O companheiro continuou com a cabeça levantada sempre no mesmo sentido e exclamou,
batendo com a bengala branca no alcatrão:
— O gajo prometeu que vinha, Tóino?
— Sei lá. Em casa não está ele. Só se foi prá
cidade.
Ouviram o buzinar dum automóvel e desviaram-se para a berma da estrada. Adiante
deles, uma cobra pardacenta lançou-se ao caminho precipitadamente. António Grácio apertou
o braço do companheiro e estacaram os dois.
— O que foi, Tóino?
O automóvel passou por eles como uma seta,
carrosseria a rebrilhar e os vidros a escaldarem, chispando faúlhas de sol.
A cobra deu um salto e desviou-se para a
esquerda, mas o carro fez uma curva propositada
e passou-Ihe por cima.
— O que foi?, insistiu o outro.
— Foi uma cobra. O automóvel apanhou-a.
Deram mais alguns passos e António mandou parar o companheiro.
No meio da estrada, a cobra contorcia-se com o
corpo dividido em dois bocados. A parte da
cauda colada ao alcatrão pelo lado em que partiu, enquanto o resto do corpo se
sacudia no meio duma mancha de sangue e de escamas.
António Grácio pôs-se a olhar a cabeça ponteaguda e reparou nos olhos vivos e
na língua que tremia, toda estendida para o ar. Depois recomeçaram a marcha.
— Era uma rateira. É pena que a pele não se possa aproveitar, Cigarra. É pena
porque inda era uma bicha bem boa.
— Tens a certeza que era uma rateira? As rateiras não andam por sítios
destes, Tóino.
— Está bem, mas elas agora não têm sítio certo. É a época do cio... Sei isso
porque já andei a trabalhar nos poços do Gadanha. No verão, as cobras de água
escondiam-se nos feijoais e andavam por todo o lado à procura de macho. Uma vez
vi uma cobra e um cobrão enrolados um no outro. Coisa de meter medo, chiça. Os
bichos fincavam-se no rabo, todos espetados no ar como duas estacas enroscadas. Faziam
um barulho de mil diabos a assoprar, buff, buff...
— Dantes também o meu velhote costumava
ir às cobras. Só apanhava das grandes. Tínhamos um cão que se pelava por elas. O
meu velho só apanhava bichas do mato, porque as do rio não prestam. São
peixeiras e não têm banhas para se tirar unto.
Cigarra tossiu seco. Bateu com a bengala
em qualquer coisa. Agarrou-se mais ao braço
do companheiro e desviou-se um pouco.
— Que marco é, Tóino? Era um marco, não
era?
— É o marco nove. Inda não chegámos ao
quilómetro sete.
O marco nove: faltam só cem metros para
o quilómetro 7. São só cem metros. A falar
franco, não há razão para desanimar. Depois
vem o quilómetro 6 e dali ao 5 é um salto.
Cigarra reatou a conversa:
— Ao pé da casa do meu velho, havia cobras
a dar com um pau. A gente vivia numa casa
muito antiga. Lembra-me bem que já mal tinha
telhado e a minha irmã mais miuda estava
sempre a gritar com medo das lagartixas e das osgas.
Passou a mão pela testa e continuou:
— Calor dos infernos. As bichas faziam o ninho na tulha velha, e quando os
filhos nasciam traziam-nos pró telhado. Sabia Isso porque às vezes, ouvia-os
cantar no meio das ervas do telhado, mesmo por cima de mim.
António Grácio ia
ouvindo tudo, de cabeça
baixa. Atirou para trás o chapéu ruço com a fita manchada de suor, e enxugou a testa
sulcada de rugas negras pela transpiração. Tinha a barba amarela e rala e a cara magra borrifada
de sardas.
— Ouve lá uma coisa, Tóino.
— Diz, exclamou o Grácio ajustando outra vez o chapéu.
— Ouve lá uma coisa: inda
não contaste bem o que querias tratar com o teu compadre. Palavra que não fiquei
a perceber a mais pequena coisa da conversa.
António empurrou-o bruscamente.
— Pff. Larga-me o braço, catano. Está um calor de matar.
O companheiro retirou
a mão e passou a bandoleira para o outro lado, porque a viola lhe estava a
magoar as costas.
Dum lado e doutro da estrada, terra vermelha cortada a prumo,
rasgada aqui e ali por
piteiras anavalhadas e cobertas de pó.
Cigarra parou um momento, firmou-se melhor na bengala
e perguntou:
— Já se vêem as árvores?
