuros. A roda traseira bate no meio-fio. Jogo uma segunda,
acelero, controlo o carro e avanço o sinal. Meu corpo formiga e suo.
Vou embora. Devo ter dado um grande susto no dono do automóvel,
mas tão assustado, ou mais, fiquei eu. Como pude não notar o
sinal fechado? Como pude não enxergar o carro parado? E se tivesse
alguém passando? Simplesmente, já era...
Mais adiante, procurei verificar o que estava acontecendo com
minha visão. Parei ao lado de dois carros cinza-metálicos. Atravessei
a rua e olhei para eles: não conseguia distinguir um do outro. Fui atrás
de carros de cores claras para saber o que tinha acontecido. Peguei um
branco que sumia na distância com a claridade do dia. Eu não estava
conseguindo ver senão por contrastes. Fui dirigindo bem devagar para
casa, morrendo de medo de encontrar coisas sem contrastes pela frente.
Que loucura!...
Encostei o carro na garagem com dificuldade: ela era escura.
Fui até a rua e reparei que não conseguia ver o número dos ônibus,
a não ser quando estavam parados no ponto. Fui para casa e percebi
que, para ler, tinha quase de colar meu nariz no jornal. Aquilo, sim,
era uma queda sensível de visão de um dia para o outro. Decidi que,
logo que passasse a Quarta-Feira de Cinzas, iria procurar um oftalmologista.
Estava assustado.
Saí aquela noite, mas voltei cedo. Angustiava-me muito o fato
de não poder distinguir a cara das pessoas do outro lado da rua, e
por várias outras coisas que fui notando: não estava conseguindo
enxergar. Por exemplo: espatifei um copo num balcão de vidro de
um bar. Mas essa angústia estava acumulada também porque fazia
uma semana eu havia decidido ficar careta. Mas, se não conseguisse,
pelo menos um pouco mais careta.
Alguns dias antes, eu entrara no Billy’s, um bar do Baixo Leblon,
hoje com outro nome. Havia me empapuçado de optalidon e, quando
começava a vir a ressaca química, pedia um steinhager e um chope.
Foi a segunda e última vez em que tomei steinhager. Tocou uma música
do Milton Nascimento na FM do bar, e uma frase me chamou
muito a atenção: “Onde está a rainha que a lucidez escondeu...” Sim,
onde estava o Marco António expansivo, comunicativo, amigo de
todo mundo? O Marco António que saía beijando e abraçando mesmo
quem não conhecesse? Esse Marco António estava num copo,
numa carreira, numa bola? E se estivesse? Mesmo assim não estava
gostando muito dele. Onde estava o Marco António que todos diziam
narciso, apaixonado por si mesmo? A melhor pergunta seria simplesmente:
onde está o Marco António? Nada iria conseguir tirar de mim
alguma coisa que eu já não tivesse. Eu estava enjoado dos meus esquecimentos, duro de grana, tentando, portanto, me separar daquilo,
mas muito angustiado. Dormi naquela sexta-feira pensando
que, apesar de tudo, tinha resistido a mais um dia careta.
Acordei no sábado de Carnaval, cheio de preguiça. O quarto
estava escuro e não me levantei de imediato. Quando fui ao banheiro
para me lavar fiquei sem entender nada: estava vendo tudo
difuso, avermelhado, borrões mais escuros, outros mais claros, aqui
e ali. Lavei bem o rosto e saí imediatamente em direção à sala, onde,
com mais claridade, poderia perceber melhor o que acontecia. O
vermelho ficou um pouco mais transparente, mas estava tudo igual.
Gritei. Minha mãe, que já havia me dado um bom-dia distraído
quando passava pelo banheiro, veio rapidamente.
— Não enxergo nada direito. Tá tudo vermelho. Tem sangue
na minha vista!— É melhor você acabar de acordar, Marco... — Ela não tinha
se ligado ainda em minha agonia.
— Mamãe, quero o telefone daquele médico a que o papai me
levava de vez em quando pra ver os olhos.
— Mas hoje não deve ter ninguém lá, filho.
— E o sobrenome dele? Qual o sobrenome? Vamos ver no catálogo.
— Ah, deve ter alguns com o sobrenome dele, é Abreu Fialho.
— Ora, porra, vamos tentar!
Nunca falava palavrão na sua frente. Ela começou a achar que
a coisa devia estar preta mesmo. Conseguimos localizá-lo e combinei
ir a seu consultório após o almoço. Tentei me lembrar de pessoas que
tivessem tido hemorragia na vista para entender o que houve depois.
Lembrei-me de uma senhora de idade, vizinha do prédio, que encontrava
sempre a caminho da padaria. Bem, pelo menos enxergar ela
enxergava. Procurei me tranqüilizar com isso. Fui aplicar minha dose
diária de insulina e percebi que não dava para ver a quantidade que
estava entrando na seringa. Pedi para minha mãe que visse por mim
e apliquei eu mesmo. Aplicar não era difícil, aplicaria até de olhos
fechados. Era simplesmente uma injeção subcutânea. Clareei o quarto e deitei. Fiquei esperando o tempo passar, mas
não pude me tranqüilizar. Olhando para a direção da claridade da
janela reparei que novas bolhas de sangue surgiam nas duas vistas.
Não dá para expressar a angústia que se sente nessas horas, mas é
muita. Não sabia o que era ser realista naquele momento.
Entramos no consultório do Dr. Abreu Fialho. Eu, mamãe e
Anna, minha irmã. Já não andava sozinho, ia com a mão no ombro
de Anna. Ele foi cuidar dos aparelhos e ficamos na sala de espera.
Todo o ambiente era uma mistura maluca de bege com vermelho. As
paredes e o chão eram beges, o vermelho minha vista colocava. Ficava
uma mistura de cores enervante.
Um longo e silencioso exame e, finalmente, entramos no escritório.
— Você está tendo uma retinopatia diabética. É o seguinte: os
vasos vão se entupindo de açúcar até que chega uma hora em que
a pressão do sangue os faz estourar. Você sabe como anda a sua diabetes?
— Não, não sei. Tem muito tempo que não faço exame, e também
tem muito tempo que não faço regime, mas acho que tá tudo
bem. Não tenho me sentido mal.
— Não, não está tudo bem. Caso contrário a sua vista não
estaria assim. Procure um bom endocrinologista e se trate. Para o
que está acontecendo com seus olhos, só há um lugar aqui, onde é
feito um tratamento de fotocoagulação com raio laser.
— Raio laser?
— É um tratamento novo que está surgindo na oftalmologia. Ele
vai procurar desobstruir as áreas atingidas pelas hemorragias e tentar
também evitar que novas áreas sejam atingidas. Mas, se eu fosse
você, não faria isso por aqui. O pessoal ainda não tem muita experiência.
Meus olhos não estavam mais com sangue, mas com cifras.
Raio laser me cheirava a coisa muito cara, ainda mais fora do Rio,
e eu não conhecia ninguém em São Paulo. Onde seria afinal: Rio ou
São Paulo?
— Se os meus olhos fossem os seus, eu iria para a Clínica Barraquer em Barcelona.
— Barcelona?
— É, Espanha.
Gelei. Acho que perdi também todo o meu colorido de verão.
Espanha!
— É o melhor lugar para você se tratar. Se eu fosse você, arrumaria
um jeito de ir. Tem a aparelhagem mais moderna e é um grande
centro de pesquisa. Fiz a minha pós-graduação em Barraquer. Sei
que um médico de lá está aqui no Rio, passando o Carnaval. Vou
tentar me comunicar com ele e fazer com que venha te examinar
aqui amanhã. Ele é mais autoridade do que eu no que você está
passando. Eu telefono hoje à noite para você.
Entendi, como já esperava, que o meu caso tinha solução. Agora,
era uma questão de eu conseguir me encaminhar para a melhor.
Chegamos em casa e eu ainda tentei falar com algumas pessoas
para saber sobre a clínica e percebi que eu tinha mesmo de ir para lá.
À noite, Dr. Abreu Fialho ligou confirmando a consulta no dia seguinte,
domingo. O barulho de Carnaval da cidade, Dr. Abreu e Barcelona
invadiam minha cabeça. Fiquei imaginando que, se o médico espanhol
confirmasse a necessidade de minha ida, teria de vender o carro e
tudo o mais que pudesse, tirar todo o dinheiro da poupança e ainda
pedir emprestado. Mesmo assim, não sabia se iria dar. Mas no fundo,
estava torcendo para ter de ir. Faria o tratamento e ficaria numa
boa, em plena Europa. Poderia passar por uns dias brabos, mas depois
era só curtir um grande sonho, um velho sonho.
No entanto, com quem iria? As pessoas depois do Carnaval
recomeçariam a estudar ou trabalhar. Minha mãe não era tranqüila
o suficiente para ir comigo e, não sei por que, pensei logo em enfermaria
masculina do INPS, (Instituto Nacional de Previdência Social, atualmente Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS).) onde mulher não entra. Além disso,
quando acabasse o tratamento, o que faria? Pediria para ela voltar e ficaria por lá aproveitando? Seria mais um motivo de briga entre
a gente. Queria uma pessoa de minha idade, um cara esperto e descolado
que me ajudasse a gastar o mínimo possível em acomodação
e comida para ver o que se podia fazer depois. Ele não poderia ter
nenhuma obrigação fora do período de férias e, além do mais, a
gente tinha de se dar minimamente bem de cabeça. Pensei, pensei,
pensei e encontrei logo a resposta: ninguém. Bom, mas deixaria isso
para depois; nem sabia ao certo se teria de ir mesmo.
O exame foi demorado e cansativo. Enquanto isso, o espanhol
falava termos técnicos com meu médico e eu não entendia nada.
Isso me deixava ainda mais ansioso. Mas a angústia aumentava
quando os dois ficavam calados. Eu fazia tudo o que eles pediam:
“Olhe pra cima, olhe pra baixo, para a esquerda. Arregale bem o
olho.” Não sei o que eles tanto viam se só tinha sangue.
Entramos mais uma vez naquele escritório, aquele era o lugar
das grandes decisões. Sentei-me ao lado do Dr. Abreu Fialho e percebi,
com a confirmação da audição, que ele folheava um livro enquanto
o espanhol lhe dizia alguns nomes estranhos.
— Fique tranqüilo; ele está me dizendo o nome de algumas
substâncias e eu estou pesquisando em que remédios elas se encontram
aqui no Brasil.
Bem, se ele está procurando remédios para eu tomar aqui, de
duas uma: ou eu não vou precisar ir para a Espanha, ou simplesmente
preciso tomar remédios imediatamente. Continuava, portanto, sem
a mínima dica.
O espanhol começou a falar bem devagar para que eu entendesse.
Apresentou-se como Dr. Dutrenitch. Quando eu fazia cara de
pateta, por não estar entendendo nada, o Dr. Abreu Fialho traduzia
para mim. Às vezes, uma palavra que eu não entendia acabava com
o sentido de toda a frase, e por vezes, também, uma frase dava sentido
à palavra que eu não entendia. Fez-me algumas perguntas do
tipo: “Quando aconteceu?” Ou: “Como está a sua diabetes?”. Coisas
do gênero, mas o importante, o que ficou gravado, foram principalmente
três coisas. A primeira era que a minha vista esquerda estava bem melhor
que a direita e, portanto, seu tratamento seria mais fácil. Eu não percebia
tanta diferença, mas ele me disse que não era a quantidade de
hemorragia e sim as áreas que as hemorragias haviam atingido numa
vista e na outra. A segunda era que, se tudo desse certo, eu iria ficar
apenas um pouco prejudicado da visão periférica. Já não gostei muito
da idéia de saber que, mesmo tudo dando certo, uma parte da visão
seria reduzida. A terceira, mais importante e decisiva, é que para isso
acontecer eu precisaria estar no máximo na segunda-feira seguinte na
Clínica Barraquer, em Barcelona, Espanha. Ou seja: tinha oito dias
para chegar lá, caso contrário, poderia perder definitivamente a visão.
Estávamos no domingo de Carnaval, fiquei assustado. Teria de vender
o carro, arrumar passaporte, comprar passagem, tudo quinta e sexta-feira,
visto que Quarta-Feira de Cinzas quase nada funcionava. E
quem estaria a fim de comprar um carro em pleno Carnaval? Como
é que eu arrumaria alguém para ir comigo tão rápido?
Dr. Dutrenitch falou, com um jeitão meio paterno, que iria para
lá quinta-feira e que me esperaria. Expliquei-lhe minha situação financeira,
e ele me disse que daria um jeito de o tratamento não ficar
muito caro. Dr. Abreu Fialho procurou dar sua força me dizendo que
conhecia um despachante que, recebendo uma graninha por fora,
conseguia o passaporte muito mais rápido. Mamãe disse logo que
tinha “um dinheirinho” na poupança, e Anna, que me ajudaria a
vender o carro e que a gente conseguiria isso de qualquer jeito, nem
que vendesse bem mais barato ou o desse como garantia de um empréstimo.
Todos me davam força, e eu não sabia mais se os meus pés
estavam no chão, apesar de ter de ajeitar tanta coisa para poder ir.
Estava preocupado e tenso, mas, ao mesmo tempo, bastante
satisfeito por ir para a Europa. Vinte e um anos é uma idade ótima
para a gente entrar de cabeça nas coisas, inclusive para aquela aventura
criada pelas circunstâncias. Mas ainda restava uma questão
fundamental: quem iria comigo? Pensei em vários colegas, e todos
tinham algum compromisso. Dr. Dutrenitch não me deu um prazo
certo para tratamento, mas disse que no mínimo seriam dois meses.
— Sim, Bibi..., é claro!
Conheci Bibi fazendo um curso de teatro no Parque Lage com
minha irmã. Anna falava muito do curso e das pessoas. Fui lá assistir
a algumas aulas e acabei ficando. Conheci muita gente incrível, mas
me liguei principalmente a ele. Era de Ribeirão Preto e tinha vindo
ao Rio tentar alguma faculdade de arquitetura. Eu já fazia o curso de
história na Federal, mas ele acabou me convencendo a fazer vestibular
em Janeiro para dar uma força. Fizemos as provas juntos e
acabei passando, ele não. Teve de voltar para Ribeirão, não devia
estar fazendo nada. Seria uma companhia fantástica!
Anna, porém, sugeriu Carlos, seu namorado, que também era
do teatro. A vantagem era que, por ser português, ele já possuía passaporte.
Além disso, seu pai era um alto funcionário numa companhia
de aviação e poderia facilitar as coisas, pelo menos as passagens para
ele. Eu o conhecia, mas não muito bem, de qualquer forma parecia
gente fina. Não estava estudando nem trabalhando. E, além disso,
apesar de seus dezenove anos, por conta do cargo do pai, já tinha
ido muito ao exterior. Perfeito! Não foi muito difícil convencê-lo a
ir; eu iria pagar tudo, menos suas passagens, que ele conseguiria com
o pai.Tudo foi dando certo. Vendemos o carro e juntamos todo o
dinheiro que tínhamos: quatro mil dólares, além do preço das passagens.
Falei com o despachante e tudo OK. Sexta-feira estaria pronto
meu passaporte. Tudo perfeito até a hora de irmos comprar as passagens
na quinta-feira; os vôos estavam lotados até duas semanas
após. O máximo que conseguimos foi sermos os primeiros da fila de
espera em todas as companhias a partir de sexta-feira, quando eu já
teria o passaporte. Tinha de chegar lá no máximo na segunda-feira. Aí
fiquei louco. Eu poderia adivinhar que ia tanta gente para a Europa!
Na sexta-feira à noite soubemos de uma desistência para o
sábado. Asseguramos o lugar para Carlos ir na frente e, caso não
houvesse outra desistência no sábado, ele arrumaria as coisas por lá
e me esperaria. Não havia vôos diretos para Barcelona, todos eram
para Madri, e lá se pegava uma ponte aérea. Isso já me deixou tenso;
como iria transladar de um avião para o outro e esperar num aeroporto
só enxergando borrões vermelhos? No sábado ainda soube que
vagara um lugar para Lisboa, no domingo. De lá seria fácil chegar a Barcelona. Deixei meu nome a confirmar, pois ainda tinha esperanças
de arrumar um vôo direto para Madri. Uma ponte aérea é
sempre mais fácil de conseguir do que um vôo internacional Portugal– Espanha.
Eu estava tenso, muito tenso, apesar de tentar disfarçar. Sempre
me tiveram como um poço de tranqüilidade, só que não sabiam
o que havia no fundo, mas também não era difícil de imaginar...
Quase dez horas da noite de domingo e eu continuava a ter de ir por
Portugal, mas tudo bem: àquelas alturas eu já topava qualquer coisa,
pois saindo no domingo ainda chegaria lá na segunda-feira, dia final
do prazo. Fui com malas e bagagens para o aeroporto e, às onze
e meia, recebi a grande notícia: vagara um lugar no vôo da Varig para
Madri com escala em Roma. A companhia ainda por cima me garantiu
que todos seriam avisados de meu problema, que fariam o meu
translado em Madri para Barcelona e que seria bem acompanhado.
Na hora de sair, me despedi do pessoal com emoção. Eram mamãe,
Marco António, Guilherme e Chico. Anna foi comigo e nos apresentamos
ao embarque.
Logo chegou uma funcionária e perguntou se eu era o rapaz
deficiente visual; falei que sim. Ela me disse que estava ali para me
acompanhar até o avião. Achei legal, senti-me seguro. Perguntei se
minha irmã poderia entrar comigo e ela disse que sim. Fiquei mais
satisfeito ainda. Só achei estranho o termo “deficiente visual”, que
nunca havia escutado se referindo a mim; era uma novidade. Ficamos
um tempo numa sala de espera onde havia muitas pessoas,
provavelmente as que iriam no mesmo vôo que eu. A funcionária me
informou que já havia marcado o meu lugar, e era uma poltrona
legal, para ficar bem à vista do comissário e da aeromoça. Ótimo!
Entramos por um corredor que, logo descobri, era um tubo que ia
dar no avião. Já vira isso em fotografia. Na porta do avião me despedi
de Anna. Agora era só eu. Se já estava aprendendo a ser decidido
tinha de ser mais ainda. Por mais que a empresa tivesse armado
o maior esquema para mim, qualquer coisa que acontecesse aconteceria
comigo e com mais ninguém. Embora me sentisse aliviado por
poder seguir minha trajetória, tive também muito medo. A semana
se passara com muita tensão, providenciando tudo para eu poder
viajar. E, finalmente, estava ali!
Anna foi embora e entrei com a funcionária. Agora eu estava
só, até Barcelona o negócio era comigo, só comigo. Ela me apresentou
à aeromoça e ao comissário, que reagiram como se já
soubessem de mim. Legal! Colocaram-me numa poltrona que dava
para um corredor por onde passava muita gente. Percebi também,
pelo murmúrio das pessoas, que realmente o avião devia estar lotado.
Procurei me ater a todas as coisas externas para não tomar muito
contato com o medo que estava sentindo. Sabia que estava passando
por uma experiência marcante, que não era comum uma pessoa
em tão pouco tempo, uma semana, reduzir tanto a visão a ponto de
ter de ir para a Europa com tanta urgência. Não é fácil para ninguém
que não esteja acostumado encarar uma viagem internacional sozinho,
ainda mais quase cego.
