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Todas as
manhãs às 4:00h, Laura J. Sloate começa a sua leitura diária. Ela liga para um serviço telefónico que lê jornais em voz sintetizada, e ouve o Wall Street Journal a 300
palavras por minuto, o que é quase o dobro do ritmo médio da fala. Mais tarde, um assistente lê-lhe o Financial Times enquanto Laura usa o sistema de texto para fala do
seu computador para ouvir o The Economist. Ela destina um ouvido ao jornal e outro à revista. A diretora duma empresa de investimentos de Wall Street, Sloate, é cega
desde os seis anos, e apesar de ler constantemente, correndo as notícias e os relatórios económicos todas as manhãs, ela não usa o Braille. «O conhecimento vai dos meus
ouvidos ao meu cérebro, não dos meus dedos para o cérebro» diz. Em criança aprendeu o som das letras do alfabeto, e não como apareciam ou as sentia no papel. Não pensa
numa vírgula nos termos em que é escrita mas sim como «uma pausa no caminho antes de continuar». Isto, diz Laura, é o futuro da leitura para cegos. «A literacia evolui,»
disse-me. «Quando o Braille foi inventado no século XIX, não tínhamos mais nada. Não tínhamos sequer o rádio. Naquela altura, a cegueira era uma deficiência. Hoje é
apenas uma pequena incapacidade.
Há algumas décadas, comentadores previram que a idade eletrónica iria criar uma geração pós-literata, com novas formas de media na
palavra escrita. Marshall McLuhan afirmou que a cultura Ocidental iria voltar a um «registo tribal e oral». Mas o declínio da linguagem escrita tornou-se uma realidade
apenas para os cegos. Apesar de Sloate não se arrepender de não ter gasto mais tempo a soletrar na sua juventude – ela escreve ditando – pensa que usar o Braille apenas a
teria afastado dos seus pares. «É um meio de comunicação arcaico, que deveria na sua maioria ser abolido» disse-me. «Simplesmente já não é necessário hoje em dia».
Os livros em Braille são dispendiosos e pesados, requerendo resmas de papel grosso. A National Braille Press, uma editora com 83 anos de Boston, publicou a série Harry
Potter na sua imprensa; o produto final tinha 56 volumes, cada um com 30 cm de altura.
Como um único manual escolar pode custar mais de 1.000 dólares e há falta de
professores de Braille nas escolas públicas, os estudantes com deficiência visual leem geralmente recorrendo a MP3, áudio-livros e programas de síntese de voz.
Num
relatório publicado no ano passado pela National Federation of the Blind, um grupo de sensibilização com 50.000 membros, afirmou que menos de dez porcento dos 1,3 milhões
de cegos Americanos lê Braille. Enquanto metade das crianças cegas na década de 50 aprenderam Braille, hoje em dia esse número é tão baixo como 1 em cada dez crianças, de
acordo com o relatório. Os números são controversos devido ao debate acerca das crianças com visão residual que «veem demasiado» para aprender Braille e porque ao longo
das décadas as causas de cegueira mudaram – nos últimos anos cada vez mais crianças cegas têm múltiplas deficiências, devido aos partos prematuros. É no entanto claro,
que a literacia Braille tem vindo a minguar, mesmo entre os mais capazes intelectualmente, e o relatório inspirou um movimento fervoroso para mudar a maneira como as
pessoas cegas leem. «Estamos a descobrir estudantes que são muito inteligentes, verbalmente muito competentes – e são iliterados.» Jim Marks, membro da comissão desde há
cinco anos da Association on Higher Education and Disability, disse-me «Deixámos de ensinar as nossas crianças cegas a ler e escrever. Colocámos um leitor de cassetes e
depois um computador nas suas secretárias. Agora a sua escrita é fonética e retalhada. Nunca puderam aprender a beleza, forma e estrutura da linguagem.»
Durante
grande parte do século passado, as crianças cegas dirigiam-se a instituições residenciais onde aprendiam a ler tocando nas palavras. Hoje, crianças com deficiências
visuais podem ser versadas em literatura sem saberem ler; os softwares de leitores de ecrã conseguem dividir cada palavra e ler todas as letras individualmente. A
Literacia tornou-se muito mais difícil de definir, até para os educadores.
