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Luciane Nobre

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Pontos de vista: Quando Nero queria ver o mundo
melhor
olhava-o através de uma esmeralda. Quando quero ver melhor o mundo
eu o olho através das palavras. Marina Colasanti
A cegueira, como ausência da
capacidade sensível de ver, pode ser percebida na literatura como um símbolo
considerando sua possibilidade de evocar outros sentidos. O não-ver das
personagens cegas aguça nossa atenção para o que está oculto, para aquilo que
não se revela de imediato em um primeiro e desavisado olhar. A literatura,
enquanto manifestação da cultura de um povo é influenciada pelas relações
sociais estabelecidas em cada época. A linguagem, como material da arte
literária é usada de forma especial pelo escritor para expressar emoções e a
visão de mundo de um determinado grupo, ou de um indivíduo.
Muitos preconceitos e estereótipos com relação às pessoas
cegas são reproduzidos nas personagens, contribuindo para a consolidação da
identidade do sujeito dentro de uma concepção determinista e excludente. O objetivo desse texto é desvelar alguns desses estereótipos, analisando dois
contos brasileiros, cujos protagonistas são cegos. Discutiremos também o caráter
simbólico da cegueira representado nessas personagens.
Antes de nos aproximarmos dos contos, proponho uma visita
ao clássico
Édipo Rei, tragédia grega de Sófocles (496?-406 a.C) no qual a
personagem Tirésias nos dará algumas pistas para a investigação proposta.
Segundo consta da mitologia grega, Tirésias foi:
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Adivinho tebano, [...] por
haver matado duas serpentes que copulavam foi transformado em mulher. Sete anos
mais tarde, reviveu esses répteis e recuperou sua verdadeira forma. Durante uma
querela com Hera, Zeus escolheu-o como árbitro, mas sua resposta descontentou a
deusa, que o tornou cego. Em compensação, recebeu de Zeus o privilégio de viver
muitas existências e o dom da profecia. (Julien, 2002, p.347)
Em Édipo Rei (A Trilogia Tebana, 1989), Tirésias, o
oráculo, é consultado por Édipo, então rei de Tebas, num momento de crise:
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Tu, que apreendes a realidade toda,
Tirésias, tanto os fatos logo divulgados
quanto os ocultos, e os sinais
vindos do céu
e os deste mundo (embora não consiga vê-los),
sem dúvida conheces os terríveis males
que afligem nossa terra; para defendê-la,
para salvá-la, só nos resta a tua ajuda. (p.33)
Tirésias tinha o poder de ver “a realidade toda” que não
se mostrava aos olhos, podia ver o impossível aos homens comuns, apesar ou por
causa da cegueira.
Dois pontos são importantes ressaltar dessa breve visita
ao clássico: primeiro, o fato de a cegueira ter sido imposta a Tirésias como
castigo; segundo, o fato de ele ter recebido de Zeus o dom da profecia como
compensação a esse castigo.
Na Idade Média, no auge do cristianismo, à idéia de
castigo determinada por algum poder sobrenatural (do bem ou do mal, de Deus ou
do demônio), juntou-se a de piedade, fazendo com que os cegos fossem levados aos
abrigos ou asilos para receberem proteção e atenção às suas necessidades
básicas. De acordo com Kirk e Gallagher (1991), a criação de grandes asilos
para abrigar pessoas com deficiência e oferecer-lhes uma educação desenvolveu-se
na contemporaneidade, principalmente nos séculos XVIII e XIX. No final do século
XX, e mais especificamente a partir da década de 1980, há um movimento no
sentido de integrá-los à sociedade. Foucault (1979) em Microfísica do Poder, no
capítulo intitulado “A casa dos loucos” afirma que,
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quando no começo do século XIX foram instaladas as grandes
estruturas asilares, essas eram justificadas pela maravilhosa harmonia entre as
exigências da ordem social que pedia proteção contra a desordem dos loucos, e as
necessidades da terapêutica, que pediam o isolamento dos doentes (p.126).
Ora, por que outro motivo estariam os cegos sendo levados
aos asilos para uma vida totalmente segregada? A comiseração funciona apenas
como desculpa para que a sociedade possa livrar-se do incômodo da diferença e
das demandas que dela advém. Quem não se encaixa no modelo de sujeito
idealizado, precisa de alguma forma ser colocado para fora do sistema e
controlado, para que a suposta ordem não seja pervertida.
