|
|

Self-Portrait During the Eye Disease I
-
Edvard Munch, 1930
Cresci numa casa cheia de médicos e conversas sobre
medicina — meu pai e meus irmãos mais velhos eram
clínicos gerais, minha mãe, cirurgiã. Na hora do jantar
inevitavelmente se falava muito sobre assuntos médicos,
mas nunca apenas sobre "casos". Um paciente podia ser um
caso desta ou daquela doença, mas nos diálogos de meus pais
os casos tornavam-se biografias, a história da vida de pessoas
enquanto reagiam a moléstias, lesões, estresse ou reveses.
Talvez fosse inevitável que eu viesse a me tornar médico e
contador de histórias.
Quando "O Homem que Confundiu sua Mulher com um
Chapéu" foi publicado em 1985, um renomado neurologista
acadêmico fez uma resenha muito gratificante do livro. Os
casos eram fascinantes, ele escreveu, mas ele tinha uma
ressalva: achava que eu estava fingindo ao apresentar
pacientes como se da primeira vez que eu os vira não tivesse
nenhuma idéia preconcebida, nenhum conhecimento
prévio da doença que apresentavam. Seria mesmo verdade
que eu só fora me inteirar da literatura científica pertinente
depois de atender um paciente com uma determinada
doença? Decerto eu começara tendo em mente um dado
tema neurológico, ele pensou, e então fora procurar
pacientes que o exemplificassem.
Mas eu não sou um neurologista acadêmico, e a verdade é
que a maioria dos médicos praticantes, afora sua abrangente
educação em medicina, tem poucos conhecimentos em
profundidade sobre muitas doenças, especialmente aquelas
consideradas raras, para as quais não compensa alocar muito
tempo de ensino na faculdade. Quando nos aparece um
paciente com uma dessas doenças, precisamos pesquisar e,
especialmente, recorrer a descrições originais. Assim,
tipicamente meus relatos de caso começam com um
encontro, uma carta, uma batida à porta — é a descrição que
o paciente faz do que ele está sentindo que estimula a
exploração mais completa.
Trabalhando como neurologista geral principalmente em
instituições para idosos, atendi milhares de pacientes nas
últimas décadas. Cada um me ensina alguma coisa, e é
gratificante cuidar deles. Em alguns casos, vemo-nos
regularmente, como médico e paciente, por vinte anos ou
mais. Nas anotações clínicas que faço, desdobro-me para
registrar o que está acontecendo com eles e refletir sobre o
que vivenciam. Ocasionalmente, com permissão do
paciente, minhas anotações evoluem para um ensaio.
Depois que comecei a publicar relatos de caso, a contar de
1970, com Enxaqueca, passei a receber cartas de pessoas que
buscavam entender seus problemas neurológicos ou
comentar sobre eles, e essa correspondência tornou-se, de
certo modo, uma extensão da minha prática. Portanto,
algumas das pessoas que descrevo neste livro são pacientes;
outras me escreveram depois de ler um dos meus relatos de
caso. Sou grato a todas por consentirem em compartilhar
suas histórias, pois elas ampliam nossa imaginação e nos
mostram o que frequentemente se oculta na saúde: o
complexo funcionamento do cérebro e sua assombrosa
capacidade de se adaptar e superar deficiências — sem falar
na coragem e na força que os indivíduos podem mostrar e
nos recursos internos que conseguem mobilizar diante de
problemas neurológicos que para o resto de nós são quase
impossíveis de imaginar.
Muitos de meus colegas do passado e do presente partilharam comigo generosamente seu tempo e seus
conhecimentos, conversando sobre as ideias deste livro ou
oferecendo comentários sobre suas várias versões. A todos
(e aos muitos que omito aqui) sou imensamente grato, em
especial a Paul Bach-y-Rita, Jerome Bruner, Liam Burke,
John Cisne, Jennifer e John Clay, Bevil Conway, Antonio e
Hanna Damásio, Orrin Devinsky, Dominic ffytche,
Elkhonon Goldberg, Jane Goodall, Temple Grandin, Richard
Gregory, Charles Gross, Bill Hayes, Simon Hayhoe, David
Hubel, Ellen Isle e o Jewish Braille Institute, Narinder
Kapur, Christof Koch, Margaret Livingstone, Ved Mehta,
Ken Nakayama, Görel Kristina Näslund, Alvaro Pascual-Leone, Dale Purves, V. S. Ramachandran, Paul Romano,
Israel Rosenfield, Theresa Ruggiero, Leonard Shengold,
Shinsuke Shimojo, Ralph Siegel, Connie Tomaino, Bob
Wasserman e Jeannette Wilkens.
Eu não teria concluído esta obra sem o apoio moral e
financeiro de várias instituições e indivíduos, e tenho uma
imensurável dívida para com eles, entre os quais devo
mencionar especialmente Susie e David Sainsbury, a
Universidade Columbia, a MacDowell Colony, o Blue
Mountain Center e a Alfred P. Sloan Foundation. Também
agradeço a New York Review of Books, The New Yorker,
ao numeroso pessoal da Alfred A. Knopf, Picador UK,
Vintage Books e meus outros editores no mundo todo.
Vários correspondentes contribuíram para este livro com
idéias ou descrições, entre eles Joseph Bennish, Joan C,
Larry Eickstaedt, Anne E, Stephen Fox, J. T. Fraser e
Alexandra Lynch.
Sou grato a John Bennet, da New Yorker, e a Dan Frank, da
Knopf, excepcionais editores que melhoraram este livro em
muitos aspectos, e a Allen Furbeck por sua ajuda com as
ilustrações. Hailey Wojcik digitou muitos dos rascunhos e
contribuiu com pesquisas e praticamente todos os outros
tipos de ajuda, sem falar em seu trabalho de decifrar e
transcrever quase 90 mil palavras dos meus "diários do
melanoma". Kate Edgar tem em minha vida, há 25 anos, a
posição única de colaboradora, amiga, preparadora de texto,
organizadora e muito mais. Ela me instigou, como sempre, a
pensar e escrever, a ver de diferentes perspectivas mas
sempre retornar ao centro.
Acima de tudo, deixo aqui meu reconhecimento a
participantes de experimentos e aos pacientes e suas
famílias: Lari Abraham, Sue Barry, Lester C., Howard Engel,
Claude e Pamela Frank, Arlene Gordon, Patrícia e Dana
Hodkin, John Hull, Lilian Kallir, Charles Scribner Jr.,
Dennis Shulman, Sabriye Tenberken e Zoltan Torey. Eles
não só me autorizaram a escrever sobre seus casos e citar
suas descrições, mas também comentaram os rascunhos,
apresentaram-me a outras pessoas e recursos, e, em muitos
casos, vários se tornaram grandes amigos.
Finalmente quero expressar minha imensa gratidão a meu
médico, Dr. David H. Abramson, a quem dedico este livro.
Oliver W. Sacks
Nova York,
Junho de 2010
Em Janeiro de 1999 recebi a seguinte carta:
Caro Dr. Sacks,
Meu problema (muito incomum), em uma frase e em termos
leigos, é: não consigo ler. Não consigo ler música nem
qualquer outra coisa. No consultório do oftalmologista,
posso ler individualmente todas as letras da tabela
optométrica até a última linha. Mas não sou capaz de ler
palavras, e para ler música tenho o mesmo problema. Venho
lutando com isso há anos, procurei os melhores médicos e
nenhum foi capaz de ajudar. Eu ficaria imensamente feliz e
grata se o senhor pudesse marcar-me uma consulta.
Atenciosamente,
Lilian Kallir
Telefonei à Sra. Kallir — pareceu-me mais acertado, embora
normalmente eu responda por escrito — porque mesmo
aparentemente sem ter dificuldade para escrever uma carta,
ela afirmou ser incapaz de ler. Falei com ela, e marcamos
uma consulta na clínica neurológica onde eu trabalhava.
A Sra. Kallir veio logo depois à clínica. Era uma senhora de
67 anos, culta e vivaz, com forte sotaque de Praga. Contou-me sua história com muito mais detalhes. Era pianista, disse;
de fato, eu a conhecia de nome, como brilhante intérprete
de Chopin e Mozart (fizera sua primeira apresentação em
público aos quatro anos, e o célebre pianista Gary Graffman
elogiou-a dizendo ser ela "uma das pessoas mais
naturalmente musicais que já conheci".
O primeiro indício de que havia algo errado, ela contou,
surgira em 1991, durante uma apresentação. Ela estava
tocando concertos para piano de Mozart e houve uma
mudança de última hora no programa, do Concerto no 19
para o no 21. Mas quando abriu a partitura do Concerto no
21, ficou atônita: achou-o ininteligível. Ela via as pautas, as
linhas e as notas individualmente com perfeita clareza e
nitidez, mas nada daquilo parecia combinar, fazer sentido
junto. Supôs que o problema estivesse relacionado aos seus
olhos. Mesmo assim, foi em frente, executou de memória o
concerto com perfeição e descartou o estranho incidente
pensando "são coisas da vida".
Vários meses depois o problema tornou a acontecer, e sua
capacidade para ler partituras tornou-se instável. Quando
estava cansada ou doente quase não conseguia ler coisa
alguma, mas se estivesse descansada sua leitura à primeira
vista era rápida e fácil como sempre fora. De modo geral,
porém, o problema se agravou, e embora ela continuasse a
lecionar, a gravar e a se apresentar no mundo todo, passou a
depender cada vez mais de sua memória musical e de seu
vasto repertório, pois agora se via impossibilitada de
aprender novas músicas em partituras. "Eu tinha uma
fantástica leitura à primeira vista", ela disse, "podia
facilmente tocar à primeira vista um concerto de Mozart, e
agora não sou mais capaz".
Ocasionalmente, Lilian (como ela me pediu que a chamasse)
sofria lapsos de memória em concertos, mas, sendo exímia
improvisadora, em geral conseguia suprir a deficiência.
Quando estava à vontade, entre amigos ou alunos, sua
execução parecia boa como sempre. E assim, por inércia,
medo ou uma espécie de adaptação, era possível para ela
desconsiderar seus singulares problemas com a leitura de
música, pois não tinha outros problemas visuais e sua
memória e engenhosidade ainda lhe permitiam uma vida
musical plena.
Em 1994, mais ou menos três anos depois de ter notado pela
primeira vez suas dificuldades com a leitura de música,
Lilian começou a ter problemas para ler palavras. Também
neste caso havia dias bons e ruins, inclusive ocasiões em que
sua capacidade de ler mudava de um momento ao outro:
uma sentença parecia estranha, ininteligível a princípio, e
então subitamente parecia normal e Lilian não tinha
dificuldade para lê-la. Sua capacidade para escrever, no
entanto, estava inalterada, e ela continuava a manter uma
copiosa correspondência com ex-alunos e colegas do mundo
todo, embora cada vez mais dependesse do marido para ler
as cartas que lhe mandavam e até para reler as que ela
própria havia escrito.
A alexia pura, desacompanhada de dificuldade para escrever
("alexia sem agrafia") não é extremamente incomum,
embora em geral surja de modo súbito, depois de um
derrame ou outra lesão no cérebro. É mais raro um
desenvolvimento gradual da alexia em consequência de uma
doença degenerativa como o Alzheimer. Mas Lilian era a
primeira pessoa que eu via cuja alexia se manifestara
primeiro com a notação musical: uma alexia musical.
Em 1995 Lilian estava começando a apresentar outros
problemas visuais. Notou que tendia a "deixar de perceber"
objetos à sua direita, e depois de alguns incidentes sem
gravidade, decidiu parar de dirigir.
Algumas vezes ela se perguntara se o seu curioso problema
de leitura não teria causas neurológicas em vez de
oftalmológicas. Matutava: "Como é que consigo reconhecer
as letras individualmente, até aquelas minúsculas da última
linha da tabela do oftalmologista, mas não sou capaz de ler?"
Em 1996 ela começou a cometer ocasionalmente erros
embaraçosos, como não reconhecer velhos amigos, e se
lembrou de um dos meus relatos de caso que havia lido anos
antes, intitulado "O homem que confundiu sua mulher com
um chapéu", sobre um homem que conseguia ver tudo
claramente nas não reconhecia nada. Achara certa graça da
primeira vez que lera o ensaio, mas agora lhe ocorria a
possibilidade de suas próprias dificuldades serem
misteriosamente semelhantes.
Por fim, cinco anos ou mais depois dos primeiros sintomas,
ela foi encaminhada ao departamento de neurologia de uma
universidade para um exame completo. Aplicaram-lhe uma
bateria de testes neuropsicológicos — de percepção visual,
memória, fluência verbal etc. — e ela se saiu
particularmente mal no reconhecimento de desenhos:
chamou um violino de banjo, uma luva de estátua, uma
navalha de caneta e um alicate de banana. (Quando lhe
pediram que redigisse uma frase, ela escreveu "Isto é ridículo".) Ela apresentou uma variável falta de percepção, ou
"desatenção", à direita, e péssimo reconhecimento facial
(medido pelo reconhecimento de fotografias de figuras
públicas famosas). Conseguiu ler, mas devagar, letra por
letra. Lia um "A", um "B", um "A" e depois, laboriosamente,
dizia "aba", mas não reconhecia a palavra como um todo. No
entanto, quando lhe mostravam palavras depressa demais
para que ela as decifrasse dessa maneira, ela às vezes
conseguia classificá-las corretamente em categorias gerais
como "vivo" ou "não vivo", mesmo não tendo uma idéia
consciente do seu significado.