— Quais árvores, qual raio. Inda agora passámos o quilómetro sete.
— Não achas que a gente podia ir beber um
copo quando chegasse ao Retiro, Tóino?
— Quero lá saber disso. Agora o que é
preciso é chegar à cidade. O resto logo se vê.
— Mas a gente tem que passar pelo Retiro
antes de lá chegar, tornou Cigarra.
Cruzou-se com eles um camião enorme. Vinha a chiar debaixo dum carregamento de madeira e deixou os sinais dos pneus impressos
no alcatrão amolecido.
António Grácio reparou no chofer que vinha em mangas de
camisa e sem ajudante.
Nestes casos, os motoristas nunca negam uma boleia. Mas
para dois? Quem é que vai dar boleia a dois ao mesmo tempo?
Então
António Grácio disse:
— Porca de vida.
E despiu o casaco para pô-lo no
ombro, deixando à vista a camisa de riscado, toda remendada e cheia de nódoas de
vinho, com dois lagos de suor nos sovacos.
— Se calhar o gajo enganou-se no
dia, exclamou o Cigarra. Quando é que falaste com ele?
— Antes de ontem, mas
isso não põe dúvida. Sabes, talvez ele fosse à cidade e inda não tivesse tempo
de voltar. Talvez a gente inda o encontre.
A estrada fazia agora uma curva.
Havia um poste de sinalização e um reclamo pintado no muro.
Cigarra cuspiu e a
saliva saiu-lhe compacta e muito branca:
— Sempre paramos
um bocadinho no Retiro?
Grácio deu um pontapé numa lata e, sentiu um ardor percorrer-lhe o pé ao roçar com ele pela
estrada.
— Espera aí, disse de súbito.
O outro obedeceu pacientemente, sem um movimento.
António Grácio atravessou a estrada e
subiu uns metros de rampa para cortar um bocado de piteira com a navalha
sevilhana.
Depois voltou para junto do companheiro, sentou-se no chão e
descalçou a bota. A sola
tinha um grande buraco, por onde o pé rastejava na estrada.
Calculou a medida do buraco e tapou-o com
o bocado da piteira. A seguir, levantou-se dizendo:
— Arre gaita, que já tinha o pé a arder. O
chão está que nem a chapa dum forno.
Sacudiu o traseiro porque o alcatrão quente
lhe estava a aleijar as nádegas e bateu com o
pé no chão várias vezes para ajustar a bota ao
pé. Disse:
— Pronto, toca a andar. Com mil diabos, que
está um sol de assar rolas.
— Tóino, não te parece que a gente podia ir
beber um copo ao Retiro? Tenho uma dor nas
cruzes que não há meio de me deixar.
— Ora, isso não é nada. É do calor.
— É
a úlcera, Tóino. Inda é a úlcera a morder-me, digo-to eu. Estou à rasca de todo.
Caminharam um bocado em silêncio até que
António Grácio cortou:
— Já estamos quase.
— Já se vêem as árvores? Já,
Tóino?
Junto de um pau de fio, um piquete de trabalhadores consertava a
estrada. Os homens tiravam constantemente o chapéu de aba larga que
lhes deixava um vinco vermelho na testa e levavam o cântaro de água à boca.
Grácio tomou-lhe o braço
e alargaram ambos o passo. As picaretas, enterrando-se na crusta de alcatrão,
tinham um som oco. Cigarra pendurou a bengala no braço e deixou-se guiar pelo
companheiro.
— Tens que saltar agora. Neste sítio há uns
buracos, cuidado.
Cigarra endireitou-se mais e foi saltando as covas, tateando
com os pés o terreno em reparações.
Lá adiante, havia uma encruzilhada, com
um moinho de tirar água abandonado. A seguir
começavam as árvores com cintas brancas pintadas nos troncos grossos, dum lado e doutro
da estrada.
António Grácio puxou da onça enrolada
numa folha de couve para não deixar secar o tabaco e fez um cigarro.
— Já estamos a chegar às árvores. Vai uma cigarrada?
O outro fez que não
com a cabeça e continuaram a passo largo, estrada fora.
— Mas inda não
chegámos ao moinho, pois não?
— Estamos já na encruzilhada, respondeu
Grácio.
À esquerda, desembocava um carreiro marginado de balseiros.
António enfiou as maos nos bolsos
e sacudiu
o corpo para ajeitar as calças.
— É que isto já não é bem calor. Ou me
engano muito ou este ar é de trovoada.
