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Os Cegos - quadro de Karl Hofer, 1948
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Les Aveugles | moralidade de Michel Ghelderode,
inspirada pelo
quadro de Brueghel o Velho,
que constitui uma reflexão sobre a cegueira da alma humana: Três cegos vão em peregrinação a Roma.
Exaustos pela longa marcha, imaginam-se já perto da cidade santa, onde
esperam recuperar milagrosamente a visão. Lamprido - um indivíduo só com um olho - que vive no cimo de uma árvore,
diz-lhes que eles continuam em Brabant, onde há semanas os vê passar e repassar e que os sinos tocando são os de
Bruxelas. Oferece-se para guiá-los mas os cegos
recusam acreditar nele e retomam o caminho, acabando por morrer, vítimas da sua
própria cegueira.
Personagens: Três cegos de nascença, peregrinos a caminho de
Roma: ♦ De Witte
♦ De Strop ♦ Den Os
e ♦ Lamprido, o caolho, rei do país dos fossos
Local: Uma estrada em Brabante, perto
de uma grande cidade.
Acto Único
Soa um canto. Peregrinos vêm pela estrada. É
bastante lento o canto, se bem
que entoado por homens de boa saúde. Os
peregrinos são cegos, que avançam
tacteando com um bastão e segurando um no outro
pela ponta do casaco. Eis o canto de marcha:
DE WITTE - (CANTANDO AS ÚLTIMAS PALAVRAS) Die
ista.... (FALANDO) e agora? por mim, eu paro! Se a nossa canção de peregrinos
agrada a Deus, não comove as pedras do caminho. Meus pés estão sangrando e tenho
a garganta seca que nem uma cratera.
DE STROP: É preciso parar. Quando um de nós
pára, os três devemos parar; e quando um canta devemos cantar; ou quando um anda
andamos os três... que destino!...
A
Parábola dos Cegos -
quadro de Pieter Bruegel, 1568
DEN OS: Que destino! Caminhar numa estrada de
que não enxergamos o fim, cantar uma lamentação num latim que não entendemos!
Companheiros de miséria, proponho gemer os três com todas as nossas forças.
talvez nos ouça alguém, lá pelas nuvens ou na terra. Vamos gemer! Miserere!
OS TRÊS - Miserere! Miserere! (DESAFINADOS)
A VOZ – Miserere! (AO LONGE)
DE WITTE - Vocês ouviram? (SILENCIA
OUVINDO)....Mais nada.
DE STROP - Parecia que estava ouvindo... É a
fome e a sede, a sede principalmente que nos perturba os sentidos.
DEN OS - Eu ouvi! Sabem o que é? O eco! Vou
experimentar: ou é o diabo que fez troça de nós e não responderá, ou então é o eco, que não mente e responde, porque vou provocá-lo, religiosamente.
DE WITTE - Sim, cante a missa para ele.
DEN OS - (CANTA) Kyyyyyyyyyyyyyyy....
OS TRÊS - Vamos escutar.
A VOZ - (AO LONGE CONCLUINDO O CANTOCHÃO) Kyyyyyrie Eleison...
DE WITTE - Está se vendo que não é coisa do
diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa o eco de um convento!
DEN OS - AH! Se esse eco nos quisesse dar uma
esmola, ou pelo menos nos arranjar um canecão de cerveja escura!
DE STROP - Não percam a esperança! Nosso
sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar, eu sei. Querem ouvir a boa
notícia? É que nisso eu enxergo melhor que vocês.
DE WITTE - Mentiroso duas vezes! Você nasceu tão
cego como nós.
DEN OS - Mentiroso três vezes! Você é o mais
cego de nós três.
DE STROP - Amigos da minha dor, fiquem sabendo:
já não estamos longe de Roma!
OS DOIS - OH! OH! OH! OH!
DE STROP - Não sentiram que o sol ficou mais
quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam: ainda agora ouvimos um eco, e um
eco que canta missa... Na Flandres, pra falar a verdade, não existe eco: tudo é
chato, tudo é plano...Nas montanhas, sim, existem ecos. Estamos nas montanhas! E
esse pintor que nos pintou faz pouco, e que esteve na Itália, não disse que
devíamos atravessar as montanhas? Como se chamava o pintor, aquele esquisitão
que nos deu um florim?