Em contraste com esses graves problemas visuais, sua
compreensão da fala, repetição e fluência verbal estava
totalmente normal. Um exame de ressonância magnética do
seu cérebro também mostrou resultado normal, mas quando
foi feita uma tomografia por emissão de pósitrons (PET) —
um exame capaz de detectar ligeiras mudanças no
metabolismo de várias áreas cerebrais, mesmo quando elas
parecem anatomicamente normais — foi constatado que
Lilian apresentava diminuição da atividade metabólica na
parte posterior do cérebro, o córtex visual. Essa redução era
mais acentuada do lado esquerdo. Seus neurologistas,
considerando a disseminação gradual das dificuldades de
reconhecimento visual — primeiro com música, depois com
palavras e então com rostos e objetos —, supuseram que ela
tinha uma doença degenerativa, naquele momento
confinada às partes posteriores do cérebro. Provavelmente
continuaria a se agravar, mas muito devagar.
A doença básica não era tratável de nenhum modo radical,
mas seus neurologistas recomendaram algumas estratégias
que talvez pudessem ajudar: "adivinhar" palavras, por
exemplo, mesmo quando ela não conseguisse lê-las da
maneira usual (pois estava claro que ela ainda possuía algum
mecanismo que lhe permitia o reconhecimento
inconsciente ou pré-consciente das palavras). Além disso,
sugeriram, ela podia recorrer a uma inspeção deliberada,
hiperconsciente, dos objetos e rostos, reparando
especialmente nas características distintivas para que
pudesse identificá-las em futuros encontros, mesmo com
deficiência em sua capacidade de reconhecimento normal
"automática".
Nos aproximadamente três anos decorridos desde esse exame neurológico e sua primeira consulta comigo, Lilian
contou-me que continuou a dar concertos, embora não tão
bem e com menos frequência. Seu repertório diminuiu, pois
ela não conseguia mais consultar visualmente sequer as
partituras bem conhecidas. "Minha memória não era mais
alimentada", ela ressaltou. Alimentada pelos olhos, ela queria
dizer — pois percebia que aumentara sua memória auditiva,
sua orientação auditiva, e que ela agora podia, em um grau
muito mais acentuado, aprender e reproduzir músicas de
ouvido. Não só ela era capaz de tocar uma música dessa
maneira (em alguns casos depois de ouvir a composição uma
única vez), mas também de rearranjá-la mentalmente. No
entanto, tudo sopesado, seu repertório encolhera, e Lilian
começou a evitar tocar em público. Tocava apenas em
ocasiões informais e dava aulas magnas na faculdade de
música.
Ela me mostrou uma avaliação neurológica de 1996 e
comentou: "Todos os médicos dizem 'atrofia cortical
posterior do hemisfério esquerdo, muito atípica', e então se
desculpam, sorrindo — mas não há nada que eles possam
fazer".
Quando examinei Lilian, constatei que ela não tinha
dificuldade para fazer a correspondência entre cores e
formas ou reconhecer movimento e profundidade. Mas em
outras áreas ela mostrou problemas graves. Agora não
conseguia mais reconhecer as letras ou os números
individualmente (embora ainda não tivesse dificuldade para
escrever sentenças completas). Ela também tinha uma
agnosia visual mais geral, e quando lhe mostrei figuras, teve
dificuldade até para reconhecer que eram figuras — às vezes
olhava para uma coluna impressa ou para uma margem em
branco pensando que fosse a imagem que eu lhe pedira para
identificar. Descreveu assim uma delas: "Vejo um V, muito
elegante — dois pontinhos aqui, depois uma oval, com dois
pontinhos brancos no meio. Não sei o que é". Quando eu
lhe disse que era um helicóptero, ela riu, embaraçada. (O
"V" era um cabo de guindar fardos, o helicóptero estava
descarregando alimentos para refugiados). Os dois pontinhos
eram as rodas; a oval, o corpo do helicóptero. Portanto, ela
agora via apenas características individuais de um objeto ou
figura e não conseguia sintetizá-las, vê-las como um todo, e
muito menos interpretá-las corretamente. Se lhe
mostrassem a fotografia de um rosto, ela só era capaz de
perceber se a pessoa estava usando óculos, e mais nada.
Quando lhe perguntei se ela enxergava com clareza,
respondeu: "Não é um borrão, é um mingau" — um mingau
composto de formas e detalhes nítidos, claros e bem
acabados, porém ininteligíveis.
Olhando para os desenhos de um livro de testes neurológicos, ela disse a respeito de um lápis: "Pode ser muitas coisas.
Poderia ser um violino... uma caneta". Mas o desenho de
uma casa ela reconheceu imediatamente. Olhou para um
apito e comentou: "Não tenho a mínima ideia". Diante do
desenho de uma tesoura, olhou invariavelmente para o lugar
errado, o papel em branco sob o desenho. Seria a sua
dificuldade para reconhecer desenhos devida simplesmente
ao caráter esquemático do traçado, à bidimensionalidade e
pobreza de informações? Ou será que refletia uma
dificuldade de nível superior na percepção e representação
em si? Será que ela se sairia melhor com objetos reais?
Quando perguntei a Lilian como ela se sentia a respeito de si
mesma e de sua situação, ela respondeu: "Acho que estou
lidando com ela muito bem, boa parte do tempo... sei que
não vai melhorar, mas que só irá piorar lentamente. Parei de
procurar neurologistas. Sempre ouço a mesma coisa... Mas
sou uma pessoa que não se deixa abater com facilidade. Não
conto aos meus amigos. Não quero oprimi-los, e este meu
probleminha não é lá muito promissor. Um beco sem
saída... Tenho senso de humor. E é isso, em resumo. E
deprimente, quando me ponho a pensar, frustrações diárias.
Mas tenho muitos dias e anos bons pela frente".
Depois que Lilian foi embora, não consegui encontrar minha bolsa de médico — uma bolsa preta que tinha algumas
semelhanças (lembrei-me então) com uma das várias que ela
havia trazido. No táxi, Lilian percebeu que pegara a bolsa
errada quando viu um objeto de ponta vermelha (meu
martelo de testar reflexos, de cabo comprido e vermelho)
aparecendo fora da bolsa. O martelo chamara-lhe a atenção
por sua cor e forma durante a consulta, e então ela se deu
conta do erro. Voltou esbaforida à clínica, pediu desculpas e
comentou: "Eu sou a mulher que confundiu sua bolsa com
uma mala de médico".
Lilian saíra-se tão mal nos testes formais de reconhecimento
visual que eu não conseguia imaginar como ela dava conta
do cotidiano. Como reconhecia um táxi, por exemplo?
Como podia reconhecer sua própria casa? Como conseguia
fazer compras, pois me dissera que fazia, ou reconhecer os
alimentos e servi-los à mesa? Tudo isso e muito mais — ter
uma vida social ativa, viajar, assistir a concertos, lecionar —
ela fazia sozinha quando seu marido, que também era
músico, passava semanas seguidas na Europa. Eu não tinha
ideia de como ela conseguia fazer essas coisas depois de ter
visto seu consternador desempenho no ambiente artificial e
pobre de uma clínica neurológica. Precisava vê-la em seu
ambiente familiar.
No mês seguinte, visitei Lilian em sua casa, um agradável
apartamento na Upper Manhattan onde ela morava com o
marido havia mais de quarenta anos. Claude, simpático e
jovial, tinha mais ou menos a mesma idade que a esposa.
Eles se conheceram quando eram estudantes de música em
Tanglewood, quase cinquenta anos antes, e haviam seguido
lado a lado a carreira musical, muitas vezes se apresentando
juntos. O apartamento tinha uma atmosfera acolhedora e
cultivada, com um piano de cauda, uma profusão de livros,
fotografias da filha do casal, de amigos e parentes, quadros
modernistas abstratos nas paredes e souvenirs de suas
viagens em todas as superfícies disponíveis. Era apinhado —
rico de história e significado pessoal, imaginei, mas um
pesadelo, um verdadeiro caos para alguém com agnosia
visual. Pelo menos foi essa minha primeira impressão
quando entrei e tive de avançar por entre mesas abarrotadas
de miudezas. Mas Lilian não tinha dificuldade em meio
àquele amontoado de coisas e costurava seu caminho
confiantemente por aqueles obstáculos.
Como ela tivera tanta dificuldade no teste de reconhecimento de desenhos, eu trouxera alguns objetos sólidos para ver
se com eles conseguiria melhores resultados. Comecei com
algumas frutas e hortaliças que acabara de comprar, e Lilian
se saiu surpreendentemente bem. Identificou
instantaneamente "uma bela pimenta vermelha",
reconhecendo-a do outro lado da sala; com uma banana foi a
mesma coisa. Hesitou por um momento sem saber se um
terceiro objeto era uma maçã ou um tomate, mas logo
decidiu, corretamente, pela primeira. Quando lhe mostrei a
miniatura plástica de um lobo (eu sempre tinha em minha
bolsa de médico diversos objetos como esse, para testes de
percepção), ela exclamou: "Um animal esplêndido. Um
filhote de elefante, talvez?". Quando lhe pedi para olhar mais
atentamente, ela decidiu que era "um tipo de cão".
O relativo sucesso de Lilian na identificação de objetos
sólidos, em contraste com os desenhos, mais uma vez me
levou a aventar que ela tinha uma agnosia específica para
representações. O reconhecimento de representações pode
requerer uma espécie de aprendizado, a compreensão de um
código ou convenção além dos necessários para o
reconhecimento de objetos. Por isso, dizem que pessoas de
culturas primitivas que nunca viram fotografias podem não
reconhecer que elas são representações de alguma outra
coisa. Se um complexo sistema para o reconhecimento de
representações visuais precisa ser construído especialmente
pelo cérebro, essa capacidade pode ser perdida com uma
lesão nesse sistema causada por um derrame ou uma doença,
exatamente como se pode perder a compreensão da escrita,
por exemplo, ou de qualquer outra habilidade adquirida.
Acompanhei Lilian à cozinha, onde ela foi tirar a chaleira do
fogo e despejar água fervendo no bule de chá. Parecia
orientar-se bem na cozinha lotada; sabia, por exemplo, que
todas as frigideiras e panelas estavam penduradas em
ganchos na parede, que vários mantimentos encontravam-se
nos lugares de costume. Quando abrimos a geladeira e eu lhe
fiz perguntas sobre o que havia lá dentro, ela respondeu:
"suco de laranja, leite, manteiga na prateleira de cima — e
uma bela linguiça, se lhe apetecer, das austríacas... queijos".
Ela reconheceu os ovos na porta do refrigerador e, quando
pedi, contou-os corretamente, passando o dedo de ovo em
ovo para fazê-lo. Eu, de um relance, vi que eram oito —
duas fileiras de quatro — mas Lilian, desconfiei, não era
capaz de perceber facilmente a forma correspondente a oito
ovos, a gestalt, e precisava enumerá-los um por um. Com os
condimentos, ela disse, era "um desastre". Vinham todos em
frascos idênticos de tampa vermelha, e obviamente ela não
podia ler os rótulos. Por isso, explicou, "eu cheiro!... e peço
ajuda de vez em quando". Sobre o forno de micro-ondas,
que ela usava com frequência, comentou: "Não vejo os
números. Vou experimentando — cozinho, provo, verifico
se precisa ficar mais um pouco".
Embora visualmente Lilian quase não pudesse reconhecer
coisa alguma na cozinha, ela a organizara de tal modo que
raramente, ou nunca, ocorriam erros, e para isso usava um
sistema de classificação informal em vez do conhecimento
perceptual direto. Categorizava as coisas não com base no
significado, mas na cor, tamanho, forma e posição; pelo
contexto, por associação, mais ou menos como um
analfabeto organizaria os livros numa biblioteca. Cada coisa
tinha seu lugar, e Lilian memorizara isso.
Vendo como ela inferia a natureza dos objetos à sua volta
desse modo, usando principalmente as cores como
marcadores, eu quis saber como ela fazia com objetos de
aparência semelhante, como as facas de peixe e as facas de
carne, que eram quase idênticas. Isso era um problema,
Lilian confessou, e muitas vezes ela se confundia. Sugeri que
ela poderia, talvez, usar um marcador artificial, um pontinho
verde para as facas de peixe e um vermelho para as de carne,
e assim ela poderia notar a diferença de relance. Lilian disse
que já pensara nisso, mas hesitava em "alardear" seu
problema para os outros. O que pensariam seus convidados
quando vissem talheres e pratos codificados por cores, ou
um apartamento codificado por cores? ("Como em um
experimento psicológico", ela disse, "ou num escritório".) A
"artificialidade" da ideia a incomodava, mas se a agnosia
piorasse, ela concordou, precisaria fazer isso.
Em alguns casos para os quais o sistema de categorização
usado por Lilian não funcionava, como o uso do micro-ondas, ela podia agir por tentativa e erro. Mas quando os
objetos não estavam em seu lugar, podiam surgir sérios
problemas. Isso ficou chocantemente perceptível no fim de
minha visita. Os três — Lilian, Claude e eu — estávamos
sentados à mesa de jantar. Lilian a arrumara com biscoitos e
bolos, e trouxe um fumegante bule de chá. Ela conversava
enquanto comíamos, mas conservava uma certa vigilância,
monitorando a posição e o movimento de cada prato,
acompanhando tudo (percebi depois) para que o objeto "não
se perdesse". Ela se levantou para levar os pratos vazios para
a cozinha e deixou só os biscoitos, percebendo que eu
gostara especialmente deles. Claude e eu conversamos por
alguns minutos — nossa primeira conversa a sós —,
empurrando o prato de biscoito um para o outro.
