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Carlos Malheiro Dias
-excerto-

Susan Verbrugge
Novembro despedia-se com um temporal desfeito. Havia três dias que do sul
chegavam, lentas como esquadras de guerra, grandes nuvens
negras, que escureciam o céu, absorvendo os
raios solares. As noites eram cortadas de ventanias, que esgalhavam os pinheiros
das encostas, desgrenhavam os leirões centenários e espadanavam as águas grossas das levadas, esbarrondando os açudes e quebrando os atafais
dos moinhos. Ainda os visos das serras não
flamejavam, atoalhados de neve, mas nevoeiros
obscureciam as auroras pluviosas e bufarras
densas, logo ao entardecer, desciam dos montes
pelas tojeiras das faldas e pelas ravinas pedregosas. Rodopiavam nos pegões de
vento as últimas folhas dos castanheiros e as primeiras alcateias de lobos uivavam já nos lesins, ameaçando os currais.
O solar do Corgo retomara o seu carrancudo
aspecto das invernias. O grande terreiro, construído no século XVII para cortejos de próceres
e comitivas de damas e peraltas, convertera-se
num chavascal. As chaminés das lareiras ainda
espalhavam no escuro céu de tormenta a sua fumaceira alvadia. Mas só a vida da
lavoura continuava inalterável, para alimento da velha casa solarenga, onde o
mordomo aferrolhava em contadores e arcas os dinheiros inúteis, que já não
eram precisos para os esplendores de uma
côrte exilada nem para o dote de uma herdeira
desaparecida. Interiormente, o solar era uma
grande tumba. Apenas os tardos passos de Sepúlveda, envelhecido vinte anos em
vinte meses, enchiam de rumor os aposentos desertos.
A casa inteira parecia pequena para as viagens
dessa sombra sempre errante, atrás da qual,
sem a desamparar, rosnavam dois grandes cães
do Soajo, bamboando as caudas e escancarando
as goelas, como para acometer invisíveis inimigos.
De longe a longe, os morgados de Fermedo e
o de Arronches, um já desiludido da sua candidatura académica, o outro quase inválido de
gota, desembarcavam das liteiras no pátio senhorial do Corgo, para uma tristonha partida de
gamão ou de xadrez. O velho tenente-general
Manuel Jorge, agora coberto de glória, poucas
vezes se deslocava até Vila Real na sua pesada
berlinda de governador, e raramente o general
Silveira vinha de Chaves, com escoltas, ao Corgo,
para levantar o ânimo soldadesco de Sepúlveda.
Mas tudo era inútil. O morgado assistira indiferente
à sanguinosa luta que a
província sustentara contra os exércitos do duque da Dalmácia. A defesa heróica de Chaves deixara-o
impassível. Os seus ardores patriotas tinham-se
apagado como fogueiras ao vento. No seu inflamado coração restavam apenas cinzas.
Havia ano e meio que andando o crúzio a
aparar os alecrins do jardim de embrechado vira
romper na volta da estrada uma berlinda. Uma
visita ao solar era coisa de espanto. A criadagem correra em alvoroço às sacadas. A berlinda
enveredara pelo terreiro e dela tinham desembarcado Sepúlveda, o mordomo e a Genoveva.
O morgado vinha de luto. Pelos passos alquebrados com que subiu, arrimado à bengala, o
escadório do alpendre, todos presumiram que
não tardaria em descer aqueles mesmos degraus dentro de um caixão, com o hábito de
S. Francisco.
Mas Sepúlveda deitou o ano fora, entrou pelo outro ano dentro. O
inverno encontrou-o ainda de pé, enchendo com a sua sombra lutuosa o seu
solar tão ermo como a sua vida. Correra depressa a notícia da sua
chegada. Durante semanas houve barafunda de seges e liteiras no terreiro.
De toda a parte acudiram morgados e parentes
a fazer as vénias do estilo. Espalhou-se logo que Sepúlveda, com a fuga da filha, ensandecera.
A revolta da província, que ele tinha preparado, teve que fazer-se sem a sua intervenção. O
seu nome não apareceu sequer na aclamação
de Chaves. Deputações, mandadas pelas cidades
e vilas, vieram encalhar nos portões fechados
do solar, foram apenas recebidas pelos ganidos dos rafeiros. Sepúlveda parecia
ter vergonha da sua dor. Escondia-a aos olhos de todos.