DE WITTE - Acho que era um tal de Brueghel....
Ele disse que passando as montanhas, já não estávamos longe de Roma.
DEN OS - Disse também que podíamos andar sem
medo nem receio que de qualquer jeito acabávamos chegando, porque todos os
caminhos vão dar a Roma.
DE STROP - Aleluia! Vamos ver a estátua de São
Pedro!
DEN OS - Aleluia! Vamos ver o Papa em pessoa, o
Papa que vai nos fazer um milagre: Dar-nos de novo os nossos olhos!
DE WITTE - Aleluia! Vamos ver um montão de
maravilhas... Ou então não veremos nada! O certo é que Roma é a cidade mais
mirífica da cristandade, é que lá beberemos até não poder mais, comeremos à
farta, e dormiremos e dançaremos... Sei, de boa fonte, que esses Romanos são de
natural alegres e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos para a Flandres. Eu
me planto nos degraus da basílica, e acabo meus dias, ao sol.
DE STROP - Eh! mau paroquiano! Faremos o que o
santo Papa nos mandar fazer!
DEN OS - Quem sabe se ele não quer que a gente
dê uma chegadinha até Jerusalém?
DE WITTE - Ou quem sabe, depois de nos ter
olhado bastante, nos aconselhe a voltar para o nosso país?
DE STROP - Silêncio! Abram depressa os ouvidos!
(OUVE-SE UM CARRILHÃO LONGÍNQUO)
DEN OS - Agora sim! Sinos numa torre! Os sinos
de Roma!
DE WITTE - Você está doido! É um carrilhão! E
toca uma música que eu conheço, uma canção que em nossa terra se canta nos
mercados.
DE STROP - Vou dizer a vocês a verdade. É o
célebre carrilhão de Roma! Como o Papa soube que três peregrinos flamengos
estavam chegando, mandou tocar uma ária de Flandres em nossa honra. Vejam só!
OS TRÊS - (CANTANDO A ÁRIA COM O CARRILHÃO)
Lá...Lá...Lá... Bing... Bong... (GRITANDO) Tocai sinos benditos! Tocai para os
que vêm da Flandres! Aqui estamos! Viva Roma e suas mil igrejas!
DE STROP - Como dói ouvir, em terra estranha, os
cantos de nossa velha pátria!
DE WITTE - Até parece o carrilhão de Bruges,
onde nasci.
DEN OS - Ou melhor, o do altivo campanário de
Gand, minha nobre cidade.
DE STROP - É tal e qual o de Antuérpia, a
riquíssima, onde vi a luz do dia... (CHORAM OS TRÊS SEM NENHUMA HARMONIA)
A VOZ - (AO LONGE, RINDO ÀS GARGALHADAS) Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
DE WITTE - Escutem!
Estão rindo no horizonte! Que nação maravilhosa, esta Itália! Enquanto choramos,
os ecos riem para os anjos! Vamos rir desde já! (RIEM)
DE STROP - Este humor é que é admirável.
Contemplem estes altos cimos nevados, donde vamos descobrir as cúpulas e os
campanários da Cidade eterna.
DEN OS - Antes de mais nada, sintam estes
perfumes estranhos, as flores tem cheiro de incenso, garanto!
DE WITTE - E vejo num relógio de sol que já é
tempo da gente se pôr a caminho. Caminhemos e cantemos. Quem vai à frente? Eu!
Quero ser o primeiro a entrar na cidade mística.
DEN OS – Serei eu! Nisto vejo melhor que vocês!
DE STROP - Por que não eu, o menos cego dos
três?
DEN OS - Vamos!
DE WITTE - Seguremo-nos pelo casaco e batamos os
cajados em cadência. (CAMINHAM E CANTAM: PLENUS PULCHRIS CAMINIBUS / STUDEAT
ATQUE CANTIBUS / DIE ISTA)
A VOZ - ...DIE ISTA...