Carlos, porém, já devia ter chegado a Barcelona; o que será que
ele arrumara por lá? Era um cara esperto, falava várias línguas, já
devia ter descolado uma pensão e avisado o Dr. Dutrenitch de nossa
chegada. Provavelmente, pela manhã já iria me esperar no aeroporto.
Pensar nisso era um alívio para mim.
A aeromoça veio apertar meu cinto, coisa que eu já havia feito.
O avião levantou vôo num tremendo silêncio: era realmente um
baita avião. Logo depois, perguntou se eu queria colocar um fone
para escutar música, me mostrou o cinzeiro, coisa que eu já havia
percebido, e me ensinou a utilizar e para que serviam os botões do
braço da poltrona. Um deles servia para chamá-la, ou ao comissário,
mas mesmo sem eu chamar eles apareceram mais duas vezes para
perguntar se queria alguma coisa. Desconfiei, com o tempo, que eles
estavam com medo de eu não acertar o botão. Apertei-o e disse para
ela que sabia qual era e, mesmo que me perdesse, apertaria todos;
um, eu acertaria.
Minha cabeça estava a mil. Comecei a conversar, então, com
um casal ao meu lado. Era lógico que eles haviam percebido que aquela
atenção especial do comissário e da aeromoça tinha algum motivo.
Mas eles eram discretos ou inibidos, e não tocamos no assunto. Na
hora do jantar, porém, servido de madrugada, eles logo se prontificaram
a me ajudar, liberando a aeromoça. Não me lembro ao
certo, mas acho que o nome dele era Sidnei. Enquanto cortava a
carne perguntou se estava com aquele problema (sem mencionar
qual era o problema) há muito tempo. Contei-lhe a curta história de
uma semana e ele ficou espantado. Disse que até Madri, tudo bem,
eles estariam por perto. Descreveu o que havia no prato e me passou
os talheres. Fiquei constrangido: era a primeira vez que iria comer
sem estar enxergando a comida, e na frente de estranhos. Tinha
medo de derrubar alguma coisa, mas fui à luta e deu tudo certo.
Depois do jantar pintou um filme. Legal, dava para acompanhar
tudo, e quando as cenas eram muito visuais e sem diálogo, Sidnei
me dava um toque do que estava acontecendo.
— O casal tá se beijando agora.
— Eu sei.
— Como você sabe?
— Ah! É fácil, ele disse “eu te amo, meu bem”. Ela, “Oh! meu
bem, eu também te amo”, e daí fizeram silêncio. Claro que ocuparam
as bocas, né?
— É, é claro. O beijo deles foi muito bonito.
— É, mas o meu foi mais ainda.
— O seu?
— É, o que eu imaginei. Foi excitante, ainda mais com essa
música de fundo.
— Cuidado pra não extrapolar, hein, Marco.
— Ah! Eles não foram pra cama, Sidnei?
— Não.
— É, então é bom eu parar por aqui. — Rimos os três.
Depois do filme, eles dormiram. Eu não, fiquei escutando
música acordado e com muitas expectativas. Logo senti vontade de
ir ao banheiro. Como seria? A semana que passara eu só havia ido
ao banheiro de minha casa, onde conhecia a disposição de tudo. Se
errasse a pontaria (coisa que comecei a perceber pelo barulho do
jato de urina na água da privada), apenas o pessoal de casa saberia. Fiquei com medo de passar vergonha nessa nova aventura, mas
acontecesse o que acontecesse, eu precisava mijar. Apertei o botão
e veio a aeromoça. Disse-lhe o que queria e ela chamou o comissário.
Ele me levou até em frente ao banheiro, abriu a porta e paramos.
Um instante de silêncio se fez e ele perguntou:
— E agora?
E era a mesma pergunta que eu me fazia. Pensei rapidamente e
vi que só havia uma solução: ele me mostrar a disposição das peças
do banheiro e, depois, eu me viraria como pudesse. Dentro do
banheiro ele me mostrou como fechar a porta, onde havia água para
lavar as mãos e o vaso. Saiu e fechei a porta. Voltei na direção do
vaso, dei uma palmada na tampa para me orientar, abri a braguilha,
botei o “dito cujo” para fora e... cadê coragem! E se errasse muito a
pontaria? Com que cara ficaria com o comissário? Senti raiva de mim
mesmo. Afinal, passando uma situação de vida tão difícil, e ainda
estava preocupado com a cara com que enfrentaria um comissário
que eu nem enxergava. Depois, se errasse, era porque era cego mesmo,
e estava acabado. Mas o orgulho falava mais forte e fiquei torcendo
para que na hora que mijasse o avião desse um solavanco;
teria uma ótima desculpa. Bem que poderia pintar uma turbulência
esperta que sacolejasse todo mundo, inclusive o comissário...
Nunca pensei que um dia pararia para pensar em como mijar,
tendo um vaso na frente. De repente, em meio à turbulência que não
acontecia no avião, mas em minha cabeça, pensei: poderia forrar o
vaso, sentar, botar o pênis para baixo e mijar; não teria erro de pontaria
mesmo que quisesse. Sentei e acabei não só mijando. Dei a
descarga, lavei as mãos, abri a porta e lá estava o comissário me
esperando. Fui até a poltrona com um risinho de vitória, alívio e
orgulho. Tudo dera certo mais uma vez. O comissário voltou e reparei
que seus passos iam em direção ao banheiro, provavelmente para
ver o que eu havia feito por lá. Senti-me uma criança bem-educada,
feliz porque fizera tudo certo e, ao mesmo tempo, puta, porque não
confiaram nela. Aquela sensação de ser criança estava correta: havia
uma semana eu tinha nascido naquela experiência, e também tinha
razão o comissário, afinal nem eu mesmo confiara em mim. Mas as
experiências do jantar, do cinema e, principalmente, a do banheiro
estavam me mostrando que para tudo havia uma solução, que era
apenas uma questão de criar uma nova forma, um novo jeito. Percebi,
porém, que o último que criara no banheiro não era adequado,
pois nem sempre poderia sentar em algum lugar, mesmo forrando.
Eu tinha mesmo é que perder o medo de mijar em pé e aprender a
ter boa pontaria.
As horas voavam rápidas no avião com a lentidão dos minutos.
Os alto-falantes anunciaram Roma.
— Quer dar uma volta pelo aeroporto, Marco? — perguntou
Sidnei.
— Pelo aeroporto? E dá tempo?
— Dá. Dá bastante tempo. Eles param... Já estou acostumado.
Não quer ouvir as italianas falando? Não quer mandar um cartão postal,
ou qualquer coisa assim, para o Brasil?
Não estava com a mesma animação de Sidnei e recusei o convite.
Além do mais, se o pessoal da empresa estava de olho em mim,
não ficaria muito satisfeito que eu saísse por aí, pensei. Na verdade,
porém, estava dando uma de matuto; tinha medo de que o avião
partisse e eu ficasse por lá, como acontece em parada de ônibus em
bares de estrada. Estranho era o que sentia: estava em Roma sem
estar em Roma. Apesar de termos parado durante mais de meia
hora, fora o avião que parara, não eu. Poderia ter sido Lisboa ou
Paris, seria a mesma coisa. Estava, porém, emocionado; já pousara
na Europa, ou pelo menos o avião.
No curso de história na Federal, passei o ano inteiro estudando
sobre gregos e romanos; seria muito interessante conhecer a Itália
um dia. Partimos para Madri, e meu receio agora era a alfândega.
Trazia comigo muitas seringas, agulhas e vidros de insulina; isso
poderia complicar o meu lado, apesar da receita médica. Mas era
uma receita brasileira... Tomara que o pessoal entendesse tudo. Procurei
logo saber como se falava diabetes e insulina em espanhol.
Outro problema era o meu passaporte; foi retirado tão às pressas...
Será que o despachante falsificara alguma coisa?
Procurei conversar e esquecer o tema. Madri foi anunciada. A
aeromoça se aproximou e me pediu que deixasse todos os passageiros
saírem que depois ela viria me pegar. Meu coração estava na
boca, finalmente pisaria em solo europeu. Para a minha cabeça,
agora sim, eu saíra do Brasil, representado por um avião da Varig.
Imaginei logo aquele tucano tropical, símbolo da empresa, (Atualmente, o símbolo da Varig, ou logomarca, é uma rosa-dos-ventos.) saindo
comigo para me dar uma força. Afinal naquela terra não estaria com
brasileiros tão cedo. Carlos era português.
Despedi-me dos companheiros de viagem para encontrá-los
depois, na fila da alfândega. Eles estavam contentes e satisfeitos; eu,
preocupado. Mostrei meu passaporte e minha receita. O funcionário
da alfândega, todo simpático, perguntou para onde eu iria. Eu lhe
respondi pausadamente e nos entendemos. Fantástico, já estava
tendo meu primeiro diálogo na Espanha e tudo bem, até que ele me
falou: — BALE!Gelei. O que queria dizer “bale”? Era bom ou ruim? Sidnei,
vendo meu ponto de interrogação, se adiantou:
— Ele quis dizer que tudo OK. Tudo em ordem — BALE!
Fiz uma cara de interessado na expressão e depois respirei aliviado.
Valeu, ou melhor, baleu...
Despedi-me novamente de Sidnei e esposa e falei à aeromoça
que precisava tomar uma injeção de insulina. Ela me disse que, para
isso, o lugar mais tranqüilo daquele aeroporto seria o banheiro dos
funcionários.
Lá em casa, como ninguém soubesse aplicar injeção, continuei
a me auto-aplicar, e isso me valeu uma certa autonomia. O problema
começou, porém, quando tentei explicar ao funcionário que entrou
comigo no banheiro a quantidade que queria que penetrasse na seringa.
Ele não entendia nada do que eu falava e eu entendia que ele
não entendia.
Numa seringa de insulina, a marcação vai de duas em duas unidades
para cada traço pequeno, e de dez em dez unidades para cada
traço grande. Se eu quisesse 34 unidades era fácil: eram três traços
grandes mais dois tracinhos. Tentei explicar isso para ele dez vezes,
falando pausado, mas sempre que ele tentava colocar uma quantidade
eu percebia que estava errada. A minha prática me permitia perceber
mais ou menos o local certo, medindo a distancia entre o êmbolo e
a seringa: essa distancia era próxima de dois dedos meus, mas ele
nunca deixava por ali. Eu sabia que conseguiria colocar uma quantidade
aproximada sozinho, mas colocar a quantidade exata seria pura
questão de sorte. E foi o que acabei fazendo, antes que meus instintos
nervosos me fizessem lhe dar uma agulhada na bunda. E foi aquilo
que realmente me deu vontade de fazer, mas não poderia começar os
meus primeiros minutos de Espanha como um selvagem subdesenvolvido.
Sempre pensei que fosse indiferente à ignorância, mas naquele
dia percebi que a detestava.
Lavei as mãos e saí do banheiro sorridente, com a fisionomia
alegre de quem gostaria de matá-lo.
— Tudo em ordem?
— Bale — respondeu ele.
— Bale é o cacete — escapou.
— Como? — reagiu a aeromoça, enquanto eu escutava os passos
do cara indo embora.
— Ah, esse cara é muito burro, a gente não se entendeu!
— Ele não deve ter entendido sua língua.
— É, mas eu acho que esse cara aí não entende nem a minha
nem a dele. Os números em espanhol são muito diferentes dos números
em português?
— Não, dá pra compreender.
— Ah, então ele não sabe os números nem em espanhol.
— Mas você conseguiu fazer tudo certo?
— Acho que sim, possivelmente. Pensei que você não fosse
perguntar isso pra mim.
— Perguntar o quê?
— Se tudo tinha dado certo. Você perguntou pra ele, em
espanhol, não pra mim, em português.
— É que ele era responsável por você.
— Acho que o maior responsável por mim sou eu mesmo, não
é não?
— É que ele poderia conferir visualmente.
— É, poderia... se tivesse alguma coisa na cabeça. Desculpe,
estou muito nervoso, mas esse cara daí foi realmente a gota.
Peguei em seu ombro e fomos andando; procurei relaxar. Logo
depois, chegamos a um balcão onde ela passou a conversar com uma
mulher. Falaram sobre passagens, horários e sobre mim e meu problema.
Compreendia quase tudo o que falavam e achei fantástico.
Virou-se para mim e me explicou aquilo que mais ou menos já havia
entendido: minha passagem era para quatro horas depois, mas ela
havia trocado por outra para daqui uma hora. Eu iria esperar ali sentado
em frente ao balcão e alguém me pegaria dentro de meia hora
ou quarenta minutos. Iria numa ponte aérea, portanto, num vôo
doméstico, até Barcelona. Será que me entenderia tão bem com as
aeromoças da ponte aérea quanto com o quase-agulhado do
banheiro? Procurei relaxar. Aliás, era o que mais fazia — procurar
relaxar.
Estava agora ali, sentado e só, em Madri, torcendo para que
não me esquecessem no aeroporto. Aquilo era loucura purinha, sem
limão para disfarçar o gosto. Não via a hora de entrar no avião novamente.
Isso significava estar mais perto de Carlos, de alguém que eu
tinha certeza de que estava ali para me ajudar. Comecei a prestar
atenção no que as pessoas em volta falavam. Escutei um papo de
temperatura, que provavelmente estávamos a cinco graus, temperatura
bem baixa para alguém vestido como eu. Ou o aeroporto tinha
aquecimento interno, ou eu, de tão nervoso, não sentia nem mais
frio. Carregava o tempo todo nos braços um sobretudo de lã, que
Guilherme havia me emprestado. Pensei em colocá-lo, mas desisti,
decididamente não estava sentindo frio.
Comecei a pensar, então, no que ocorrera com a aeromoça.
Será que sempre perguntariam para os outros aquilo que tinham de
perguntar para mim? Será que a falta de visão inspirava tanta alienação
que eu não poderia responder se a aplicação que eu mesmo
fizera havia ido bem ou não? Realmente passara dos 37 graus do
verão carioca para os cinco do Inverno de Madri. Havia muitas diferenças
nessa “viagem” que eu teria de aprender.
O avião agora era menor e estava um pouco mais vazio. Ninguém
se sentou ao meu lado. Fui pensando em meu medo, em minha
covardia, em minha falta de experiência. Será que toda aquela
insegurança que estava sentindo era porque era um garotão da zona
sul carioca, que sempre fora um filhinho de papai? Ou será que qualquer
um sentiria aquilo? Tudo dera certo até ali, inclusive passar de
um avião para o outro, que era um dos meus medos. Então, se os
fatos me diziam que tudo acontecia naturalmente e sem maiores
problemas, por que persistia dentro de mim todo aquele temor?
Carlos era um cara descoladão, possivelmente já havia arrumado
muita coisa por lá; iria me avisar de tudo e estaria me esperando
no aeroporto. O que me faltava para relaxar só um pouquinho? Convenci-me de que o que estava colocando problemas nas coisas era a
minha cabeça, e não que os fatos fossem difíceis. Mas, aos poucos,
comecei a pensar de novo nos fatos e a exigir um pouco menos de
mim. Provavelmente o Carlos, sem aqueles problemas de visão e já
acostumado a viajar e até a morar no estrangeiro, estaria com a cabeça
muito mais fria que a minha, e isso me ajudaria.
Eu chegava a Barcelona, na Europa, realizando meu sonho impossível.
Os alto-falantes anunciaram o pouso e que Barcelona
estava a 10 graus. Melhor assim, menos frio. Pousamos e, como
antes, esperei todos os passageiros saírem. A aeromoça se aproximou
e me avisou que um amigo me esperava no guichê da companhia.
Fantástico, Carlos conseguira até se comunicar com o avião. Realmente
o garoto era uma fera! Dessa vez foi o comissário quem me
levou. Já dentro do prédio do aeroporto ele avisou que Carlos vinha
em nossa direção. Nos abraçamos, eu estava emocionado. Dei
“gracias” ao comissário e saímos, já com as malas.
— Ainda bem que você chegou, estava morrendo de medo.
Ficar nesta terra sozinho não é fácil!
Por um segundo não acreditei no que estava escutando. Não
era isso o que eu esperava, nem o que queria escutar.
— Descolou lugar pra gente dormir?
— Dormi no primeiro hotel que encontrei e é um pouco caro.
— E suas malas, estão no hotel?
— Não, estão aqui. O que vamos fazer agora, Marco?
Aquela imagem que estava fazendo de Carlos, do cara descoladão,
despencou num abismo incrível. Não só pelo que falava, mas
também pelo tom que usava. Estava mais inseguro do que eu. Parei
um pouco para tentar pensar e também para sentir meus pés no
chão e falei:
— Quero escrever um cartão-postal para o Brasil, pra dizer que
cheguei bem. Vamos ver se a gente descola um. Precisamos de algum
dinheiro. Você já fez câmbio aqui, pelo aeroporto?
— Já, mas peguei muito pouco, é bom trocar uns cem dólares.
— Tudo bem. E depois vamos direto pra clínica.
— Direto pra clínica?
— É, lembre-se de que hoje é o último dia do prazo, segunda-feira,
e já são quatro e meia da tarde. Quero chegar lá ainda hoje.
— De malas e bagagens?
— É, de malas e bagagens. Não quero chegar lá e não encontrar
o Dr. Dutrenitch. Vamos nessa.
Senti-me ali quase sozinho e dono absoluto de meu destino.
Precisava agora mais do que nunca confiar em mim.
[...]
Em Barcelona, chegamos à recepção da clínica com malas e
bagagens e perguntamos à recepcionista pelo Dr. Dutrenitch. Pedimos
para que nos repetisse a informação, desta vez devagar, e fomos
ao seu encontro. Havia uma enorme sala de espera, murmúrios de
muita gente. Pedi para Carlos me dizer mais ou menos quantas
pessoas havia por ali e ele contou vinte e cinco. E cada dois ou três,
no máximo, falavam uma língua diferente. Era uma misturada de
francês, inglês, alemão, italiano, uma língua que me pareceu oriental,
mas não sei qual, e também uma outra que não sei como as
pessoas conseguiam se entender porque os fonemas eram todos muito
parecidos. Além disso, havia o próprio espanhol e nosso humilde
português abrasileirado.
Carlos me disse que o Dr. Dutrenitch já havia nos visto e que
fizera sinal para que esperássemos. Esperamos bastante; fomos os
últimos a ser atendidos. Só uma coisa me deixava de pé: a expectativa.
Aos poucos, tive a impressão de estar num INPS de luxo, impressão
que com o passar dos dias cada vez mais se confirmou. Aquela
clínica realmente era um formigueiro internacional.
Quando entramos, o médico nos cumprimentou um pouco
descontraído, mas percebi que era sua rotina fazer aquilo e que eu
era apenas mais um. Não sabia se ele estava considerando meu caso
um problema fácil ou se todos ali eram problemas difíceis. Só sei que
eu estava me sentindo emocionado e ansioso, apesar de não deixar
transparecer isso e estar muito atento ao que ele dizia. Combinou
comigo de fazer a primeira sessão de fotocoagulação no dia seguinte
pela manhã, bem cedo. Disse-me ainda que procurasse uma pensão
perto da clínica (havia muitas), pois não ficaria internado, visto que
minha operação não era de corte.
Saímos. Em volta da clínica tudo ocupado. Andamos um bocado.
Já me sentia quase sem resistência quando Carlos me disse que
estávamos em frente a um hotel, que não parecia uma pensão, mas
algo de mais luxo. Não me importei, queria só uma coisa nesta vida:
descansar.