Isso posto, vamos nos aproximar
do conto “As Cores” de Orígenes Lessa, publicado em 1960 no livro
Balbino, Homem
do Mar. Para este trabalho utilizaremos a edição organizada por Ítalo Moriconi
(2001, p. 224-228) [1]
O conto trata do drama da
personagem Maria Alice, cega, que ironicamente vive num mundo de referências
predominantemente visuais. “Como seria a cor e o que seria? Conhecia todas
pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos
a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras” (LESSA, p.224). As
cores e imagens, que compõem o mundo dos videntes (pessoas que enxergam) são
para Maria Alice referências de um mundo que não é seu: “casa cheia de ecos de
um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das
outras vidas de ilimitados horizontes” (LESSA, p.224). A personagem é
apresentada como alguém que pertence a um mundo limitado se comparado ao das
outras personagens que enxergam. Observamos que a idéia de que os cegos habitam
um mundo limitado e inferior é fruto de uma construção social, pois o que
realmente o limita não é a deficiência em si, mas a forma como ela é concebida
na sociedade. Assim como outras categorias, as pessoas cegas são estigmatizadas,
marcadas pejorativamente como incapazes e inferiores, dependentes e não
produtivos, portanto, inaptos a progredir, a alcançar qualquer sucesso na vida.
Esse estigma funciona como justificativa para a sua não inserção no meio social,
influenciando as relações pessoais desses indivíduos, não só sua relação com os
outros, mas também sua relação consigo mesmo.
De acordo com Carlos Alberto Marques, professor da
Faculdade de Educação da UFJF (1994):
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o indivíduo passa a aceitar as significações impostas
externamente, norteando-se sob o jugo de poderes que assumem um caráter anônimo,
automático e impessoal. Assim, verifica-se uma verdadeira anulação do indivíduo,
visto que o mesmo nem mais sente que sente, não sabe o que sente, e nem mais
sabe querer (p.63-64).
Maria Alice tenta se adaptar ao mundo visual,
relacionando as cores, “verdadeira constante de todas as palestras” (LESSA,
p.224), há experiências que possuem um sentido para ela como, por exemplo,
associar a beleza que atribuem a um objeto pela sua cor a uma sonata de
Beethoven. Mas cor é algo que não se apreende pela audição ou pelo tato. Cor
pertence totalmente ao mundo da visão, consagrado pela modernidade, com suas
vitrines e espelhos, outdoors e letreiros luminosos. No conto, ver “era o
sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar [...] ver era saber que um
quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem
nenhum sentido para o seu mundo interior” (LESSA, p.225). Como nos aponta João
Vicente Ganzarolli de Oliveira (2002), professor da Escola de Belas Artes da
UFRJ, os sentidos considerados essencialmente estéticos são a visão e audição. A
beleza captada pelo tato é diferente da captada pela visão. Não ver, portanto, é
algo limitante num mundo onde prevalece o visual e caberia àqueles que não
enxergam adaptar-se. Esse pensamento permeia o relacionamento com qualquer
pessoa que esteja fora dos padrões esperados e são considerados por esse motivo,
inferiores. Temos um exemplo disso quando Maria Alice aconselha Ana Beatriz a
usar o vestido verde. “Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta de sua
inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão” (LESSA, p.226). A atitude
de compaixão, instigada pelos ideais do cristianismo desde a Idade Média, ainda
é predominante com relação às pessoas cegas. Não há na sociedade nenhum
movimento de aceitação a outra forma de percepção da realidade, e isso é o que
torna a experiência da cegueira tão negativa.
Há passagens no conto que demonstram a precariedade e, por
que não dizer, a crueldade da atitude piedosa, fruto na maioria dos casos de
desinformação, e o quanto ela impede uma aproximação verdadeira da personagem.
Ela não é vista como um indivíduo com capacidades e dificuldades como qualquer
outro, mas, antes, é vista como cega; a deficiência chega antes de Maria Alice.