Depois enterrou a cabeça nos ombros, olhos
fitos nas duas sombras atarracadas que rastejavam no alcatrão e na bengala do companheiro
que marcava o compasso da marcha.
A pouco e pouco foram abrandando o passo.
Grácio bocejou alto e Cigarra passou a caixa
das esmolas para a outra mão, abanando-se
com o lenço. Sabia que tinham chegado ao troço arborizado da estrada por causa da frescura
calma que agora sentia e do ruído dos pés pisando as folhas secas.
— Tóino, disse ele. Já vês a cidade?
— Inda não.
— Se me apanho na cidade, caramba. Mas já passámos os choupos, pois já?
— Aguenta-te, homem. O pior já lá vai. Agora temos sombra.
Mas o calor ainda não
desaparecera de
todo. E as árvores para ali estavam paradas à espera duma aragem que não vinha.
De vez
em quando desprendia-se uma folha, só uma, e
vinha lentamente, lentamente, espalmar-se na na
estrada.
Lá ao fundo, avistava-se já o muro branco
do pontão das Cruzes.
— Eh pá.
E um homem saltou-lhes ao caminho.
Cigarra estacou e levantou a cabeça como
um cão a pressentir estranho.
O
homem caminhou para eles de braços
abertos. Era alto e esguio como um pinheiro novo e trazia atado ao pescoço um
lenço encardido de suor.
— Com mil diabos, disse a rir. Estava a ver
que nunca mais vinham. Foram lá a casa?
António Grácio adiantou o passo e disse, de
mau humor:
— Por onde raio tens tu andado? Estamos
fartos de caminhar por tua causa.
O
homem apertou-Ihe a mão — como vão
esses ossos, compadre — e quando se dirigia ao Cigarra, António Grácio apresentou:
— É o meu compadre Miguel.
Cigarra
fez que sim com a cabeça e nada
disse. António agarrou o compadre pelo
braço:
— A gente não tinha combinado encontrar-se em tua casa, Miguel?
— Está certo. Mas tive que vir à cidade e
não pude chegar a tempo. Depois disse cá pra
comigo, bem eles devem vir por aí, e fiquei à
espera, ao fresco. Está um calor de rachar,
poça.
Andaram uns metros e sentaram-se os três à sombra dum plátano pardo.
Cigarra encostou-se ao tronco liso; pôs a
viola no chão com cuidado, juntamente com a
caixa das esmolas e a bengala.
Miguel afastou as pernas enormes, tirou o
lenço que trazia ao pescoço e pôs-se a limpar
a testa e o peito cabeludo.
— Vocês demoraram-se que eu sei lá.
— Nem por isso, compadre.
— Houve algum azar?
— Não. A gente foi lá a casa e a tua patroa disse que tinhas
saído de manhã.
Miguel não tirou os olhos de Cigarra enquanto falavam. Reparou
na expressão parada do rosto bexigoso, nos óculos de mica que lhe tapavam as
vistas e disse-lhe:
— Então, amigo? A modos que está cansado, ain?
O outro
adivinhou que era com ele.
— Tenho umas dores nas cruzes levadas do diabo. Não
sei que raio é isto mas foi desde que fiz a operação. Não há meio de me
largarem.
António Grácio chupou a beata apagada, passou-a com a língua para o
canto da boca e exclamou:
— Bem, compadre. Já pensaste no caso?
Miguel correu mais uma vez os olhos pela figura de Cigarra e pôs-se a mordiscar uma
folha caída.
—
Não sei se será negócio, disse pensativamente. Sabes, cem mil réis é muito, Tóino.
— Muito? Eu cegue, compadre. Eu
cegue se
isto pra mim é negócio. Olha, que não falei nisto a mais ninguém. Primeiro os
amigos.
— Mais a mais, ele diz que sofre das Cruzes...
— Sofre mas é uma gaita.
Cigarra interveio em voz lamurienta:
— Não digas isso, Tóino.
— Ele sabe ler pelos buraquinhos?, disse Miguel para o Compadre, sem tirar os
olhos do Cigarra.
— Ele sabe quê?
— Sim, se ele conhece os buraquinhos.
— Quais buraquinhos?, tornou
António Grácio.
— Os buracos do papel, Tóino. Você sabe ler
com os dedos, camarada?
— Não. Não é preciso, respondeu o Cigarra. Eu só toco
as modas. Este aqui é que acompanha a cantar.
O outro acabou de mastigar a folha seca e
cuspiu.
— Quanto dinheiro têm voces na caixa, compadre?
— Isso é à parte, Miguel. O que é que
a gente
tinha falado?