Tomei um banho, comi qualquer coisa no quarto e telefonei à
recepção para pedir que nos acordassem às seis; eram dez horas da
noite. Estava muito cansado, não dormia desde o dia anterior, quando
havia acordado às oito da manhã. Não sabia, realmente, há quanto
tempo estava acordado; os fusos horários me confundiam. Desconheço
o que pensei ou o que senti antes de dormir. Sei que apaguei geral
a noite toda.
Andávamos para a clínica quando percebi que a manhã estava
muito fria. Não me lembro ao certo, mas penso que foi naquele
trajeto que pela primeira vez reparei na temperatura. Acho que foi
pelo fato de estar fisicamente descansado e emocionalmente um
pouco menos tumultuado. Tínhamos tempo de sobra para chegar na
hora marcada. Passamos por uma loja de câmbio, fechada. Curioso,
pedi para que Carlos desse uma olhada na cotação do cruzeiro, (Moeda em vigor de 1970 até 1986, quando seria substituída pelo
cruzado. Em 1989 surgiu o cruzado novo, em seguida o cruzeiro novamente,
então o cruzeiro real, para, finalmente, em 1994, chegarmos ao atual real.) pois
estávamos em frente a uma vitrine e ele lia o nome de tudo quanto
era moeda estrangeira. Estranhei que o cruzeiro não figurasse ali,
embora, pelos nossos cálculos, em relação ao dólar, estivesse mais
valorizado que o dinheiro espanhol. Realmente, me sentia um pouco
mais relaxado. Já me dera ao luxo de ter curiosidade a respeito do
cruzeiro e reparar no frio. Cheguei mesmo a ter a sensação de que
a minha vista não estava mais com aquele vermelho tão denso. Mas
não quis me aprofundar muito nas minhas percepções visuais.
Quando cheguei perto da clínica percebi que a minha tranqüilidade
não era tão grande assim. Fui o último da salinha a entrar para fazer
a minha primeira sessão de fotocoagulação.
Éramos seis: quatro espanhóis, um português e eu. O português,
que obviamente falava a minha língua, era o único que eu não entendia.
Falava muito rápido e enrolado. Achei incrível o fato de um mesmo idioma poder ser falado de formas tão diferentes a ponto de duas
pessoas não se entenderem. O pior de tudo é que os espanhóis tentavam
nos ajudar traduzindo o que conversávamos. A coisa estava
engraçada, mas vergonhosa. Carlos havia saído para comprar alguma
coisa para comer. Possivelmente, como português, deveria
entendê-lo...
Junto ao Dr. Dutrenitch havia mais dois médicos, estagiários,
pelo que entendi. Colocaram em meus olhos uma lente enorme que
não impedia de fechá-los, mas forçava-os a ficarem bem abertos. Era
tremendamente incômodo e me pareceu algo medieval, diante da
tecnologia do laser — pelo menos diante da tecnologia que eu imaginara.
Não me lembro se ele me disse, ou se calculei, que não poderia
piscar os olhos na hora do disparo do laser, senão queimaria
minha pálpebra. Objetivamente ele só deveria atingir a minha vista,
mas na realidade atingia também os nervos. Era massacrante, pelo
menos em 78. Acho que isso deve ter melhorado hoje.
O médico apertava um botão que fazia um barulho, e eu sabia
que, um segundo após, o raio penetraria em meus olhos. Um raio
de cada vez, e foram dezenas em cada sessão. Procurei não deixar
transparecer minha aflição, para que ele fizesse um bom trabalho,
mas ele sabia como eu estava e pedia para que relaxasse de vez em
quando. E eu pensava: se aqueles caras que vieram antes passaram por
isso eu também posso passar. Finalmente terminou a sessão. Tiraram
a lente de vidro e me colocaram vendas nos olhos. Marcamos para
voltar ao consultório dias depois e possivelmente marcar nova sessão.
Antes de sair perguntei se havia alguma dieta, ou algo que eu não
pudesse fazer.
— A dieta é a dieta normal de sua diabetes. Agora, durma de
cabeça alta e procure não subir escadas ou fazer qualquer esforço;
o sangue não deve ir para a cabeça. Controle bem a sua diabetes.
— Tudo bem, doutor, até a próxima.
Esse ritual se repetiu cinco vezes em pouco mais de dois meses.
Fazia a sessão de fotocoagulação, aparecia em seu consultório quatro
ou cinco dias depois. Ele tirava as vendas, me examinava e eu ficava
sem elas até a data marcada para a próxima sessão.
Maravilha... gradativamente Barcelona ia se fazendo mais visível,
mais nítida e mais ainda Europa. Os séculos e a história pesavam
na maior parte de sua arquitetura e eu me espantava com isso.
Mas tão inesquecível quanto a arquitetura era aquele raio laser quando
passei a enxergá-lo. Era um pontinho azul, que ficava no fundo do
aparelho e que vinha de repente, após um clique. Dr. Dutrenitch fazia
a pontaria e lá vinha aquele feixezinho de luz azul entrando. Eu não
podia desviar os olhos, pois a pontaria do médico dependia disso: eu
tinha de esperar aquele raio. A luz era ligeira. Puxa, se pelo menos não
houvesse aquele aviso prévio do barulho... Isso era péssimo!
Saindo da primeira sessão era visível o quanto eu estava nervoso.
Também não precisava mais escondê-lo. Pensei em tomar um
calmante e Carlos me falou que em frente à clínica havia uma loja
de produtos naturais que vendia ervas tranqüilizantes. Uma senhora
nos atendeu gentilíssima. Deu-me espaço para que desabafasse e foi
o que fiz. Acabou me levando para uma salinha dentro da loja e me
fez um chá, enquanto o filho tomava conta do balcão. Ficou comigo
um tempão. Até hoje não sei se naquele primeiro dia ela entendia
tudo o que eu falava, pois não estava medindo a velocidade das
palavras, tanta era a emoção que precisava colocar para fora, ainda
mais ouvido por uma pessoa que me inspirou algo materno. Não
chorei em seu colo, mas deveria. O desabafo, seu carinho e o apoio
do chá me deixaram mais tranqüilo. Apresentou-me seu filho Felipe,
dois anos mais velho do que eu, e Violeta, da minha idade.
Além de tudo isso, a loja ainda tinha produtos dietéticos para
diabéticos. Era fantástico! Não é preciso dizer que voltei várias vezes
lá. Tanto, que em algumas horas eu passava até por balconista. Por
indicação de Felipe fomos a uma rua bastante central, onde havia
muitas pensões. Ficamos numa, por menos da metade do preço do
hotel, e era muito mais aconchegante.
Lá é que comecei a me sentir um jovem na Europa. Ela ficava
numa rua com muito comércio, e andando-se uns cinco ou dez minutos
desembocava-se na Praça da Catalunha. Essa praça foi marcante.
Diversas vezes fiquei ali sentado olhando os pombos, as pessoas e o
tempo passarem, diante do chafariz. Foi lá também que pela primeira
vez vi venderem balas de café “made in Brazil”. Era um saquinho
plástico amarelo com um grão de café no meio e atrás escrito: “made
in Brazil”. Senti-me ridiculamente orgulhoso.
Perto dali ficavam as Ramblas, um lugar de lojas, teatros, bares
e boates de show pornô. A impressão que dava é que toda a juventude
underground européia se encontrava à noite nas Ramblas. Os duros
iam para lá depois das nove, numa espécie de feira hippie, vender
tudo quanto é tipo de sucata. Outros iam aos bares, teatros, ou mesmo
só para passear e encontrar alguém.
Estávamos quase sempre com o grupo de Felipe, que era muito
descontraído e divertido, embora demonstrasse uma seriedade de
fundo que nunca compreendi direito. Quando queria encontrá-lo,
era só ir a determinado bar nas Ramblas a partir das dez. Nas vezes
em que apareci lá sozinho, poucas, aliás, logo que surgia na porta
eles gritavam meu nome, pois nunca sabiam o quanto eu estava
enxergando. Acho que fiquei conhecido pelo menos de nome naquele
bar. Quando não estavam, deixavam um recado com o garçom
dando a direção; era tudo muito gostoso.
A democracia invadira a Espanha naquela época. O sexo tomou
conta das revistas nas bancas de jornal. Mas tudo tão explícito
que achava que realmente não estava enxergando bem. Foi lá que
assisti a O Último Tango em Paris. Minha cabeça rodava. Comecei a
associar, então, democracia a sexo, e nunca me senti tão politizado.
Viera de um Brasil em que o máximo que aparecia em publicação
do gênero eram mulheres que posavam insinuantes de peito nu.
Aquilo que eu estava vendo não existia. Homens e/ou mulheres absolutamente
nus que, em algumas revistas, trepavam à vontade. Eram
verdadeiras surubas fotográficas e cinematográficas. Felipe curtia
meu espanto e brincava: “la democracia”.
Tudo isso, por outro lado, me perturbava muito, visto que eu
tinha questões sexuais ainda não resolvidas. Mas também estava me
envolvendo com o outro lado da Espanha: o clássico. Mozart,
Beethoven, Bach, Debussy, muitas vezes tocados ou cantados dentro
de igrejas de uma arquitetura maravilhosa. O tempo parecia ter
parado por mil anos em Barcelona, e só havia avançado em algumas boates, filmes e bancas de revistas. Eu me sentia dividido entre o
clássico e o erótico, seguro pelos pés pelo tratamento que estava dando
certo, mas que não havia terminado. Não só me situava, mas me
sentia em outro mundo, e eu mesmo mudando.
Em meio a tudo isso conheci duas pessoas muito importantes
para mim: Lila e Manuel Enrique. Lila era amiga e também colega
de faculdade da namorada de Felipe: faziam Psicologia. Não era o
que sempre imaginei de uma espanhola, com a ajuda das agências
de turismo. Não era morena, de cabelos e olhos escuros, ou mesmo
negros, e não tinha uma castanhola na mão. Loura, de olhos castanho-claros e bem alta. Lenta como eu no andar, mas sem minha
preguiça característica. Olhava para as coisas completamente sem
compromisso e quando as fixava dava a impressão de estar desviando
seus pensamentos para elas. Parecia ser distraída, mas não era.
Seu jeito a envolvia de certa magia e mistério, apesar de sua extroversão
comigo. Eu não podia passar por outra Walquíria em tão
pouco tempo, mas isso estava acontecendo. Nossa paixão foi se
escancarando e nos denunciamos aos poucos. Não dava para esconder
nada quando, sem as vendas, eu a olhava ou, com as vendas, a
tocava para que me guiasse. Sentia o arrepio característico e a vontade
louca de abraçar. Por vezes passeávamos abraçados e perdíamos completamente
o passo quando espontaneamente nos fazíamos ligeiros
carinhos. Até que um dia rimos de nosso jogo de esconde-esconde e
nos beijamos. Toda essa história durou quatro do total de treze dias
que ficamos juntos.
Manuel Enrique conseguiu me achar num apartamento que eu
havia descolado com um amigo de Felipe. A pensão era ótima, gostosa
mesmo, mas depois de uns dez dias percebi que era preferível
um apartamento grátis, mesmo que num subúrbio. Ele se localizava
num conjunto operário e me impressionou pelo fato de ter três quartos
e também por seu enorme estacionamento, superlotado de carros,
raramente novos, mas, enfim, superlotado. Não havia luxo algum no
lugar, mas mesmo assim pensei que um operário europeu era outra
coisa. E ficava mais impressionado ainda quando me diziam que
Portugal e Espanha eram considerados os países “subdesenvolvidos”
da Europa Ocidental.
Ele tocou a campainha e perguntou se eu morava ali. Carlos
disse que sim e o fez entrar. Antes mesmo que eu acordasse direito,
ele entrou no quarto. Eu tinha os olhos vendados, mas sua voz parecia
jovem.
— Marco António?
— Sim, sou eu.
Aproximou-se rapidamente, me deu um beijo e colocou um
pacote em minha mão: era um presente. Fiquei sem entender. Não
era uma voz conhecida e o castelhano era perfeito.
— Suely, de Curitiba, me falou de você. Sou Quique, aquele da
fita cassete, do telefonema de Paris, perto do Natal.
— Que loucura, o que é que você tá fazendo em Barcelona?
— Chegou aqui tranqüilo?
— Cheguei. É longe, mas não é tão difícil.
— O que atendeu a porta é Carlos, o que veio comigo do Rio.
Os dois se cumprimentaram e não escutei o barulho de beijos.
— Quando você tira as vendas?
— Amanhã. Vou a Barraquer de tarde.
— Tá dando certo o tratamento? Já tá no final?
— Não, ainda tem um tempinho pela frente, mas parece que
tá indo tudo bem.
— O que é que você tá enxergando?
— Eu enxergo tudo, mas meio nublado. De noite é que é pior.
— Dá pra ver as pessoas?
— Dá. Dá pra ver as pessoas, mas não as fisionomias.
— Já é alguma coisa, né, Marco? Quanto tempo você calcula,
mais ou menos, que ainda vai durar o tratamento?
— Segundo o Dr. Dutrenitch, no mínimo, um mês.
— Ah, então temos bastante tempo pela frente ainda. Estou
com pressa, Marco, tenho um compromisso, mas estava ansioso de
te ver, por isso vim. Vou deixar o endereço e o telefone de onde
estou com o Carlos; a gente se acha por aí.
— Lógico, tô a fim de te conhecer, coisa que pensei não fosse
acontecer tão cedo.
O beijo que ele fez questão de repetir ao sair não havia ainda se
desgrudado de meu rosto, nem da minha cabeça. Quique era argentino,
e eu não tinha intimidade suficiente com o castelhano para
perceber trejeitos em sua voz. Perguntei ao Carlos como ele se vestia
e ele respondeu que normalmente.
Homossexualismo não era algo estranho para mim desde os
meus dezessete anos, quando Anna, minha irmã, se apaixonou por
um cara homossexual. Ela passou, então, a andar no meio em que
ele vivia e me chamava muitas vezes para lhe fazer companhia. Depois
passei a ir mesmo sem ela para conseguir as drogas que tinham
em abundância. Mas também não era só isso, havia algo por ali que
me atraía muito: a marginalidade. Apesar de achar horroroso o jeito
efeminado de alguns caras, não me chocava mais ver dois homens
juntos. Tudo aquilo era um não às normas da sociedade. E foi aí que
percebi o quanto estava dentro dessas normas, ou melhor, o quanto
havia dessas normas dentro de mim. O preconceito rondava minha
cabeça, e eu não sei até hoje se consegui, realmente, dar um jeito
nisso. Fora o fato de gostar de mulher e de futebol, eu não me sentia
igual aos caras de minha idade.
A partir dos 15 anos comecei a ler Gibran, Hesse, Huxley, Jung
e até Platão. Isso fazia com que me sentisse bem diferente dos demais.
A preferência por esse tipo de leitura foi influência de minha irmã
e de Carla, sua melhor amiga, arrastando comigo Chico, meu melhor
amigo. Mas o quarteto não era suficiente para trocar idéias a respeito
de leituras tão profundas, que tiravam de dentro de mim algo
desconhecido mas concreto e que eu queria a qualquer preço dominar. Naquele meio minha linguagem era entendida, não tanto a
respeito de sexo, mas a respeito de vida, e eu me sentia muito à
vontade assim.
Duas coisas, porém, fizeram com que eu me afastasse posteriormente.
A primeira era que o cara por quem minha irmã era apaixonada
se apaixonou por mim. A outra é que conheci Valéria, meu
grande amor daquela época. Apesar de achar o pessoal “supercurtível”,
nosso mundo de paixão adolescente não deixava tempo para
qualquer outro tipo de interesse.
Até hoje me recordo, e por vezes até escuto, os argumentos a
favor do homossexualismo e os compreendo. Por outro lado, acho
estranho aqueles que vivem com as mãos no que possuem entre as
pernas, mostrando a todo mundo o óbvio. Não percebem que para
serem o que a sociedade determina como macho não basta ter um
pênis...
Aprendi com tudo isso, sexos à parte, a ser muito mais carinhoso
com meus amigos. A não precisar dar tapões nas costas na hora de um
abraço. A responder carinho com carinho e não com tapas e socos.
A dizer que estou sentindo saudades e não inventar desculpas outras
para telefonar. A dizer que um homem é bonito e não ficar inventando
palavras do tipo “boa-pinta”, ou “boa aparência”. E, antes de
mais nada, aprendi a respeitar a diferença do outro e não deixar de
ser homem por isso.
Esses assuntos, realmente, são muito polêmicos, porque existe
por trás uma herança cultural que efetivamente nos condiciona. Penso
que isso pode ser quebrado ou não, dependendo do processo de vida
de cada um. Ninguém faz nada sem motivos, mesmo que os ignore.
Acho complicado, por vezes, compreender pessoas preconceituosas
que, no entanto, acham fantástico o Nei Matogrosso e aplaudem de
pé peças do tipo O Beijo da Mulher Aranha. É o homossexualismo em
pauta sendo glorificado por opositores agressivos e radicais.
Para minha surpresa, Quique nos encontrou na saída da clínica.
Ele era bem diferente do que imaginava. Uns dez anos mais
velho do que eu, um pouco calvo, estatura média e a pele bem branca.
Sugeriu que fôssemos os três conhecer o zoológico, e acabamos
indo. Conversamos muito durante o caminho e percebi que ele tinha
reflexões muito profundas a respeito de sua vida, que era um cara
muito decidido e que precisava mesmo ser. Havia se jogado no
mundo com a cara e a coragem.
Aparentemente, aprendera muita coisa em suas andanças. Era
criterioso e confiava muito em si mesmo. Não era difícil para
ninguém admirar Quique e, por isso mesmo, ele fazia muitos
amigos. Estava meio duro em Barcelona e se hospedara na casa de
uma amiga que conhecera em Paris. Ela era cantora de ópera e ele
fazia o figurino de suas roupas, em troca da hospedagem. Estava mal
de grana, mas me pareceu bem de cabeça.
Eu havia tirado as vendas na clínica mas ainda não estava
enxergando bem. Em relevo acidentado, ou em lugar onde havia
muita gente, precisava ser guiado. Fui, então, andando com Quique,
e parecia que nossos assuntos não terminavam nunca.
Os pequenos macacos ficavam todos em cima de galhos secos
dentro da jaula. Percebi que alguns olhavam curiosos aqueles outros
animais que, livres, do outro lado da grade, os observavam. Éramos
nós, mais um americano típico, de bermuda, máquina fotográfica,
blusa florida, e, ao seu lado, uma negra toda enrolada num pano,
com uma pena na cabeça, vindo a seguir um senhor de terno e
gravata. Era óbvio que aqueles macacos deviam estar curtindo com
a nossa cara. Que animal estranho é o homem...
Depois de dar uma volta de trem pelo Zôo, fomos parar em
frente a um prédio onde havia jaulas especiais. Entre elas estava a
do urso polar, um animal que eu nunca tinha visto antes e que,
realmente, me impressionou. Era uma jaula climatizada especialmente
para ele. Era todo branco, enorme. Estava sentado
preguiçosamente e alienado de seus admiradores. Mas sua presença
era realmente marcante, dava medo só de pensar encontrar um
bicho desses por aí.
Fiquei tão ligado no urso que me perdi de Quique e Carlos,
pois a mais de dez passos eu não distinguia ninguém. Tentei encontrá- los, mas eles não estavam num raio de visão em que pudesse
identificá-los. Achei melhor ficar por ali até que um aparecesse.