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As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e
havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por
vê-la acertar com as teclas à exclamação maravilhada de alguns: - Muita gente
que enxerga se orgulharia de tocar assim... (LESSA, p.226)
Mais adiante, o conto nos remete ao personagem Tirésias,
aquele que ficou cego como castigo e recebeu o dom da adivinhação como
compensação a esse castigo. A idéia da compensação prevalece no imaginário
popular. Atribui-se ao cego uma capacidade para enxergar além, para ver o que os
outros, apesar de possuírem olhos aptos ao mundo material, não conseguem ver:
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E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se
antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o
recém-chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e
uma sutilezas. Sem que lhes dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou
feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. (LESSA,
p.226)
A chamada teoria da “compensação sensorial” segundo a
qual, quando da privação de um sentido, os outros são automaticamente
reforçados, não é confirmada pela ciência. Segundo Kirk e Gallagher,
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uma pessoa com visão pode
tender a não prestar atenção aos sons do ambiente, que, por necessidade,
tornam-se significativos para uma pessoa cega. Isto não significa que as
verdadeiras capacidades de audição dos dois indivíduos sejam diferentes (1991,
p.192).
Estudos de Telford e Sawrey (1976) confirmam que a
superioridade das áreas de percepção sensoriais como tato, olfato, audição e até
mesmo da memória são resultado do maior uso para obter informações e para se
orientar pelos ambientes. A idéia de sentidos altamente aguçados como
compensação à falta de outro é um mito que, conforme as palavras de Oliveira,
tenta “fazer do deficiente um ser superior aos homens normais” (2002, p.92).
Seria uma maneira de aliviar a falta, através de uma suposta superdotação. É
certo que algumas pessoas cegas, por desenvolverem bem os sentidos do tato,
olfato e audição, conseguem reconhecer e atribuir características a outras
pessoas mesmo não as vendo; seja pelo apuramento dos sentidos remanescentes,
seja pelas informações que ela já possui sobre aquele indivíduo. Não há milagre
nisso, mas há sempre uma tendência em exacerbar e até mesmo fantasiar essa
possibilidade. Vigotski (1995) explica com clareza a “reorganização” psíquica
que ocorre no indivíduo desprovido da visão:
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Portanto, é preciso
compreender a substituição, não no sentido de que outros órgãos assumam
diretamente as funções fisiológicas da visão, mas no sentido da reorganização
completa de toda a atividade psíquica, provocada pela alteração da função mais
importante e dirigida por meio da associação, da memória e da atenção, à criação
e formação de um novo tipo de equilíbrio do organismo na troca do órgão afetado
(tradução nossa)
[2].
Observamos na narrativa certa despreocupação das
personagens videntes com o mundo desprovido da visão, ignorando que o cego pode
ficar sem entender algumas coisas, repetindo-as como conceitos assimilados sem
compreensão. É o que chamamos de verbalização: a pessoa conhece o mundo pelo que
lhe falam dele e não a partir da própria experiência. Comodamente, acredita-se
que esse conhecimento vem da percepção sobrenatural que os cegos teriam.
“Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar,
todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem
via, para quem via. E nesses termos lhes falava também” (LESSA, p.226).
E a personagem entra nesse jogo, criando um círculo
vicioso de faz-de-conta. Há, em contrapartida, uma distinção clara entre o mundo
dos videntes e o mundo dos que não enxergam, mundo que Maria Alice odiava numa
silenciosa revolta: “O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua
inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor” (LESSA, p.227). Vigotski
(1995) afirma que os próprios cegos sentem-se pressionados a mostrar de forma
compensatória o seu valor, já que cegueira é vista como um desvio social.
A cegueira cria dificuldades
para a participação do cego na vida. Por esta linha se ativa o conflito. Na
realidade, o defeito se projeta como um desvio social. A cegueira coloca o seu
portador numa determinada e difícil posição social. O sentimento de
inferioridade, de insegurança e debilidade surgem como resultado da valorização,
por parte dos cegos, de sua posição. Como uma reação do aparato psíquico se
desenvolvem as tendências em direção à supercompensação. Estas tendências estão
dirigidas à formação de uma personalidade de pleno valor no aspecto social e à
conquista de uma posição na vida social (tradução nossa) [3].
Os dois mundos diferentes, o dos cegos e o dos videntes, a
personagem aprendeu a perceber no Instituto que freqüentou, do qual se recorda.
“Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara”
(LESSA, p.226-227). Na época em que o conto foi escrito, 1960, as pessoas com
deficiência eram educadas exclusivamente em escolas especiais ou grandes
institutos, totalmente segregadas do ambiente familiar e social. Essas
instituições ou asilos possuem um caráter ambíguo, já apontado por Foucault
(1979). A respeito dessas instituições, Marques (1994) diz que:
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A proliferação das instituições de amparo às pessoas
portadoras de deficiência teve, e ainda tem, um duplo significado: por um
lado, serviu para tirar do relento aqueles que não podiam suprir as próprias
necessidades e ficavam entregues à misericórdia dos corações bondosos; por
outro, contribuiu implicitamente para a manutenção da condição de
subalternidade de seus internos em relação à sociedade em geral, que teve
difundido e fortalecido o seu poder de controle e discriminação sobre os
desviantes, que representavam, em última instância, uma ameaça à ordem
social ideologicamente estabelecida (p. 97.
A institucionalização é uma proteção à sociedade que se
sente ameaçada por aqueles que põem em cheque a identidade do sujeito
tradicional como possibilidade única de existir. A personagem ocupa lugares
pré-determinados aos cegos (e aos desviantes em geral). Espaços internos,
fechados, sem nenhum contato com a vida real. São eles: a casa, universo
familiar ao qual ela se adapta; e o instituto, ambiente adaptado para educar os
cegos.
O foco da narrativa está na referência às cores, que
inclusive lhe atribui o título:
“As cores”. Em torno desse elemento o narrador
vai mostrando a personagem, que, ironicamente, tem sua vida referenciada pela
cor. O mundo dos videntes se impõe como única forma de interação. A cor foi
usada para revelar o seu contrário: a não-cor ou o não-sujeito, negado pela
diferença, subjugado pelo desvio. Maria Alice tenta adaptar-se. Uma camaleoa
sobre a pedra do determinismo, sobre a dureza de uma sociedade fechada às
diferenças.
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Com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores como
sentimentos e coisas. O branco era como o barulho de água da torneira aberta.
Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde aprendera a identificá-lo com cheiro
de árvore. Cinza com maciez de veludo. Azul, com serenidade (LESSA, p.227).
Mas as relações que Maria Alice estabelece não a
satisfazem. Não há movimento na personagem, ela é marcada pelo estereótipo
tradicional do cego, artificialmente adaptado ao mundo visual, dentro dos
espaços que lhe são autorizados. O momento crítico da narrativa se dá quando é
revelado que o pai a impediu de casar-se, porque o rapaz era mulato. “Você não
tem juízo criatura? Casar-se com um mulato? Nunca! Mulato era cor” (LESSA,
p.228). A personagem tem sua possibilidade de realização afetiva negada pelo
mesmo preconceito excludente reservado aos negros, aos de outra cor. E novamente
a cor, simbólica e ironicamente representando a impossibilidade, a não-vida para
a qual é destinada a personagem.
O outro texto que analisaremos é
“Apólogo
Brasileiro sem Véu de Alegoria” de António de Alcântara Machado. O conto foi
publicado postumamente em 1936, no livro Mana Maria e contos avulsos.
Utilizaremos como referência a edição Contos Reunidos Brás, Bexiga e Barrafunda
Laranja da China e outros contos, organizada por Djalma Cavalvante e Cecília de
Lara (2002, p. 176-179) [4].
Em uma perspectiva totalmente diferente da personagem
Maria Alice, o conto apresenta-nos o Cego Baiano ou Baiano Velho, codinomes que
o narrador utiliza para referir-se à personagem. O nome verdadeiro não aparece
na narrativa. O espaço narrativo é um trem em viagem. Um espaço em movimento,
que supõe uma travessia, um devir. A ação se desenrola dentro do movimento da
viagem. “Trem misterioso. Noite fora, noite dentro” (MACHADO, p.176). Trem que
“recebeu em Maguari o pessoal do matadouro” (ibid., p.176) cujas roupas estavam
manchadas de sangue.
O tempo é determinado claramente: “aconteceu que no dia 6
de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de
óculos azuis” (ibid., p.176). Cego flautista, vindo de um concerto em Bragança
a caminho de Belém. Observamos aqui um lugar-comum que é a associação dos cegos
com a música, como seres dotados de grande inspiração, ou dotados de uma
capacidade auditiva especial em compensação à falta da visão, o que conforme já
dissemos anteriormente, não tem fundamento científico. A deficiência em si não
desenvolve nenhum talento especial. Há cegos com aptidão para música e outros,
não.