— Em todo o caso, isso agora não interessa.
— Não interessa, compadre? O prometido é
devido e eu cá só tenho um palavra.
Por cima deles soou um bater de asas.
Cigarra ergueu a cabeça a ouvir
o piar rouco e perguntou:
— É uma poupa. É, Tóino?
O companheiro espreitou o
céu por entre o copado das árvores, acompanhando o vôo do pássaro.
— Parece
que sim.
— Realmente, o piar é de poupa, mas plo
bater das asas parece uma narceja. As narcejas
só andam onde há água.
Cigarra cuspiu com desprezo e continuou:
— É um pássaro porco, a poupa. Estou mesmo
seco de todo, carago. Só me apetecia meter-me
na água até às orelhas. Mas quando chegarmos
ao Retiro hei-de botar um balde de água plo
peito.
— Se não fosse a Delaida não te dava eu uma teta destas, disse o Grácio. É coisa de
ocasião.
Coisa de ocasião, compadre.
— Tóino, interveio o Cigarra. Vais dar o salto?
Não estás zangado comigo, pois não, Tóino?
— A rapariga está a servir, estás a perceber,
compadre?, continuou António Grácio sem se
importar. Já cá tenho a vida destinada por
outro lado. Por isso acho que é de aproveitares
a altura.
— Bom, está bem... Sim, tudo isso está bem,
mas é muito dinheiro, compadre. E é preciso
ver que é um homem doente.
— Ora. Isso é do calor. Isso só dá quando está
calor. Não é, Cigarra?
— Sim, é isso. Só quando está calor, respondeu o outro
baixinho.
Grácio ficou-se à espera, de olhos postos no compadre que coçava a
cabeça.
— Quanto têm vocês na caixa?, disse Miguel
por fim.
— Não sei, compadre. Mas não deve ser grande coisa. Deixa ver a caixa, Cigarra. Bem vês,
só na cidade é que um homem se safa.
Abriram a caixa e despejaram-na no chão.
Miguel estendeu o pescoço, atento. Oito, oito
mil e cem, e duzentos, e oitocentos, nove.
Cigarra mantinha-se de ouvido apurado
com a cabeça tombada sobre O peito. Nove,
nove e duzentos, e duzentos e duzentos... dez...
— Dez
mil e seiscentos. Bem, lá por causa disso não é que se vai partir o negócio, Miguel.
Dez e seiscentos ainda é dinheiro. Olha que
isto é mais por um jeito que por outra coisa.
Sabes quanto é que o Timóteo deu pelo Vesgo, sabes? Mais de trezentos, vê tu.
— Mas qual Vesgo? O da Cova Funda?
— Não. O Pratas, esclareceu António Grácio.
Um que toca bandolim.
— Com o coto do braço? Já estou a dar razão.
Mora também lá no sítio, não mora? Já sei, já
sei quem é.
— Pois o Timóteo que te conte. Ele que te
diga, compadre.
O outro olhou novamente o Cigarra de alto
a baixo e disse:
— Uma nota é muito dinheiro pra mim, isso é
que é. Eu cá sei como a vida me tem corrido. Olha,
inda ontem me morreu uma galinha poedeira.
— Faz o que quiseres, Miguel. Mas olha que
depois já não há remédio.
— E eu é que pago a roupa dele, Tóino?
— Qual roupa, compadre. Tu só lhe dás de
comer e os ganhos são a meias.
Miguel fungou e assoou-se à palma da mão
que limpou às calças.
— E o Instrumento? Quem é que paga os
arranjos do Instrumento?
— Isso é lá com ele, percebes? Mesmo inda
há umas cordas de reserva. Não há, Cigarra?
— Só tenho um bordão de dó e creio que outro
de sol maior.
A tarde começava a refrescar e um vento brando roçava pela
ramaria.
Miguel coçou mais uma vez a cabeça e pôs-se a fazer contas pelos
dedos. Cigarra engoliu em seco:
— Estou com uma sede danada.
E Miguel perguntou:
— Têm folhetos pra vender?
O outro tirou um pacote amarrado com um cordel e disse:
— Inda há aqui uma dúzia de cantos
ao fado e umas coplas da revista Salada de Alface.
— E daquela música
do Crime das Olivais não há nada?
— Não me lembro dessa música, disse
Grácio de si para si.
Cigarra interrompeu:
— Uma do pai que matou o filho, não te
lembras?
— Ah, já sei.
E pôs-se a cantarolar:
É uma horrível tragédia
que vos passo a contar
dum pai que sem escruplo algum...