DE WITTE – Ué! O eco já não tem a mesma voz. Em
que ponto cardial está agindo?
DE STROP - Será que estamos voltando? Em vez de
ir para Roma?
DEN OS - Seria terrível. Acho bom interrogar o
eco. Se é que ele sabe latim, deve saber geografia; eu me encarrego disto.
(SOLENEMENTE) Senhor Eco, digne-se responder a três cegos que procuram seu
caminho. Onde está, Eco?
A VOZ DE LAMPRIDO - Numa árvore da qual descerei para
ser-lhes agradável. Sou uma voz que tem patas e chegarei
até vocês.
DE WITTE - Bem que eu pressentia, é um homem!
Tanto melhor, ele nos dará esmola. Vejo-o que vem chegando: é um grandalhão de
chapéu redondo.
DEN OS - É um pequeno de chapéu quadrado.
DE STROP - Calem-se! É um grande que ficou
pequeno, porque é corcunda, nem mais nem menos, e o chapéu dele não passa de um
boné cheio de medalhas!
LAMPRIDO - (ENTRANDO) Aqui estou, minha gente.
OS TRÊS - (TOMANDO ARES DE MENDIGOS PSALMODIANDO
EM FALSETE) Aqui está o bondoso cristão! Tende piedade de pobres ceguinhos,
grandes pecadores; piedade de calamitosos peregrinos, peregrinando neste vale de
lágrimas; tende piedade de nós!...
LAMPRIDO - Piedade tenho de cegos pecadores
peregrinando. (RI)
DEN OS - Porque se ri? (FURIOSO) Quem é você?
LAMPRIDO - Sou Dom Lamprido, rei do país dos
fossos, homem sábio que fica pendurado numa árvore em vez de caminhar tolamente
para uma Roma onde vocês jamais chegarão. Pedem esmola? Vou dar-lhes maçãs,
pêras, ameixas, pêssegos, mel, ovos de pato.
DE STROP - Nada disso! Queremos dinheiro!
LAMPRIDO - Não o terão, mas posso dar-lhes
conselhos e a minha ajuda que é certamente do que vocês precisam.
DE WITTE - Não precisamos nem de ajuda nem de
conselhos! Por mais cegos que sejamos, os três juntos enxergamos bem claro.
LAMPRIDO - Orgulhosos! Sabem vocês em que lugar
estão?
DE WITTE - Sabemos! Estamos nas altas montanhas,
no limiar da campanha romana!
LAMPRIDO - Pois sim! Então escutem!
DEN OS - Sim, sim... somos cegos, não surdos. É
o carrilhão de Roma!
LAMPRIDO - Inocentes! Estão no país dos fossos.
É preciso acreditarem em mim, porque sendo caolho, tenho a vantagem de ver com
um olho; mas um só olho basta. Há muitos cegos no país dos fossos. Onde sou rei,
eu, caolho clarividente.
OS TRÊS - (COM ARREBATAMENTO) Ii! Ii! é um aleijado!.... Ah! Ah!.....E diz que é clarividente! Ei! Ei! E acha que não
estamos perto de Roma!
DEN OS – Vai-te embora, Rei caolho! Não queremos
saber nada de ti! És um farsante e o teu país dos fossos não existe! Nossos longos
cajados têm olhos e nos descrevem os aspectos das campinas. Sai daqui ou nós te
batemos!
OS OUTROS 2 - Vamos dar nele, Sim!.... Arre!...
(OS TRÊS DÃO CAJADADAS EM TODAS AS DIRECÇÕES)
DE STROP - Quem me bate?
DEN OS - Assassino! Você está batendo em mim.
DE WITTE - Estão me dando pancadas!...Acudam!
LAMPRIDO - Ó trágico engano! Batem uns nos
outros e se desancam! Batam com vontade, meus ceguinhos! Mas... o quê? Pararam?
Sim, sejam pacíficos. Agora escutem! Vou fazer-lhes uma caridade.
OS TRÊS - (EM CORO) Tende piedade dos pobres
ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados.