O trem estava às escuras e “Ninguém estranhava. Era assim
mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava conformado. Parecia trem
de carga o trem de Maguari” (ibid., p.176). Assim como o Cego Baiano, ninguém
enxergava no trem. A cegueira igualava a todos, tanto no que diz respeito ao não
enxergar o mundo visível, quanto ao não enxergar a própria condição de pessoas
viajando num trem que “parecia trem de carga”, que carrega coisas e não gente.
Uma dupla miséria: as condições sub-humanas da viagem (de pé, sem luz,
pisoteando-se) e a miséria da não-percepção da própria condição. Cego baiano não
sabe do escuro do trem, até que seu guia o informa e ele “Ficou matutando
calado. Claríssimo que não compreendia bem” (MACHADO, p.177). A palavra
claríssimo num contexto de escuridão é ironicamente usada sugerindo que Baiano
Velho apesar de não enxergar, sabia bem o porquê do escuro. Sua percepção do
escuro do trem é clara e crítica em relação aos demais passageiros. De acordo
com o dicionário de termos literários de Massaud Moisés:
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A ironia funciona pois, como
processo de aproximação de dois pensamentos, e situa-se no limite de duas
realidades, e é precisamente a noção de balanço, de sustentação, num limiar
instável, a sua característica básica, do ponto de vista da estrutura [...] a
ironia resulta do inteligente emprego do contraste, com vistas a perturbar o
interlocutor (2004, p.247).
Ainda sob o recurso da ironia, Cego Baiano expõe aos
demais passageiros, sua indignação por não ter luz no trem, explicando o
desaforo da situação e chamando os demais passageiros à reação.
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Homem não é bicho. Viver nas
trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de
reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz.
O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus
direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é
tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo (MACHADO,
p.178).
É o cego que em meio à escuridão leva a luz do
conhecimento às pessoas que ali estão, contrariando o senso comum que relaciona
o conhecimento ao sentido da visão. Ele ilumina através da razão, desfazendo a
cegueira coletiva, bem definida por Saramago em
Ensaio sobre a Cegueira: “Penso
que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não
vêem” (1995, p.310). A partir do momento em que Cego Baiano levanta o véu da
situação, os passageiros se revoltam e fazem propostas de protesto como matar o
chefe do trem, fazer passeata em Belém com banda de música, discurso e foguetes.
Os passageiros do trem, trabalhadores do matadouro,
revoltados, começam a destruí-lo e o fazem como se cortassem as carnes dos
animais, conforme no seu trabalho. “Magarefe-chefe [...] tirou a faca da cinta e
começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou
um pedaço, jogou pela janela e disse: - Dois quilos de lombo!” (MACHADO, p.178)
A rebelião continuou, apesar das súplicas do chefe do trem, até a chegada na
estação de Belém.
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Belém vibrou com a história.
Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: ‘Os passageiros no trem
de Maguari amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada’. Mas foi
substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro
das famílias. Diante do teatro da Paz houve um conflito sangrento entre
populares. (MACHADO, p.179)
Há um tom de crítica social ironicamente sugerido na
necessidade da troca do título e pelo uso das palavras em contraste: paz e
conflito. A revolta, enfim, continuou fora do trem.
A polícia foi averiguar a queixa e interrogou
vários passageiros. “Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou
protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso” (MACHADO, p.179). Esse
passageiro revela que a causa do motim foi a falta de luz nos vagões e quem
encabeçou o movimento foi um cego. O resultado de seu depoimento marca o
desfecho da narrativa: “Quis jurar sobre a Bíblia, mas foi imediatamente
recolhido ao xadrez porque com autoridade não se brinca” (ibid., p.179).