Quando Lilian voltou, e eu arrumei minha bolsa e me preparei para partir, ela disse: "Leve os biscoitos com você" — só
que agora, estranhamente, ela não conseguia encontrá-los, e
ficou nervosa, quase frenética. Os biscoitos estavam bem ali
na mesa, no prato, mas como o prato fora mudado de lugar
ela não sabia mais onde estavam, não sabia sequer onde
procurar. Parecia não possuir uma estratégia para procurar.
Mas levou um tremendo susto com meu guarda-chuva em
cima da mesa. Não o reconheceu como um guarda-chuva;
notou apenas que alguma coisa curvada e torcida havia
aparecido ali — e por um momento, meio a sério, lhe passou
pela cabeça que poderia ser uma cobra.
Antes de partir, pedi a Lilian que se sentasse ao piano, tocasse alguma coisa para mim. Ela hesitou. Ficou claro que
perdera boa parte da autoconfiança. Começou tocando
magnificamente uma fuga de Bach, mas depois de alguns
compassos parou e pediu desculpas. Vi um volume de
mazurcas de Chopin e perguntei: que tal estas, e ela,
encorajada, fechou os olhos e tocou duas das mazurcas do
Opus 50 sem vacilar, com grande vivacidade e sentimento.
Ela me contou depois que a música impressa ficava ali
"jogada", e comentou: "eu me perturbo quando vejo a
partitura, gente virando páginas, minhas mãos ou o teclado",
e quando isso acontecia ela podia cometer erros,
especialmente com a mão direita. Precisava fechar os olhos
e tocar sem o uso da visão, usando apenas sua "memória
muscular" e seu excelente ouvido.
O que eu poderia dizer sobre a natureza e o progresso da
estranha doença de Lilian? Claramente, o problema avançara
um pouco desde o exame neurológico feito três anos antes, e
havia indícios — porém não mais do que indícios — de que
suas deficiências talvez não fossem mais apenas de ordem
visual. Em especial, ela ocasionalmente sentia dificuldade
para lembrar o nome de algum objeto mesmo quando o
reconhecia, e quando não encontrava a palavra dizia "esse
troço".
Pedi uma nova ressonância magnética para comparar com a
anterior, e o exame mostrou que agora havia diminuição das
áreas visuais dos dois lados do cérebro. Haveria sinal de uma
lesão real em outra parte? Era difícil dizer, mas eu
desconfiava que poderia existir alguma diminuição também
do hipocampo — partes do cérebro cruciais para o registro
de novas memórias. No entanto, a lesão ainda estava em
grande medida restrita ao córtex occipital e
occipitotemporal, e claramente o ritmo do avanço era lento.
Quando conversei com Claude sobre os resultados da
ressonância magnética, ele avisou que quando eu falasse
com Lilian deveria evitar certos termos, principalmente o
assustador "doença de Alzheimer". "Não é Alzheimer, é?",
perguntou. Estava evidente que eles vinham pensando
muito nisso.
"Não sei dizer", respondi. "Não no sentido usual. Devemos
ver como algo mais raro — e mais benigno."
A atrofia cortical posterior, ACP, foi descrita formalmente
pela primeira vez por Frank Benson e seus colegas em 1988,
embora sem dúvida existisse sem ser reconhecida por muito
mais tempo. Mas o artigo de Benson et al. provocou um
surto de reconhecimento, e há agora dezenas de casos
descritos.
Os portadores de ACP preservam aspectos elementares da
percepção visual, como a acuidade ou a capacidade de
detectar movimento e cor. Mas tendem a apresentar
complexos distúrbios visuais — dificuldades para ler ou
reconhecer rostos e objetos, e ocasionalmente até
alucinações. Sua desorientação visual pode tornar-se muito
acentuada: alguns pacientes se perdem no próprio bairro ou
mesmo dentro de casa, e para esses casos Benson usou o
termo "agnosia ambiental". É comum surgirem em seguida
outras dificuldades: confusão entre esquerda e direita,
dificuldade para escrever e fazer cálculos, e até agnosia para
os próprios dedos, uma tétrade de problemas denominada
síndrome de Gertsman. Alguns pacientes com ACP podem
ser capazes de reconhecer e associar cores, mas não de dizer
o nome delas, um caso chamado de anomia cromática. Mais
raramente, pode ocorrer dificuldade para acompanhar
movimentos e dirigir a visão para um alvo específico.
Em contraste com essas dificuldades, a memória, a
inteligência, a percepção intuitiva e a personalidade tendem
a preservar-se até uma fase mais avançada da doença.
Segundo Benson, cada paciente que ele descreveu "pôde
relatar sua história, tinha noção dos eventos correntes e
mostrou considerável percepção intuitiva de seu problema".
Embora a ACP seja sem dúvida uma doença degenerativa do
cérebro, suas características parecem diferir
consideravelmente das formas mais comuns da doença de
Alzheimer. Nestas, os pacientes tendem a sofrer flagrantes
alterações na memória, raciocínio, compreensão e uso da
linguagem e, em muitos casos, no comportamento e
personalidade, além de geralmente perderem mais cedo a
noção do que está a lhes acontecer (o que talvez seja para
eles uma bênção).
No caso de Lilian, a evolução da doença parecia ter sido
relativamente benigna, pois passados nove anos desde seus
primeiros sintomas ela não se perdia dentro de casa nem em
seu bairro.
Não pude deixar de fazer a comparação, como a própria
Lilian fizera, com meu paciente dr. P., "o homem que
confundiu sua mulher com um chapéu". Ambos eram
músicos profissionais talentosos, ambos passaram a
apresentar agnosia visual grave enquanto em muitos outros
aspectos permaneciam normais, e ambos haviam descoberto
ou inventado expedientes engenhosos para lidar com seu
problema, o que lhes possibilitava continuar lecionando em
cursos avançados na faculdade de música, apesar de
incapacidades que poderiam parecer devastadoras.
Entretanto, os modos como Lilian e o dr. P. lidavam na
prática com suas doenças diferiam bastante, o que era
reflexo em parte da gravidade de seus sintomas e em parte
das diferenças de temperamento e formação. O dr. P. já
apresentava graves dificuldades quando o examinei, pouco
mais de três anos depois de seus sintomas iniciais. Tinha
dificuldades não só visuais, mas também táteis: pegou a
cabeça da mulher e a confundiu com um chapéu. Mostrava
uma espécie de despreocupação ou indiferença e pouca
percepção do fato de que estava doente; com frequência
confabulava, inventava, para compensar o fato de não ser
capaz de identificar o que estava vendo. Esse
comportamento contrastava com o de Lilian, que nove anos
depois dos primeiros sintomas não apresentava problemas
substanciais além dos visuais, ainda era capaz de viajar e
lecionar e demonstrava aguda percepção de sua deficiência.
Lilian ainda podia identificar objetos por inferência, usando
sua percepção intacta das cores, formas, texturas e
movimentos, aliada à sua memória e inteligência. O dr. P,
não. Ele não era capaz, por exemplo, de identificar uma luva
pela visão ou pelo tato (apesar de conseguir descrevê-la em
termos absurdamente abstratos como "uma superfície
contínua envolta em si mesma [com] cinco bolsinhas
protuberantes, se é que esse é o termo certo [...] será algum
tipo de recipiente?"), até que, por acaso, ele enfiou a mão
dentro dela. De modo geral, ele era quase totalmente
dependente da ação, do fluxo de fazer as coisas. E cantar, a
mais natural e irreprimível das ações para ele, permitia-lhe
contornar em certo grau a agnosia. Recorria a uma
infinidade de tipos de canções que ele podia entoar ou
cantar: canções para se vestir, canções para se barbear,
canções para todo tipo de ação.
A música, ele descobrira, podia organizar suas atividades, seu
cotidiano. Com Lilian isso não ocorria. Sua esplêndida
musicalidade também estava preservada, mas não tinha um
papel comparável no seu dia a dia. Não constituía uma
estratégia para lidar com a agnosia.
Alguns meses depois, em Junho de 1999, tornei a visitar
Lilian e Claude em seu apartamento. Claude acabara de
voltar de suas semanas na Europa, e Lilian, deduzi, durante
esse tempo saíra do apartamento e se deslocara livremente
por um raio de quatro quarteirões, fora a seu restaurante
favorito, fizera compras e resolvera assuntos fora de casa. Ao
chegar, vi que ela andara enviando cartões a seus amigos do
mundo todo — espalhados na mesa havia envelopes
endereçados para Coréia, Alemanha, Austrália, Brasil. A
alexia claramente não diminuíra sua correspondência,
embora a letra dela nos envelopes tivesse uma aparência um
tanto irregular. Ela parecia se virar bem dentro do apartamento, mas como conseguia fazer compras e lidar com os
desafios de um movimentado bairro nova-iorquino, ainda
que fosse o seu bairro?
"Vamos sair, andar por aí", sugeri. Lilian imediatamente
começou a cantar "Der Wanderer" ["O andarilho"], de Schubert — ela adora Schubert — e depois a elaboração
desse tema na fantasia Wanderer.
No elevador, alguns vizinhos a cumprimentaram. Não consegui descobrir se ela os reconheceu visualmente ou pelas
vozes. Ela reconhecia instantaneamente vozes e sons de
todo tipo; parecia, inclusive, hiper-atenta para eles, como
era para as cores e formas. Essas manifestações agora
assumiam importância especial como indicadores.
Ela não tinha dificuldade para atravessar a rua. Não
conseguia ler os sinais de "Siga" e "Pare", mas sabia suas
posições relativas e cores, e também sabia que podia seguir
quando o sinal estava piscando. Apontou para uma sinagoga
na esquina em frente e identificou outras lojas pelas formas e
cores, como sua lanchonete favorita, que tinha azulejos
brancos e pretos alternados.
Fomos ao supermercado e pegamos um carrinho — ela foi
direto ao nicho onde eles eram guardados. Lilian não teve
dificuldade para encontrar a seção de frutas e hortaliças,
nem para identificar maçãs, peras, cenouras, pimentões
amarelos e aspargos. Não conseguiu dizer de pronto o nome
de um alho-poró, mas perguntou: "É parente da cebola?",
depois lembrou o nome: "alho-poró". Ficou desnorteada
diante de um kiwi, até o momento em que o pus em sua
mão. (Disse que era "peludinho, parecia um camundongo".)
Ergui a mão e toquei um objeto pendurado acima das frutas.
"O que é isto?", perguntei. Lilian semi-cerrou os olhos,
hesitou. "E de comer? De papel?". Quando deixei que ela
tocasse no objeto, ela soltou uma risada meio envergonhada.
"É uma luva térmica para pegar panelas", disse. "Como pude
ser tão boba?".
Quando passamos à seção seguinte, Lilian recitou "molhos
para salada à esquerda, óleos à direita", em tom de
ascensorista de loja de departamentos. Ela obviamente
mapeara na cabeça todo o supermercado. Quis um molho de
tomate específico dentre dez marcas diferentes, e soube qual
era graças a "um retângulo azul-escuro com um círculo
amarelo embaixo" no rótulo. "As cores são fundamentais",
ela mais uma vez ressaltou. São o seu indicador visual mais
imediato, reconhecíveis quando nada mais é. (Por essa
razão, temendo que pudéssemos nos separar, eu me vestira
totalmente de vermelho para essa visita, pois assim ela
conseguiria me localizar de imediato.)
Mas nem sempre a cor bastava. Diante de um engradado de
plástico, ela podia não saber se ele continha manteiga de
amendoim ou melões. Em geral, concluía que a melhor
estratégia era trazer de casa uma lata ou embalagem vazia e
pedir ajuda para encontrar outra igual.
Quando saímos do mercado, ela trombou sem querer o
carrinho numa pilha de cestos de compra à sua direita. Tais
acidentes, quando acontecem, são sempre à direita em razão
de sua percepção visual deficiente desse lado.
Alguns meses depois, marquei uma consulta para Lilian em
meu consultório em vez de na clínica onde ela já estivera.
Ela chegou pontualmente, vindo a pé da estação Penn até
Greenwich Village. Estivera em New Haven na noite
anterior, onde o marido dera um concerto, e ele a deixara no
trem pela manhã. "Conheço a estação Penn como a palma
da mão", ela explicou. Por isso não tivera problemas ali. Mas
lá fora, na balbúrdia de gente e veículos, ela comentou:
"houve momentos em que precisei perguntar". Quando
indaguei como ela vinha passando, ela disse que a agnosia
estava pior. "Quando nós dois fomos juntos ao mercado,
havia muitas coisas que eu podia reconhecer facilmente.
Hoje, se eu quiser as mesmas coisas, preciso pedir a alguém".
Em geral ela precisava pedir que lhe identificassem objetos,
ou que a ajudassem com degraus perigosos, mudanças
súbitas de nível ou irregularidades no piso. Dependia mais
do tato e da audição (para ter certeza, por exemplo, de que
estava voltada para o lado certo). E dependia cada vez mais
da memória, raciocínio e senso comum para ajudá-la a lidar
com o que, de outro modo, ou seja, visualmente, seria um
mundo ininteligível.
No entanto, na minha sala ela reconheceu imediatamente
um retrato dela mesma na capa de um CD, tocando Chopin.
"Me parece meio familiar", disse sorrindo.
Perguntei o que ela via numa das paredes. Primeiro ela virou
sua cadeira, não para a parede, mas para a janela, e disse:
"Vejo prédios". Girei sua cadeira e a pus defronte à parede.