LAMPRIDO - Nem um vintém, nem um tostão roído! O
hálito de vocês bem me diz que adoram a pinga. Ouçam-me: Vou, caridosamente,
desviá-los da desgraça iminente (SILÊNCIO. OS TRÊS ESCUTAM, BOQUIABERTOS) O sol
vai se pôr, as brumas sobem, violáceas... Há semanas que vos vejo passar e
repassar por estes caminhos que de maneira alguma levam a Roma.... Vocês não
deixaram o Brabante e os sinos que ouvem são os da torre de S. Nicolau, de
Bruxelas. Pela minha única vista, descubro daqui os muros da cidade, as torres
de Santa Gúdula e o famoso São Miguel guerreiro, todo dourado, em cima da flecha
da sua torre de pedra...
DEN OS - É feio caçoar de três miseráveis que
não enxergam!
DE WITTE - Está mentindo para nós. Não é
meio-dia. E já faz semanas que deixámos os países baixos!
DE STROP - Tome cuidado Lamprido! Você é um
malvado! Denunciaremos você ao Papa! Compadres, não será algum bandido de
estrada que vai cortar os nossos tornozelos? Senhor!...
LAMPRIDO - Pela última vez vos digo: estão no
país dos fossos e a estrada é toda cheia de pântanos e prados inundados. Um
passo em falso e desaparecerão! Dentro em pouco descerão as trevas. Vou tomá-los
pela mão e conduzi-los ao refúgio da abadia, onde passarão a noite. Eis uma
oportuna caridade, e a única que eu quero fazer...
DE WITTE - Acabemos com isto! A caminho!
Deixemos esse velhaco com seus disparates!
DE STROP - Embora cegos, temos dignidade! Acha
que vamos aceitar auxílio de um caolho? Havemos de entrar em Roma, esta noite
ainda!
LAMPRIDO - Pois vão! Entrem em Roma! Mas tenham
o cuidado de antes, recomendar suas almas e seus corpos à providência! Cem vezes
cegos aqueles que não querem acreditar no caolho (FICA ABORRECIDO) Todos os
caminhos levam à morte. (ZOMBANDO) É ainda uma vaidade entre todas, querer bem
ao próximo! Prossigam!
OS TRÊS - Caminhemos.
DE STROP - Adeus, caolho! E obrigado pela
esmola!
DEN OS - Adeus, rei dos fossos, rei das rãs e
dos batráquios!
DE WITTE - Adeus, eco asneirante! Trepa de novo à tua árvore e prega às corujas! Chegou a nossa vez, amigos. Pra diante! E
segurem o meu casaco.
DEN OS - Eu seguro o casaco, segure o meu. Quem
vai à frente?
DE STROP - Para o Oriente. Directo!
LAMPRIDO - Vocês estão indo para o Ocidente!
Direitinho para a lama fétida, para o nada. Sigam!
OS TRÊS - Honra aos gloriosos peregrinos da
Flandres! (AVANÇAM, AFASTANDO-SE E O CANTO RESSOA)
Haec est dies laudabilis
divina luce nobilis (O CANTO SE INTERROMPE) Socorro!... Não me empurrem!... Não
me puxem!... Lamprido! Socorro!... E a água!... Misericórdia!... Estou
afundando... Eu me afogo!... Jesus!... Salvai-nos!.... (GRITOS AINDA OFEGANTES, E
AS VOZES SE EXTINGUEM).
LAMPRIDO - Nada posso fazer por eles! Os fossos
são tão profundos! Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o seu caminho!...
Descansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo mortal é formado. A
noite avança. Vou ganhar de novo a minha árvore, onde, por entre os pássaros
adormecidos, rezarei por vossas almas cegas, pobres ceguinhos. Amém!... (SAI. O
CARRILHÃO SOA ALEGREMENTE NOS CONFINS DO CREPÚSCULO).
FIM
Ghelderode em 1924
ϟ
Les Aveugles,
moralité en un acte d'après Bruegel l'Ancien
Michel de Ghelderode, 1933
Tradução de Anibal Machado
Texto digitalizado por Leandro Felippe, Out. de
2003.
Banco de Peças Teatrais -
Biblioteca da UNIRIO
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