Confessava-se e comungava amiúde. Apenas
de manhã as criadas e mulheres da herdade
o viam ajoelhado na tribuna da capela, ouvindo
recolhidamente a missa. Jantava depois com o
capelão e retirava-se para ninguém mais o vêr.
Já os poetas de Miranda se não lembravam
de o comparar a um Quirito, nem os peralvilhos
de Vila Real vinham gravitar como satélites
em redor da sua grandeza. A velhice e os desgostos tinham deteriorado o seu
grave e másculo perfil de Trajano. A sua peruca ja não precisava de polvilhos
para ser branca. Esse conspirador contumaz amaciara num angustiado
velho; já não aferrolhava nas lojas e adegas do
solar montões de chuços e arcabuzes, arcas de
zagalotes e pólvora, mas tinha no quarto esconderijos misteriosos, onde se sumiam sapatinhos,
imagens de santos, anéis, fitas desbotadas e
plumas furtadas às escondidas da Genoveva,
que organizara também o seu museu, encafuava nas gavetas da cómoda quanto pertencera
à fugitiva, e lhe tinha o quarto num
asseio de capela, de lamparina acesa toda a noite, a Senhora das Dores com
resplendor muito areado, a cama feita, o soalho varrido, as arcas
arrumadas todos os sete dias, sem esquecer nos lençóis o raminho de alfazema e o
braseirinho de prata pelas noites de inverno.
Os papagaios eram como aves sagradas, servidos como divindades ; e o próprio cravo de xarão,
escrupulosamente limpo do pó, com seu banquinho de damasco em frente ao teclado, parecia
esperar que o acordassem aqueles saudosos
dedinhos saltitantes, sábios em lunduns e minuetes.
Mas ao passo que o culto da Genoveva tinha
a publicidade de uma religião, o de Sepúlveda
vivia no segredo, habitava os meandros mais
silenciosos da sua alma. Em Genoveva, esse
culto era esperança; nele, apenas uma saudade.
Enfiava os dias de todo o ano sentado em
frente a um braseiro, num recolhimento pensativo, ou passeando pelas salas desertas a escutar
o eco dos passos, em meditações que o envelheciam.
Ainda nessa noite, como de costume, a Genoveva fôra limpar as cinzas do braseiro
e deixara-o na sua cadeira, a olhar as cintilações
vermelhas das brasas.
Erguera-se o vento, que enchia a noite de
pavorosos latidos. Um espesso negrume apagara
nos céus o lume das estrelas. Deitados aos pés
de Sepúlveda, que rezava piedosamente o seu
terço, os cães dormiam ao calor. A espaços, o
rugir do Corgo na levada, misturado ao sibilar
da ventania, trespassava os grossos taipais das
janelas trancadas. Os cães erguiam então as
cabeças e rosnavam. Nos intervalos do vento
ouvia-se o gorgolejar do chafariz no adro, algum
balido de ovelha ou mugido de vaca nos currais.
Sepúlveda acabara o seu terço, benzeu-se
com devoção e ia recolher as contas ao bolso
quando um estropido de cavalos e um barulhento rodar de sege se elevaram do terreiro. O sino do portal badalou como a rebate.
Na escuridão da noite, os cães da herdade ladravam com fúria. Seguira-se um confuso besoar
de gente que acudia.
Com as contas na mão, Sepúlveda ficara imóvel na cadeira, a escutar. Os cães ergueram-se, foram farejar
às portas, de orelhas em riste.
Os cachões da levada e o sibilar do vento enchiam a noite de um barulho de tormenta, onde
todos os outros ruídos se perdiam, como no estrugir de um grande mar.
Sepúlveda caminhou então até uma das janelas, ergueu custosamente a tranca,
rodou as cravelhas de ferro, abriu os taipais e espiou o negrume do terreiro.
Confusamente,
à luz de movediças lanternas,
avistou o vulto sombrio de uma sege de jornada
engatada a duas parelhas de cavalos. Entre os
uivos do vento, pareceu-lhe ouvir a grita de mulheres chorando. «Algum desastre... » — pensou.