«Se tudo o que apreendemos do mundo é o que as outras pessoas dizem, então a nossa mente
fica limitada» disse-me Darrell Shandrow, que dirige o blog Blind Access Journal. «Precisamos de símbolos escritos para organizar a nossa mente. Se não podemos ver ou
sentir a palavra, o que é que significa? A substância desaparece.» Tal como muitos leitores de Braille, Shandrow diz que os novos computadores, que formam uma única linha
de células Braille de cada vez, irão reavivar o código em relevo, mas estes aparelhos são ainda extremamente caros e não amplamente usados. Shandrow vê o declínio da
literacia Braille como um retrocesso, não progresso. «Isto é como voltar a 1400, quando a máquina de impressão de Gutenberg apareceu» diz-me. «Apenas os estudiosos e os
monges sabiam ler e escrever. E depois tínhamos as massas iliteradas, os camponeses.»
Até ao século XIX, as pessoas cegas eram confinadas a uma cultura oral.
Algumas tentavam ler letras gravadas na madeira ou cera, formadas por arame ou traçadas com alfinetes em feltro. Insatisfeito com estes métodos precários, Louis Braille,
um estudante do Royal Institute for Blind Youth em Paris, começou a estudar uma linguagem cifrada em relevo, chamada escrita noturna, desenvolvida por um oficial do
exército francês, de maneira a que os soldados pudessem enviar mensagens no escuro. Braille modificou o código de maneira a ler-se de forma mais eficiente – cada letra ou
sinal de pontuação é representado por um padrão de um a seis pontos numa matriz de três filas e duas colunas – e acrescentou abreviaturas para palavras vulgarmente usadas
como «conhecimento», «pessoas» ou «Senhor.» Munidos dum método fiável de comunicação escrita pela primeira vez na história, as pessoas cegas tiveram uma melhoria
significativa no seu status social, e Louis Braille foi reconhecido como uma espécie de libertador e salvador espiritual. Com a sua «coragem sobre-humana», Hellen Keller
escreveu, Braille construiu uma «firme escada para milhões de humanos limitados sensorialmente subirem da escuridão sem esperança para uma Consciência Maior.»
Naquela época, a cegueira era vista não só como a ausência de visão mas também como uma condição que criava uma espécie separada, mais inocente e maleável, não
completamente formada. Alguns estudiosos afirmavam que as pessoas cegas falavam um tipo diferente de linguagem, desconectada da experiência visual. No seu livro de 1933
«The Blind in School and Society», o psicólogo Thomas Cutsforth, que perdeu a visão aos 11 anos, avisou para o facto dos estudantes que eram aceites demasiado cedo no
mundo dos visuais, perder-se-iam numa «irrealidade verbal». Nalgumas escolas públicas, os professores evitavam palavras que fizessem referência a cor ou luz porque,
defendiam eles, os estudantes possivelmente esticariam os seus significados para outros sentidos. Estas teorias têm sido desacreditadas, e estudos mostram que as crianças
cegas, percebem a partir dos 4 anos a diferença de significado de palavras como «olhar», «tocar» e «ver». E no entanto Cutsforth não estava completamente enganado nos
seus argumentos de que a privação sensorial restrutura a mente. Nos anos 90, uma série de estudos de imagética cerebral revelaram que os córtices visuais dos cegos não
são de todo inúteis, como se assumiu anteriormente. Quando os indivíduos sujeitos a teste passavam os dedos por uma linha de Braille, era mostrada uma intensa atividade
nas partes do cérebro que habitualmente processam os estímulos visuais.
Estes estudos de imagética têm sido citados por vários educadores como prova de que o
Braille é essencial no desenvolvimento cognitivo das crianças cegas, já que o córtex visual ocupa mais de 20 porcento do cérebro. Dada a plasticidade deste, é difícil
manter o argumento de que um tipo de leitura – seja esta retida pelo ouvido, dedo ou retina – é melhor do que outra, pelo menos no que diz respeito à função cognitiva. A
arquitetura do cérebro não é fixa, e sem imagens para processar, o córtex visual pode reorganizar-se para novas funções. Um estudo de 2003 em Neurociência Natural,
descobriu que indivíduos cegos ultrapassaram regularmente os seus pares visuais em testes de memória verbal, sendo sugerido pelos autores que a performance superior foi
devida ao processamento extra que ocorreu nas regiões visuais dos seus cérebros.