Mas isto não se chama com o nome que vocemecê disse, acrescentou Cigarra. O
título da coisa era Tragédia Desumana.
Grácio continuava em surdina:
...dum pai que sem escruplo algum
seu filhinho foi matar...
— É muito antigo, disse quando acabou de cantar.
Cigarra repetiu a meia voz:
— É muito antigo.
— Não interessa. Só sei que é muito giro. Agora já não há cantos como antigamente.
Levantou-se sacudindo as calças. Encostou-se
à árvore e ficou-se um bocado em silêncio.
— Posso pagar por duas vezes?, cortou por
fim, olhando o compadre de frente. Em duas
metades?
António Grácio levantou-se também, com
um gesto de contrariedade.
— Aí está uma coisa que eu não te posso fazer, vês
tu? Bem sabes que se não fosse a necessidade não apanhavas uma pechincha destas.
— Ao menos tira um bocadinho à conta, Tóino.
— Palavra que não posso,
compadre.
— Ora não podes. Não podes porque não queres, aí está.
Cigarra
levantou-se e pôs a viola a tiracolo. Com a mão direita segurava a bengala e com a
esquerda a caixa das esmolas.
— Vamos lá, deixa-te de lérias. Quanto é
que abates, compadre?
— Não posso abater vintém, Miguel. Não
leves a mal, mas não posso.
— Qual quê. Mais tostão, menos tostão...
— Não posso, não. Nestas coisas sou assim
mesmo. Sabes bem que se eu pudesse fazia um
jeito.
Os dois compadres entraram no alcatroado
e começaram a andar lentamente, esperando
cada um deles pelas palavras do outro. Cigarra
seguiu-os um pouco atrás, a tactear o caminho.
A certa altura pararam ambos e a bengala
de Cigarra chocou-se com eles. Fez alto.
— Então não fazes um desconto? Vê lá se
queres armar em unhas-de-fome, compadre.
Nem parece teu.
— Já te disse, homem. Seja cego se eu posso.
Pla saúde da Delaida, já vês.
— A falar franco, não percebo nada desta arte.
Isto às vezes nem dá prá bucha...
Começaram a subir a estrada, afastando-se da
cidade. Cigarra tocou no ombro de Grácio:
— Então já não vamos ao Retiro?
Mas António Grácio agarrou Miguel pelo
braço e chegou a cara ao pé da dele:
— Só te digo que inda hás-de torcer a orelha
mas há-de ser tarde. Lá pla comida não te importes. A comida é o menos e ele é um pisco
a
comer. Mesmo não pode por causa da úlcera.
— Vês, Tóino? Aí está. É preciso ver que é
um homem doente. E se ele me cai à cama?
Vamos, responde. Se ele me cai à cama quem
é que me safa?
Cigarra acompanhava-os, um pouco afastado
deles e em silêncio. Sentiu uma pontada violenta nas costas e franziu a testa.
— Ele agora já está bom. Fizeram-lhe uma
operação a úlcera, explicou o Grácio. É por
isso que o bucho dele está mais pequeno. Tiveram que lhe cortar um bocado do
tamanho dum dedo, salvo seja.
— Mas ele diz que sofre das cruzes, não vês?
— Sofre nada. Só se é às vezes com o calor,
é natural. De resto não tem mais nada. Tens,
Cigarra? Diz, homem, fala franco.
— Não, não tenho nada. Só às vezes com o
calor é que fico um bocado atrapalhado. Mas passa depressa.
Pararam quando chegaram
à Encruzilhada, ao pé duma árvore arrancada pela raiz que se estendia à beira da valeta.
António Grácio ergueu a cabeça e olhou para
cima, para a cara do compadre, e a seguir para o
dedo do pé que espreitava na biqueira da bota.
Os trabalhadores tinham despegado
e vinham estrada abaixo, de picareta ao ombro, todos sujos de terra e alcatrão.
Alguns levavam a mão ao chapéu e davam as saudações:
— Boas tardes aí.
Grácio respondia seguindo-os com os olhos,
distraidamente:
— Boas.
Cigarra tateou a árvore tombada, primeiro
com a bengala e seguidamente com a mão, e sentou-se-lhe em cima. Ficou calado,
engulindo
em seco, a cuspinhar de vez em quando.
— Em que ficamos, compadre?
Miguel deu um estalo com a
língua, meteu a mão no bolso interior do colete e tirou um maço de papéis
ensebados. Procurou no meio deles uma nota de cem escudos e estendeu-a ao outro.