Mas tremiam-lhe as mãos, lançadas à ombreira
da porta. Um pensamento, como tempestade que
enche um céu de nuvens, ia-lhe invadindo o espírito, onde pareciam ecoar os
latejos do coração. Agora, um grupo compacto subia os degraus do alpendre,
conduzindo em charola alguém, que vinha ferido de um assalto ou desastre. Havia
gente parada a olhar a ascensão do
lúgubre cortejo. Sepúlveda permanecia imóvel
e assombrado. Os cães rosnavam, bamboando
as caudas inquietas e farejando a porta. O vento
cortava o negrume da noite em rajadas sibilantes e era medonho o clamor da levada, descendo
em espadanas o leito pedregoso do rio.
Sepúlveda pegou na bengala e abriu a porta.
Ao fim do corredor, viu adiantar-se o estranho cortejo, alumiado por candeias. Grandes
sombras oscilavam nos tectos. Como que um
sussurro de fonte, conjunto de muitos choros,
acompanhava o lento andar das mulheres.
Os cães escaparam-se pela porta entreaberta,
correram aos saltos pelo corredor, ganindo.
Uma voz suave reconheceu-os, veio de longe,
muito débil:
— Tigre! Hércules!
E logo um grito, quase clamor, se elevou entre lágrimas:
— O senhor morgado!
O senhor morgado! A Genoveva, que caminhava à frente,
erguendo os braços em direcção à luz da porta, anunciou, numa voz em que se misturavam risos
e soluços:
— É a nossa menina, senhor morgado! A
nossa menina, que voltou!
— A menina Maria do Céu! — entoou o côro
de mulheres.
Sepúlveda arrimou as mãos à ombreira da
porta. As lágrimas caíam-lhe pelas faces. Mas
de toda essa fraqueza ergueu-se o velho corpo
cambaleante. A honra do lar incarnou-se nesse
pai prestes a sucumbir. Um estremecimento
abalou até aos alicerces da vida aquela ruína humana. De todo o passado se
precipitaram energias para a sua alma desfalecida. A sua face
macerada tingia-se com a vergonha do ultraje.
E assim transfigurado, o negro vulto cresceu no
corredor, como o fantasma da sua própria honra
ofendida.
— Para trás toda a gente! Não tenho filha,
nem esta casa é albergue de mulheres perdidas! Onde estão os meus criados, que
sem minha ordem abrem as portas desta casa?
E em desvario, agitava a bengala na escuridão do corredor, ameaçando o lacrimoso cortejo
que estacara de assombro e medo.
— O mordomo! Onde está o meu mordomo?
Onde está o meu capelão?
— Senhor, que ela morre! — gritou a Genoveva.
Mas
Sepúlveda, agora, crescia para o grupo
das mulheres, agitando a bengala, expulsando a
filha, enxotando o bando estarrecido de servas,
que passeavam em triumfo a sua desonra pelos corredores de sua casa.
— Meu Pai! Senhor Pai! Eu venho só morrer! — gemeu uma pequenina voz de súplica e
de angústia.
Sepúlveda deixou cair a bengala e estacou,
como fulminado.
À luz das candeias, viu-a, reconheceu-a, naquele corpinho transparente de mendiga, com
o xale roto e as farripas do cabelo a fugir e a
tremer sobre uma fronte pálida. Um imenso
assombro continha-o imóvel, com a boca aberta. A sua cólera desaparecera nos misteriosos
sumidouros do coração. Essa voz suplicante e
humílima parecia chegar de uma longínqua
infância, em que ele a ensinara a falar! E em
frente à filha, parecia meditar como diante de
um desfigurado retrato. Via-a pequenina, esperneando no seu colo, prendendo-lhe os bracitos
ao pescoço, puxando-lhe o rabicho, desmanchando-lhe a peruca com a mãozinha minúscula e
destruidora. Via-a depois mulher, linda como o
seu nome, enfeitada como um anjo de procissão,
inocente como uma flor. E os seus olhos passeavam aterrados por aquela ruína de quem
fora o último orgulho do seu sangue e a derradeira felicidade da sua vida.
— É a nossa menina, senhor morgado! Então
nós não havemos de ficar com a nossa menina?
Tenha pena, senhor morgado!