Precisei conduzi-la passo a passo. "Vê luzes?". Sim, ali e ali.
Demorei um pouco a perceber que ela estava olhando para
um sofá sob as luzes, embora a cor dele fosse comentada de
pronto. Ela observou alguma coisa verde em cima do sofá e
me surpreendeu dizendo, corretamente, que era um cordão
esticado. Contou que sua fisioterapeuta lhe dera um cordão
semelhante. Perguntei o que ela via acima do sofá (uma
pintura abstrata com formas geométricas), e ela respondeu:
"Vejo amarelo... e preto". Perguntei o que era, e ela arriscou:
algo relacionado ao teto. Ou um ventilador. Um relógio. E
então acrescentou: "Na verdade, não descobri se é apenas
um objeto ou muitos". Era uma pintura feita por outro
paciente, um pintor daltônico. Mas Lilian claramente não
tinha ideia de que se tratava de um quadro, nem ao menos
tinha certeza de que fosse um único objeto, e achava que
podia ser parte da estrutura da sala.
Tudo isso me intrigou. Como é que ela não conseguia
distinguir bem uma pintura vistosa da parede propriamente
dita, mas era capaz de reconhecer instantaneamente uma
pequena foto dela mesma num CD? Como podia identificar
um fino cordão verde, mas não via, ou não reconhecia, o
sofá onde ele estava? E antes disso eu notara inúmeras
incoerências desse tipo.
Perguntei como ela conseguia ver as horas, já que usava
relógio de pulso. Ela não podia ver os números, explicou,
mas calculava com base na posição dos ponteiros. Mostrei-lhe então, de brincadeira, um estranho relógio que possui,
em vez de números, símbolos de elementos químicos (H,
He, Li, Be etc.). Ela não percebeu nada diferente no relógio,
pois para ela aquelas abreviaturas não eram nem mais nem
menos inteligíveis do que seriam os números.
Fomos dar uma volta a pé, eu de chapéu de cor berrante
para facilitar o reconhecimento. Lilian ficou desnorteada
diante dos objetos de uma vitrine — mas até eu fiquei. Era
uma loja de artesanato tibetano, para nós tão exóticos que
podiam ser marcianos. Curiosamente, a loja ao lado Lilian
reconheceu de imediato e mencionou que passara por lá a
caminho do meu consultório. Era uma relojoaria, com
dezenas de relógios das mais variadas formas e tamanhos.
Mais tarde ela me contou que seu pai era apaixonado por
relógios.
Um cadeado na porta de outra loja foi um enigma total,
embora Lilian aventasse que poderia ser algo "de abrir...
como um hidrante". Mas no momento em que ela o tocou,
soube o que era.
Paramos para um café rápido, depois eu a levei até meu apartamento, no próximo quarteirão. Queria que ela
experimentasse meu piano de cauda, um Bechstein de 1894.
Ao entrar, ela imediatamente identificou o relógio de
pêndulo no saguão. (O dr. P., em contraste, oferecera um
aperto de mão a um relógio de pêndulo.)
Lilian sentou-se ao piano e tocou — uma música que me
intrigou, pois pareceu-me ao mesmo tempo familiar e
desconhecida. Ela explicou que era um quarteto de Haydn
que ouvira no rádio uns dois anos antes e que a fascinara.
Ansiara por tocá-lo, por isso fizera um arranjo para piano,
tudo mentalmente e em um único dia. Antes da alexia ela
ocasionalmente fizera arranjos para piano, usando papel
manuscrito e a partitura original, mas quando isso se tornou
impossível, descobriu que era capaz de fazer tudo de ouvido.
Sentia que sua memória musical, suas imagens mentais
musicais, se havia tornado mais forte, mais tenaz e também
mais flexível, e ela agora era capaz de manter na cabeça uma
música muito complexa, rearranjá-la e reproduzi-la
mentalmente, coisa que antes teria sido impossível. As
capacidades cada vez Maiores de sua memória e imagens
mentais musicais tornaram-se cruciais para ela, mantinham-na ativa desde o início de suas dificuldades visuais, nove
anos antes.
A óbvia dificuldade de Lilian para identificar o que era o que
no meu consultório e nas ruazinhas e lojas da vizinhança
lembrou-me quanto ela dependia do que lhe era familiar e
memorizado, de como ela estava ancorada em seu
apartamento e em seu bairro. Com o tempo, talvez, se ela
visitasse um lugar frequentemente, adquiriria aos poucos
mais familiaridade com ele, mas seria um esforço
tremendamente complexo, que exigiria paciência e engenho
imensos, todo um novo sistema de categorização e
memorização. Ficou claro para mim, depois dessa ida de
Lilian ao meu consultório, que dali por diante eu deveria
restringir-me a consultas em domicílio, atendê-la em seu
apartamento, onde ela se sentia organizada, no comando da
situação, à vontade. Sair de casa, para ela, estava-se tornando
um desafio visual cada vez mais surreal, repleto de erros de
percepção fantásticos e por vezes assustadores.
Lilian escreveu-me novamente em agosto de 2001,
expressando uma crescente preocupação. Esperava que eu
pudesse fazer-lhe uma visita em breve, ela disse, por isso
sugeri vê-la no fim de semana seguinte.
Ela me esperou na porta, pois sabia das minhas próprias
deficiências visuais e topográficas (congênitas), minha
confusão entre esquerda e direita e minha incapacidade para
me localizar dentro de prédios. Recebeu-me com imensa
afabilidade, mas também com uma ponta de preocupação,
que pareceu pairar durante toda a visita.
"A vida está difícil", ela começou, depois de pedir que eu me
sentasse e de me oferecer uma soda. Tivera dificuldade para
encontrar a soda na geladeira e, como não vira a garrafa, que
estava "escondida" atrás de uma jarra de suco de laranja,
precisara explorar o refrigerador pelo tato, procurando um
frasco com a forma certa. "Não está melhorando... a vista
está muito ruim." (Ela sabe, obviamente, que não tem
problema nos olhos e que o declínio está acontecendo nas
partes visuais do cérebro — aliás, ela percebera isso antes de
qualquer outra pessoa —, mas acha mais fácil, mais natural,
dizer que está "com a vista ruim".) Quando fizemos compras
juntos dois anos antes, ela parecia reconhecer quase tudo o
que via, ou pelo menos ter tudo codificado por forma, cor e
localização, e desse modo quase podia dispensar ajuda.
Naquela época ela também se movia sem erros em sua
cozinha, nunca perdia nada, agia com eficiência. Agora
"perdia" a soda e o arenque em schmaltz — uma perda que
envolvia não só esquecer onde os havia posto mas além
disso não os reconhecer quando os via. Observei que a
cozinha estava menos organizada do que antes — e organização, na situação de Lilian, é crucial.
A anomia de Lilian, sua dificuldade para encontrar palavras,
também se agravara. Quando lhe mostrei fósforos, ela os
reconheceu de pronto, visualmente, mas não conseguiu
dizer "fósforos" e os descreveu assim: "isso é para acender o
fogo". Com o adoçante foi o mesmo: ela não lembrou o
nome, mas pôde identificá-lo como "melhor do que açúcar".
Tinha plena noção dessas dificuldades e de suas estratégias
para lidar com elas. "Quando não consigo dizer alguma coisa,
circunscrevo", resumiu.
Ela contou que, embora houvesse viajado recentemente a
Ontário, ao Colorado e a Connecticut com o marido, não
teria sido capaz de fazê-lo sozinha, como alguns anos antes.
Julgava-se ainda capaz de cuidar de si mesma em casa
quando Claude estava fora. Apesar disso, acrescentou,
"quando fico sozinha, é horrível. Não estou me queixando
— estou descrevendo".
A certa altura, quando ela estava na cozinha, perguntei a
Claude como ele se sentia a respeito desses problemas. Ele
mostrou sensibilidade e compreensão, mas comentou: "Às
vezes minha impaciência surge, quando acho que algumas
de suas deficiências podem ser exageradas. Vou dar um
exemplo. Fico perplexo, às vezes aborrecido, porque a
'cegueira' de Lilian de vez em quando é 'seletiva'. Na sexta-feira passada, ela notou que um quadro estava torto na
parede por alguns milímetros. E de vez em quando comenta
sobre a expressão facial de pessoas em minúsculas
fotografias. Toca numa colher e pergunta 'o que é isto?', mas
cinco minutos depois olha para um vaso e diz 'temos um
parecido'. Não encontrei nenhum padrão, só incoerência.
Qual deve ser minha atitude quando ela pega um copo e diz
'o que é isto?'. As vezes não respondo. Mas pode ser errado,
e ter um efeito desastroso. O que devo dizer?".
De fato, essa era uma questão delicada. Quanto ele deveria
interferir quando ela se visse diante de uma confusão
perceptiva? Quanto devemos dar a dica a um amigo ou
paciente quando ele esquece o nome de alguém? Quanto eu
mesmo — que não tenho senso de direção — desejo ser
salvo de enveredar na direção errada ou prefiro que me
deixem batalhar por mim mesmo até encontrar o caminho
certo? Quanto qualquer um de nós gosta que lhe "digam"
qualquer coisa? Essa questão era especialmente perturbadora
no caso de Lilian, pois embora ela precisasse decifrar as
coisas, defender-se sozinha, suas dificuldades visuais
agravavam-se dia a dia, e a desorientação às vezes ameaçava,
como Claude observou, mergulhá-la no pânico. Eu não
podia recomendar nenhuma regra, disse a Claude, exceto o
tato: cada situação pediria sua própria solução.
Mas também eu estava intrigado com as extraordinárias
variações da função visual de Lilian. Algumas delas, ao que
parecia, acompanhavam a função reduzida e instável de seu
córtex visual lesionado — exatamente como, dez anos antes,
sua capacidade de ler música aparecia e desaparecia. E parte
das variações, eu supunha, poderiam refletir oscilações na
circulação sanguínea. Entretanto, parte das variações
parecia, não sei por quê, acompanhar uma capacidade
decrescente de compensar as deficiências do modo como ela
estava acostumada a fazer. Sua capacidade de recorrer à
memória e às suas faculdades intelectuais em lugar do
reconhecimento visual direto, eu agora sentia, também
poderia estar declinando a esta altura. Por isso, era mais
importante do que nunca para Lilian "codificar" as coisas,
providenciar indicadores sensitivos facilmente utilizáveis —
sobretudo as cores, às quais ela permanecia intensamente
sensível.
O que mais me surpreendeu foi a menção de Claude às súbitas habilidades de Lilian: por exemplo, perceber expressões
faciais em uma minúscula fotografia, muito embora grande
parte do tempo lhe fosse difícil reconhecer pessoas. Não
pude deixar de me perguntar se isso não seria um exemplo
das habilidades pré-conscientes que ela demonstrara em
testes anteriores — como quando conseguira categorizar
palavras como referentes a coisas "vivas" ou "não vivas"
apesar de não reconhecer o que elas representavam. Esse
reconhecimento inconsciente poderia ser possível em certo
grau apesar de sua agnosia, apesar de sua lesão cortical, pois
usava outros mecanismos, ainda intactos, do sistema visual.
Um extraordinário relato em primeira mão sobre "alexia
musical com recuperação" foi publicado por Ian McDonald
em 2006. Foi o primeiro relato pessoal desse tipo já
publicado, duplamente notável porque o próprio McDonald
é neurologista e um excelente músico amador. Sua alexia
musical (juntamente com outros problemas, entre eles
dificuldade para fazer cálculos, cegueira para rostos e
desorientação topográfica) foi causada por um acidente
vascular cerebral embólico, e ele conseguiria se recuperar
completamente. Ele ressaltou que embora houvesse uma
melhora gradual em sua habilidade de ler música,
especialmente associada à prática, sua alexia musical variava
consideravelmente de um dia para outro.
Também os médicos de Lilian pensaram, de início, que ela
houvesse sofrido um derrame e que as variações em suas
habilidades pudessem ser decorrentes dele. Mas tais
oscilações são típicas de qualquer sistema neural que sofreu
lesão, independentemente da causa. Pacientes com dor
ciática causada por compressão da raiz do nervo têm dias
bons e ruins, e o mesmo ocorre com pacientes com
deficiências visuais ou auditivas. Em um sistema lesionado
há menos reservas, menos redundância, e ele é mais
facilmente perturbado por fatores adventícios como fadiga,
estresse, medicação ou infecções. Um sistema assim também
está sujeito a oscilações espontâneas, como as que meus
pacientes de Tempo de despertar sofriam constantemente.
Lilian fora engenhosa e resiliente nos onze ou doze anos
decorridos desde o início de sua doença. Buscara recursos
interiores de vários tipos: visuais, musicais, emocionais,
intelectuais. A família, os amigos, o marido e a filha,
principalmente, mas também seus alunos e colegas, pessoas
solícitas no supermercado ou na rua, todos a ajudaram a
seguir em frente. Suas adaptações à agnosia foram
extraordinárias: uma lição sobre o que se pode fazer para
enfrentar a vida diante de crescentes desafios perceptuais e
cognitivos. Foi porém em sua arte, em sua música, que
Lilian não só lidou com a doença mas a transcendeu.
Isso ficava claro quando ela tocava piano, uma arte que ao
mesmo tempo exige e fornece uma espécie de super-integração, uma total integração de sentidos e músculos, de
corpo e mente, de memória e fantasia, de intelecto e
emoção, de todo o ser, do estar vivo. Como uma bênção,
suas faculdades musicais permaneceram intocadas pela
doença.
