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-excerto-

Mulher cega - Diego Velasquez
O estouro
Estava acontecendo. Naquele momento. Fazia tempo que tinham
me avisado e, no entanto. Fiquei paralisada, as mãos
molhadas de suor empunhando o ar. As pessoas na sala
prosseguiam com suas conversas e gargalhadas, até sussurrando
exageravam, enquanto eu. E alguém gritava mais
alto que os outros, baixem o volume do rádio, não façam
tanta bagunça que à meia-noite em ponto os vizinhos vão
chamar a polícia. Me concentrei naquela voz estrondosa
que parecia não cansar de insistir que mesmo aos sábados
os vizinhos iam dormir cedo. Aqueles gringos não eram
gente de passar noites em claro como nós, não eram dados
a farras, de jeito nenhum. Eram protestantes e protestariam
se não os deixássemos dormir em paz. Do outro lado
das paredes, sobre nossos corpos e também sob nossos pés,
agitavam-se todos aqueles gringos acostumados a madrugar
já com a meia no pé e os cadarços amarrados. Gringos
que, com a roupa de baixo impecável e a cara engomada,
sentam-se toda manhã para comer seu cereal com leite
frio. Mas ninguém ligava para aqueles que não conseguiam
pregar os olhos, para suas cabeças afundadas sob os travesseiros,
para suas gargantas atulhadas de comprimidos que
não lhes trariam nenhum alívio se continuássemos sapateando
em seu descanso. Sapateando eles, lá na sala. Eu não.
Eu fiquei agachada no quarto, com o braço estendido para
o chão. E de repente me peguei pensando na insuportável
vigília dos vizinhos, imaginando que iam apagar as luzes
depois de enfiar tampões ressecados nos ouvidos; que os empurrariam com tanta
força que o silicone acabaria estourando.
Pensei que preferia ser eu a ter os tampões arrebentados,
ser eu a ter os tímpanos trepanados por seus
estilhaços. Queria ser a velha que cobre firmemente as pálpebras
com a máscara, para tirá-la em seguida e acender
a luz. Queria isso porque minha mão ainda suspensa não
encontrava nada. Só gargalhadas etílicas atravessando as
paredes e me salpicando com sua saliva. Só a voz estridente
da Manuela dizendo sem parar por cima da gritaria, pô, galera,
um pouco de silêncio! Não, por favor, não, pensei, continuem
falando, continuem vociferando, uivem, soltem grunhidos
se for preciso. Morram de rir. Eu dizia isso a mim
mesma com o corpo todo tenso, embora poucos segundos
tivessem se passado. Tinha acabado de entrar no quarto de
casal, acabado de me inclinar, eu, em busca da minha bolsa
e da seringa. Precisava me injetar à meia-noite em ponto,
mas não ia conseguir, porque o precário equilíbrio dos casacos
derrubou minha bolsa no chão, porque em vez de parar
cuidadosamente, como devia, eu me dobrei e estiquei
o braço para apanhá-la. Foi então que um fogo de artifício
atravessou minha cabeça. Só que o que eu via não era fogo
e sim sangue vertendo dentro do meu olho. O sangue mais
espantosamente belo que já vi na vida. O mais incrível. O
mais assombroso. Fluía aos borbotões, mas só eu podia percebê-
lo. Vi com absoluta clareza como o sangue se adensava,
vi que a pressão aumentava, vi que estava atordoada, vi que
meu estômago revirava, que sentia ânsia de vômito e, no
entanto. Não me levantei nem me movi um milímetro, nem mesmo tentei respirar
enquanto observava o espetáculo.
Porque essa era a última coisa que eu veria, naquela noite,
com esse olho: um sangue intensamente negro.
Sangue escuro
Já não haveria recomendações impossíveis. Que eu parasse
de fumar, primeiro, e segundo que não prendesse a respiração,
que não tossisse, que de jeito nenhum levantasse
pacotes, caixas, malas. Que jamais me inclinasse nem me
jogasse na água de cabeça. Proibidos os arroubos carnais,
porque até mesmo num beijo apaixonado as veias podiam
se romper. Eram frágeis essas veias que tinham brotado da
retina e se esticado e se enroscado na espessura do vítreo.
Era preciso observar o crescimento dessa trepadeira de capilares
e vasos, vigiar dia a dia sua expansão milimétrica.