Voltei novamente para o urso, que agora estava em pé vindo em
minha direção. Sem pensar e apavorado, instintivamente comecei a
caminhar para trás. A frente da jaula era feita basicamente de vidro,
por causa do ar-condicionado. Não estava enxergando o vidro, havia
me esquecido completamente dele. Em poucos passos, nessa minha
fuga desesperada, derrubei dois enormes sorvetes de um casal de
franceses. Quique e Carlos se aproximaram de mim que nem uma
flecha. O urso parou e ficou olhando para o público como se nada
estivesse acontecendo. Do desespero passei à raiva; da raiva, passei
a me sentir um boboca. Sem querer chamei o urso de palhaço, e os
quatro ficaram rindo de mim.
A partir de então, considerei o pavão real o animal mais bonito
que havia visto por lá e a desclassificar completamente aquele urso
polar. Em alguns segundos havia passado por um pesadelo, e acabei
rindo disso também, aliviado, é claro. Quis pagar o sorvete dos franceses,
mas eles não deixaram; quiseram, sim, tirar fotografias.
Numa, fiquei abraçado a eles com o urso por detrás; na outra, fiz
aquela cara de sobressaltado de minutos antes, contrastando com a
do urso que, ainda em pé, só faltava lamber o vidro para dizer que
era mansinho... Essas fotografias devem estar rolando até hoje em
alguma casa francesa, onde aqueles dois contam as coisas mais típicas
de suas viagens e narram meu susto, às gargalhadas.
Uma semana com Quique e já éramos velhos amigos. Acabamos
por alugar um apartamento juntos, e para lá fomos: eu, ele,
Carlos e Jorge. Era um apartamento grande, de três quartos, todo
equipado para temporada, e pertencia à sua amiga cantora, que morava
no terraço do mesmo prédio.
Jorge era um amigo de Quique que nunca parava em casa. Ele
era dono de um bar e vivia dia e noite trabalhando nele. Quando
aparecia, o que mais fazia era gozar o meu portunhol, principalmente
quando eu falava seu nome, muito mais cheio de erres do que
eu pudesse imaginar. Jorge era mais ou menos da idade de Quique
e se relacionava com um cara um pouco mais novo do que eu, que
sempre entrava no apartamento meio encabulado. No princípio, se
sentia à vontade com Quique, mas meio inibido comigo. Até o dia
em que ficamos sós no apartamento e tivemos de puxar assunto. Eu
estava vendado e acho que isso o ajudou. Falou um pouco da sua
vida e eu da minha. Até que tocou num ponto: a namorada. Ele
percebeu minha cara de surpresa por saber que tinha uma namorada
e ficava com o Jorge ao mesmo tempo. Daí em diante foi só um
desabafo.
Ele parecia desentalar algo que estava há muito tempo engasgado
em sua garganta. Vivia um tremendo de um conflito interno
pela relação que mantinha com o Jorge, mas não conseguia deixar
de fazê-lo, e tinha a namorada para manter as aparências em casa e
diante dos amigos. Mas já estava de saco torrado dela. Ele nunca
havia falado daquilo com ninguém, e eu mesmo estava levando um
susto pela conversa tão direta. Disse que se intimidava comigo porque
sempre sentia em mim uma posição de crítico, o que o levava a achar
que eu não gostava de vê-lo ali. Eu não me sentia um crítico, se o
fosse não estaria naquela casa. Mas, ao mesmo tempo, o que dizer
para ele? Não me parecia nada bem. Era um cara bonito e inteligente,
o oposto do que eu via em Jorge. Não cheguei a conhecer os
dois o suficiente para entender aquele negócio, e ele queria justamente
entender por que aquilo estava acontecendo com ele. Achei
que, sinceramente, só o tempo poderia lhe dar uma resposta e foi o
que disse. A partir de então, abria o maior sorriso quando me via em
casa e, por algumas vezes, Quique e Jorge vieram me dizer de sua
admiração por mim.
Meu dinheiro já estava indo “pro brejo” quando Carlos resolveu,
e eu dei uma força, ir à casa de parentes em Portugal e depois
voltar ao Brasil. Isso me ajudaria financeiramente.
Apesar de eu ainda não conseguir ir a qualquer lugar sozinho,
já estava tendo alguma autonomia. Além do mais, Quique estaria ali
para qualquer necessidade, ou mesmo o Felipe e sua mãe. Mas, no
fundo, estava contando mesmo era comigo, e isso já era uma grande
transformação em minha vida.
A amiga de Quique gostava muito de dar reuniões e nos convidava
para quase todas. Apresentava-nos sempre, orgulhosamente,
como seus amigos sul-americanos. Devia ser alguma coisa exótica.
Éramos facilmente reconhecidos por nossas roupas, pois éramos os
únicos que usavam cores claras. Todos eles se vestiam em tom pastel,
tendendo para o escuro, talvez mais apropriado para o Inverno.
Estávamos, porém, na Primavera, e eu tinha vindo do verão de um
país ensolarado. Eu me sentia, às vezes, que nem o americano do
zoológico: caracterizado.
Certa vez, resolvi ir a uma dessas reuniões todo de branco, com
cinto, botas e sobretudo marrons. Quando tirei o sobretudo, a reunião
quase parou. A partir de então, a cantante de óperas passou a me
intitular de “o manequim sul-americano”, o que justificava minhas
roupas extravagantes. Os papos eram sempre os mesmos: Copacabana,
Pelé, Carnaval e, às vezes, alguns diziam, para me agradar, que
gostariam muito de conhecer Santiago ou Buenos Aires. Tudo bem, não
conheço nada da África, pensava. Santiago, Buenos Aires e Rio de Janeiro
ficavam tudo no mesmo lugar: América do Sul. Achei essa desinformação
estranha, para os que foram colonizadores e vizinhos imediatos de Portugal.
Aquilo não era só uma questão de geografia política, mas de sua
própria história.
Quando conheci Lila, num bar freqüentado pela turma do Felipe,
já estava me acostumando ao cotidiano espanhol. Eu me sentia
como um carioca internacional que, vira-e-mexe, sente saudades da
terra. Certa vez, passeando com ela, passamos por uma agência de
turismo que exibia em uma tela, na vitrine, slides do Brasil: do Rio,
com o Corcovado, o calçadão e as praias cheias de sol; de Salvador,
do elevador Lacerda, de Itapuã, aquele lugar que eu adorara tanto;
Recife e sua praia de Boa Viagem, com aquela água tão quentinha;
e a cidade de concreto de que São Paulo tanto se orgulha. Fiquei
maluco contando do Brasil para Lila, delirei, viajei, amei. Já havia
mostrado para ela, também, as balas de café “made in Brazil” em
embalagens supermodernas, o que era um orgulho idiota, mas o
único que eu podia ter por ali. Outra vez, num bar, um amigo de
Felipe me perguntou sobre Chico Buarque. Não sei se foi para me
agradar, mas tenho a impressão de que torrei o saco de tanto falar
dele. Por mais que por vezes eu me sentisse familiar, no fundo era
um estrangeiro, uma curiosidade. Que coisa estranha...
Lila e Quique se adoraram. Chegamos a sair juntos os três, de
braços dados, e até a ir a uma reunião gay. Ficávamos tão juntos que
o pessoal não sabia se eu era caso de Lila ou de Quique, ou mesmo
de nenhum dos dois, o que deixou a situação gozada. Achei também
engraçado o fato de muita gente pensar que eu era francês. Respondia
falando o idioma e logo percebiam que não. Tenho até hoje uma
fotografia divertidíssima dessa reunião, abraçado com Lila, Quique
e mais um cara, onde estou acenando, com uma cueca branca na
mão, para um outro cara todo emplumado que vinha em nossa direção.
Para desespero de Felipe, ele e a namorada foram também a essa
reunião. Lila e ela foram superassediadas pelas poucas mulheres que
havia lá. Ele só ficava observando, preocupado e puto da vida por
eu não estar ligando para o fato.
Fui eu quem brincou naquele dia:
— “La democracia”, meu amigo...
Percebi que ele só gostava daquela política quando era de seu
interesse.
Eu estava curtindo demais aqueles dias, tudo ia dando certo,
inclusive minha visão, que ficara quase perfeita. Respondia às cartas
que chegavam do Brasil com toda a euforia que estava sentindo. Pensava
até em ir para Marrocos, conhecer as ilhas gregas, quem sabe
Roma e Paris? Estava me sentindo quase totalmente feliz, mas algo
não estava bem: já tinha tido oportunidade de ir para a cama com Lila
e não o fizera. Mais cedo ou mais tarde isso seria inadiável. O medo
e o desejo se avolumavam dentro de mim e eu procurava disfarçar.
Numa daquelas noites fomos à casa de um casal amigo dela.
Os dois trabalhavam numa peça de teatro, e boa parte do tempo em
que ficamos lá se passou entre ensaios dos diálogos de Sonhos de uma
Noite de Verão, de Shakespeare. A certa altura, me ofereceram uma
droga que não conhecia: heroína. Sabia, por ouvir falar, que era algo
muito forte. Fiquei curioso, mas não me atrevi. Em verdade, nunca
soube realmente se era heroína, não tive oportunidade de confirmar.
Estava em tratamento, tinha de cuidar da minha diabetes e da saúde
em geral. Fora isso, prometera a mim mesmo ficar careta. Lila me fez
companhia, só bebendo um pouco de vinho.
Saímos depois, andando por uma avenida larga e moderna,
uma das únicas que vi por lá do gênero. Lembrava perfeitamente a
Avenida Paulista, não sei porquê, visto que eu mal me recordava de
São Paulo. Passamos por um prédio com um letreiro que me assustou:
SEARS! (Cadeia de lojas existente na época também no Brasil. O autor se refere àquela que deu lugar, hoje, ao Botafogo Praia Shopping, no Rio.) Senti, de repente, como se estivesse em plena praia de Botafogo, zona sul do Rio de
Janeiro. Só faltavam, realmente, os
barcos ancorados na enseada em frente... Então era isso que representava
ser uma multinacional! Associei logo os Fiats que haviam
sido lançados no Brasil e muitos que via nas ruas de Barcelona, só
que com o nome de “Seat”. Antes que começasse a falar muito do
Brasil, Lila disse que queria ir para casa; a minha casa...
Entramos em casa e todos estavam dormindo. No quarto,
acendemos o aquecedor e deitamos. Não sei, realmente, o que a
democracia espanhola tinha a ver com nossos 21 anos de amor, mas,
efetivamente, nunca tinha transado com uma mulher tão ativa, que
explorasse tanto o meu corpo, expondo tanto seus desejos. A princípio
fiquei temeroso; aos poucos, porém, ela percebeu minhas dificuldades
e me senti protegido por isso. No final de tudo, ela me fez imaginar
que eu era o homem mais gostoso do mundo, mas acho que não
era difícil para ninguém experimentar isso com aquela deusa. Tudo
deu certo.
Naquela noite, fiquei com um sorriso no rosto, com um sorriso
no corpo, como um indisfarçável adolescente apaixonado. Senti alguma
coisa na vista, mas imaginei que só poderia ser o cansaço e a sonolência.
Ela foi ao banheiro se lavar enquanto eu tomava coragem para
fazer o mesmo. Era uma barra sair daquele lugar tão quente para um
ambiente gelado. Antes de conseguir forças para isso, adormeci.
Quando acordei, ela não estava mais ali. Sabia que iria para
Madri visitar os pais e fiquei tranqüilo, mas por pouco tempo. Aquela
coisa horrorosa que acontecera no Rio estava se repetindo: TUDO
VERMELHO. Gritei por Quique e ele apareceu rápido. Telefonamos
para o médico e fomos para a clínica. Eu estava com medo, angústia
e expectativa. Já enxergava uns 90% de tudo, o que teria acontecido?
O que fizera? Será que não poderia ser feliz? Isso Dr. Dutrenitch não
havia me dito. O exame foi menos demorado do que eu esperava e sua voz,
quando começou a falar, era uma mistura de tristeza e frieza:
— Você dormiu com a cabeça alta, conforme mandei?
— Sim, sempre com dois travesseiros.
— Subiu muita escada, fez esforço?
— Nada que me fizesse cansar, doutor...
— Como está a diabetes?
— Dentro do possível, acho que bem.
— O que você fez ontem?
— Andei um pouco, à noite, mas sem pressa. Depois fiz sexo
com uma garota.
— Ejaculou?
— Sim, gozei.
— Sabe, isso comprime o diafragma e pressiona o sangue na
cabeça. Acho que isso pode ter contribuído para esta situação.
— Mas, doutor, mesmo que quisesse, seria impossível ficar mais
de dois meses sem gozar...
Ele me explicou então que a ejaculação pura e simples não
despendia tanto esforço quanto a que exige uma relação sexual, mas
que não deveria ter sido só aquilo. Esta contribuíra para algo que um
dia aconteceria de uma forma ou de outra. Disse-me, também, que
não me alertara porque os diabéticos com a minha situação de visão,
normalmente, não conseguiam mais ter relações sexuais e que, em
alguns casos, até já possuíam ejaculação retrógrada, ou seja, para
dentro da bexiga. Fiquei chocado, mas ainda esperançoso, pois ele
havia dito que esperava que aquilo acontecesse mais cedo ou mais
tarde com a visão.
— Então está tudo mais ou menos dentro do previsto... Qual é
o próximo passo?
— Não há muito o que fazer, Marco...
— Como? — interroguei embasbacado.
— Creio que agora é definitivo. Você chegou muito tarde, nós
fizemos o possível para adiar isso...
— Como? — estava mais desorientado ainda.
— O que podemos fazer é tentar manter o pouco que você está
vendo agora...
— Mas eu estou cego! — exclamei, já gritando.
— Você deve estar enxergando vultos, isso é melhor que nada.
Você tem de ser forte...
— Mas não sou, doutor. Isso não pode estar acontecendo comigo,
não é verdade, não é verdade! — berrava bem alto, enquanto
novas bolhas de sangue apareciam na vista.
Quique não se agüentou e entrou na sala. Não era preciso dizer
nada; o clima já mostrava o que estava acontecendo. Deram-me um
calmante e, não sei por quê, percebi naquela hora que tocava a
Quinta de Beethoven.
Por que aquela música, justo naquela hora? Não poderia ser algo
mais suave? Toquei em meu sexo e percebi que as marcas de amor da
noite anterior ainda estavam nele, e nos pêlos também: eu não havia
me lavado ainda. Dormira antes de fazê-lo e acordara muito assustado.
A vida, com toda a sua força, me mostrava a morte. Pensei nas
pessoas queridas que estavam do outro lado do Atlântico, pensei em
Lila, em Felipe e sua turma, na cantora de ópera e em Quique, que
estava ali comigo, segurando minha mão. Chorei. Aquela seria a primeira
das únicas três vezes em que chorei a cegueira em minha vida.
Estava lutando há dois meses e meio contra um predestinado vencedor
e não sabia. Será que meu destino era ser diabético, cego e
impotente?
Deitei na cama em que havia sido tão feliz, naquele quarto
aconchegante que quisera ser meu e de Lila. Toquei novamente em
meus pêlos grudentos e em meu sexo ainda sujo. Sim, sujo pela repressão
de meu pai e também de minha mãe, que queria que eu
fosse padre católico e dizia ser “um homem nu a coisa mais nojenta
que existe”. Agora ele estava sujo novamente, só que pela vida, que
me dera uma porrada por causa dele. Se o meu caminho era a impotência
total, o que restaria de meu futuro? O celibato? A morte? A
bunda?
Quique saiu para comprar nosso almoço, eu estava só. Conhecia
a casa como a palma de minha mão. Levantei-me e fui ao banheiro
me lavar. Precisava lavar a alma e não só o sexo. Este ficou duro em
minha mão, masturbei-me desesperadamente, mas broxei antes de
gozar: gozei broxa. Estava chorando. Lavei o rosto e senti uma frieza
de quem está trancando tudo, de quem não agüenta mais pensar ou
sentir... Fui à sala porque necessitava de ar e abri a porta da varanda.
A temperatura, como sempre, estava baixa, e com o frio veio também
a zoeira do trânsito. Algo me conduziu para a frente e, como
um robô, pus uma perna para fora da varanda. Na diagonal, sabia,
havia uma grande igreja e pensei em Deus. Por que isso? Senti câimbras
em todo o corpo, todo ele estava rígido.
Tirar a perna que restou na varanda requeria coragem para
morrer, mas também covardia por não conseguir viver. Voltar para
dentro significava covardia de se matar, mas antes de tudo coragem,
muita coragem, para viver. Em minha cabeça começou a passar um
filme ao qual não queria assistir. Cenas do passado muito longe e
esquecidas. Uma a uma, como fotografias animadas em minha cabeça.
Minha infância, meus amigos, meus pais, o amor que já havia
recebido de todos. Será que me amariam como antes? Deus, o que
era Deus para mim? Seria aquela imagem do carrasco que tudo sabe
e tudo vê, pronto para me castigar por tantos pecados? Minha infância
se passou num grande temor a Deus. Deixar-me em frente da
imagem de Cristo era pedir para me ver desesperado; ela criaria vida,
na certa, só para me colocar na linha. Não tinha medo das almas
ruins do outro mundo e sim das boas, porque poderiam querer me
aplicar um corretivo... Deus era espírito, e aí estava a loucura. Às vezes
via minha imagem refletida no espelho e tinha a sensação que, de
repente, ela poderia não mais corresponder aos meus gestos, simplesmente
por ser um espírito, e sobre ele Deus tinha domínio. As imagens,
agora, eram as da minha cabeça. Algo gritava dentro de mim:
“Eu estou vivo”. Era preciso que eu me amasse. Será que me desprezaria por ser
cego? E por ser impotente? Talvez...
“As células do dedão do teu pé estão vivas, Marco. Teu cérebro
e coração funcionam, milhões de células estão vivas em você. NÃO
MATE TODAS POR CAUSA DE ALGUMAS.”
Criei coragem e tirei a perna: a que estava fora.
Sentei no sofá da sala e pouco depois Quique chegou com o
almoço. Disse-lhe que queria marcar a data de minha volta para o
Brasil e que desejava que isso ocorresse o mais rapidamente possível.
Eu estava assustado. Dei-lhe alguns dólares para que comprasse
lembranças para os amigos, As Quatro Estações de Vivaldi e a Quinta
Sinfonia de Beethoven para mim. Até hoje não consigo escutar com
tranqüilidade essa sinfonia, mas era algo que precisava ter junto a
mim.— E tua mãe?
— Vou telefonar para ela — respondi.
— Vai contar tudo por telefone?
— Não, só que vou voltar.
Quique, Felipe, Lila e Jorge foram me levar ao aeroporto, três
dias depois. A emoção era grande, diferente. Quanta experiência
havia ganhado, quantas coisas vivera, e tudo se concentrava naqueles
abraços de despedida... Será que reveria aquelas pessoas algum
dia? Agora necessitava de forças para começar não sabia o quê. Antes
de partir me encontrei novamente com o Dr. Dutrenitch, pois ele
precisava me entregar uns remédios que seriam bons para mim.
— Com o tempo, doutor, ficarei com blackout total?
Seu silêncio foi a resposta mais completa que poderia me dar
(e o tempo a confirmou). Solidário, pôs a mão em meu ombro e
entrei no carro...
O avião decolou e não sentia mais medo de estar ali sozinho.
Aquele voo não era só em direção ao Brasil; era também para uma
nova vida.