Sepúlveda nada ouvia. Todos os seus sentidos estavam concentrados no olhar de assombro
com que contemplava esse corpo desfalecido,
reclinado no ombro da Genoveva, e que parecia pender já para a terra, sustido
pelo vacilante braço da velhice.
Maria do Céu tinha a cabeça baixa, como esperando os furores da sua cólera. As lágrimas
caíam-lhe dos olhos sobre as mãos postas. Depois, vendo tardar o castigo e não
descerem sobre elas as maldições para a sua culpa, aventurou-se a erguer os olhos obscurecidos de névoas
até essa inflexível face adorada, que os seus ultrajes tinham arruinado e
envelhecido. Piedosamente, as suas mãos ergueram-se, os seus joelhos vergaram.
Deslizou dos braços da Genoveva, caiu como uma penitente diante de um
altar.
— Pai! Meu Pai! Perdoe-me!
E eram mais soluços do que palavras, mais gemidos do que súplicas.
Mas antes que ela falasse, já
Sepúlveda lhe
estendia os braços para a erguer, encostar ao
velho coração de onde ela nunca saíra. E tão
leve a encontrava, que lhe parecia poder levá-la
ao colo, como em pequenina, e adormecê-la nos
braços como nos remotos tempos da infância.
Os dois estiveram assim abraçados um longo
instante, de cabeça curvada, como se ambos
sentissem o sacrifício que a honra fazia ao coração.
Depois, Sepúlveda desuniu-a do seu peito, entregou-a brandamente
à Genoveva, que
chorava, fez um vago gesto para que a conduzissem
e abalou lento pelo corredor, como a caminho
do túmulo.
As criadas ampararam Maria do Céu; ergueram as candeias para alumiar o corredor. Foi
preciso enxotar os cães que a perseguiam e lhe
embaraçavam os passos, reconhecendo a dona.
E o lacrimoso cortejo deslizou com soluços e ais
até à câmara de Maria do Céu, onde ardia a
lamparina no santuário, e rescendiam as roupas
a alfazema.
As criadas correram a buscar luzes. Só então
Maria do Céu apareceu em toda a sua decadência, como uma velhinha que tivesse
envelhecido na juventude. Mal podia suster-se em pé. Nos seus olhos havia como que uma névoa
que a deixava olhar para as luzes sem que as
pálpebras tremessem; e as suas mãos pareciam
entorpecidas, como se as tivessem exposto a
uma geada.
Um murmúrio de piedade correu de boca em
boca, entre as mulheres.
Umas choravam; agitavam outras a cabeça.
Maria do Céu olha demoradamente os aflitos
rostos das criadas, as paredes do quarto, a Senhora das Dores com o seu resplendor de prata
onde reluziam pequeninas opalas.
E disse:
— Estou tão fraca!
— Talvez com fome... — pensaram as mulheres.
Ia fazer-se a ceia. Todas a queriam servir,
fazer manjares, ferver o caldo, assar galinhas,
pôr a saque a despensa do solar para um festim...
Mas Maria do Céu tristemente sorriu e murmurou:
— Fraca de não dormir...
E humildemente, vendo-lhes o desconsolo e a
tristeza:
— Não é para que se vão embora... Mas estou tão fatigada! Há dez noites que não
durmo!
Então, cada uma por sua vez lhe veio desejar
a boa noite, curvando-se em reverências de altar-mor, deslizando em bicos de pés, oferecendo ainda serviços: o azeite para
a lamparina, o braseiro por mor do frio, mais um cobertor para a cama... A todas ela sorria, como na
surpresa de tanto amor. E as lágrimas foram
deslizando outra vez dos seus olhos imóveis,
pela sua face desbotada de enferma.
A Genoveva, impaciente e aflita, acabou por
pôr fora as mais morosas.
Maria do Céu dizia:
— Deixa-as, Genoveva... Faz-me até bem
vê-las aqui...
— A menina está a cair de fraqueza... Amanhã se farta de vêr toda a sua
gente...
— Parece que estavam à minha esperai — suspirou Maria do Céu, circunvagando o olhar pelo
arranjo do quarto.
Mas a Genoveva nem a ouvia, posta a abrir
a cama, a preparar tudo para a deitar.