Isso era tudo o que podia ser feito: espreitar o movimento
sinuoso dessa trama venosa que avançava para o centro
do meu olho. Isso é tudo e é bastante, sentenciava o oftalmologista,
isso, é isso, repetia, desviando suas pupilas para
meu histórico clínico, que se transformara num calhamaço,
num manuscrito de mil páginas embutidas numa pasta
grossa. Juntando as sobrancelhas grisalhas, Lekz escrevia
uma biografia exata de minhas retinas, o prognóstico incerto.
Depois limpava a garganta e me apresentava os pormenores
de inovadores protocolos de pesquisa. Comentou,
de passagem, os transplantes em fase experimental. Só que
eu não era qualificada para nenhum experimento: ou era pojovem
demais, eu, ou as veias eram grossas demais, ou o
procedimento arriscado demais. Era preciso esperar que
os resultados fossem publicados em revistas especializadas
e que o governo aprovasse os novos medicamentos.
O tempo também se prolongava como veias arbitrárias e o
oftalmologista continuava falando sem trégua, driblando
minha impaciência. E se houver uma hemorragia, doutor,
eu dizia, apertando seus protocolos entre os dentes. Melhor
não pensar nisso, dizia ele; melhor não pensar em nada, só
continuar observando e fazendo anotações que depois ele
mesmo não conseguiria decifrar. Mas logo levantava a vista
da caligrafia ilegível para convir que, se isso acontecesse, se
chegasse a acontecer, se efetivamente se desse essa ocorrência,
aí veríamos. Você verá, respondi, refugiada em meu
ódio, sem articular uma única letra: espero que distinga
alguma coisa quando eu não mais. E isso já tinha acontecido.
Eu não estava vendo nada além de sangue num dos
olhos. Quanto tempo o outro ia aguentar sem se romper?
Esse era, enfim, o beco sem saída, o beco sombrio onde só
se ouvem anônimos gritos prisioneiros. Mas não, talvez não,
pensei, abraçando a mim mesma, sentando em cima dos
casacos naquele quarto que era da Manuela, encolhendo
os dedos dos pés enquanto meus sapatos balançavam feito
mortos. Não, pensei, porque com os olhos já estourados eu
poderia voltar a dançar, pular, dar chutes nas portas sem o
risco de me esvair em sangue; poderia me jogar da sacada,
enterrar uma tesoura aberta entre as sobrancelhas. Virar
a padroeira do beco ou achar uma saída. Pensei nisso sem pensar, fugazmente.
Comecei a revirar as gavetas em busca
de um maço de cigarros esquecido e de um isqueiro. Ia incendiar
uma unha acendendo o cigarro e me entupir de tabaco
antes de voltar àquele consultório para dizer ao Lekz,
empinando o nariz, me diga o que vê agora, doutor, me diga,
fria e urgente, sufocada pelo ressentimento, como se suas
mãos enluvadas tivessem arrancado meu olho doente pela
raiz: diga logo, diga o que quiser, porque ele já não ia conseguir
me dizer mais nada. Era noite de sábado, ou melhor,
de domingo, e não havia como localizar o oftalmologista.
Mas o que ele poderia dizer que eu já não soubesse?, que eu
tinha litros de rancor dentro do olho?
FIM
Lina Meruane | Elogiada por Roberto Bolaño e por Enrique Vila-Matas, Lina Meruane tem o seu
primeiro livro publicado no Brasil, pela Cosac Naify. A escritora nasceu em
Santiago, Chile, em 1970, e mora nos Estados Unidos, onde fez doutorado e dá
aulas de cultura latino-americana na Universidade de Nova York.
O romance “Sangue no olho” narra, na primeira pessoa, a história exasperante de
uma mulher que está ficando cega, com os olhos cheios de sangue, sem conseguir
chegar a um diagnóstico. Aos poucos, conforme a enfermidade avança, a relação
com a família e sobretudo com o namorado é colocada à prova. Numa conversa sobre
o romance, Lina Meruane diz que o considera ao mesmo tempo “duplamente autobiográfico” e
“completamente ficcionalizado”. in O Globo.
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excerto do livro:
'Sangue no Olho'
autora: Lina Meruane
tradução: Josely Vianna Baptista
editora:
Cosac Naify, 2015
30.Mai.2015
Publicado por
MJA
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