Tocar piano sempre acrescentava uma nota transcendente às
minhas visitas e lembrava Lilian de sua identidade como
artista, o que também era crucial. Mostrava o prazer que ela
ainda era capaz de sentir e de dar, fossem quais fossem
outros problemas que agora a assediavam de todos os lados.
Quando tornei a visitar Lilian e Claude em 2002, encontrei o
apartamento cheio de balões. "Fiz aniversário três dias atrás",
ela explicou. Parecia abatida, um tanto frágil, embora a voz e
a afabilidade continuassem as mesmas. Contou que suas
capacidades visuais haviam declinado ainda mais, e isso ficou
evidente quando ela tateou à procura de uma cadeira para
sentar-se, andou na direção errada e se perdeu em seu
próprio apartamento. Seu comportamento agora parecia
mais "cego", refletindo não apenas sua crescente
incapacidade para decifrar o que estava à sua frente, mas
também uma total desorientação visual.
Ela ainda conseguia escrever cartas, mas ler, até mesmo
aquela dolorosamente lenta leitura letra por letra que lhe era
possível alguns anos antes, tornara-se impossível. Lilian
adorava que lessem para ela — Claude lia jornais e livros, e
eu prometi mandar-lhe áudio-livros. Ainda conseguia sair
um pouco, dar uma volta no quarteirão de braços com o
marido. Agora, com sua crescente incapacidade, os dois
estavam mais próximos do que nunca.
Apesar de tudo isso, Lilian achava que seu ouvido estava tão
bom como sempre fora, e ela ainda conseguia lecionar para
alguns alunos da faculdade de música que iam ao seu
apartamento. Mas, fora isso, já não tocava piano com
frequência.
No entanto, quando mencionei o quarteto de Haydn que ela
havia tocado para mim, seu rosto se iluminou. "Fiquei
fascinada com essa música", ela disse. "Nunca a ouvira antes.
Raramente ela é tocada." E me contou de novo que não
conseguira tirar a música da cabeça e fizera um arranjo para
piano, mentalmente e em um dia. Pedi que tocasse a música
mais uma vez. Lilian de início se fez de rogada, mas depois,
persuadida, quis ir até o piano, só que foi na direção errada.
Claude corrigiu-a delicadamente. Ao piano, ela no começo
se enganou, tocou notas erradas e pareceu angustiada e
confusa. "Onde estou?", gemeu, e eu senti uma dor no
coração. Mas depois se encontrou e começou a tocar
maravilhosamente, os sons foram crescendo, ganhando
calor, fundindo-se. Claude ficou surpreso e comovido. "Fazia
duas ou três semanas que ela não tocava nada", ele segredou.
Enquanto tocava, Lilian olhava para o alto, cantarolando
baixinho, a melodia. Tocava com todo o seu imenso talento
artístico, com toda a capacidade e sentimento que
demonstrara antes, e a música de Haydn elevou-se em
furiosa turbulência, uma altercação musical. E então, quando
o quarteto chegava aos acordes finais, à resolução, ela disse
simplesmente: "Tudo está perdoado".
Patrícia H. era uma mulher brilhante e vivaz que
representava artistas e tinha uma galeria de arte em Long
Island, além de ser uma talentosa pintora diletante. Criara
três filhas e, quase sexagenária, continuava a levar uma vida
ativa e até "glamoro-sa", como diziam suas filhas. Andava
por Greenwich Village à procura de novos artistas, dava
saraus em casa. Adorava cozinhar e não raro tinha vinte
convidados à mesa. Seu marido também era homem de
muitas aptidões: era locutor de rádio, militante na política e
exímio pianista que às vezes tocava em boates. Ambos eram
muito sociáveis.
Em 1989 o marido de Pat morreu subitamente de ataque
cardíaco. No ano anterior ela precisara submeter-se a uma
cirurgia de peito aberto em razão de uma válvula cardíaca
lesionada e iniciara tratamento com anticoagulantes.
Recuperara-se muito bem, mas, segundo uma de suas filhas,
depois da morte do marido "ela pareceu atordoada, ficou
muito deprimida, perdeu peso, levou um tombo no metrô,
bateu o carro algumas vezes e deu de aparecer na porta da
nossa casa, em Manhattan, como se estivesse perdida". Pat
sempre tivera humor um tanto instável ("Ficava deprimida
por alguns dias e não saía da cama, de repente se levantava
toda animada e corria para o centro da cidade, com mil
compromissos"). Mas desta vez a melancolia viera para ficar.
Em Janeiro de 1991 ela ficou dois dias sem atender o telefone, e suas filhas, preocupadas, ligaram para um vizinho.
Ele entrou junto com policiais na casa de Pat. Encontraram-na inconsciente na cama. Ela estivera em coma por no
mínimo vinte horas, informaram às filhas, e sofrera uma
hemorragia cerebral de amplas proporções. Tinha um grande
coágulo na metade esquerda do cérebro, seu hemisfério
dominante. Pensaram que não sobreviveria.
Depois de uma semana no hospital sem melhora, como último recurso ela foi submetida a uma cirurgia. As filhas foram
avisadas de que não era possível prever os resultados.
De início, logo que o coágulo foi removido, a situação foi
desesperadora. Pat "tinha os olhos fixos [...] parecia olhar
sem ver", nas palavras de uma filha. "Às vezes ;seus olhos
me seguiam, ou pelo menos davam essa impressão. Não
sabíamos o que estava acontecendo, nem se ela estava
consciente." Os neurologistas denominam "estado
vegetativo crônico" certos casos em que o paciente, como
um zumbi, apresenta alguns reflexos primitivos preservados
mas nenhuma consciência coerente ou self. Tais situações
podem ser um tormento cruel para quem as presencia, pois
costumam dar a impressão de que a pessoa está prestes a
voltar a si — mas a situação pode prosseguir assim por meses
ou até indefinidamente. Para Pat, porém, durou duas semanas. "Um belo dia", recorda sua filha Lari, "percebi que
ela olhava para uma Coca Diet que eu tinha na mão como se
a quisesse. Perguntei: 'Quer um gole?'. Ela fez que sim com a
cabeça. Tudo mudou nesse instante".
Pat agora estava consciente, reconhecia as filhas, tinha noção de seu problema e de onde ela estava. Tinha seus
apetites e desejos, sua personalidade, mas estava paralisada
do lado direito e, o que era mais grave, não conseguia mais
expressar seus pensamentos e sentimentos em palavras.
Podia apenas olhar e fazer mímica, apontar ou gesticular.
Sua compreensão da fala também estava muito prejudicada.
Em resumo: estava afásica.
"Afasia" significa etimologicamente perda da fala, mas não é
a fala propriamente dita que se perde, e sim a linguagem: sua
expressão ou sua compreensão, total ou parcialmente. (Por
exemplo, os surdos congênitos que usam língua de sinais
podem apresentar afasia depois de uma lesão cerebral ou
derrame e tornar-se incapazes de usar sinais para se
expressar ou de entender o que lhes é comunicado nessa
linguagem—uma afasia de sinais análoga, em todos os
aspectos, à afasia de pessoas falantes.)
Há muitas formas de afasia, dependendo da parte do cérebro
afetada, e em geral se faz uma distinção abrangente entre
afasias expressivas e afasias receptivas. Quando estão ambas
presentes, fala-se em afasia "global".
A afasia não é incomum; estima-se que de cada trezentas
pessoas com lesão cerebral decorrente de derrame,
ferimento na cabeça, tumor ou doença cerebral
degenerativa, uma possa ter afasia duradoura. Muitas, porém,
se recuperam por completo ou em parte. (Existem também
formas transitórias de afasia, que podem ocorrer durante
uma enxaqueca ou convulsões e durar apenas alguns
minutos.)Nas formas mais brandas, a afasia expressiva caracteriza-se
pela dificuldade de encontrar palavras ou pela tendência a
usar termos errados sem haver comprometimento da
estrutura global das sentenças. Os nomes, inclusive os
nomes próprios, tendem a ser especialmente afetados. Em
formas mais graves de afasia expressiva, a pessoa não
consegue gerar sentenças inteiras, gramaticalmente
completas, e fica limitada a emissões "telegráficas", breves e
empobrecidas. Quando a afasia é muito grave, a pessoa fica
praticamente muda, embora às vezes consiga soltar uma
exclamação (por exemplo, "droga!" ou "bom!"). Alguns
pacientes podem fixar-se a uma única palavra ou frase e
dizê-la em todas as circunstâncias, para sua evidente
frustração. Tive uma paciente que, depois de um derrame, só
conseguia dizer "Obrigada, mamãe", e outra, italiana, que
dizia apenas "Tutta la veritá, tutta la veritá".
Hughlings Jackson, pioneiro no estudo da afasia nos anos
1860 e 1870, dizia que esses pacientes não dispunham da
"fala proposicional" e que haviam perdido também sua fala
interior, não sendo, portanto, capazes de falar ou
"proposicionar" sequer para si mesmos. Ele supôs então que
a faculdade do pensamento abstrato era perdida na afasia e,
nesse sentido, comparava os afásicos aos cães.
Em seu excelente livro "Injured brains of medical minds",
Narinder Kapur cita muitos relatos autobiográficos sobre
afasia. Um deles é o do psicólogo Scott Moss, que sofreu um
derrame aos 43 anos, tornou-se afásico e mais tarde
descreveu o que vivenciou. Suas descrições condizem
acentuadamente com as ideias de Hughlings Jackson sobre a
perda da fala interior e dos conceitos:
Quando acordei na manhã seguinte no hospital, estava
totalmente (globalmente) afásico. Podia entender por alto o
que me diziam se falassem devagar e se referissem a uma
forma de ação bem concreta. [...] Eu perdera por completo a
capacidade de falar, de ler e de escrever. Perdi inclusive, nos
dois primeiros meses, a capacidade de usar palavras
interiormente, isto é, no pensamento. [...] E perdi a
capacidade de sonhar. Assim, por umas oito ou nove semanas, vivi em um vácuo absoluto de conceitos auto-produzidos. [...] Só conseguia lidar com o presente imediato.
[...] A parte de mim que faltava era o aspecto intelectual — o
sine qua non da minha personalidade — aqueles elementos
essenciais mais importantes que fazem de alguém um
indivíduo único. [...] Por longo tempo eu me vi como
apenas meio-homem.
Moss, que teve afasia expressiva e receptiva, também perdeu
a capacidade de ler. Pessoas que têm apenas afasia expressiva
ainda podem ler e escrever (se a mão não houver sido
paralisada pelo derrame).
Outro relato foi o de Jacques Lordat, eminente fisiologista
francês do começo do século XIX. Ele fez uma
extraordinária descrição de sua afasia decorrente de um
derrame, antecedendo em mais de sessenta anos os estudos
de Hughlings Jackson. Sua situação foi bem diferente da de
Moss:
Em 24 horas perdi quase totalmente o acesso às palavras. As
poucas que restaram revelaram-se quase inúteis, pois eu não
conseguia lembrar como devia coordená-las para comunicar
ideias. [...] Eu não conseguia mais entender as idéias dos
outros, pois a própria amnésia que me impedia de falar me
tornava incapaz de compreender os sons que eu ouvia com
rapidez suficiente para apreender seu significado. [...]
Interiormente eu me sentia a mesma pessoa de antes. Esse
isolamento mental que menciono, minha tristeza, minha
incapacidade e a aparência de estupidez que ela produzia
levaram muitas pessoas a crer que minhas faculdades
intelectuais haviam declinado. [...] Interiormente, eu
analisava minha obra e os estudos que apreciava. Raciocinar
não me causava dificuldade alguma. [...] Minha memória
para fatos, princípios, dogmas, ideias abstratas era a mesma
de quando eu gozava de boa saúde. [...] Tive de perceber que
o funcionamento interno da mente podia dispensar as
palavras.
Portanto, para alguns pacientes, mesmo estando totalmente
incapazes de falar ou compreender a fala, pode haver uma
perfeita preservação de capacidades intelectuais — a
capacidade de pensar de modo lógico e sistemático, de
planejar, lembrar, antever, conjecturar.
Apesar disso, a idéia entre os leigos — e infelizmente entre
muitos médicos também — é que a afasia é uma espécie de
desastre definitivo que encerra não só a vida exterior da
pessoa, mas também sua vida interior. Foi mais ou menos
isso que disseram às filhas de Pat, Dana e Lari. Talvez
houvesse alguma melhora, informaram a elas, mas Pat teria
de passar o resto da vida recolhida: nada mais de festas,
conversas, galerias de arte — tudo o que constituía a própria
essência de sua vida deixaria de ser possível, e ela teria uma
vida restrita de doente, internada numa clínica.
Como são quase incapazes de iniciar uma conversa ou fazer
contato com as pessoas, os pacientes com afasia correm
riscos especiais nos hospitais e casas de saúde para doentes
crônicos. Mesmo se tiverem acesso a todos os tipos de
terapia, falta-lhes uma dimensão social fundamental da vida,
e eles frequentemente se sentem isolados e abandonados.
No entanto, há muitas atividades — jogar cartas, fazer
compras, ir ao cinema e ao teatro, dançar, praticar esportes
— que não requerem linguagem, e elas podem ser usadas
para trazer ou seduzir pacientes afásicos para um mundo de
atividades conhecidas e contato humano. Alguns se referem
a isso com o insosso termo "reabilitação social", mas na
realidade o paciente (como diria Dickens) está sendo
"chamado de volta à vida".