O apólogo, conforme é apresentado no título
Apólogo
brasileiro sem véu de alegoria apresenta explicitamente sua dupla moral: a
religiosa “quis jurar sobre a Bíblia” (ibid., p.179), colocando a religião acima
de qualquer suspeita, e a política, “com autoridade não se brinca” (ibid.,
p.179). Uma crítica ao autoritarismo dos poderes estabelecidos, tanto políticos,
quanto religiosos. A cegueira de Baiano Velho é uma metáfora para trazer à tona
outras cegueiras. Para tal, o autor retira o cego da instituição ou do ambiente
familiar, aos quais eram destinados à época, e o coloca num lugar de movimento
(um trem em viagem) onde ele mesmo movimenta a ação. O cego, tradicionalmente
pacato e confinado, é deslocado para o ambiente social. Ao contrário de Maria
Alice, Cego Baiano é uma personagem em devir. Devir, que segundo Deleuze
identifica-se com a própria literatura: “Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivida ou
vivível” (1997, p.11). O autor do conto, paulista, desloca também sua narrativa
para a região norte, Pará, onde viveu entre 1915 a 1920 o famoso repentista
nordestino conhecido como cego Aderaldo, que após perder a visão aos 18 anos,
descobriu seu “dom para cantar e improvisar”. Viajou por várias regiões do norte
e nordeste principalmente, aceitando desafios de repentistas famosos, divulgando
a cultura do sertão, contrariando o que era esperado de sua condição de cego.
Considerações finais
O escritor é um indivíduo inserido em um contexto
histórico-social e, como tal, é influenciado e influencia o meio no qual vive. A
literatura, portanto, é reveladora da cultura de um grupo social de uma
determinada época. Mas a literatura parte do real e supera-o, deforma-o e o
mostra com mais clareza, numa atitude crítica e visionária ao mesmo tempo. Nos
textos estudados observamos que as personagens possuem verossimilhança, pois
vivem situações fictícias ancoradas no real. Ao mesmo tempo os textos são
críticos, mostrando através de recursos próprios da literatura, o avesso e o
devir das coisas.
Percebemos que os contos confirmam estereótipos
vivenciados no senso comum com relação à cegueira, mas também os extrapolam
acrescentando-lhes novos elementos.
O simbolismo da cegueira mostra-se ora como representação
de incapacidade cognitiva e de autonomia, ora indicando uma visão sobrenatural
e/ou compensatória, colocando o sujeito em um místico e mítico patamar de
superioridade. Ambos os enfoques marcam o cego como um ser diferente, especial,
desacreditado para uma vida social normal e participativa.
No segundo texto especificamente, a personagem participa
de forma ativa construindo a cena. Ela está inserida no meio social, tem
iniciativa, inteligência e autonomia. Mas, no final, o cego é desacreditado pela
“autoridade” como mentor do movimento e por ter percebido que a falta de luz no
trem remetia a uma questão maior, que os outros passageiros não percebiam.
Colocando à parte a ironia da situação que pode abrir outros caminhos de
interpretação, o cego é apontado como incapaz de ter uma visão de mundo provinda
da sua inteligência e capacidade intelectual, numa vinculação comum entre ver e
saber, e, conseqüentemente, não-ver e não-saber.
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1995.
NOTAS:
[1]
As referências seguintes dessa edição do conto serão indicadas por LESSA e o
número da página.
[2] Por lo tanto, la sustitución es preciso comprenderla, no en el sentido de
que otros órganos asuman directamente las funciones fisiológicas de la vista,
sino en el sentido de la reorganización compleja de toda la actividad psíquica,
provocada por la alteración de la función más importante, y dirigida por medio
de la asociación, de la memoria y de la atención, a la creación y formación de
un nuevo tipo de equilibrio del organismo a cambio del órgano afectado ( p.77.
[3] La ceguera crea dificuldades para a participación del ciego en la vida.
Por esta linea se aviva el conflicto. En realidde, el defecto se proyecta como
una desviación social. La ceguera pone a su portador en una determinada y
difícil posición social. El sentimiento de inferioridad, de inseguridad y
debilidad surgen como resultado de la valoración, por parte de los ciegos, de su
posición. Como una reacción del aparato psíquico se desarrollan las tendencias
hacia la supercompensación. Estas tendencias están dirigidas a la formación de
una personalidad de pleno valor en el aspecto social, a la conquista de la
posición en la vida social. ( p.78)
[4]
As referências seguintes dessa edição do conto serão indicadas por MACHADO e o
número da página.
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Personagens cegas na literatura brasileira: estereótipo e símbolo
Autora: Luciane Nobre
[Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz
de Fora, pedagoga e professora da Sala de Recursos para deficiência visual na
escola municipal Cosette de Alencar em Juiz de Fora, MG.]
6 Jul 2009
Publicado por
MJA
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