— Que se lixe. É como diz o outro, quem não arriscou não perdeu nem ganhou.
António Grácio dobrou a nota e escondeu-a na parte de dentro do chapéu, na fita
de carneira.
— Pois olha que quem não ganhou fui eu. Podes
ficar certo dessa.
E deu-lhe uma palmada nas costas.
Depois entregou-lhe o dinheiro das esmolas
e exclamou:
— Tudo bem? Vai um copo pra fechar, não?
—
Não pode ser, Tóino. Tenho a mulher à
espera desde manhã.
Cigarra levantou-se de repente:
— Podíamos dar uma saltada ao Retiro
— disse.
Íamos num pé e vínhamos noutro.
— Não pode ser, amigo, disse o Miguel. Está-se a fazer tarde pra mim.
— Fica prá outra vez, cortou o Grácio.
E veio junto do Cigarra:
— Toca pá. A gente não ficamos com razões
um do outro, pois não?
Cigarra sorriu. Fez um arabesco com a bengala e a mão tremeu-lhe.
António Grácio abraçou-o com força e afiançou-lhe ao ouvido:
— É um gajo
unhaca, este meu compadre. Vais ver.
Cigarra tentou dizer qualquer coisa mas a
voz faltou-lhe e só conseguiu agarrar o companheiro e abraçá-lo com força, com
tanta força
que a bengala tombou na estrada.
O outro deu-lhe mais uma palmada nas costas e deixou-o:
— Boa sorte e até à próxima.
Cigarra ficou a ouvi-lo despedir-se do compadre,
meio tonto. Ouviu-o depois afastar-se
estrada abaixo, dizendo até à próxima, até à próxima, e abaixou-se à procura da bengala.
Miguel enfiou as mãos nos bolsos, caminhou
uns metros e voltou-se para trás.
Ao ver o companheiro curvado a tatear a
estrada com as mãos, perguntou:
— Que é que houve, amigo?
Cigarra ergueu-se:
— A bengala.
Miguel veio até ele e entregou-lha. Depois
tomou-lhe o braço e meteram-se ao caminho
sem mais palavras.
A estrada empinava um pouco. Um automóvel buzinou desenfreadamente e passou por
eles como um raio.
— Não me agarre assim, amigo. Não é preciso agarrar com tanta força.
Miguel ficou um pouco confundido:
— Aleijei? Então desculpe, mas é que não
estou prático nisto.
De vez em quando, o piar duma ave cravando-se na tarde abafada.
A subida parecia não
ter fim. Era uma rampa suave mas sem uma
pausa onde cobrar alento.
Cigarra dobrou-se todo sobre a bengala e
respirou alto, com esforço. Miguel deu um salto
e agarrou-o pelos ombros.
— Dói-lhe nas cruzes?
O companheiro ficou-se na mesma posição,
sacudindo-se a cada pontada mais aguda.
— Talvez seja melhor sentar-se um poucochinho, amigo. Sente-se aqui nesta pedra, assim,
vá... Vai ver que passa.
Cigarra deixou tombar o chapéu esburacado.
Estendeu a mão para o apanhar mas uma dor
mais forte fê-lo endireitar-se de repente, levando as mãos aos flancos.
Lentamente deixou tombar a cabeça e escondeu-a entre as mãos. Miguel baixou-se tentando
ver-lhe as feições, girando de um lado para o
outro, sem saber o que fazer.
Por fim, o companheiro ergueu a cabeça e limpou
a saliva que escorria dos cantos da boca, com a manga do casaco.
— Já passou, não?
Cigarra estendeu o braço, Miguel apressou-se a apanhar-lhe o chapéu.
— Já está melhor, amigo?
Cigarra pôs o chapéu na cabeça e levantou-se, firmando-se na bengala. Miguel correu a
ampará-lo.
— Fino?, insistiu ele. Deve ser do calor,
amigo. Talvez isso passasse se bebesse qualquer coisa.
— Não, disse o Cigarra. Não me apetece.
Parou um pouco, levou as mãos ao peito e
contraiu as faces. Depois suspirou fundo e acrescentou a custo:
— Vamos indo. Você tem a patroa à espera.
FIM
3 Caminheiros - filme de João Guerra, 2006
— curta-metragem, 14 min.
(trailer)
'Os Caminheiros'
conto de José Cardoso Pires
-texto integral-
in «Os Caminheiros e outros contos»
Edição do Centro Bibliográfico
capa de Júlio Pomar
Lisboa, 1949