As filhas de Pat decidiram fazer todo o possível para trazer a
mãe de volta ao mundo, à vida mais plena que suas
limitações lhe permitissem. "Contratamos uma enfermeira, e
ela ensinou mamãe a se alimentar sozinha, a ser", contou
Lari. "Mamãe se zangava, às vezes batia nela, mas ela, a
enfermeira, não desistia. Dana e eu nunca a deixávamos
sozinha. Passeávamos com ela, empurrávamos sua cadeira de
rodas até meu apartamento. [...] Nós a levávamos a
restaurantes, ou pedíamos que entregassem a comida em
casa, levávamos ao cabeleireiro e à manicure. [...] Não
parávamos."Pat foi transferida do hospital onde fizera a cirurgia para uma
clínica de reabilitação. Passados seis meses, finalmente foi
internada no Hospital Beth Abrahams, no Bronx, onde a
conheci.
Quando foi inaugurado, em 1919, o hospital chamava-se
Asilo Beth Abrahams para Doentes Incuráveis, nome
desalentador que só foi mudado nos anos 1960. De início o
hospital recebeu parte das primeiras vítimas da epidemia de
encefalite letárgica (algumas das quais ainda viviam ali mais
de quarenta anos depois, quando fui trabalhar nesse
hospital). Com o passar dos anos, o Beth Abrahams
expandiu-se e se tornou um hospital com quinhentos leitos,
oferecendo programas de reabilitação a pacientes com todo
tipo de doença crônica: parkinsonismo, demencias,
problemas da fala, esclerose múltipla, derrames (e, cada vez
mais, lesões na coluna ou no cérebro por ferimento de bala
ou acidente de automóvel).
Quem visita um hospital de doentes crônicos em geral fica
horrorizado ao ver centenas de pacientes "incuráveis",
muitos deles paralíticos, cegos ou mudos. A primeira ideia
costuma ser: será que vale a pena viver dessa maneira? Que
tipo de vida essas pessoas podem ter? Preocupado, o sujeito
se põe a pensar como reagiria à perspectiva de ficar
incapacitado e ser internado em um lugar assim.
Mas talvez depois comece a ver o outro lado. Mesmo não
sendo possível a cura ou pelo menos alguma melhora para
esses pacientes, ainda é possível ajudar muitos deles a
reconstruir sua vida, desenvolver outros modos de fazer as
coisas, aproveitar seus pontos fortes, encontrar
compensações e acomodações diversas. (Isso obviamente vai
depender do grau e do tipo de dano neurológico e dos
recursos internos e externos de cada paciente.)
Se a primeira visão de um hospital para doentes crônicos
pode ser ruim para um visitante, para um novo interno pode
ser aterradora, e muitos reagem com horror misturado a
tristeza, amargura ou raiva. (Resulta dessa reação, em alguns
casos, uma verdadeira "psicose de internação".) Quando
conheci Pat, pouco depois de sua internação no Beth
Abraham em outubro de 1991, encontrei-a irritada,
atormentada e frustrada. Ela ainda não conhecia o pessoal do
hospital nem a disposição das salas, e sentia que uma rígida
ordem institucional lhe estava sendo imposta. Conseguia
comunicar-se com gestos, que eram veementes, porém nem
sempre compreensíveis, mas ainda não tinha fala coerente
(embora de vez em quando, segundo o pessoal do hospital,
exclamasse "Droga!" ou "Vá embora!" quando estava brava).
Parecia entender boa parte do que lhe diziam, mas um
exame atento deixou claro que estava respondendo não às
palavras, mas ao tom de voz, expressão facial e gestos.
Quando a examinei na clínica, Pat não conseguiu dar resposta ao meu pedido, falado e por escrito, para que tocasse
seu nariz. Ela conseguia contar ("um, dois, três, quatro,
cinco...") em uma sequência, mas não era capaz de dizer
números individualmente nem de contar de trás para a
frente. O lado direito de seu corpo permanecia totalmente
paralisado. Anotei no prontuário que suas condições
neurológicas eram "ruins. Receio que talvez as funções da
linguagem não venham a ter boa recuperação, mas
certamente deve-se tentar a terapia intensiva da fala, além
de fisioterapia e terapia ocupacional".
Pat ansiava por falar, mas continuamente se frustrava, porque depois de um tremendo esforço para pronunciar uma
palavra saía-lhe um termo errado ou ininteligível. Tentava
corrigi-lo, mas com frequência se tornava mais ininteligível
a cada tentativa de se fazer entender. Imagino que ela
começara a se dar conta de que talvez sua capacidade de
falar nunca voltasse, e cada vez mais se refugiava no
silêncio. Essa incapacidade de se comunicar, para ela e para
muitos pacientes com afasia, era muito pior do que a
paralisia de metade do corpo. De vez em quando eu a via,
durante o primeiro ano depois de seu derrame, sentada sozinha no corredor ou na sala de estar dos pacientes, privada da
fala, cercada por uma espécie de penumbra de silêncio, com
um ar ferido e desolado.
Um ano depois, encontrei Pat muito melhor. Ela havia
descoberto um jeito de compreender as pessoas por seus
gestos e expressões tanto quanto pelas palavras. Podia
indicar o que pensava e sentia com eloquentes gestos e
mímica, sem falar. Por exemplo, agitava na mão dois
ingressos para dizer que iria ao cinema se, e somente se,
uma amiga pudesse ir também. Ela se tornou menos
zangada, mais sociável e bem consciente de tudo o que se
passava à sua volta.
Isso representava uma imensa melhora na esfera social,
melhora na capacidade de se comunicar, mas eu não sabia se
era decorrente de alguma melhora neurológica real. É
comum amigos e parentes de pacientes afásicos pensarem
que a recuperação neurológica é Maior do que a ocorrida de
fato, pois muitos afásicos conseguem uma notável
intensificação compensatória de outras faculdades e
habilidades não linguísticas, especialmente a habilidade de
interpretar as intenções e sentidos de outras pessoas pelas
expressões faciais, inflexões vocais e tom de voz, e também
pela gesticulação, postura e pequenos movimentos que
normalmente acompanham a fala.
Essa compensação pode dar capacidades surpreendentes aos
afásicos, sobretudo uma excepcional habilidade de
desmascarar artifícios histriónicos, subterfúgios e mentiras.
Descrevi esse aspecto em 1985, depois de observar um
grupo de pacientes afásicos assistindo a um discurso do
presidente na televisão. Em 2000, Nancy Etcoff e colegas do
Hospital Geral de Massachusetts publicaram um estudo na
revista Nature concluindo que pessoas com afasia são de fato
"significativamente mais hábeis em detectar mentiras
relacionadas à emoção do que indivíduos sem deficiência de
linguagem". Essas habilidades aparentemente levavam
tempo para se desenvolver, observaram os pesquisadores, já
que não eram evidentes em um paciente poucos meses
depois de ter início sua afasia. Esse parecia ser o caso de Pat,
que de início estava longe de ter facilidade para interpretar
as emoções e intenções dos outros, mas com o passar dos
anos tornou-se extraordinariamente competente nessa
esfera. Se os afásicos acabam por sobressair-se na
compreensão da comunicação não verbal, também podem
tornar-se muito hábeis em transmitir do mesmo modo seus
próprios pensamentos — e Pat agora começava a caminhar
para uma representação consciente e voluntária (e
frequentemente inventiva) de seus pensamentos e intenções
por mímica.
No entanto, ainda que os gestos e a mímica geralmente sejam poupados na afasia por não possuírem a gramática e a
sintaxe da linguagem real, eles não são suficientes: têm
apenas condições limitadas de transmitir significados e
proposições complexas (ao contrário de uma verdadeira
língua de sinais, como as usadas pelos surdos). Essas
limitações costumavam enfurecer Pat, mas uma mudança
crucial aconteceu quando sua patologista da fala, Jeannette
Wilkens, descobriu que embora Pat não fosse capaz de ler
uma sentença, podia reconhecer palavras individualmente (e
que, na verdade, seu vocabulário era bem vasto). Jeannette
constatara que o mesmo acontecia com outros pacientes
afásicos quando começavam a se recuperar, e inventou uma
espécie de léxico para eles, um livro de palavras organizadas
em categorias de objetos, pessoas e eventos, além de estados
de espírito e emoções.
Esses léxicos, Jeannette concluiu, frequentemente
funcionavam quando os pacientes estavam com ela em uma
sessão individual, porém muitos pacientes afásicos tinham
dificuldade de entabular uma conversa com outras pessoas.
Talvez timidez, depressão ou incapacidade decorrente de
outros problemas de saúde os impedissem de iniciar o
contato com as outras pessoas. Nada disso se aplicava a Pat,
que toda a vida fora uma pessoa extrovertida e sociável. Ela
tinha sempre o livro a seu lado ou no colo, na cadeira de
rodas, e assim podia folheá-lo rapidamente com a mão
esquerda para encontrar as palavras que desejava.
Aproximava-se sem hesitação de uma pessoa, abria o livro
na página certa, mostrava-o e indicava o assunto sobre o
qual desejava falar.
A vida de Pat expandiu-se em inúmeros aspectos graças à
sua "bíblia", como suas filhas chamavam o livro. Logo ela se
tornou capaz de conduzir uma conversa na direção que
desejava, uma conversa que, de sua parte, se fazia apenas por
gestos e mímica — e principalmente com o braço esquerdo,
pois o direito continuava paralisado. Mesmo assim, a
combinação de gestos e mímica com as palavras de seu livro
permitiam a ela expressar de modo notavelmente completo
e exato suas necessidades e pensamentos.
Ela se tornou uma figura destacada no círculo social do
hospital, apesar de não poder se comunicar da maneira
usual. Seu quarto virou a sala de bate-papo, e outros
pacientes gostavam de aparecer por lá. Pat conversava com
as filhas por telefone, "cem vezes por dia", segundo elas,
embora as conversas fossem passivas da parte dela, que
ficava à espera de perguntas simples às quais pudesse
responder "sim" (comunicando o sim com beijos), "não",
"tudo bem", ou com ruídos indicando que aprovava, desaprovava ou achava graça.
Em 1996, cinco anos depois do derrame, a afasia receptiva
de Pat atenuara-se; ela era capaz de entender parte do que
era falado, embora ainda não conseguisse se expressar
falando. Podia dizer algumas frases fixas, como "Disponha!"
ou "Ótimo!", mas não o nome de objetos conhecidos nem
pronunciar uma frase. Ela voltara a pintar, com a mão
esquerda, e era um terror nas partidas de dominó — seus
sistemas de representação não verbal estavam incólumes.
(Há tempos se sabe que a afasia não afeta necessariamente a
habilidade musical, a imagética visual e a aptidão mecânica, e
Nicolai Klessinger e colegas da Universidade de Sheffield
demonstraram que o raciocínio numérico e a sintaxe
matemática podem permanecer intactos mesmo em
pacientes incapazes de entender ou produzir linguagem
gramatical.)
Muitos dizem que não existe mais possibilidade de
recuperação de um derrame ou uma lesão cerebral depois de
doze ou dezoito meses. Embora em alguns casos isso possa
ser verdade, já vi essa generalização não se aplicar a muitos
pacientes. E em décadas recentes a neurociência confirmou
que o cérebro possui mais capacidades de restauração e
regeneração do que antes se acreditava. Há também muito
mais "plasticidade", uma Maior capacidade de áreas intatas
para assumir algumas das funções das áreas lesadas se o dano
não for demasiado extenso. E cada indivíduo possui suas
capacidades de adaptação, de encontrar modos novos ou
diferentes de fazer as coisas quando o modo original deixa
de estar disponível. Notei que Pat, mesmo cinco anos depois
de ter sofrido o derrame, ainda mostrava um contínuo,
embora bem limitado, progresso em suas habilidades receptivas, sua capacidade de entender linguagem.
Ainda assim, apesar de conseguir proferir algumas palavras e
de entender palavras isoladas que fossem escritas ou faladas,
Pat continuava basicamente privada de uma linguagem
organizada e parecia incapaz de "proposicionar"
internamente ou para outras pessoas. O filósofo
Wittgenstein distinguiu dois métodos de comunicação e
representação: "dizer" e "mostrar". Dizer, no sentido de
fazer uma proposição, é afirmativo e requer uma estreita
associação da estrutura lógica e sintática com o que está
sendo afirmado. Mostrar não é afirmativo; apresenta
informações diretamente, de um modo não simbólico, mas,
como Wittgenstein foi obrigado a admitir, não possui uma
gramática ou estrutura sintática básica. (Alguns anos depois
de o Tractatus de Wittgenstein ter sido publicado, seu amigo
Piero Sraffa fez um gesto de estalar os dedos e perguntou:
"Qual é a estrutura lógica disso?" Wittgenstein não soube
responder.)Assim como Noam Chomsky revolucionou o estudo da
linguagem, Stephen Kosslyn revolucionou o estudo da
imagética, e enquanto Wittgenstein escreve sobre "dizer" e
"mostrar", Kosslyn fala em modos de representação
"descritivos" e "figurativos". Ambos estão disponíveis ao
cérebro normal e são complementares, permitindo que
usemos ora um, ora outro, e frequentemente os dois juntos.
Pat perdera em grande medida sua capacidade de fazer
proposições, de afirmar, de descrever, e parecia haver pouca
probabilidade de vir a recuperá-los. Mas suas capacidades de
representar figurativamente, não afetadas pelo derrame,
intensificaram-se muito em reação à sua perda da linguagem.