Hoje, o colégio abriu as portas para eleger Tancredo Neves
presidente de nosso país. Parece que os “alunos” seguiram o conselho
da turma aqui de fora, que, aliás, há muito tempo não opinava. Mas
o rock também anda movimentando as cabeças do Rio e do Brasil.
É o Rock in Rio. Passamos por uma fase agitada.
Sem querer fui viajando até a época dos Beatles, Joplin, Hendrix
e Pink Floyd. Todos me vinham com a resistência das calças Lee,
com os cabelos compridos para homens, com a contracultura dos
hippies, com um “não” aos costumes e às estruturas vigentes. Abrimos
as portas para muito além das 10 da noite, as cabeças para
muito além do álcool, os corpos para muito além do compromisso.
Mas com tudo isso ainda existe o grito de sempre: LIBERDADE?
Quanto falta? Seria ótimo escutarmos o conteúdo de nosso próprio
grito. É bom saber por quem e por que gritar. Se não emudecer, o
grito fica bem mais forte...
Barcelona é parte da minha história. As pessoas, as coisas, os
acontecimentos de lá ficaram num pedaço de mim. Agora era diferente.
Tudo estava por começar. Os alto-falantes do avião anunciaram
o Rio de Janeiro e seus 30 graus. Já havia fantasiado em dez
mil formas o encontro com minha mãe e meus amigos. Dez mil
maneiras de dizer o que havia acontecido, mas sabia que nenhuma
delas seria igual à que iria viver. Queria me sentir preparado para
dizer tudo, controlar a situação e não ser traído pela emoção. Não
desejava fazer de minha realidade uma tragédia. No entanto, suava
naquela poltrona e a gola de minha camisa já se encontrava bastante
babada de tanto que eu a mordia. Imaginei que seria bom ficar pensando
em algumas piadas para me distrair da tensão, mas só me
vieram à cabeça as de humor negro. Realmente, não era uma boa
solução. O que seria melhor? Me ligar no pouso do avião? Não,
aquilo, naquela situação, não me atraía mais. O jeito era mesmo
esperar e deixar pintar na cabeça o que viesse e morder mais um
pouco a gola da camisa.
A fila da alfândega me irritava, tudo me irritava, mas permanecia
com aquele ar sereno de sempre. Tremia ao pensar que logo me
encontraria com alguém conhecido, e engolia em seco. Tudo daria
certo. Não sabia, porém, que as pessoas já se encontravam por trás
dos vidros da sala onde eu estava e me observavam atentamente.
Acontecesse o que acontecesse, eu queria mostrar a todo mundo que
estava pronto para encarar minha nova realidade que, em verdade,
ainda não conhecia.
— Marco, como está? Como foi de viagem? Está tudo bem?
— Está tudo bem, mamãe. A viagem foi ótima.
— Enquanto você viajava, Quique me telefonou e me falou
algumas coisas. É verdade?
— Ele não devia telefonar, estava duro — protestei.
— Filho, como você está?
— Cego, mãe. A senhora é um vulto difícil de enxergar, mas,
logo, logo, nem isso.
— Diga alguma coisa, Marco. Qualquer coisa, só uma esperança...
— Temos de encarar, mamãe...
Os sentimentos explodiam dentro de mim. Mas, se minhas
armaduras de aço e nervos deixassem escapar uma só lágrima, eu
sabia que muitas outras viriam atrás. Segurei-me.
— A senhora veio com quem?
Uma voz conhecida e um pouco embargada respondeu:
— Oi, Marco, sou eu, o Chico, viemos com a Carminha.
Demos um abraço, sérios, mas cheios de emoção. Vi uma sombra
do lado de Chico e cumprimentei:— Oi, Carminha.
— Sou a aeromoça. Vou embora, tudo de bom.
Agradeci.
— Estou aqui, Marco!
Carminha veio e me beijou.
O silêncio constrangedor do engano com as sombras parou no
ar. Fiquei chocado. Senti as lágrimas de mamãe rolarem através de um
barulho sufocado de sua garganta. Coloquei a minha mão em seu
ombro e a pressionei contra meu peito abraçando-a.
— Tudo bem, mamãe. Vamos aprender a lidar com isso.
Passei por aquele teste sem lágrimas. Sentamos no carro de
Carminha, o mesmo que eu já havia dirigido muitas vezes a seu
pedido. Desde pequeno tinha fissura por carros e adorava dirigir.
Aos poucos, fui tomando contato com essa nova impossibilidade. [...]
Quando cheguei à esquina do meu prédio, uma emoção me
invadiu. Aquela esquina, com a qual por tantos anos convivera e
pela qual tantas vezes passara dirigindo meu próprio carro... Muito
viva em minha mente, nunca quis tanto que nada tivesse mudado
nela. Arrepiei-me ao pensar que todos os lugares que conhecia visualmente
e amava ficariam guardados como imagens do passado. Como
renová-las? Minhas perguntas não tinham respostas que eu soubesse
e minha emoção continuava solitária.
João, o porteiro, me perguntou
como tinha sido, se estava tudo bem, e eu lhe respondi rapidamente
sem dar nenhuma dica. Não tinha consciência, mas estava
com vergonha de ser cego. Se ele percebesse, logo muita gente iria
saber. [...]
Como encarar a todos, principalmente ali no quarteirão? Teria
de enfrentar o sentimento, calado ou não, de cada um que o conhecesse
e soubesse que eu era seu filho. Pensaria nisso depois...
Chegando em casa encontrei Carla. Do antigo quarteto só faltava
minha irmã, que estava morando em São Lourenço e, provavelmente,
ainda não sabia de nada.
Nos dias seguintes percebi que, se mostrasse algum sentimento
de tristeza, depressão ou revolta, as pessoas desabariam a minha
volta. Mamãe, principalmente, estava supersensível, chorando à toa.
Que chorasse, então, somente pelo seu sentimento. Não quis incentivá- la com os meus. Antes de tudo, precisava ter forças, deixar assentar
a poeira para saber o que fazer de mim. Qualquer sentimento de autopiedade me derrotaria antes de a luta começar. Fiquei dando
uma de durão e de forte de forma tão espontânea que, às vezes, eu
mesmo me perguntava o que em verdade sentia. Coloquei muita
gente no ombro a chorar minha cegueira. Um espanto!
Comecei a aprender a ser cego dentro de casa. Percebi que através
do eco e do peso da água poderia encher um copo ou garrafa sem
transbordar. Passei a tomar meus remédios sozinho, distinguindo-os
pela forma dos comprimidos quando as embalagens eram muito
parecidas. Na cozinha, realmente, foi a maior luta. Não pelas dificuldades
das experiências e sim por causa de minha mãe. Ela ficava
aterrorizada quando eu pegava a faca para cortar o queijo ou punha
a torradeira, que não era automática, para funcionar. Para cortar o
queijo colocava a faca na direção dos cortes anteriores e descia a
mão. Quando a faca perdia a resistência era um sinal óbvio de que
tinha saído do queijo. Então, antes que perdesse totalmente a resistência,
eu a enfiava um pouco mais para dentro e, dessa forma, conseguia
o pedaço do tamanho desejado. Com a torradeira, dava um
tempo até puxar o pão para cima e sentir, através de sua densidade,
o quanto estava torrado. Fazia isso com um leve toque: quanto mais
duro, mais torrado. Reconhecia minhas roupas pelo tipo de tecido,
botões, bolsos ou mesmo detalhes do corte. Cada nova alternativa
era uma descoberta que me excitava. O tato era, efetivamente, algo
fantástico e do qual nunca me dera conta. Com uma pedra na mão
pude perceber que não existiria nenhuma outra pedra igual àquela,
pois só ela tinha aquele peso, aquela porosidade, aquele tamanho e
humidade...
Eu me encontrava, na verdade, redescobrindo o mundo, tocando,
cheirando e aprendendo a ouvir tudo. De 3 às 5 da madrugada
o silêncio era total. Às 5, a passarinhada começava a cantar; às 6, João
começava a lavar os carros na rua; às 7, o movimento de carros e
ônibus aumentava consideravelmente. Somente aquela criancinha
chorava em horários completamente diferentes: devia ser diarréia.
Durante o dia, os horários dos programas de rádio e TV me davam
noção do tempo.
Tudo foi assim, até importar um relógio norte-americano, igual
aos relógios de pulso comuns, com a diferença de que se pode levantar o vidro e, com o dedo indicador, tocar seus ponteiros para saber
as horas. Um relógio desses –- sem nenhuma tecnologia especial
a não ser a colocação de uma dobradiça no vidro, um pouco de endurecimento
dos ponteiros para não oscilarem ao tato e colocação de
relevo na numeração — custa, no mínimo, 35 dólares lá, fora o extra,
por ser “muamba”. Isso, se for um relógio de corda vagabundo. Sendo
um automático bom, pode chegar a um preço bastante “excêntrico”.
Necessitava agora aprender três coisas fundamentais: andar, ler
e escrever de forma independente. Procurei, então, o Instituto Benjamin
Constant, que, apesar de me ter recebido muito bem e me conseguir
professores de locomoção e do sistema de escrita e leitura de
cegos, o Braille, não possuía um setor específico de reabilitação, acontecendo
tudo na base do “quebra-galho”. Achei estranho uma instituição
federal de assistência ao cego não estar preparada para casos
como o meu. No mínimo, deveria existir lá alguém que nos dissesse
as dificuldades de nossa nova realidade, os meios alternativos de
superá-las, alguém que preparasse a pessoa para uma nova característica
físico-sensorial que é acrescentada à sua identidade. Todas essas
informações fui obtendo aqui e ali, de um e de outro, o que muitas
vezes gerava idéias conflitantes. Uma pessoa tímida e sem iniciativa
sairia de lá podendo andar, ler e escrever, mas desorientada e confusa.
A técnica de locomoção é simples: com o braço esticado para
a frente leva-se a bengala para um lado qualquer. Dessa forma, a
bengala mostra que a perna do lado escolhido pode ir para frente até
onde foi a bengala e que se pode dar o passo. Quando isso acontece,
joga-se a bengala para o lado oposto, ou seja, para o lado da perna
que ficou para trás com o passo dado. Se a bengala esbarrar em algo
é só parar e estaremos a um passo do obstáculo. Desse jeito, fica-se
sempre um passo atrás de um possível perigo. De resto, é só perder
o medo e a vergonha. Aí é que, normalmente, começa o problema...
Dei várias voltas perto do Instituto com a professora, até me
sentir minimamente seguro para minha primeira tentativa de andar
sozinho. Fui vencendo o medo aos poucos. Precisava começar a andar
pelo quarteirão em volta de casa. Era um novo espaço. Além do medo,
sentia vergonha. Se errasse muito, poderiam sentir mais pena de mim
do que muitos já sentiam. Andar sozinho perto do Instituto, por lugares que já havia
passado várias vezes com a professora, era uma coisa; mas andar só
por um lugar onde nunca tinha passado depois de cego, sem conhecer
os macetes e com muitas pessoas conhecidas me observando
caladas, era outro barato. Um dia, fui até a porta do meu apartamento
com a bengala na mão. O prédio eu conhecia de cor, já entrara
e saíra dele várias vezes e morava ali desde criança. Chegar até a
rua seria fácil.
— SAI, MARCO António, SAI! — ordenei nervosamente
para mim mesmo.
Voltei, bebi um copo de água. Eu estava com os nervos à flor
da pele. Dizia para mim o muitas vezes pensado “se outros cegos
podem, você também pode”. Mais um copo de água. Cheguei até a
porta novamente, resolvi não pensar e saí.
Bengala para a direita, bengala para a esquerda, bengala para a
direita, PLUMMM. O barulho metálico me assustou, quase a deixei
cair. Era o pára-choque de um carro que estava na calçada. Sabia que
me encontrava na lateral do meu prédio pela direção que havia tomado.
Coloquei minha mão no carro e segui em direção oposta ao
barulho da rua. Assim, passaria entre o carro e a parede do prédio.
A parede eu encontrei, o carro estava na minha mão, só não havia o
espaço. Filho da puta, encostou rente à parede! Eu mesmo já havia
encostado meu carro tantas vezes assim... Dei a volta pelo outro
lado e segui meu caminho. Estava muito atento ao que fazia, mas
comecei a cantarolar baixinho para distrair minha tensão: “Bengalando
contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase
Dezembro, EU VOU...”
Repentinamente, um pedaço de pau na minha cabeça. Por essa
eu não estava esperando: uma árvore com o galho baixo. A bengala
não me avisava do espaço aéreo e eu tinha 1,82 metro de altura. O
que fazer? Usar um capacete de motoqueiro? Achei que um cego de
capacete na rua seria demais... OK, não seria sempre que encontraria
galhos baixos por aí. O barulho e o cheiro de pão me avisaram
de que estava em frente à padaria, já perto da minha portaria. Só
faltavam o antiquário, a loteria e o bar e eu estaria em casa. O antiquário não produzia nenhum barulho característico, mas a loteria
sim e, além disso, o desnível na calçada em frente a ela me assustou.
Tudo bem, aquele desnível seria fundamental quando o comércio
estivesse fechado... O bar não tinha erro: o barulho das xícaras de
café e copos era inconfundível. Acabando aquele barulho seria a
portaria. Cheguei suado, nervoso, mas feliz. Consegui! Em todo o
percurso só fui abordado por um senhor que se ofereceu para me
atravessar a rua. Não quis atravessar e agradeci. Que bom, estava
feliz!O “serviço secreto” avisou minha mãe do ocorrido. Ela ficou
aterrorizada, como sempre:
— E se você bater num poste, cair num bueiro, for atropelado,
o que vai ser de mim?
— Nesse caso, mamãe, seria o que vai ser de mim e não o que
vai ser da senhora — respondi brincando, mas esses eram meus maiores
temores.
Tive de impor meus objetivos com muita rigidez para ela para
poder continuar. E continuei. Normalmente, a família e suas preocupações
se tornam o maior obstáculo para a pessoa cega se reabilitar.
Nos dias seguintes, dei voltas e mais voltas pelo quarteirão, até
que comecei a achar sem graça. Fui para o próximo quarteirão e
depois para o próximo e, assim, fui conquistando os espaços. Andar
sozinho, porém, acarretava outros problemas. Um dia arrumei uma
confusão na rua com um senhor que me atravessou:
— Você não repara não, mas se eu fosse cego que nem você eu
me matava...
Eu, surpreso e não estando a fim de muita conversa, respondi:
— O senhor não repara não, mas pessoas fracas que nem o
senhor já estão mortas há muito tempo. Não consigo entender como
o senhor está vivo. Sabe como conseguiu?
Ele começou a falar alto para todo mundo ouvir.
— Tá vendo só? A gente ajuda esses ceguinhos e ainda leva
desaforo para casa! Eu havia percebido num esbarrão que lhe dera, sem querer, que
se tratava de uma pessoa gorda e continuei:
— Não fica chateado comigo não, gordinho...
— Você não tem intimidade pra me chamar de gordinho. Você
é um ceguinho revoltado mesmo, hein?
— Eu te chamei de gordinho porque você me chamou de ceguinho...
Eu também nunca te dei intimidade pra isso.
— Mas você é um ceguinho!
— E você também é um gordinho, aliás, um gordão!
— Seu sem-vergonha — gritou ele.
Deixei-o falando sozinho, aliás, com o público que começou a
se juntar. O problema dele não era a gordura, mas a ignorância.
Sabia que tanto a palavra cego quanto a palavra gordo eram pejorativamente
conceituadas e me utilizei da segunda no diminutivo só
para tentar fazê-lo compreender. Eu mesmo utilizava “deficiente
visual”, em vez de cego, para amenizar o impacto, mas era mal empregado.
Deficiente visual é usado para quem possui uma diminuição
do campo visual, tal como um míope. Mas quem não possui
visão alguma é cego mesmo.
O problema é que na palavra cego estão embutidos muitos
valores depreciativos, como dependência, tutela, alienação, ignorância,
etc. Se chego para alguém que não é cego e o chamo de cego,
a pessoa se sente agredida, mas se alguém me chama de cego não me
sinto da mesma forma. Por quê? Será só pelo fato de eu ser cego
mesmo? Não, é porque o significado, o conteúdo da palavra, para
mim, é bem diferente do que é para as pessoas em geral. Muita gente
tenta me consolar e diz: “Cego é aquele que não quer ver”. Eu diria
que essa pessoa não é um cego, mas um idiota. Para elas deve haver
dois tipos de cegos: o cego simplesmente cego e o “cego” simplesmente
idiota que, usualmente, tem visão. Brabo mesmo deve ser o
cego que é cego e que também é idiota. Seria no conceito dessas
pessoas, no mínimo, duas vezes cego... Realmente me sinto constrangido
quando alguém chama a outro de cego na minha frente, porque
normalmente o cara não possui nenhuma das minhas características.
Se o conceito que possuo de cego fosse o mesmo das pessoas
em geral, seriam evitadas cenas como a de um casal que me ajudou
a atravessar na Nossa Senhora de Copacabana:
— Mas, Cláudio, você não está vendo que está completamente
cego? Ela só estava querendo curtir com a tua cara!
Ela parou, por se lembrar que estava guiando um cego, e desculpou-se:
— Bem, eu não quis dizer isso...
— O quê, que Cláudio é cego? Mas ele é ou não é?
— É... Quero dizer... Não é, sei lá, mais ou menos... — respondeu
ela embaraçada.
— Você já teve notícia de alguma mulher mais ou menos
grávida? — perguntei.
— Mais ou menos grávida não pode; ou está grávida ou não.
— Também não conheço ninguém mais ou menos cego. Ou é,
ou não é. Também não conheço nenhum cego que tenha visão...
Ela não fez por mal, mas acabou ficando muito sem jeito. Levou
azar, pois eu estava pensando sobre aquilo justamente naquele
período.
— Tudo bem, ele não é um cego, é um tapado, pronto.
Ela resolveu a parada e nos despedimos.
Depois vim pensando que, realmente, todo cego tinha os olhos
“tapados”...
Aprendi os rudimentos do sistema de escrita e leitura Braille
também no Benjamim Constant... Isso, porém, de início, só me foi
útil para anotar telefones, etiquetar discos e fitas.
Resolvi recomeçar a faculdade. O curso de história baseia-se
principalmente em textos muito compridos, tornando-se mais fácil
gravá-los em fitas cassetes do que passá-los para o Braille. Minhas
provas eram orais ou datilografadas em máquina comum. Tive, por
isso, de aprender a datilografar com os dez dedos, pois catava meu
milho somente com os indicadores. Assim, ficava mais difícil e mais
lento. Passei a ser relativamente rápido nisso. “O bom datilógrafo é
aquele que não vê.”
Pedi transferência da Federal, do Largo de São Francisco, para
a PUC, que ficava pertíssimo de casa. Para quem tinha a prática de
somente dois meses e meio de rua, era bom diminuir as distâncias.
Fui apoiado por Anna a fazer uma psicoterapia. A idéia foi
ótima, apesar da resistência inicial. Já havia lido vários livros de psicologia
e psiquiatria e quis ver, na prática, como era o negócio. No mínimo
mataria minha curiosidade. A coisa funcionou bem para mim;
aliás, até hoje. Consegui me conscientizar mais dos meus problemas
e assim canalizar mais energia para realizar meus objetivos. A terapia
não se centrou na cegueira, mas em toda a minha vida. Isso me instrumentalizava,
me dava armas para um autoconhecimento mais profundo,
para poder pensar melhor os meus problemas.