Aprender a ler está tão intimamente ligado ao percurso normal de desenvolvimento
duma criança, que é fácil assumir que os nossos cérebros estão naturalmente preparados para a literacia impressa. Mas os humanos leem apenas há pouco menos de 6.000 anos
(e a literacia braille tem sido difundida há não mais do que século e meio). A atividade da leitura altera por si só a anatomia do cérebro. Num relatório publicado em
2009 no jornal Nature, o neurocientista Manuel Carreiras estudou antigos guerrilheiros iliterados da Colômbia que, após anos de combate, abandonaram as suas armas,
deixaram a selva e voltaram à civilização. Carreiras comparou 20 adultos que haviam completado recentemente um curso literado, com 22 que não o tinham começado. Nas
ressonâncias magnéticas que fizeram aos seus cérebros, os novos literados mostraram mais massa cinzenta no seu gyrus angular, uma área crucial ao processamento da
linguagem, e mais matéria branca no corpus callosum, que liga os dois hemisférios. Deficiências nestas regiões haviam sido previamente observadas em disléxicos, e o
estudo sugere que aqueles padrões cerebrais não foram a causa da sua iliteracia, como havia sido questionado, mas sim o resultado.
Não há dúvida que a literacia
muda o circuito cerebral, mas como é que esta reorganização afeta a nossa capacidade de linguagem ainda é tema de debate. No movimento que ocorre da linguagem escrita
para a oral, as maiores consequências para as pessoas cegas podem não ser cognitivas mas sim culturais – uma perda muito mais difícil de evitar. Num dos poucos estudos
sobre a prosa das pessoas cegas, Doug Brent, professor de comunicação na Universidade de Calgary, e a sua mulher, Diana Brent, professora de jovens com deficiências
visuais, analisaram histórias de estudantes que não usavam Braille mas sim um teclado normal, fazendo a edição de texto através dum sintetizador de voz. Um estudante de
16 anos escreveu uma história de ficção sobre uma personagem, Mark, que fabrica «bombas de sono».
«Ele olhou para a jan ela da casa que era sua a jan ela o seu pai
estava a andar à volta com a máscara ele tirou-a para fora ele abriu a jan ela e caiu na su cama mark tirou duas bombas e atirou-as pela jan ela isto acordou o pai que se
lêvantou antes que pudesse agarrar a máscara e eispludiu e voltou a dormir.»
Ao descrever esta história e outras semelhantes, o casal evocou o estudioso Walter
Ong, que defendia que os membros de sociedades literadas pensam de maneira diferente das sociedades orais. O ato de escrever, Ong dizia – a capacidade de revisitar as
nossas ideias e, no processo, refiná-las – modifica a forma do pensamento. Os Brents caracterizaram a escrita de muitos áudio-leitores como desorganizada, como se «todas
as suas ideias fossem amontoadas num recipiente, agitadas e atiradas aleatoriamente para uma folha de papel, como um dado para uma mesa.» Os começos e fins das frases são
arbitrários, um pensamento emerge a meio de outro com uma espécie de energia sem fôlego. Os autores concluíram, «Simplesmente não parece refletir as qualidades da
sequência organizada de pensamentos complexos a que damos valor numa sociedade literada.»
A nossa definição de sociedade literada muda inevitavelmente à medida que
as nossas ferramentas de leitura e escrita evoluem, mas a breve história da literacia para cegos torna a perspetiva de mudança particularmente repleta de dificuldades.
Desde 1820, quando Louis Braille inventou o seu sistema de escrita – para que as pessoas cegas não voltassem a ser «desprezadas ou tratadas com paternalismo por aqueles
que veem,» como ele disse – sempre houve entre os cegos uma lado político e até uma dimensão moral no ato de aprender a ler. O Braille é visto por muitos como um marco de
independência, um sinal de que os indivíduos cegos se tinham afastado duma cultura oral, primitiva e isolada. No entanto nos últimos anos esta narrativa tem vindo a
alterar-se. Crianças em idade escolar dos países desenvolvidos, como os Estados Unidos e Inglaterra, pensa-se agora terem níveis inferiores de literacia Braille do que as
de países em desenvolvimento, como a Indonésia ou o Botswana, onde existem menos alternativas ao Braille. Tim Connell, o diretor administrativo duma firma de tecnologias
de assistência na Austrália, disse-me que ouviu este fenómeno ser descrito como «uma das vantagens de ser pobre.»
Os leitores de Braille não negam que a nova
tecnologia de leitura tem sido transformadora, mas o peso do Braille paira sobre a mitologia da cegueira, assumindo uma espécie de status talismânico. Aqueles que têm
visão residual e tentam ler textos impressos – muito devagar, ou segurando a página a poucos centímetros da cara – são geralmente mal aceites pela National Federation of
the Blind, que se considera líder no que diz respeito ao movimento de direitos civis para os cegos. O seu presidente, Marc Laurer, um leitor voraz, compara Louis Braille
a Abraham Lincoln. Na convenção anual da federação, realizada em Detroit Marriott em julho passado, ouvi o mantra «Ouvir não é literacia» repetido por toda a parte, desde
painéis sobre a crise do Braille até conversas entre raparigas de liceu. Histórias de terror circulavam pela convenção, sobre crianças que não sabiam o que é um parágrafo
ou porque usamos letras maiúsculas ou ainda que «Happily ever after» (e viveram felizes para sempre) é composto por três palavras separadas.