Sua capacidade de interpretar gestos e expressões das pessoas
e seu virtuosismo em expressar-se por gestos e mímica
constituíam os dois lados — o receptivo e o expressivo — de
sua capacidade figurativa.
Pat era a caçula de sete irmãos. Sua numerosa família sempre
tivera um papel central em sua vida, ainda mais quando a
filha de Lari, Alexa, primeira neta de Pat, nasceu em 1993.
Alexa "nasceu no Beth Abraham", diz Lari. Visitava a avó
frequentemente, e Pat sempre tinha algum brinquedo ou
guloseima especial para ela ("não sei como ela arranjava essas
coisas", Lari se espantava). Pat costumava pedir a Alexa que
levasse biscoitos a uma amiga lá adiante no corredor, que
não podia andar. Alexa e seus dois irmãos mais novos, Dean
e Eve, eram fascinados por Pat e gostavam de telefonar para
ela quando não podiam visitá-la. Lari achava que tinham um
relacionamento muito ativo, muito "normal" com a avó, um
relacionamento precioso para todos.
Uma das páginas do livro de Pat continha uma lista de estados emocionais (ela os escolhera em uma lista de palavras
preparada por Jeannette, a patologista da fala). Em 1998,
quando lhe perguntei qual era seu estado de espírito
predominante, ela apontou para "feliz". Havia outros
adjetivos na página, como "furioso", "amedrontado",
"cansado", "desgostoso", "solitário", "triste" e "entediado" —
e ela havia indicado todos eles, ocasionalmente, nos anos
anteriores.
Em 1999, quando lhe perguntei a data, ela apontou para
"quarta-feira, 28 de Julho", meio indignada, talvez, por ser
insultada com uma pergunta tão simples. Ela indicou, usando
sua "bíblia", que assistira a meia dúzia de musicais e fora a
duas galerias de arte nos últimos meses, e que agora que o
verão havia chegado iria visitar Lari em Long Island nos fins
de semana e, entre outras coisas, nadar. "Nadar?", espantei-me. Sim, indicou Pat; mesmo com o lado direito paralisado,
ela era capaz de nadar de lado. Na mocidade fora uma
grande nadadora de longa distância, ela indicou. E me
contou que estava toda animada porque Lari adotaria um
bebê dentro de alguns meses. Surpreendi-me especialmente
nessa visita, oito anos após o derrame de Pat, com a
plenitude e a riqueza de suas experiências cotidianas e seu
voraz amor pela vida em face do que alguém poderia
considerar uma lesão cerebral devastadora.
Em 2000 Pat mostrou-me fotos de seus netos. Visitara todos
eles na véspera, que fora o feriado de 4 de Julho, e haviam
assistido à regata e à queima de fogos na televisão. Estava
ansiosa para me mostrar o jornal com uma foto das
Williams, as irmãs tenistas, para contar que o tênis fora um
de seus esportes favoritos, junto com esqui, equitação e
natação. Quando saiu para tomar sol no pátio do hospital, foi
de chapéu e óculos escuros e fez questão de que eu notasse
suas unhas pintadas.
Em 2002 Pat tornara-se capaz de dizer algumas palavras, recorrendo a músicas bem conhecidas, como "Parabéns a
você" e outras, que ela cantava junto com Connie Tomaino,
a musicoterapeuta do Beth Abrahams. Pat conseguia captar o
sentimento da música e de algumas palavras da letra. Em
seguida, durante alguns minutos isso "libertava" sua voz e
lhe dava a capacidade de dizer algumas palavras em tom
cantado. Ela passou a levar para todo lado um toca-fitas com
uma gravação de canções conhecidas, e com elas dava a
partida na sua capacidade de linguagem. Fez uma
demonstração tocando uma canção que dizia "Oh! Que lindo
dia!", cumprimentando-me em seguida com um melodioso
"Bom dia, sr. Sacks!", que tinha uma forte ênfase rítmica em
"dia".
A musicoterapia é um recurso inestimável para alguns
pacientes com afasia expressiva. Eles descobrem que são
capazes de cantar e se tranquilizam sabendo que não
perderam totalmente a linguagem e que em algum lugar
dentro de si ainda têm acesso a palavras. A questão passa a
ser, então, se as capacidades de linguagem embutidas na
canção podem ser removidas do seu contexto musical e
usadas na comunicação. Em alguns casos isso é possível, em
grau limitado, reembutindo a letra da música em uma fala
cantarolada. Pat, no entanto, não se empolgava muito com
esse recurso. Achava que seu verdadeiro virtuosismo estava
nas suas habilidades de mímica, na compreensão e uso dos
gestos. Nisso ela adquirira uma habilidade e uma intuição
próximas da genialidade.
A mimese, representação deliberada e consciente de cenas,
pensamentos, intenções etc. por meio de mímica e ações,
parece ser uma aquisição especificamente humana, como a
linguagem (e talvez a música). Nos grandes primatas, que são
capazes de "macaquear" ou arremedar, é ínfima a capacidade
de criar representações miméticas de maneira consciente e
deliberada. (Em "Origens do Pensamento Moderno", o
psicólogo Merlin Donald supõe que uma "cultura mimética"
pode ter sido uma etapa intermediária crucial da evolução
humana, entre a cultura "episódica" dos antropóides e a
cultura "teórica" do homem moderno.) A mimese tem uma
representação muito mais extensa e mais forte no cérebro do
que a linguagem, e isso talvez explique por que é preservada
em muitos pacientes que perderam a linguagem. Essa
preservação pode permitir uma comunicação notavelmente
rica, ainda mais se for elaborada, intensificada e combinada
com um léxico, como fazia Pat.
Pat sempre tivera paixão por comunicar-se (falava 24 horas
por dia, contou Dana), e fora a frustração dessa loquacidade
que a deixara desesperada e furiosa na chegada ao hospital.
Essa mesma paixão foi responsável pela motivação e sucesso
em comunicar-se assim que Jeannette lhe deu um
empurrãozinho.
As filhas de Pat às vezes se assombravam com sua
resiliência. "Como é que não fica deprimida, ela que tem
histórico de depressão?", admirava-se Dana. "Como
consegue viver assim, eu pensava no começo... Achei que
ela se mataria." Dana contou que muitas vezes sua mãe fazia
um gesto que parecia significar "Meu Deus, o que
aconteceu? O que é isto? Por que estou neste quarto?", como
se estivesse tomando consciência mais uma vez do indizível
horror do derrame. No entanto, Pat tinha noção de que, em
certo sentido, tivera muita sorte, apesar de metade de seu
corpo estar paralisada. Tinha sorte porque a lesão em seu
cérebro, embora extensa, não lhe minara a força de vontade
nem a personalidade, e, além disso, porque suas filhas se
empenharam arduamente desde o início para mantê-la ativa
e interessada e tinham recursos para pagar por enfermeiros e
terapeutas particulares. E também teve a sorte de encontrar
uma patologista da fala que a observou com sensibilidade e
atenção e pôde fornecer-lhe uma ferramenta crucial, sua
"bíblia", que funcionava tão bem.
Pat continuou ativa e interessada pelo mundo. Era "o xodó
da família", nas palavras de Dana, e também da sua ala no
hospital. Não perdera a capacidade de cativar ("Ela cativou
até o senhor, dr. Sacks", Dana observou), e conseguia pintar
um pouco com a mão esquerda. Era grata por estar viva e
poder fazer o que fazia, sendo essa a razão, pensava Dana, de
seu bom humor e disposição.
Lari expressou uma opinião semelhante. "Parece que o
negativismo foi eliminado", ela me disse. "Ela está bem mais
coerente, mais grata pela vida e pelos seus dons... e pelas
outras pessoas também. Tem consciência de que é
privilegiada, mas isso só a torna mais gentil, mais solícita
com outros pacientes que fisicamente podem ser menos
incapacitados do que ela, mas são menos "adaptados" ou
"afortunados" ou "felizes". Ela é o oposto da vítima",
concluiu Lari. "Realmente se sente abençoada."
Numa fria tarde de sábado acompanhei Dana e sua mãe em
uma das atividades favoritas de Pat: fazer compras na
avenida Allerton, perto do hospital. Chegamos ao quarto de
Pat — abarrotado de plantas, quadros, cartazes, fotos,
programas de teatro — e ela já estava à nossa espera, com
seu casaco favorito.
Andando pela Allerton, movimentada naquela tarde de fim
de semana, vi que metade dos lojistas a conhecia. "Olá, Pat!",
diziam quando ela passava em sua cadeira de rodas. Ela
acenou para a vendedora da loja de produtos naturais onde
comprava seu suco de cenoura, e recebeu um "Oi, Pat!" em
resposta. Acenou para uma coreana na lavanderia e lhe
jogou um beijo, que foi retribuído. A irmã daquela mulher
trabalhava na quitanda, Pat pôde me comunicar. Entramos
numa sapataria, e Pat deixou bem claro o que procurava:
uma bota forrada de pele para o inverno que se aproximava.
"De zíper ou com velcro?", Dana perguntou. Pat não indicou
sua preferência, mas moveu a cadeira até a vitrine, decidiu-se e apontou sem hesitar para sua escolhida. "Mas são de
amarrar!", Dana estranhou. Pat sorriu e deu de ombros,
como quem diz "E daí? Alguém amarra para mim". Ela não
esquecia a vaidade: as botas, além de aquecer, tinham de ser
elegantes. ("Velcro uma ova!", dizia sua expressão.) Que
tamanho? Nove?"Dana indagou. Não, Pat gesticulou
dobrando o indicador: oito e meio.
Paramos no supermercado, onde ela sempre faz algumas
compras para si e para outros do hospital. Pat conhecia todos
os corredores e logo escolheu duas mangas maduras, uma
grande penca de bananas (gesticulando que boa parte destas,
ela distribuiria), uns sonhos pequenos e, no caixa, três
pacotes de bala. (Eram para os filhos de um servente de sua
ala no hospital, ela indicou.)Prosseguimos carregando as compras, e Dana me perguntou
aonde eu fora pela manhã. Respondi que comparecera a uma
reunião da Associação de Cultivadores de Samambaia do
Jardim Botânico de Nova York, e acrescentei: "Adoro
plantas". Pat, que entreouviu, fez um gesto abrangente e
apontou para si mesma, querendo dizer: "E eu também. Nós
dois adoramos plantas".
"Nada mudou depois do derrame", Dana comentou. "Ela
continua com todos os seus gostos e paixões de antes... Só
que agora", acrescentou com um sorriso, "está tão fissurada
que ninguém aguenta!". Pat riu e concordou.
Entramos numa lanchonete. Via-se que Pat não tinha
dificuldade com o cardápio. Ela indicou que não queria
batatas cozidas, e sim fritas, com torrada integral. Depois da
refeição, retocou o batom com capricho. ("Que vaidosa!",
Dana exclamou com admiração.) Dana estava em dúvida se
poderia levar a mãe em uma viagem de navio. Mencionei os
enormes navios de cruzeiro que vira no porto de Curaçau, e
Pat, interessada, perguntou, com ajuda do seu livro, se eles
zarpavam de Nova York. Tentei desenhar um navio no meu
caderno. Pat riu e, com a mão esquerda, desenhou outro
muito melhor.
Em Janeiro de 2002 recebi uma carta de Howard Engel,
escritor canadense conhecido pela série de histórias do
detetive Benny Cooperman, em que descrevia um estranho
problema. Contou que alguns meses antes, acordou certa
manhã sentindo-se bem, vestiu-se, preparou o desjejum e
foi até a varanda pegar o jornal. Mas o jornal ao pé da porta
parecia ter sofrido uma transformação impressionante:
O Globe and Mail de 31 de Julho de 2001 parecia o mesmo
de sempre, na composição, nas ilustrações, nos cabeçalhos e
nas legendas menores. A única diferença era que eu não
conseguia mais ler o que estava escrito ali. Eu podia ver que
as letras que o compunham eram as 26 letras do alfabeto
inglês com as quais eu estava habituado. Só que agora,
quando eu as focalizava, ora pareciam cirílico, ora coreano.
Seria uma versão servo-croata do meu jornal, feita para
exportação? [...] Estaria alguém me pregando uma peça?
Tenho amigos bem capazes de coisas assim. [...] Fiquei
tentando imaginar alguma gracinha ainda Maior para
retribuir. Depois pensei na possibilidade alternativa.
Verifiquei as páginas internas do jornal, para ver se eram tão
estranhas quanto a primeira. Olhei os classificados e os
quadrinhos. Também não consegui ler nada. [...] O pânico
deveria ter me dominado por completo, mas não. Em vez
disso, fui tomado por uma calma racional, prática. "Já que
não é alguém fazendo uma brincadeira, só posso ter sofrido
um derrame".
Junto com essa conclusão veio-lhe a lembrança de um relato
que lera alguns anos antes, "O caso do pintor daltônico", de
minha autoria. Recordou-se especificamente de que o sr. I.,
meu paciente, descobriu ser incapaz de ler o boletim de
ocorrência sobre um acidente que sofrera e que lhe causara
uma lesão na cabeça — via letras de diversos tamanhos e
tipos, mas não conseguia decifrá-las, e disse que "pareciam
grego ou hebraico". Lembrou também que a incapacidade do
sr. I. para ler, sua alexia, durara cinco dias e depois
desaparecera.
Howard continuou a testar-se, virando as páginas para ver se
as coisas voltariam subitamente ao normal. Depois foi à sua
biblioteca, pensando: quem sabe "os livros se comportem
melhor do que o jornal". A sala parecia normal, e ele notou
que ainda conseguia ver as horas no relógio; mas seus livros,
a Maioria em inglês, alguns em francês e alemão, eram todos
ininteligíveis, e traziam a mesma escrita de aparência
"oriental".