Maria do Céu tirou do bolso da saia uma corrente de oiro, de onde pendia uma medalha
com o retrato de André Chenier. Ficou por um
instante a olhá-la atentamente, limpou as lágrimas e poisou-a em cima da cómoda,
aos pés da Senhora das Dores. Ajoelhou depois um instante a rezar, de
mãos postas; deixou-se despir pela Genoveva; e, já deitada, voltou a
sentar-se bruscamente no leito, passando as mãos aflitas
pelos olhos e pela testa.
— A menina quer mais alguma coisa? — perguntou a Genoveva, apagando as luzes.
— Queria que
amanhã, logo que rompesse o
sol, me abrisses a janela e me acordasses...
Logo de madrugada... Mal o sol desponte, mal
faça dia... Tenho tantas saudades da nossa
terra!
— Logo de manhãzinha eu venho. Agora durma. Os anjos lhe fiquem de vela...
— Vou dormir — suspirou Maria do Céu...
Os olhos não tardaram a fechar-se-lhe. A Genoveva benzeu-se ante a Senhora das Dores, fez
uma genuflexão e saiu como uma sombra.
Às seis horas, a aurora pálida, obscurecida
pelos espessos véus de nevoeiro, que flutuavam
sobre a crista dos montes, começou despontando
atrás da serra. Por um instante, depois do negrume da noite, alguns astros cintilaram no
céu, entre as abertas das nuvens, para logo se
apagarem à luz mais viva da madrugada. Do
terreiro elevaram-se os primeiros cantos dos
galos.
A Genoveva, arredou longamente as mechas
de cabelo branco de sobre a face, esfregou os
olhos, benzeu-se e foi espreitar à janela.
O tempo parecia ir melhorar. Estrias cor de
rosa, como os veios de um mármore, coloriam
o céu para o oriente. Aos poucos, de entre os
espessos véus de neblina, iam aparecendo os
telhados das arribanas, os colmos dos eidos, os
muros amarelos do adro. Do terreiro subia o
rumor da água no chafariz. Em frente às portas
da cocheira negrejava a sege em que Maria do
Céu fizera a imensa jornada de Espanha.
Então Genoveva esperou que o dia rompesse
de todo, que o sol iluminasse a terra de Portugal; e quando a névoa ia tomando ao longe os
tons de uma gaza cor de rosa, e os pastores
tangiam os rebanhos das curraladas, pé ante pé
entrou no quarto de Maria do Céu, espreitou o
murmúrio da sua respiração enfraquecida e cautelosamente, sem ruído, abriu a janela em frente
ao leito.
O dia entrou, suave e claro, como se, com a
vinda da exilada, entrasse o bom tempo em
Portugal.
Sorrindo, a Genoveva acercou-se do leito.
Não fôra debalde que durante dois anos, todos
os sete dias, o perfumara de alfazema... Outra
vez nele dormia a sua menina... E quedava-se a olhá-la compassivamente, como
uma enfermeira olha a doente que lhe confiam. A sua
velha alma tinha uma perpétua juventude: a esperança. Em breve, com os seus cuidados, a veria rosada e fresca como outrora!
Tanta guerra
havia passado; tanto horror tinham visto seus
olhos gastos! E nem por isso, depois dos mais
agrestes invernos, as árvores rebentavam com
menos seiva e as flores desabrochavam com menos aroma. O importante era tê-la de novo ali,
ao agasalho... Rica herdeira tem sempre quem
a queira... Bom nome é o que Deus dá e não
o que a terra põe... Ainda havia de a vêr feliz, casada, outra vez airosa como
era dantes...
Uma réstea de sol veio deitar-se no leito, ao
lado da adormecida.
«Até o sol a quer vêr!» — pensou a Genoveva.
Os galos cantavam. Estava nascendo um lindo
dia, e era preciso acordá-la...
Debruçou-se então no leito, chamou baixinho:
— Dona Maria do Céu...
O raio de sol ia-se alargando, tomando pouco
a pouco a largura do leito. A lamparina da Senhora esmorecia na plena luz do dia.
A Genoveva tornou, mais alto:
— Menina! É dia claro... Vem o sol a romper...
Maria do Céu espreguiçou levemente o corpinho cansado, ficou um momento ainda
esbracejando. Depois, sentando-se na cama, chamou:
— Genoveva!