Sempre fui meio “CDF”. Na faculdade, porém, exagerei um
pouco. Aquilo ocupava minha cabeça e meu tempo e me ajudava na
auto-afirmação pessoal e intelectual de que necessitava. Eu marcava
uma boa presença em todas as aulas e a experiência foi muito válida
enquanto não saturou. Se a minha psicoterapia servia para me pôr
em contato com meus sentimentos e processos de vida, a faculdade
servia, por outro lado, para me fazer esquecê-los. Eu estudava, estudava
e estudava. Era como se toda a minha vida fosse só aquilo, até
que percebi que não.
No segundo semestre conheci Sônia. Ela já era licenciada professora,
mas estava fazendo bacharelado e freqüentamos uma aula
comum.
Logo que cheguei ao Rio me perguntei se com visão normal me
atreveria a namorar uma cega, mesmo que fosse inteligente e
carinhosa. E o inverso? A faculdade me deu parte da resposta. Muitas
garotas, explicitamente, quiseram ficar comigo, e eu sem saber o que
fazer com minha maldita impotência sexual. Por vezes, cheguei a fugir
de mulher como rato fugindo de gata. O clima com Sônia, no entanto,
foi mais forte que qualquer possibilidade de fuga, pois não se reduzia
à atração sexual. Dizem que o homem é o sexo forte. Mas é só entrar
no clima que fica todo descontrolado. Era isso que sentia com sua
presença; ficava todo desbaratado, querendo imaginar o que pensava
e sentia com minha presença. Aquilo era paixão, mas não mais uma
paixão adolescente, que se desfaz no primeiro obstáculo, e sim algo
firme, que cresceu sólido com a densidade de nossas experiências.
Sônia era dois anos mais velha do que eu, morava sozinha e já
trabalhava para seu próprio sustento. Eram características que me
punham medo quanto à sua aceitação de meus limites. Acabei me
envolvendo pela dona daquelas mãos de unhas compridas que roçavam
na pele de meu braço para me avisar que ela estava ali. Eu sentia
que éramos grandes e adultos e que queria crescer ainda mais
com ela. A princípio, experimentei muita insegurança, pois estava
havendo uma movimentação política na faculdade em torno de um
edital publicado por um jornal carioca a respeito da unilateralidade
ideológica (marxista) que impregnava o ensino em nossos cursos.
Sônia foi redatora da carta aberta à população, na qual nos posicionamos
contrários àquela afirmativa. Ficava cercada de líderes dos
diretórios acadêmicos durante as reuniões e encontros estudantis. Eu
me perguntava se não havia caras bem mais inteligentes e interessantes
do que eu por ali... Aos poucos, porém, fui perdendo meus receios,
acreditando mais em mim, e resolvi declarar meus sentimentos, no
que ela correspondeu inteiramente. Estávamos nos amando.
No dia em que resolvemos nos declarar passeávamos na praia.
Eu me sentia completamente inibido de lhe falar aquilo que já era
óbvio em minha fisionomia. Naquele momento, sim: me sentia um
crianção. Nem diante da primeira namorada ficara tão sem jeito.
— Sônia, eu não sei o que eu faço; se pego suas mãos, se te
abraço, se te dou um beijo. Estou acanhado.
— É, eu também estou, também não sei o que fazer.
A situação estava estranha realmente. E, por dentro, estava me
xingando...
“Porra, Marco, você que sempre deu uma de seguro, de gostoso! Num tá sabendo nem pegar na mão de uma mulher?”
— Vamos ver se a gente dá uma volta e acaba com esse constrangimento.
Levantamos e eu lhe dei a mão para que ela me guiasse. Nos
demos as mãos. Mas, e agora? O que fazer com as mãos dadas?
Andamos mais e, aos poucos, comecei a lhe fazer um carinho
com o polegar. Fomos ficando numa boa.
Mas o início de nosso relacionamento foi um tanto difícil. A
impotência mexia com a minha cabeça e com a de Sônia também.
Tentamos de muitas formas, mas a única coisa que aconteceu de
bom foi que aprendemos a nos curtir melhor. Quase oito meses de
incríveis tentativas e... nada. Nunca conseguia ereção suficiente para
penetração.
Minha terapeuta e Sônia me incentivavam para que eu procurasse
a Dra. Ing, minha endocrinologista, e me abrisse com ela. Mas
é difícil para qualquer homem falar desse tipo de dificuldade; o orgulho
atrapalha tudo e, além do mais, eu não acreditava numa
solução.
Estava feia a coisa e, no auge de minha angústia, tomei coragem,
deixei os meus resquícios de machismo na escrivaninha e fui
com Sônia ter uma conversa com a Dra. Ing. Conversamos muito
a respeito e, ao final, ela disse que havia uma solução simples, através
de operação. Deu-me o telefone do Dr. Fernando Vaz para que
marcasse uma consulta. Ela mesma teria um papo com ele explicando
as minhas condições. A coisa ficou facilitada porque a operação seria
feita no hospital onde os dois trabalhavam.
Fiz todos os exames e fui à luta.
A operação teria sido realmente simples se não fosse por dois
acidentes. O primeiro foi causado pela anestesia, que me proporcionou
uma bonita parada cardíaca pós-operatória. Senti que não
conseguia respirar e comecei a pedir socorro, mas era um pedido
apenas mental. Por mais que gritasse dentro de mim não conseguia
abrir a boca. No auge dos meus esforços, do desespero, consegui
dizer: — Não consigo respirar, estou morrendo!
Dra. Ing estava a meu lado. Havia acompanhado clinicamente
a operação. Acordei em outro boxe, com Sônia e outras pessoas das quais
não me lembro ao meu lado.
No dia seguinte, conheci o pessoal que se movimentou em torno
de mim. Era um tal de:
— Eu sou fulano, que massageou seu coração.
— Eu sou o que trouxe o oxigênio.
— Eu fiz isso...
— Eu fiz aquilo...
— Como está? Tudo bem?
Os doentes dos outros boxes da enfermaria vieram me visitar,
quase todos, e me contaram que foi o maior rebu. Realmente fui
assunto para aquelas horas tristes de espera e recuperação do
pessoal. Eu era o mais jovem da enfermaria e o único por ali que
tivera parada cardíaca nos últimos tempos. Aquilo era um ótimo
motivo para troca de idéias e histórias e também para integrar o
pessoal que, mal ou bem, ficava isolado por aquelas divisórias.
Foi uma experiência interessante conhecer a vida de algumas
pessoas, falar sobre a forma de senti-la, as perspectivas de futuro e
alguns encontros com a morte.
Dentro de um hospital o tema morte é tabu, motivando as
pessoas a falarem muito da vida. É um tema íntimo, profundo, cheio
de mistérios e que revela muito das pessoas.
Foi estranho; depois que pedi socorro não esperava mais viver.
Relaxei simplesmente. Se tivesse morrido, acho que, apesar da contradição,
teria sido num segundo de tranqüilidade. Senti como se nada
existisse, nada além do nada. Foi um momento que não vivi história,
nem Marco, nem paixão ou medo. Era só NADA.
Sônia me contou depois que, ao se aproximar da enfermaria,
percebeu a movimentação apressada dos médicos e enfermeiros. A
enfermaria fora fechada para visitas e ela logo pressentira algo, visto
que a Dra. Ing não escondia seu nervosismo ao solicitar ajuda.
Anna também estava no hospital mas, distraída, conversando,
só achou estranho quando passou o balão de oxigênio, e comentou:
— Alguém está passando mal por aí.
Sônia não ousou confessar seus pressentimentos e esperou as
coisas se acalmarem para ver, afinal, o que havia acontecido. Quando
a percebi ao meu lado me fazendo carinho é que notei que não
havia morrido. Fiquei feliz; Marco ainda existia e tinha uma história
com Sônia.
O segundo acidente foi uma infecção que consegui com a sonda
que me introduziram pelo pênis até a bexiga, para que urinasse
sem dificuldades. (Ô dorzinha filha da puta!) Nunca pensei que
fosse sentir tanta dor de cabeça entre as pernas. Meu pênis ficou
inchadão, e me lembro como me diverti quando soube que Sônia
levou um susto ao pensar que depois da operação “ele” poderia ficar
sempre daquele tamanho. Não ia ser fácil agüentar aquele “negócio”...
Mas depois de muitas injeções de antibióticos e de algafan,
tudo voltou ao normal para alívio de ambos, se bem que por motivos
diferentes...
O resultado final de toda essa arriscada e simples loucura foi
fantástico. Nas semanas que se seguiram às de recuperação, quis
descontar com Sônia todos aqueles meses anteriores e, mesmo assim,
não conseguia cansar. Queria colocar lembranças do meu passado que
substituíssem aquelas de frustração e de raiva calada, por sair de cima
do corpo de uma mulher sem nada ter realizado. O gozo voltou a ser
algo realmente pleno, instintivo, fora de sintonia da terra, uma conversa
de amor com os deuses. Fantástico! Simplesmente fantástico!
Poderia, agora, não somente fazer amor, mas sentir amor sem medo.
As coisas, porém, não foram tão simples assim. A impotência
me marcou com uma insegurança que só o tempo fez desaparecer,
como também crer que o sucesso da operação havia sido realmente
total.Mas não foi tão-somente isso que vivi em meus tempos de
faculdade. Em termos de cirurgia, enfrentei ainda, mesmo antes de
conhecer Sônia, uma de glaucoma. Eu que pensei que depois de cego não haveria mais nada a acontecer com minha vista! Estava, realmente,
enganado. [...]
O curioso disso tudo é que fui sem saber que seria operado. O
médico me disse pelo telefone que era apenas um tratamento. Fiquei
com a pulga atrás da orelha quando percebi que estava indo para a
sala do “tratamento” de maca. Quando entrei e me deitaram na
mesa de cirurgia, perguntei assustado:
— Vou ser operado?
Ele me respondeu:
— Sim.
Mas não deu tempo nem de sentir medo. Colocou um pano no
meu nariz e fui acordar muito tempo depois, já operado.
Meu companheiro de quarto era Saint-Clair, um amigo aqui do
Rio que fez questão de me fazer companhia. Quando acordei da
anestesia perguntei a ele, ainda tonto, se sabia que tipo de “tratamento”
era aquele. Ele sabia, todos sabiam, menos eu. Fiquei puto.
Fizeram aquilo para não me assustar, como se fosse fácil me assustar depois de tudo o que já tinha vivido. Conformei-me, visto que a operação tinha sido muito boa e dado
resultado sem eu precisar me preparar psicologicamente. [...]
A faculdade realmente me abriu o caminho da rua, pois eu precisava
sair de casa todo dia. Esse mundo significou pessoas, idéias,
sentimentos. A cegueira, que é minha característica mais visível,
punha sempre à prova a estrutura das minhas emoções na relação
com as pessoas. Cansei de ganhar na rua cartões de centros espíritas
que “resolveriam o meu caso”. Ou mesmo, de ser consolado com a
doença de outras pessoas, como um câncer ou coisa semelhante, o
que era “muito pior do que o que eu tinha”. Grande consolo...
Quando tinha paciência, tentava explicar que, apesar de ser
algo que não desejasse a ninguém, a cegueira não tinha a dimensão
sentida pelas pessoas. Elas tentam imaginar o que é ser cego fechando
os olhos por um minuto. É lógico que muito pouco pode ser
feito, visto que a pessoa não tem a prática nem a necessidade constante
de se virar sem a visão. Ela se sentiria insegura em fazer as
coisas mais simples, como discar um número de telefone, coisa fácil
de fazer para um cego, já que os números estão sempre no mesmo
lugar e em relevo, seja em telefones digitais ou não. Iria se atrapalhar
muito para entrar num ônibus, coisa que não tem mistério, quando
se sabe que todos os ônibus têm um corredor no meio e bancos nas
laterais e que a maioria deles, principalmente os urbanos, possui
ferros horizontais no teto que guiam a pessoa até a porta de saída,
onde há um ferro vertical, ótimo para a orientação. Tudo isso e muito
mais. A desinibição, a curiosidade, a prática e principalmente a
necessidade ensinam.
Para uma pessoa que não conhece nem convive com essas
experiências, um cego torna-se um sujeito completamente alienado
no espaço e no tempo, incapaz de realizar qualquer tarefa. Essa idéia
preconcebida gera várias conseqüências. No âmbito familiar, os
parentes mal informados acabam, geralmente, por assumir uma das
duas posições: de rejeição e abandono ou de superproteção e tutela.
No caso de superproteção, os familiares procuram suprir todas as
necessidades da pessoa cega, sem lhe dar muita chance de fazer algo
por si mesma. Tudo chega às suas mãos. Normalmente essas pessoas
se tornam anti-sociais: mesmo porque têm medo que, ao sair de casa,
os amigos não consigam fazer por ela tudo o que os familiares já estão
acostumados a fazer.
Tive oportunidade de conhecer uma cega que morava no
Leblon que chegava a passar sede, caso alguém não lhe fosse
apanhar água. O extremo oposto disso são os cegos que trabalham
e moram sozinhos. Entre um extremo e outro há diversas variações.
Percebi, com isso, que o limite mais concreto do cego não é a
cegueira, mas sim a educação, o condicionamento, a prática, as
emoções. E foi isso, justamente, que me incentivou a ir à luta. Se
outros cegos podiam andar na rua, trabalhar e viver sozinhos, ficar
parado em casa não seria por causa da cegueira, mas do meu medo,
aliado ao medo de minha mãe.
A relação com a cegueira que predomina no âmbito familiar
traduz a vivência dominante no social. É mais fácil dar uma
esmola a uma pessoa cega do que acreditar em sua capacidade de
trabalho. E é óbvio que qualquer pessoa neste mundo, cega ou não,
se ressente em ter de esmolar para sobreviver. Isso fere a dignidade
de qualquer um, pelo menos até se adaptar à situação. Apesar de
haver alguns de nós que esmolam por “vocação”, a maioria o faz por
total falta de oportunidade de trabalho. Se para mim, que fiquei
cego depois de adulto, é difícil suportar o preconceito e a discriminação,
fico imaginando como deve ser para uma criança ao perceber
que causa pena aos outros e que é motivo de filantropia.
Alguns cegos, de nascença ou de infância, são portadores de
um equilíbrio emocional e de uma personalidade que me causam
espanto. É preciso, realmente, ser forte para superar as informações
que as pessoas nos dão, direta ou indiretamente, sobre nossa diferença,
como se ela representasse obrigatoriamente uma inferioridade. A auto-estima fraqueja por vezes, mesmo que já tenhamos
conquistado muitas coisas. Pelo menos, até que a pessoa supere as
pressões que sofre, é muito mais fácil ser cego do que ser visto como
cego.Quando duas pessoas se conhecem, ligam-se primeiro nas aparências.
Aos poucos, isso vai sendo superado até se conhecer o que
está por trás dela. Com o cego, normalmente, esse processo é mais
demorado. É como se a cegueira ofuscasse seu portador. Para algumas
pessoas ela chega até a representar uma barreira intransponível.
Uma coisa também muito comum de acontecer conosco é a
generalização. É como se para as pessoas todos os cegos fossem iguais.
Assim, da mesma forma, os japoneses: “Tudo com a mesma cara”.
Como se por trás de cada japonês não existisse um indivíduo que
pensa, sente e produz de forma particular. Isso nos autorizaria a
dizer que todas as pessoas que têm visão normal são iguais pelo
simples fato de verem.
Às vezes estou bengalando sozinho na calçada e, ao pedir ajuda
para atravessar a rua, escuto coisas assim:
— Eu não sabia que cegos andavam sozinhos.
Eu costumo responder:
— Os cegos, eu não sei, mas eu ando.
Essa generalização, muitas vezes, me fez sentir mais responsável
ainda em minhas atitudes, pois elas poderiam significar a simpatia
ou antipatia que as pessoas teriam por todos os cegos. Outra
coisa que reparei também é como o cego é “dessexualizado”. Muitas
vezes, na rua, já escutei de pessoas estranhas, inclusive homens, o
seguinte: “Você é o cego mais bonito que já vi”. Normalmente pergunto
quantos cegos a pessoa já viu: raramente respondem que mais
de um. Respondo, então, que não devo ser tão bonito assim, visto
que estou sendo comparado a poucas pessoas. É muito mais fácil
dizer que sou um cego bonito do que um homem bonito.
A cegueira diminui muito o caráter sexual do indivíduo. Há
uma história que já virou piada entre cegos amigos meus, que é a
seguinte: Uma mulher cega estava com sua filha de meses esperando
que uma senhora lhe conseguisse um táxi. Passaram dois caras e
comentaram um com o outro: “Veja só, coitadinha, o que foram fazer
com ela”. E o outro respondeu: “Poxa, mas nem cega escapa...” Não
passou nem de longe pela cabeça deles que ela poderia ser casada ou,
mesmo que não fosse, que tivesse uma vida sexual normal. Da mesma
forma que todos, as pessoas cegas podem ser pais, separadas, divorciadas,
casadas, solteiras, podem ser hetero ou homossexuais.
Já me diverti muito com Jô Soares, ao representar papel de
cego em seu programa, fazendo confusão de uma coisa com a outra,
na maior cara-de-pau. Inclusive com as partes do corpo. Não é difícil
imaginar que o corpo seja uma das coisas mais bem conhecidas de
uma pessoa cega, posto que está mais perto de suas mãos e de seu
próprio ser. Mesmo uma pessoa que não seja cega, num escuro total,
não confunde um joelho com um nariz, muito menos um pé
com uma barriga. O corpo humano é algo óbvio, bastante conhecido,
não só pela visão.
Hoje, com a liberação sexual isso não é tão comum, mas um
tempo atrás as relações sexuais eram realizadas normalmente no escuro
ou à meia-luz, e ninguém errava o alvo. O cego, simplesmente,
não precisa apagar a luz.
Jô Soares consegue fazer graça do absurdo não só nesse quadro
(que, aliás, não existe mais), mas em todos eles. Fiquei temeroso que
as pessoas acreditassem que um cego pudesse ser tão confuso.
A idéia que eu próprio fazia de pessoas cegas, antes de ser uma
delas, não era bem definida. Mal conhecia dois tipos de cegos: os
dos filmes hollywoodianos e os tupiniquins. Os primeiros com seus
cães superamestrados, deixando-me em dúvida se o herói do filme
era o cego ou o cão. Exibiam todos os artifícios de um país superdesenvolvido,
em que a beleza dos atores e o sentimentalismo das
estórias eram, realmente, as coisas mais importantes a transmitir. Os
tupiniquins, por sua vez, vendendo bilhetes lotéricos, batendo de
porta em porta, pedindo uma contribuição para a instituição de caridade
que os acolhera, ou mesmo os de frente de igreja com chapéu na
mão. Todos eles, legítimos representantes do subdesenvolvimento das
idéias, e também provas substanciais de que a crise de empregos
para cegos não começou com a crise econômica mundial ou
nacional. Simplesmente, teve início com os gregos, quando então a
cegueira era fruto da maldição de algum deus sobre um ser humano
castigado por um mau comportamento, ou causa de superdotação de
algum sábio, poeta ou mesmo filósofo. De qualquer forma, como
infradotados ou superdotados, a discriminação é antiga. E eu próprio
a tinha, como a maioria das pessoas, mesmo um tempo depois de
ficar cego.
Enquanto enxergava, a única experiência concreta que tive com
uma pessoa cega foi no metrô de Barcelona. Era um cara alto e forte.