Assumir a sua
iliteracia parece ser um rito de passagem. Um vice presidente da federação, Frederic Schroeder, foi comissário da Administração dos Serviços de Reabilitação durante o
mandato do Presidente Clinton, e recorre primeiramente às tecnologias áudio. Mostrou-se abertamente arrependido acerca da sua falta de capacidade de leitura. «Tenho agora
mais de 50 anos, e foi apenas há dois meses que percebi que ‘discordar’ (dissent) é diferente de ‘descer’ (descent),» disse-me. «Na prática sou iliterado. Dizem-me ‘Não,
não és de todo.’ Sim, sou. Tenho pena disso, mas não tenho vergonha de admiti-lo.»
Enquanto pessoas como Laura Sloate ou o governador de Nova Iorque,
David A. Paterson, que também lê através de áudio, conseguem ser bem-sucedidas sem a ajuda do Braille, o seu sucesso requere recursos que muitos não conseguem ter. Como Sloate,
Paterson dita os seus memorandos, e a sua equipa seleciona artigos pertinentes para ele e leem-lhos para o seu atendedor de chamadas todas as manhãs. (Ele chama a si
próprio «sobre assimilado» e contou-me que em criança foi «tão integrado que psicologicamente recebeu a mensagem que não era realmente suposto ser cego.») Entre pessoas
com menos recursos, os leitores de Braille tendem a formar a elite cega, em parte porque é mais plausível uma pessoa cega encontrar trabalho de caráter intelectual do que
manual. Um estudo de 1996 mostrou que numa amostra de adultos com incapacidades visuais, aqueles que aprenderam Braille em criança, tinham duas vezes mais
hipóteses de encontrar trabalho do que aqueles que não tinham aprendido. Durante a convenção, esta estatística foi frequentemente citada com orgulho, tanto que aqueles
que não sabiam Braille sentiram-se muitas vezes como estranhos. «Existe sem dúvida uma pressão dos pares da velha guarda,» disse-me James Brown, de 35 anos, que só lê
através dos programas de síntese de voz. «Se pudéssemos viver apenas no nosso pequeno mundo do Braille seria perfeito,» acrescentou. «Mas vivemos num mundo visual.»
Quando as pessoas surdas começaram a utilizar aparelhos auditivos no final dos anos 80, muitos na comunidade surda sentiram-se traídos. A nova tecnologia levava as
pessoas a pensar na deficiência duma nova perspetiva – como identidade e cultura. A tecnologia alterou a forma de muitas incapacidades, levantando alguns fardos mas ao
mesmo tempo complicando a nossa noção do que é fisicamente natural, já que podemos ir aperfeiçoando os nossos corpos até ficarem «reparados». Arielle Silverman, uma
estudante na convenção que é cega desde nascença, disse-me que se pudesse escolher ver, não sabe se o faria. Recentemente adquiriu uma máquina de ler de bolso, que tira
fotografias aos textos e depois os lê em voz alta, e afirma que encara a visão como isso «apenas outra peça de tecnologia.»
A história moderna das pessoas cegas é,
em grande parte, a história da leitura, do ponto de vista da incapacidade – na medida em que se é visto como ignorante ou civilizado, incapaz ou independente – é
determinada largamente pelo acesso à palavra impressa. Durante 150 anos, os livros em Braille eram projetados para funcionar tanto quanto possível como os livros
impressos. Mas agora os computadores acabaram com os limites da forma, porque uma vez digitalizada, a informação pode ser convertida para formato sonoro ou tátil. Para
quem vê, a transição de texto impresso para digital foi relativamente subtil, mas para muitos cegos a mudança para voz sintetizada não foi bem-vinda. No debate sobre o
que foi perdido, vários membros da federação recitaram-me a expressão clássica «Scripta manent, verba volant: O que está escrito permanece, o que é dito desvanece-se no
ar.»
FIM
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Rachel Aviv is a Rosalynn Carter fellow for
mental-health journalism with the Carter Center and writes frequently on
education for The Times."Listening to Braille" by Rachel Aviv
Tradução: Marta Azenha para
a Revista "Ponto e Som" n.º 155
Fonte: The New York Times, 30 Dez, 2009
Dez. 2012
Publicado por
MJA
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