Os seus claros olhos imóveis passaram
pela janela, pela criada, por todo o quarto.
— Que horas são?
— Devem de ser as seis e meia... O dia rompeu há pedacinho...
- Apagou-se a lamparina da Senhora?
— Está a arder... Não a vê? Talvez por
causa da luz do dia...
— Que escuridão! — murmurou Maria do Céu,
olhando em redor com os límpidos olhos abertos.
A Genoveva quedou pasma.
A vozinha débil voltou:
— Abre a janela, Genoveva...
— Está aberta, menina...
— Abre-a toda.
— Então a menina não vê o dia? Até tem o
sol na cama...
— Não vejo...
E sentada no leito, em frente à janela, os
seus grandes olhos tinham na pobre face enferma uma imobilidade sereníssima.
— Não quero dormir mais, Genoveva... Abre
a janela...
— Pelas cinco chagas, menina! A janela está
aberta. Até anda o sol no quarto!
Impassíveis, os olhos de Maria do Céu fixavam-se na janela. Depois, voltaram-se para o lado
de onde vinha a voz da ama e por sua vez poisaram nela, límpidos e imóveis.
Parecia assombrada. Lentamente, com receoso vagar, retirou o braço de sob a
roupa, tacteou sobre os lençóis até encontrar a Genoveva. Mas a esse contacto,
todo o seu corpo estremeceu violentamente, e um grito rouco, de
terror e de angústia, saiu-lhe da boca como um
estalar de coração.
— Nossa Senhora! Eu não vejo! Eu estou cega, Genoveva!
O sol iluminava-a toda. Mas em castigo de a
ter deixado, nunca mais os seus olhos veriam a
linda terra de Portugal.
FIM
Carlos Malheiro Dias
MARIA DO CÉU é a personagem principal do romance
'Paixão de Maria do Céu', de Carlos Malheiro Dias
(1875-1941), publicado em 1902. A obra inscreve-se num cenário histórico pouco representado na ficção portuguesa: o tempo das Invasões Napoleónicas. A ação diegética inicia-se em Outubro de 1807, na iminência da entrada do exército francês no País, sob o comando de Junot; no solar de Corgo (Torgueda, Vila Real de Trás-os-Montes) prepara-se a festa dos “vinte anos viçosos e amaneirados” da fidalga rural, herdeira de um vasto morgadio e destinada a um casamento condizente com a sua condição. Os festejos são ensombrados pela tensão política do momento: o pai de Maria do Céu, um velho combatente obcecado com a desguarnição militar das províncias, conspira na região pela formação de milícias civis mas, num país desmoralizado e desorganizado, os planos patrióticos do fidalgo são condenados ao insucesso. Inconformado, o velho Sepúlveda decide instalar-se com a filha na capital, na ilusão de pressionar o poder. Ironicamente, a chegada a Lisboa coincide com a fuga da família real para o Brasil. O episódio impressionante do embarque em Belém, em que uma corte grotesca se despede do povo que assiste passivamente ao seu próprio abandono, é descrito com notável realismo dramático.
É neste contexto de decadência nacional – em que se projeta o pessimismo
histórico do tempo da escrita do romance – que se desenvolve a trama sentimental
da protagonista. Maria do Céu, inocente e imatura, é uma vítima desta submissão
que afeta os valores morais coletivos. Assim se explica o desinteresse pelos
pretendentes nacionais e a paixão fulminante por um oficial francês, De Marmont,
que a convence a fugir de casa, seduzindo-a com a promessa de uma vida de
fantasia em Paris.
Em Paris é abandonada à miséria e redime-se dos erros cometidos; volta a
Portugal doente e desfigurada, com a ajuda de um admirador dedicado que tivera
por ela um amor recalcado. O desfecho melodramático é acentuado por mais um
evento simbólico: ao acordar na casa paterna apercebe-se de que está cega:
privando-a da visão, a pátria castiga a filha que a traiu. in
Centro de Literatura Portuguesa - Universidade de Coimbra.
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excerto de:
Paixão de Maria do Céu (parte IV)
Carlos Malheiro Dias
(1902)
Edições Vercial
Braga, 2012-2013
22.Abr.2017
Publicado por
MJA
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