Entrou no metrô com um labrador preto, que combinava perfeitamente
com sua imponência. O metrô parou: tanto por conta dos
usuários, que ficaram atônitos com a presença daquele homem,
quanto pelos funcionários, que não queriam permitir que o cão
viajasse no vagão. Um funcionário meio franzino veio lhe dizer que
ele não poderia viajar ali. Ele respondeu, em alto e bom tom, que só
sairia carregado pela polícia. O funcionário olhou-o meio irritado,
mas ciente de que não seria ele que iria conseguir tirar aquele passageiro
com seu cachorro dali. Outros funcionários apareceram e mudaram
de tática, implorando que ele saísse. O cara ficou ali, firmão.
O trem acabou partindo com ele, o cachorro e tudo, e eu fiquei
quinze reflexivos minutos a observá-lo. A seu lado havia uma
cadeira, queria me sentar ali, mas cadê coragem? Queria perguntar-lhe
como era aquele negócio de ser cego, por que era cego e há
quanto tempo. Se precisava que eu o ajudasse a ir a qualquer lugar,
pois eu estava ali com Lila, de bobeira. Se não tinha medo de estar
sozinho no metrô e também quais eram os problemas, enfim, que
enfrentava. Queria fazer todas as perguntas que geralmente as
pessoas fazem a si próprias, mas, na maioria das vezes, não conseguem
ou não sabem expressar e que hoje, quando tenho tempo,
respondo numa boa.
Disse para mim mesmo que estava com medo de encarar
aquele lindo, mas enorme, labrador preto sob as pernas de seu dono.
Logo percebi que não era verdade. O cachorro estava ali lânguido,
curtindo o carinho que o dono fazia em sua cabeça, e tive a impressão
de que ele jamais atacaria, se seu dono não desse uma
ordem. Compreendi que meu medo real era o de saber coisas pelas
quais um dia eu poderia vir a passar. Um impulso ansioso me fazia
querer sentar ao seu lado; outro, a ficar ali com Lila. Eu estava de
frente para ele, do outro lado do metrô, e ninguém entre nós. Aquilo
estava ficando aflitivo; ele saiu e eu fiquei puto por não ter tido
coragem.
— Lila, e se eu ficasse assim?
— Você é inteligente o suficiente para saber o que faria da sua
vida.Nunca me esqueci dessa resposta, porque foi algo frustrante,
não acreditava tanto assim em minha inteligência, ou mesmo se era
caso somente de inteligência. Na verdade, eu queria que ele tivesse
respondido e não ela.
Essa era toda a minha experiência com cegos: os sensacionais
de Hollywood, os das ruas do Rio — diante dos quais jamais parei
para prestar atenção — e aquele do metrô (dias antes de ter novas
e fatais hemorragias). Mas ele me deixou uma forte impressão. Era
bonito, bem vestido, decidido e estava sozinho. Penso que essa primeira
impressão me aliviou um pouco a barra. É por isso que, às
vezes, me sinto responsável: porque sei que posso ser a primeira
impressão de alguém a respeito de cegos.
Naquela mesma noite do metrô, como me sentisse muito bem
com Lila, lhe perguntei se alguém como aquele cara poderia ser feliz
embora cego. Hoje, a minha experiência percebe o óbvio: a felicidade
não tem forma nem cor. Ela pode ser provocada por algo ou
alguém, mas sua existência é interna. Por isso, posso perguntar a
qualquer pessoa que seja:
— Você vê a felicidade? Você vê seus sentimentos? — e eu já
sei a resposta...
[...] Minha cabeça estava
realmente muito tumultuada e, tendo motivos conscientes ou não, me
afastei de todo mundo. Desde que dei início a esse processo de isolamento,
até encontrar André, a única pessoa com quem consegui me
relacionar com freqüência foi Sônia.
André me ajudou a transformar isso. Era um cara com uma voz
bastante grave, que se distinguia das vozes das demais pessoas na
faculdade. No final da aula, freqüentemente arrumava um jeito de
aparecer para me levar à sala onde seria a aula seguinte. Era difícil
andar sozinho por ali, alguém me pegava pelo caminho. Quando ele
me acompanhava, me passava todas as informações sobre as agitações
políticas da faculdade, me convidando para alguma reunião ou
palestra que estivesse acontecendo. Eu sempre tinha um bom motivo
para recusar. Depois, por umas três ou quatro vezes, passou a me
convidar para tomar um cafezinho. Continuei a dar desculpas. Até
que um dia me pegou e percebi que estávamos fazendo um caminho
diferente do normal. Perguntei por que e ele me respondeu que,
querendo eu ou não, iríamos tomar um cafezinho juntos.
Pagamos o cafezinho, naquela cantina entupida de gente, e
saímos. Encostamos num carro e pensei que ele fosse começar novamente
o assunto de política. Mas não. Disse que queria simplesmente
me conhecer melhor. Sabia que tinha perdido a visão há
pouco e me achava muito inteligente. Perguntou como tinha sido a
minha barra e o que eu sentia. Aquele já era o terceiro semestre
depois que me transferira para a PUC, portanto, já havia perdido a
visão há mais de um ano. Mas ele achava que era pouco tempo para
quem estava por ali sozinho, com cara de que está tudo bem. Na
verdade (isso eu não disse para ele), as coisas não estavam tão bem.
É certo que já havia feito a operação que solucionara meu problema
de impotência sexual, mas estava ainda readquirindo minha confiança.
Minha relação com Sônia era o maior combustível mas, por
outro lado, estava me adaptando à discriminação, ao preconceito e à
sensação de inferioridade que as pessoas socialmente me impunham
e que, por vezes, eu próprio sentia. Mas a admiração que ele me
demonstrou era a mesma que, geralmente, as pessoas me passavam,
e por mais que me sentisse colocando uma máscara de “estou feliz e saltitante”, realmente já tinha conquistado alguma coisa. Não
havia parado em casa, aprendera muita coisa de como ser cego e freqüentava a faculdade. Tudo resultado de muita luta, mas ainda
não estava satisfeito com minhas conquistas, ainda tinha muita
coisa pela frente a aprender. Além do mais, ficara sem amigos e,
principalmente, tinha muito medo do futuro em relação ao trabalho.
Dessa forma, estava tentando fazer com que Sônia e a faculdade
preenchessem todos os meus espaços. Também não contei isso para
ele. Disse-lhe que o que tinha conquistado fazia parte da minha
estrutura, pois jamais me conformaria em ficar em casa parado, caso
contrário, não me chamaria Marco, ou seja, não seria eu próprio.
Além do mais, a terapia estava me dando um grande apoio.
[...]
André foi, para mim, alguém muito importante nesse início de
reintegração emocional com pessoas amigas. Ele me deu sede de
querer conhecer mais e mais pessoas. Sinto muito sua falta. Casou
e foi para Paris fazer pós-graduação, mas um dia volta, como todo
mundo, espero.
Dois anos de PUC e já estava saturado. Já havia cursado dois
anos na Federal e, no pedido de transferência, descartaram metade
do meu currículo. Já estava de saco torrado de repetir matérias e
ainda faltava um ano e meio para o término do curso. Por outro
lado, o mercado de trabalho para professores de história era péssimo;
cego, então, mais ainda. Além disso, não tinha o grande ideal de ser
um historiador, queria simplesmente fazer um curso superior que
tivesse a ver com Ciências Humanas. Já tinha até tentado passar para
Psicologia, mas não aceitaram minha transferência. Sinto nunca ter
canalizado de forma definida minhas aptidões profissionais.
Quando era pequeno, queria ser engenheiro mecânico ou desenhista
industrial, para projetar o carro mais aerodinâmico e moderno
do mundo, justamente o contrário do carro do meu pai. Depois
disso, quis ser arquiteto e levantei e derrubei muitas paredes da casa
de minha mãe, enquanto morava lá, com muita imaginação; aliás, só
na imaginação. Já na adolescência comecei a achar que qualquer coisa
técnica fugiria à minha personalidade, mas, mesmo assim, ainda
quis ser médico. Eu trataria da vida, existe algo mais profundo?
Acabei parando em História.
Procurei o Benjamim Constant novamente em 1981, visto que
havia me afastado um pouco de lá. Queria saber o que um cego
poderia fazer além de ser professor. Estavam em voga dois cursos
profissionais: revelação de raios X em câmera escura e programação
de computadores. Mas existia, também, o curso de massagem (fisioterapia). Além disso, sabia-se de cegos que eram desde operários de
fábricas até advogados, exercendo plenamente a profissão. Passando-se
ainda, tradicionalmente, pelos músicos.
Computador? Esta era uma palavra tão estranha quanto robô
para mim. Até então, tinha preconceito em relação às pessoas que
trabalhavam na área técnica. Pareciam-me sempre frias, calculistas,
racionais. Enfim: “técnicas”. Como poderia equilibrar minha pessoa
com a técnica? Eu estava normalmente muito mais no ar do que na
terra. Como conseguiria trabalhar com uma máquina? E, além de
tudo, não era qualquer máquina, mas um computador. Mais ainda:
era totalmente contraditório para um cara que se sentia marginalizado
como eu (não no sentido do banditismo, mas à margem dos
padrões) trabalhar com algo que era o próprio cerne do sistema.
Somado a isso, para fazer o curso, era preciso saber escrever e ler o
Braille correntemente. Tinha muito pouca prática no Braille, visto
que, como já disse, só fazia etiquetar discos, fitas, escrever alguns
endereços e poderia demorar o tempo que fosse para isso. Como
aprender a escrever e ler rapidamente até início de Março, se estávamos
em Fevereiro?
Mas havia, também, fatores favoráveis para que eu fizesse o
curso. Vivia da pensão deixada por meu pai pelo fato de eu ser
“inválido”. Pelo menos, legalmente inválido. Essa pensão já estava
sendo corroída pela inflação e eu começando a pedir ajuda à minha
mãe, que também era pensionista. O dinheiro estava curto, bem
curto. Não só pelo que fui acostumado, mas também para as coisas
básicas: condução, cigarro, etc. Eu era bolsista na PUC, mas ficava
muito caro freqüentar a faculdade. Todos os livros precisavam ser
gravados em fita cassete. Agora, já não gravava livros inteiros, mas
textos ou capítulos.
Parei para pensar: deveria fazer uma coisa que não estava seguro
se queria, por parecer a melhor opção? Informei-me sobre salários
com programadores cegos e, realmente, era um atrativo. Por outro
lado, apesar de não serem as matérias de minha preferência, sempre
tinha sido bom em ciências exatas. Comecei a considerar seriamente
o assunto, mesmo não tendo muito tempo para isso, porque, se decidisse
fazer o curso, precisaria ir correndo aprender melhor o Braille.
A verdade é que não havia mais a tranqüilidade de ter um pai que
me sustentasse. Nunca havia passado tanto aperto de grana. Isso,
sim, foi fundamental em minha decisão. Inscrevi-me no curso e me
arranquei para casa, a fim de que as pessoas me ditassem textos de
jornal ou coisas no gênero, para treinar o Braille. Todo dia era a
mesma rotina: ler, escrever, ler, escrever, ler, escrever. Comecei o
curso já acompanhando relativamente bem a turma. As duas turmas
iniciais foram diminuindo com o tempo, a partir do momento em
que se realizavam provas ao final de cada matéria. Aos poucos fui
notando que entendia bem o assunto e que, no fundo, estava gostando
daquilo.
Tranquei matrícula na faculdade e resolvi me dedicar exclusivamente
ao curso. Aliás, mais que isso, procurei programadores
profissionais que me dessem programas das empresas em que trabalhavam.
Comecei assim a apurar minha lógica e técnica através
das críticas e dos conselhos dos colegas profissionais. Dessa forma,
me adiantei em relação ao andamento do curso. Estava satisfeito,
mas não só com isso. O contato diário com pessoas cegas era fantástico.
Aprendi muita coisa, troquei muita experiência e conheci
pessoas maravilhosas. Além daquelas indesejáveis, como há em qualquer
lugar.
Foi assinado um convênio com o PRODERJ, que ofereceria
estágio aos dois melhores do curso. Sabia que tinha condições de ser
um deles. Também a concorrência não era muita, visto que começara
com pouco mais de cinqüenta alunos e, ao final, restavam por
volta de vinte. Mesmo assim, eu achava o número bastante alto, já
que conhecia o potencial dos melhores, uns cinco ou seis que se
destacavam muito dos demais. Não achava certo o Instituto dar o
diploma para pessoas que não tivessem capacidade de ser bons profissionais.
Isso seria um cartão de visitas negativo nesse mercado de
trabalho para cegos, posto que, em geral, quando um cego faz uma
besteira numa empresa, culpam a cegueira e não o profissional. Desde
que a cegueira pertence a todos os cegos, começa a ficar difícil a
entrada de outros naquela empresa, fechando-se o mercado. [...]
Antes de mais nada, passei dois anos e oito meses estagiando.
O pessoal do trabalho já brincava comigo dizendo que eu era “estagiário
consultor”, “sênior” ou coisa do gênero. Nunca soube ao certo
que tipo de discriminação estava sofrendo, mas alguma realmente
havia, já que vários colegas foram promovidos durante esse período,
inclusive estagiários com menos experiência do que eu. Isso me virava
a cabeça, me tirava do sério. Algumas vezes cheguei mesmo a ser
antiético ao apontar colegas que considerava menos merecedores de
promoção. Realmente, estava com a cabeça quente, pois é difícil trabalhar
dentro de uma empresa onde algumas pessoas-chave não reconhecem
nossa capacidade e serviço. Eram visíveis os meus esforços.
A coisa começou a mudar quando Adélia assumiu a chefia. Ela
foi a nortista mais maravilhosamente maluca que conheci: se expôs,
lutou e usou toda a sua credibilidade para conseguir minha promoção.
Mas, antes mesmo desta acontecer, já estava me realizando,
pelo fato de alguém acreditar no meu serviço e mostrá-lo a quem
deveria. A coisa demorou, mas aconteceu. Depois disso passei a
trabalhar com mais satisfação e, por sorte, as novas chefias imediatas que se sucederam à de Adélia foram de colegas que conheciam
minimamente minha capacidade profissional. Fui me sentindo mais
à vontade. Tinha conseguido chegar a um estágio de minha batalha:
o trabalho... Seria difícil acreditar poucos anos antes que ficaria cego
e, além do mais, trabalharia em processamento de dados. Era uma
virada geral entre mil sensações e sentimentos, vitórias e derrotas.
Ainda no período de estágio conheci Ênio, um cara dois anos mais velho do que eu e que acabara de perder a visão também por diabetes. [...] Incentivei-o a aprender o Braille e a ir ao Benjamim Constant a fim de ter
aulas de locomoção. Comecei a lhe mostrar que um cego poderia ser
muito mais autônomo do que imaginava: “Cego só não pilota avião
porque ainda não criamos os meios para isso”.
Apresentei-lhe colegas cegos para que a convivência, em si, lhe
ensinasse. Foi assim que ele acabou conhecendo Leda. Ela era, e ainda
é, “minha ídala” em termos de cegos que conseguiram autonomia.
Sempre me mirava nela: analista de sistemas do CNPq na área de
suporte, estudante de pós-graduação em Informática no Fundão
(UFRJ), vanguardista como cega profissional em Processamento de
Dados. Era o máximo para mim.
Falava de Leda para Ênio com toda a admiração que sentia. Foi
com ela que entrei pela primeira vez num restaurante sem a companhia
de uma pessoa que tivesse visão. Chegamos à porta do
restaurante com nossa bengala e o maître veio nos atender. Ele nos
encaminhou à mesa, dispensamos o serviço de entrada e Leda pediu-lhe
que lesse o cardápio. Fizemos os pedidos. Lembro-me até hoje da
sensação de liberdade que senti. Para ela, aquilo era algo normal,
mas para mim uma grande novidade; mais ainda para as pessoas do
restaurante, creio.
Sempre que entro com alguém num lugar assim, percebo que
o tilintar de talheres e copos diminui, ou mesmo pára, e aos poucos
volta ao normal. Nessas ocasiões fico precavido com a bengala à
frente, para evitar maiores danos, pois um esbarrão é quase certo.
A platéia do restaurante, depois de olhar para mim, vira-se para quem
está me acompanhando e observa-nos atentamente. Aí, a pessoa se
constrange e, encabulada, se apressa para chegar à mesa: nessa eu
“danço”. Aliás, acostumei a andar com a bengala mesmo sendo guiado,
pois se alguém esbarra em mim pede desculpas; sem ela, sou
xingado. A bengala é um símbolo significativo da cegueira, em especial
para as pessoas que não têm aparência de cegas. Quando isso
acontece, colocar também óculos escuros completa a fantasia.
Naquela noite os talheres silenciaram-se por um pouquinho
mais de tempo, pois a primeira e a segunda pessoa estavam na mesma
condição. Foi realmente incrível! [...]
Casei com Sônia, se não no papel, numa aliança de sentimentos,
afetividade e vida, que é o mais importante. Nosso desejo chegou
muito antes do contrato, mas um dia, talvez, a gente ainda o assine.
Dos personagens que passaram por minha vida, Sônia foi o principal,
fundamentalmente porque sobreviveu ao tempo num cotidiano
de dor, luta e alegria, despertando em mim sempre uma renovada
paixão. Sua beleza, força e dengo de mulher marcam em meu corpo,
em minha emoção, em minhas idéias e fantasias, um desejo de vida,
de presente e de futuro, enfim, de amor. Não passamos só por momentos
difíceis, mas também de muito prazer. Acho incrível o que
sinto até hoje ao acordar ao seu lado: cresci e, apesar de tudo que
vivi e vivo, sou feliz.
Não faz muito tempo pensava que muitas coisas que conquistamos
juntos jamais poderiam acontecer. Um exemplo disso é ter
minha própria casa com Sônia. O nosso sofá, a nossa mesa, a nossa
cama, o nosso som. Meu filho, quando nascer e crescer, não saberá
o quanto isso custou, nem darei mais tanto valor a algo com que já
estarei acostumado. Outro dia me peguei conversando mais de uma
hora com Silvinha, uma colega de terapia de grupo, sobre as vantagens
de ter um freezer em casa. Se escutasse aquele papo pouco
tempo atrás, o acharia supercareta, longe do meu universo de preocupações;
esse universo era dos meus pais. Para se chegar a isso, porém,
existe toda uma história que fez das primeiras coisas que comprei
e paguei com meu próprio salário as mais importantes do mundo.
Recolho de minhas histórias a integração comigo e com o mundo
e se, de cada uma, retirasse seus personagens e esses resolvessem
se reunir para escrever um só livro, tenho a impressão de que contariam
a história de todos no planeta. Cegos e gordos, alcoólatras e
velhos, negros e tutelados, aleijados e comunistas, analfabetos e
hemofílicos, órfãos e favelados, carecas e homossexuais, baixinhos e
toxicômanos, feios e presidiários, solitários e gagos, vesgos e neuróticos,
desempregados e diabéticos, prostitutas e poetas, estrangeiros
e impotentes, pobres e gênios, e todos aqueles que se desviaram do
padrão do ser humano “normal”, sendo autores da mesma história,
quem sobraria para ser o leitor? Somos a minoria? O problema é
que, na maior parte das vezes, não sabemos conviver com nossa
própria diferença, nem com a do outro. O rótulo é o resultado social
da padronização das diferenças. Imaginou-se, um dia, que um
ser humano feliz deveria ser bonito, saudável, inteligente, rico e
sensível. Hoje tenho certeza de que a profundidade e a quantidade
de problemas de uma pessoa não determinam sua felicidade ou sofrimento:
isso depende de como cada um enfrenta suas dificuldades,
se cresce com sua bagagem ou estaciona em sua dor. Eu mesmo já
tive muito menos problemas do que tenho hoje e nem por isso era
mais feliz. Consolo? Não, realidade. [...]
