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Minotauro cego conduzido por uma rapariguinha na noite - Picasso, 1934
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Pedem-me um poema um poema que seja inédito, poema é coisa que se faz vendo, como imaginar Picasso cego?
Um poema se faz se vendo, um poema se faz para a vista, como fazer o poema ditado sem vê-lo na folha inescrita?
Poema é composição, mesmo da coisa vivida, um poema é o que se arruma, dentro da desarrumada vida.
Por exemplo, é como um rio, por exemplo, um Capibaribe, em suas margens domado para chegar ao Recife.
Onde com o Beberibe, com o Tejipió, Jaboatão para fazer o Atlântico, todos se juntam a mão.
Poema é coisa de ver, é coisa sobre um espaço, como se vê um Franz Weissman, como não se ouve um quadrado.
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JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 1998

'Rectângulo Vazado' de Franz Weissmann
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Em 1993, João Cabral de Melo Neto [1920 - 1999] fez uma séria operação aos intestinos (ele tinha úlcera no estômago e no duodeno) e ficou setenta dias na UTI. Quando acordou estava cego, porque os médicos, acidentalmente,
haviam colocado uma luz fortíssima, dessas das salas de cirurgia, sobre seus olhos. Não
entendendo a negligência dos médicos, o poeta entrou em um processo irreversível de
depressão e passou a referir-se a si mesmo como um ex-escritor. A retina queimada, por
acidente, durante a cirurgia, vai gerando um processo de degradação visual, deixando o poeta
sem enxergar com exactidão, mantendo unicamente uma visão curta de vultos, num resquício
de visão periférica. A cegueira intempestiva, e não progressiva, interrompe a carreira literária
de João Cabral e impede, ao mesmo tempo, que ele leia, o que o afasta dos livros e acelera sua
morte, em Outubro de 1999.
Em entrevistas que concedeu depois da cirurgia fatídica, em particular depois que
sua retina começou a degenerar, João Cabral sempre se queixava de maneira muito deprimida
de sua impotência e sobre certa falta de sentido de seus dias. Sua poesia, que era
marcadamente visual, formada pelo que o poeta via, pelo concreto das coisas, deixou de ser
composta, pois o poeta precisava ver o papel. Depois de cego, ou quase cego, o poeta não
escreveu mais, com excepção de um texto chamado “Pedem-me um poema”, publicado na
Revista "Terceira Margem".
Sobre os motivos que o levaram à interrupção da escrita de
poemas, João Cabral declara:
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Não adianta eu ditar para alguém, porque eu preciso ver a minha letra
construindo o verso. Eu escrevo como quem constrói uma casa. Meus livros
têm uma estrutura, um rigor, não são reuniões de poesias. Minha influência
foi Le Corbusier, que eu li em Recife quando ainda era garoto e também os
poetas cubistas franceses. Paul Valéry também, que não era cubista. Pra mim
é uma tortura não poder ler, sabe? Desde menino pequeno não fiz outra coisa
senão ler. Não ler é pior do que não escrever. [...] Estou te enxergando mal,
apenas seu vulto. Me desculpe se um dia te encontrar na rua e não te
cumprimentar. Eu me sinto meio fraco, meio doente, sem vontade de nada.
Morrer é o fim de tudo. O descaso... sossego... chega, né? (1999, p. 5)
A cegueira acidental de João Cabral, levando-o a adquirir uma visão periférica de
mundo, interrompe sua criação e, por extensão, sua vida. Esse fato rivaliza com a ideia borgeana de conquistar, pela perspectiva da perda, a experiência de recuperação visual do
universo, pelo menos o poético. A fatalidade, convertida em tragédia, faz João Cabral
redimensionar o lado trágico da suspensão visual. Cego pela exposição a uma luz excessiva, o
poeta desmetaforiza qualquer possibilidade de encenação que venha substituir (ou recuperar)
a prática da escrita. Em Cabral, a cegueira não é progressiva ou degenerativa; é fatalista,
imposição imediata do fim de ver e de escrever, palavras conversíveis e faces da mesma
moeda. Porque parte do pressuposto de que sua poesia não pode prescindir da visão, a
cegueira vai representar a interrupção de um contacto poético-visual com o mundo e a
constatação da perda de um olhar global diante do percurso racional da poesia. [...]
O poema recupera, pela memória, certos temas e imagens da obra de João Cabral:
o rio, ou os rios – Capibaribe e Beberibe – a cidade de Recife, e o próprio poema e sua
construção. Esse texto pode funcionar como uma espécie de testamento amargo. Os versos
revelam a trágica exposição de uma poética centrada no olhar. Escrito um ano antes da morte
de João Cabral, “Pedem-me um poema” já traz no título apelativo uma tentativa, marcada pela
insistência, de fazer o escritor retomar o ofício precocemente abandonado. A estrutura do
texto evidencia uma sucessão de justificativas que dêem conta das razões para tal interrupção
e, ao mesmo tempo, expliquem aos possíveis interlocutores insistentes a exposição de toda
uma poética e das certezas estéticas que referendavam a obra do poeta. [...]
A obra poética de João Cabral é marcada pela contenção, pelo polimento do
excesso, pela importância do concreto da palavra, pela valorização do acto de visualizar a
forma, referendando a intrínseca necessidade de ver o poema descrito em um espaço. O olhar
a que se refere o poeta, em “Pedem-me um poema”, é um olhar que não se limita à
contemplação, mas que se reflecte, na disposição do texto que se escreve/inscreve no espaço da
folha, sobre si próprio e o mundo. O tempo, nesse caso, tem duas instâncias. Primeiro, é o
tempo de fixação do texto na folha de papel, aquilo que se arruma “dentro da desorganização
da vida”. Depois é o tempo de uma memória ancestral, como se a tela/folha (sem a
interferência do cavalete) imprimisse, em sua organização espacial, uma história que deve ser
preservada pelo registro que se confirma pela visão. O texto se faz com a visão e para a visão.
Em João Cabral a única percepção possível é a visão. Não há, para ele, a possibilidade de
conversão do sentido ferido e inútil em outras sensações ou sentidos. O poeta, que vive da
forma, considera que a poesia não é lugar para perdas. Visualizar a forma, exercer a lucidez
visual imprescindível a esse ofício, é reconhecer a materialidade plástica do poema. “Poema é
coisa de ver” porque a luz inunda, preenche. Para Cabral, o funcionamento do olho se reduz à
vista, sem possibilidade de negociação. Não há imagens sem olhar porque a cegueira aqui não
oferece pontos de vista.
Tornar-se cego pela exposição acidental à luz significa o mergulho no vazio de
não produzir imagens: a realidade imposta a João Cabral. Seu último poema é seu epitáfio e,
dolorosamente, um anticlímax. Assim, não ver é estar literalmente doente dos olhos. Com os
olhos fechados pela fatalidade, Cabral revela que a única subversão possível para o olhar é a
visão, ela, só ela. Cabral vai mais além e reclama que, em se tratando de poesia, não há espaço
para o que não pode ser dito, para o que não se dá de imediato a ver.
24.Set.2011
Publicado por
MJA
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