Dra. Maria Helena, a pediatra que saiu com nosso rebento da
sala de parto enquanto Sônia era levada numa maca a seu lado,
perguntou-me se eu queria pegar meu filho.
— Sim, mas tenho medo, nunca segurei uma criança, ainda
mais com minutos de nascida... Mas quero, quero mesmo!
— Junte os braços dobrados que eu o colocarei neles. Só retiro
minhas mãos quando você o acomodar bem.
O moleque ficou em meus braços, um ser de quem eu mal conseguia
sentir o corpinho com tanto pano o envolvendo. Eram muitos
cueiros, parecia uma pequena mumiazinha. Apertei-o ligeiramente
contra meu peito. Não podia colocar aquela mão suja de cigarro em
seu corpinho. Não sei explicar como, mas eu o enxergava nitidamente...
Eu o via olhando para mim, me observando.
Foi então que a médica me pediu:
— Por favor, levante a cabecinha dele, está um pouco baixa.
Eu, puxando para cima seu corpinho e continuando a contemplar
o rostinho daquele ser amado, fui, então, trazido de volta à
realidade...
— Você está levantando os pezinhos, levante o outro lado, por
gentileza.
Puxa, será que tenho de lembrar a todo mundo que sou
canhoto?
Bem, já me acostumara a ser diferente e, sendo assim, como
poderia escolher um nome comum para meu filho? Tadzo gosta de seu nome, mesmo que tenha de soletrá-lo para que o entendam: T-A-D-Z-O, Tadzo. Este nome credito ao filme Morte em Veneza, do cineasta italiano Luchino Visconti, que assisti quando tinha 19 anos.
[...]Tadzo garante que nunca sentiu falta da visão que não tenho.
Sempre me percebeu como um pai tão presente e tão ausente quanto os pais de seus amigos. Contou-me que quem nota minha cegueira são seus colegas, especialmente quando passam por mim e eu estou teclando no computador. Não entendem por que meu teclado não é especial, em Braille, e não associam o fone de ouvido que uso para escutar o sintetizador de voz à leitura da tela através de som. Aliás, todos ainda estranham isso, mas é uma história que fica para depois.
Eu, no entanto, por vezes me questionei se a visão não permitiria que eu me aproximasse mais dele. Acompanhá-lo em certas coisas que ele só fazia com o avô, como ir ao clube jogar bola, empinar pipa no aterro do Flamengo, correr por um lugar seguro...
Entretanto, joguei muita bola no corredor do apartamento: a porta do último quarto e a porta da sala eram os gols. Também engatinhei atrás dele apostando corrida para ver quem engatinhava mais rápido... ele dava gritos de alegria, me emociono só de pensar.
Havia uma brincadeira que também fazíamos ainda quando Tadzo engatinhava: ele ia na frente fazendo um caminho com várias cartas de baralho e não podíamos encostar os joelhos nelas... Ele dava “piruetas” na sala cruzando os caminhos, íamos para o corredor voltando e ele sempre olhando para trás para ver se eu estava fazendo tudo direitinho, ou seja, seguindo o caminho traçado por ele. Eu ia seguindo as cartas tocando-as com as mãos.
Acho, porém, que, se a cegueira diminuiu de alguma forma meu contato com Tadzo, ela não é a única responsável por isso. Com ele ainda pequeno, comecei a perder as funções renais e tive de começar a fazer hemodiálise... Vivia passando mal, indisposto, vomitando 300 dias por ano, cansado. Com certeza, foi um período muito difícil em minha vida.
As lacunas de presença masculina eram preenchidas, então, pelo avô, José, padrasto de Sônia, e pelos pais de outros amigos. Lacunas?
Por vezes, confusões entre crianças, brigas de mais novos com mais velhos, lá ia a Sônia resolver. Eu até poderia ir junto, ou mesmo ir sozinho, mas talvez minha insegurança não tenha permitido. Certamente havia limites meus, não totalmente da cegueira ou da saúde, mas como saber?
Hoje nosso maior contato é através da informática e da música.
Ele, desde pequeno, se interessa por computadores. Já fez cursos de manutenção de micros, conserta computadores dos amigos e começou, através destes, a conseguir uma clientela que passou a lhe pagar. Ele faz isso com a maior boa vontade, sente o maior prazer.
Assim, quando o assunto é micro, hardwares e softwares, conversamos por “horas”. O cara foi gostar também das bandas de música internacionais de minha época: Pink Floyd, Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple, Scorpions, Queen, Van Halen, e de novos guitarristas também, que passei a conhecer graças a ele: Yngwie Malmsteen, Joe Satriani, Steve Vai... Temos um bom relacionamento, e é isso que importa. Só tem um “probleminha” entre nós: quando alguém lhe pergunta qual o seu time, ele diz que é ferrarista! Ele é flamenguista, mas de araque!
Os sonhos vão se realizando e até nos esquecemos de que foram sonhos. Criamos outros para termos mais sonhos. Não tem como ser diferente, vive-se disso!
[...] Minha vida, a partir de determinada etapa, foi influenciada
por computadores. Desde minha sobrevivência financeira, como
técnico em informática fazendo programação, até mesmo na criação
de novas amizades. Eu diria até que a maioria das amizades que
tenho hoje foi criada na Internet. Posso participar de listas de discussão
por e-mail, de chats e de programas de comunicação por voz,
navegar na Internet, fazer compras e até mesmo criar meus sites. O
primeiro que fiz, em Fevereiro de 2000, existe até hoje e eu cuido dele
com o maior carinho. É o www.bengalalegal.com. Era para ser um site
totalmente pessoal, onde eu falaria de cegueira, diabetes, transplantes
e outras coisas a partir de minha experiência. Só que a Internet me fez conviver com pessoas por vezes tão diversas e tão
diferentes de mim que passei a relatar a vida dessas pessoas também.
O “Bengala Legal” é totalmente acessível a pessoas cegas e àquelas
que utilizam teclado para navegação. Tecnicamente, o site foi feito
por mim, mas foi Madel Rosa, uma amiga que enxerga, quem decorou,
escolhendo as cores e distâncias entre links... Na verdade, eu até
escolhi as cores, mas ela traduziu o que eu queria, fazendo-me experimentá-las na página até encontrar a ideal. Valeu Madeu!
Eu não preciso de um teclado em Braille, pois todo teclado
comum possui, nas letras “f” e “J”, um ponto em relevo e da cor do
teclado na parte inferior. Assim, tendo essas letras com seus pontos
como referência e colocando meus dedos indicadores nelas, posso ter
o domínio de todo o teclado. “O bom datilógrafo é aquele que não vê”; este ditado popular
tem de ser atualizado, mas, independente de alguns teclarem com
extrema rapidez e outros “catarem milho”, o acesso ao computador
começa pelo teclado, pois nós cegos não utilizamos mouse. Para
complementar esse acesso, há programas que são leitores de tela:
posso ouvir o conteúdo de cada tecla que digito, cada palavra ou
frase. Posso também ouvir o conteúdo de toda a tela ou partes dela,
sem estar digitando e conforme eu queira. Dessa forma, podendo
escrever e ler, os computadores criaram um novo sistema de escrita e
leitura para cegos, que se transformou também em um grande sistema
de informação, cultura, comércio e entretenimento, além do Braille.
A primeira vez em que entrei num chat me surpreendi. Estava
acostumado aos e-mails, em que se esperam “séculos” por uma resposta.
No chat é tudo na hora... Cheguei a levar um susto, mesmo
acostumado com informática havia anos. Era um chat especialmente
feito para cegos, todo acessível, colocado no ar pela UFRJ (NCE) em convênio com a Rede SACI, de São Paulo.
Hoje entram muitas pessoas sem deficiência, mas naquela época éramos todos cegos por lá e as brincadeiras rolavam:
- Estou tomando um café, quem quiser levanta a mão! Ou: - Você está teclando de onde? São Paulo?
- Não, do computador!
- Se os bebês das pessoas comuns são trazidos pela cegonha, os dos cegos são trazidos pela ceguinha?
Hoje essas coisas não têm mais graça, mas nos divertíamos muito. O mais surpreendente, no início, era conversarmos com cegos de todo o Brasil. Era uma emoção percebermos nossa presença nos diversos recantos do país. Eu ficava imaginando minha amiga sentada em frente ao computador em João Pessoa, conversando comigo aqui no Rio. Aí entravam colegas de Porto Alegre, Salvador, Brasília, Natal, Curitiba, Pato Branco, Ourinhos... Nosso amigo Salvador, de Porto Alegre, casando com Ligia, de Belo Horizonte...
Surpreendente! Todas as pessoas, independente de terem alguma deficiência ou não, foram sendo integradas na
Internet, que alterou costumes para todos. Todos?
Os excluídos digitais ainda existem, e não só porque computadores e conexões são caros, mas porque muitas vezes somos literalmente esquecidos, ou mesmo desconhecidos, dos desenvolvedores de páginas e programas.
Certa vez, ministrei um curso de acessibilidade na Unisys Rio, a pedido de uma colega cega da Data-Mec, Rita Gaudino. Os profissionais que enxergavam e que eram desenvolvedores de site da empresa e de outras empresas parceiras, ainda se adaptando ao nosso ledor de telas e a navegarem somente via teclado, coisa que desde o primeiro dia do curso eu já ensinava, às vezes se traíam; no meio de uma explicação, eu escutava um clique sorrateiro.
- Quem está usando o mouse? - perguntava eu com voz de aborrecido.
Escutava risadas cúmplices vindas de todos os lados... Em geral, era Jocelisa Christovam de Moura, a Jô: - Fui eu, mas foi um cliquezinho só... vício, sabe?
Mas a experiência com uma coisa diferente ainda não havia atingido o ápice no curso... No terceiro dia, pedi para que todos os mouses fossem retirados, por sugestão de outro amigo cego, Paulo Romeu Filho, sujeito que mais entende de acessibilidade que conheço.
Jô deu um grito quando descobriu: - Cadê meu mouse? Pegaram meu mouse! Você também está sem mouse, Leonardo? Horácio sem mouse? O que está havendo, uma revolução?
As risadas eram gerais, mas eu sentia no ar que cada um imaginava, silenciosamente, como arrumar um “mousezinho” escondido!
Mas as sugestões de Paulo Romeu, esse cara que considero genial, não haviam parado por aí, e eu as empreguei... Sempre era Jô a descobrir as novidades, pelo menos a única que falava em alto e bom som. Mas desta vez ela chegou a gritar:
"Querido" professor, meu monitor está desligado, totalmente,
nem o botãozinho da tela acende... Meu Deus, estou sem
mouse e com o monitor desligado, o que é isso? Você não vai me
dizer que... você não ousaria!- Qual o problema, Jô, faço isso todo dia!
- Silêncio, MAQ, ele está falando!
MAQ era eu, apelido que ganhei na Internet, das iniciais do meu
nome, Marco António de Queiroz; “ele” era o ledor de telas...
- Mas ele está falando desde antes de ontem, Jô!
- Mas eu não precisava saber onde ele estava, era só olhar.... agora, que maldade, MAQ, só quero ver como vai ser!
- Ora, Jô, você não vai ver, vai ouvir, ou vai ver ouvindo, se preferir assim!
O silêncio na sala foi total... até que os ledores de tela de todos os micros começaram de uma só vez; foi uma zorra! Jô batia palmas para que os colegas parassem de acionar seus ledores, coisa que não aconteceu, e, atenta e agitada como os outros, começou a navegar no site que indiquei, totalmente acessível, como nós cegos fazemos.
Confesso que senti uma satisfação emocionada ao perceber o entusiasmo dos participantes que, com minha ajuda, de Rita e Gaudino, dois colegas cegos que participavam do curso, iam descobrindo como navegar. Ao entrarem em outro site, propositalmente com erros de acessibilidade, mais satisfação ainda senti quando, trocando idéias entre nós, tornamos a página totalmente acessível, só que a colocando em outro endereço.
Algo que está me entusiasmando cada vez mais na
Internet são os programas nos quais podemos nos comunicar por voz. A voz traduz a personalidade das pessoas, o jeito de ser, geralmente escondidos na escrita. Eu construo alguém dentro de mim, entre inúmeras manifestações, também por esse quesito superimportante que é a voz. O medo, o carinho, a tristeza, a irritação, a alegria, poucas vezes passam despercebidas nas conversas. Isso tanto pessoalmente quanto em um programa no qual possamos falar à vontade.
Encontrei pessoas interessantíssimas num desses programas, mas a que mais me incentivou a entrar e a permanecer cada vez mais tempo nele foi André Baldo, de Pato Branco, no Paraná. O Supermalavox, seu apelido, é um sujeito cego, de 1,30 metro, com uma deficiência óssea chamada osteopetrose, que torna os ossos mais densos que o comum... Apesar de mais duros, esses ossos se quebram com uma tremenda facilidade, pois são secos e sua estrutura predispõe a isso. André encontrou na
Internet um meio de se comunicar cada vez mais com o mundo. Conhece como poucos os programas utilizados por cegos e está sempre ajudando alguém a fazer algo, ou se divertindo com os amigos. Acabou se tornando um centro de referência no programa de voz, no qual muitos de nós aparecemos. Como André também sabe falar inglês, passei a conhecer Shawn, do Kansas, nos EUA, e Bachir, de Lion, na França, ambos cegos também, através dele.
Brinco, por vezes, dizendo que existe uma "epidemia" de cegos na
Internet, e que é uma epidemia "internacional", pois Shawn por vezes aparece com outros cegos estrangeiros. Sua lista de contatos está perto da casa de 300 cegos em todo o mundo. Como cada um tem sua própria lista... cuidado, um cego pode invadir sua praia!
Vinte anos se passaram após minha passagem interrompida pela Ladeira dos Guararapes e eu estou aqui, contando os paraísos e infernos que percorri. Não sou mais aquele cara bonito de antes, meu corpo tem marcas na barriga, meus olhos "secaram", pela falta de uso e pela calcificação da hemodiálise, as marcas dos anos estão evidentes nas rugas, nem muitas, nem poucas, apenas próprias dos meus 48 anos, a calvície invade o coro cabeludo e tudo que natural ou extraordinariamente me aconteceu para ficar da idade física e também emocional que tenho estão bem representados em mim. Digo até que "estou fazendo hora extra na vida e o que vier de bom é lucro", mas, sinceramente, o que acho que me faz ser uma pessoa satisfeita com a vida é ainda ter a pretensão, o descaramento, o abuso de sonhar. A vida é bonita porque me emociona, apesar de todas as suas diferenças. Nisso eu não mudei.
Não é preciso ter uma doença, uma diferença física ou sensorial para se sentir diferente dos outros. Outro dia, conversando com Kathleen, uma querida amiga, ela me falou sobre Dalida, uma mulher exuberante, de origem egípcia, cantora da moda, eleita Miss Egito em 1954; enfim, linda, consagrada, com um corpo escultural e muito dinheiro, mas que não tinha algo que ela achava que todos tinham ou poderiam ter. Os amores de sua vida haviam partido e Dalida estava sozinha. Suicidou-se deixando um bilhete em que lastimava não ter tido um filho, reconhecendo-se uma deusa, mas uma deusa de coração triste e com um vazio na alma... Escreveu no final: "Perdoem-me; a vida é insuportável para mim". Era uma mulher sofrida, sentia-se diferente.
As pessoas com deficiências não necessariamente sofrem por
serem deficientes, nem aquelas que alguns sonham ser são exatamente
felizes.Enquanto só diabético, eu já me sentia diferente. Quando fiquei cego, a diferença tornou-se muito mais pública. Fazendo hemodiálise, comecei a cumprimentar a morte, acreditando que tudo o que via de bom em mim não valia mais nada. Era como se meu espírito fosse prisioneiro do corpo errado, um corpo limitado demais.
Até
aos 21 anos enxerguei normalmente, nem óculos usava.
Jamais imaginei que daria um passo fora de casa sendo cego e, mesmo depois, a vergonha de ser deficiente era um fator de opressão enorme para mim. Até que com uma professora de mobilidade aprendi a andar na rua, a entrar em um ônibus e me situar, a conhecer a frente do meu prédio de cor e salteado. Comecei a conquistar o Rio de
Janeiro de quarteirão em quarteirão, diabético e cego. Nessas condições casei, fui pai, arrumei emprego, estudei, fiz dois transplantes e estou aqui vivo e satisfeito. Sempre achei que cego só servia para ser mendigo, vender loteria federal em ruas movimentadas do centro da cidade ou ser pedinte com um garoto-guia, geralmente o filho.
Temos de limitar nossas opressões emocionais para chegarmos realmente aos nossos limites reais. Quem enxerga e não convive com cegos acha que cego não pode andar sozinho na rua, porém, a maior parte dos cegos que não é mimada pelas famílias, superprotegida, o faz. A maioria das pessoas acha que os diabéticos não podem comer açúcar de jeito algum. Aí ocorre uma baixa glicêmica e todos ficam espantados quando tomamos glicose na veia. Se os diabéticos fossem se guiar pelo censo comum, morreriam sem conhecer nada.
Então, procurei não me limitar mais do que já sou limitado. Só podemos conhecer nossos verdadeiros limites vivendo-os, experimentando, aprendendo, tocando; não só imaginando a existência deles.
São essas descobertas que me fazem amar a vida e não deixá-la, aos pedaços, pelo caminho.
Marco António de Queiroz.
Maio de 2005
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Sopro no Corpo: Vive-se de Sonhos está dividido em duas partes: "Com o Sol no Meio da Testa" (reedição) e "Presentes da Vida" (inédito). Na primeira parte, Marco
António, então com 28 anos e preso à cama por conta de um grave acidente de
moto, nos fala de sua diabetes, de seu contato com as drogas, da impotência que resolveu se manifestar justamente na juventude, das vezes em que teve de rever antigos valores, como o machismo, e, obviamente, da cegueira, que aos 21 anos
conseguiu o que a diabetes não havia conseguido até então: mudar o rumo de sua vida. Já em "Presentes da Vida" surge o MAQ (iniciais de Marco António de Queiroz) de 20 anos depois, mais maduro e, portanto, mais consciente do que a vida lhe reservou, mas nem por isso amargo ou com panca de herói. Continua a superar as
limitações físicas, a encarar de frente os preconceitos e, acima de tudo, a rejeitar estigmas, mas desta vez tendo a seu lado, além da esposa Sônia, o tão esperado filho Tadzo e os amigos que sempre o apoiaram. Não é possível não se
emocionar com sua "sorte" quando enfim opta por fazer os transplantes. Embora a vida às vezes pareça querer mostrar o contrário, Marco António reconhece que sempre está no lugar certo na hora certa, ou como ele mesmo diz: "Nasci com os rins virados prá lua". Enfim, nesta obra MAQ é muito bem-sucedido em demonstrar que em qualquer idade é possível enfrentar e contar sem mágoas as tragédias pessoais.
RiMa Editora
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excerto:
6.Jun.2011
Publicado por
MJA
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