Acordou o filho, e os dois tomaram um táxi para o hospital.
Pelo caminho, Howard julgou ver "pontos de referência
familiares em lugares desconhecidos". Não conseguiu ler o
nome das ruas por onde passaram, nem as palavras "Pronto-Socorro" quando chegaram ao hospital, embora
reconhecesse de imediato o desenho de uma ambulância na
porta. Foi submetido a uma série de exames, e sua suspeita
confirmou-se: tivera mesmo um derrame. Uma área limitada
das partes visuais do lado esquerdo do cérebro fora afetada,
disseram-lhe. Ele recordou mais tarde que se sentiu confuso
na hora de responder ao questionário para internação: "Não
consegui dizer exatamente qual era minha relação com meu
filho... Esqueci meu nome, idade, endereço e uma
infinidade de outras coisas".
Howard passou a semana seguinte na ala de neurologia do
Hospital Mount Sinai de Toronto. Durante esse período
ficou claro que ele tinha outros problemas visuais além da
incapacidade de ler: havia um grande ponto cego no
quadrante superior direito de seu campo visual, e ele tinha
dificuldade para reconhecer cores, rostos e objetos comuns.
As dificuldades iam e vinham, ele observou:
Objetos familiares como maçãs e laranjas de repente me
pareciam estranhos, como alguma fruta asiática exótica. Um
rambutan. Surpreso, eu me dava conta de que não sabia se
tinha nas mãos uma laranja ou um grapefruit, um tomate ou
uma maçã. Em geral conseguia distingui-los pelo olfato ou
pelo tato.
Ele esquecia frequentemente coisas antes bem conhecidas e
acabou por evitar conversas, escreveu, "com medo de
esquecer o nome do primeiro-ministro ou de quem
escreveu Hamlet".
Mas espantou-se ao constatar, graças à dica de uma
enfermeira, que ainda era capaz de escrever, muito embora
não conseguisse ler; ela lhe disse que o termo médico para
isso era "alexia sem agrafia". Howard ficou pasmo. Ora, ler e
escrever andam juntos; como é que ele podia perder uma
coisa e não a outra? A enfermeira sugeriu que tentasse fazer
sua assinatura; ele hesitou, mas assim que começou, a escrita
pareceu fluir por conta própria; logo em seguida à assinatura
ele redigiu duas ou três frases. O ato de escrever pareceu-lhe
absolutamente normal, automático, sem esforço como andar
ou falar. A enfermeira leu sem problemas o que ele
escrevera, mas ele não conseguiu ler uma só palavra. Aos
seus olhos, aquilo era a mesma escrita "servo-croata"
indecifrável que vira no jornal.
Concebemos a leitura como um ato contínuo e indivisível, e
quando lemos prestamos atenção ao significado e talvez à
beleza da linguagem escrita, inconscientes dos muitos
processos que a possibilitam. Só quando encontramos um
problema como o de Howard Engel nos damos conta de que
a leitura, na verdade, depende de toda uma hierarquia ou
cascata de processos que pode ser interrompida em qualquer
ponto.
Em 1890, o neurologista alemão Heinrich Lissauer aplicou o
termo "cegueira psíquica" a pacientes que, depois de um
derrame, tornavam-se incapazes de reconhecer visualmente
objetos familiares. Os portadores dessa deficiência, agnosia
visual, podem ter acuidade visual, percepção cromática,
campos visuais e outras capacidades normais, e ainda assim
ser incapazes de reconhecer ou identificar o que vêem.
A alexia é uma forma específica de agnosia visual, uma
incapacidade de reconhecer linguagem escrita. Depois que o
neurologista francês Paul Broca identificou em 1861 um
centro para as "imagens motoras" das palavras, como ele o
designou, e que seu colega alemão Carl Wernicke
identificou, alguns anos mais tarde, o centro para as
"imagens auditivas" das palavras, pareceu lógico aos
neurologistas do século XIX supor que também pudesse
haver uma área do cérebro dedicada às imagens visuais das
palavras — uma área que, se sofresse uma lesão, causaria
incapacidade para ler, uma "cegueira para palavras".
Em 1887, a pedido de um colega oftalmologista, o
neurologista francês Joseph-Jules Déjerine examinou um
paciente muito inteligente e culto que perdera subitamente a
habilidade de ler. Edmund Landolt, o oftalmologista,
escreveu uma descrição breve mas vividamente evocativa
do paciente, e Déjerine, em seu próprio artigo sobre o
assunto, incluiu um longo excerto do texto do colega.
Ambos relataram que, em outubro daquele ano, Oscar C.,
um homem de negócios aposentado, viu-se de repente
incapaz de ler. (Nos dias anteriores tivera alguns breves
adormecimentos na perna direita, mas não lhes dera
atenção.) Embora fosse impossível ler, o sr. C. não tinha
dificuldade para reconhecer as pessoas e objetos à sua volta.
Mesmo assim, achando que o problema poderia ser na visão,
procurou Landolt, que escreveu:
C. não consegue nomear nenhuma letra da tabela
optométrica. No entanto, afirma que as vê com clareza.
Delineia instintivamente o contorno das letras com a mão,
porém ainda assim é incapaz de dizer o nome delas. Se lhe
for pedido que escreva num papel o que vê, ele consegue,
com grande dificuldade, copiar as letras, linha por linha,
como se estivesse fazendo um desenho técnico, examinando
cuidadosamente cada traço para se assegurar de que está
desenhando com exatidão. Apesar desses esforços, continua
incapaz de nomear as letras. Ele compara o A com um
cavalete, o Z com uma serpente e o P com uma fivela. Está
assustado com sua incapacidade de expressar-se. Acha que
"enlouqueceu", pois tem plena consciência de que os sinais
que não consegue nomear são letras.
Como Howard Engel, o sr. C. era incapaz de ler até as
manchetes do jornal, apesar de reconhecê-lo pelo formato
como o seu jornal de sempre, Le Matin. E como Howard,
ele podia escrever sem problema algum:
Embora ler seja impossível, o paciente [...] consegue redigir
fluentemente e sem erro qualquer texto que lhe for ditado.
Mas sefor interrompido no meio de uma frase que estiver
escrevendo [...] ele se confunde e não consegue retomar a
escrita. Além disso, se cometer um erro, não é capaz de
encontrá-lo [...] Não é capaz de reler o que escreveu.
Mesmo as letras isoladas não fazem sentido para ele. Só
consegue reconhecê-las [...] traçando seu contorno com a
mão. Portanto, é a percepção do movimento muscular que
lhe traz o nome da letra. [...]Ele é capaz de fazer somas simples, pois reconhece números
com relativa facilidade. No entanto, é muito lento. Lê mal os
números, pois não consegue reconhecer o valor de vários
números simultaneamente. Quando lhe é mostrado o
número 112, ele diz: "é um 1, um 1 e um 2", e só quando
escreve o número consegue dizer "cento e doze"
Havia mais algumas anomalias visuais: os objetos pareciam
mais baços e um pouco borrados do lado direito e
totalmente sem cor. Estas, juntamente com a especificidade
da alexia de Oscar C., indicaram a Landolt que o problema
básico não estava nos olhos, e sim no cérebro; por isso ele
encaminhou o paciente a Déjerine.
O neurologista fascinou-se com o problema do sr. C. e
marcou-lhe duas consultas por semana em sua clínica em
Paris. Em um monumental artigo escrito em 1892, Déjerine
expôs sucintamente suas conclusões neurológicas, e em
seguida, em um estilo mais livre, descreveu em linhas gerais
a vida do paciente:
C passa os dias fazendo longas caminhadas com a esposa.
Não tem dificuldade para andar, e todos os dias vai e volta a
pé do bulevar Montmartre até o Arco do Triunfo para tratar
de seus assuntos fora de casa. Entende o que se passa à sua
volta, pára defronte a lojas, olha os quadros na vitrine das
galerias etc. Somente os cartazes e placas nas lojas
continuam para ele a ser como uma coleção de letras. Isso o
exaspera, e embora seu problema já dure quatro anos, ele
nunca aceitou a ideia de que não é capaz de ler se
permanece capaz de escrever. [...] Apesar de pacientes
exercícios e muito esforço, ele nunca recuperou a noção das
letras e das palavras escritas, tampouco reaprendeu a ler
notas musicais.
Apesar disso, Oscar C., que era excelente cantor, ainda podia
aprender músicas novas de ouvido e continuava a praticar
música em companhia de sua mulher todas as tardes. E ainda
apreciava jogar cartas, atividade em que se sobressaía: "Ele é
um ótimo jogador, calcula muito bem, prepara as jogadas
com bastante antecedência e vence na Maioria das vezes".
(Déjerine não explicou como o sr. C. era capaz de "ler" as
cartas, mas é provável que reconhecesse as imagens icônicas
de cada naipe e do valete, dama, rei e ás — exatamente
como Howard Engel reconheceu o desenho da ambulância
quando chegou ao pronto-socorro. As cartas numéricas do
baralho, obviamente, também podem ser reconhecidas por
seus padrões.)Quando Oscar C. morreu depois de um segundo derrame,
Déjerine fez a autópsia e encontrou duas lesões no cérebro:
uma mais antiga, que destruíra parte do lobo occipital
esquerdo e era, ele supôs, a responsável pela alexia do
paciente, e uma lesão Maior, mais recente, que
provavelmente causara sua morte.
E sempre difícil fazer inferências com base na aparência do
cérebro na autópsia. Podemos encontrar áreas com lesão,
porém nem sempre é possível descobrir suas diversas
conexões com outras áreas do cérebro ou determinar o que
controla o quê. Déjerine sabia disso; ainda assim, achou que
relacionando um sintoma neurológico específico, a alexia, a
uma lesão em uma área cerebral específica, demonstrara, em
princípio, a existência no cérebro do que chamou de "centro
visual para as letras".
A descoberta dessa área essencial à leitura por Déjerine seria
confirmada no decorrer dos cem anos seguintes por
numerosos casos semelhantes e laudos de autópsia de
pacientes com alexia, independentemente da causa.
Nos anos 1980, exames de tomografia computadorizada e
ressonância magnética permitiram visualizar o cérebro vivo
de modo imediato e com uma precisão impossível em
autópsias (nas quais inúmeras alterações secundárias podem
atrapalhar a análise). Usando essa tecnologia, Antonio e
Hanna Damásio, e posteriormente outros pesquisadores,
puderam novamente confirmar as conclusões de Déjerine e
correlacionar sintomas de seus pacientes aléxicos a lesões
cerebrais muito específicas.
Alguns anos depois, com o advento da tecnologia de
imageamento funcional do cérebro, tornou-se possível
visualizar a atividade deste em tempo real, enquanto a
pessoa executa tarefas diversas. Um estudo pioneiro baseado
em tomografia por emissão de pósitrons (PET), realizado por
Steven Petersen, Marcus Raichle e colegas, mostrou as
diferentes áreas do cérebro que são ativadas quando uma
pessoa lê, ouve, emite e associa palavras. "Pela primeira vez
na história, as áreas responsáveis pela linguagem foram
fotografadas no cérebro humano vivo", exultou Stanislas
Dehaene em seu livro Reading in the brain.
Dehaene, psicólogo e neurocientista, especializou-se no
estudo dos processos envolvidos na percepção visual,
especialmente o reconhecimento e representação de
palavras, letras e números. Usando a tecnologia da
ressonância magnética funcional (FMRI), que é muito mais
rápida e mais sensível do que a PET, Dehaene e seus colegas
puderam examinar ainda mais minuciosamente o que ele
chama de área de formação visual das palavras ou, mais
informalmente, "a caixa de letras do cérebro".
Os estudos de Dehaene (com Laurent Cohen e outros)
mostraram que a área de formação visual das palavras pode
ser ativada em uma fração de segundo por uma única palavra
escrita e que essa ativação inicial, puramente visual,
dissemina-se então para outras áreas do cérebro,
especialmente os lobos temporais e frontais.
A leitura, evidentemente, não termina com o
reconhecimento das formas visuais das palavras. Seria mais
exato dizer que é nesse momento que ela começa. A
linguagem escrita destina-se a comunicar não apenas o som
das palavras, mas também seu significado, e a área de
formação visual das palavras tem conexões íntimas com as
áreas cerebrais da audição e da fala, com as áreas intelectuais
e executivas e também com as áreas úteis à memória e à
emoção. A área de formação visual de palavras é um nodo
essencial em uma complexa rede cerebral de conexões
recíprocas — uma rede que parece existir apenas no cérebro
humano.
Escritor prolífico e leitor onívoro, habituado a ler jornais
toda manhã e muitos livros por semana, Howard Engel
perguntava-se como conseguiria viver com sua alexia, que
não dava sinais de desaparecer. Num mundo repleto de
placas de trânsito, rótulos impressos, bulas, menus e manuais
de instruções para tudo, o dia a dia é uma luta incessante
para um aléxico. Mas para Howard a situação era ainda mais
desesperadora, pois toda a sua vida e identidade (sem falar
no seu ganha-pão) dependiam de sua capacidade de ler e
escrever.
Ser capaz de escrever sem ler poderia servir para uma carta
breve ou um memorando, uma ou duas páginas. No entanto,
tudo sopesado, ele pensava, era "como se me dissessem que
minha perna direita teria de ser amputada, mas que eu
poderia ficar com a meia e o sapato". Que esperança ele
poderia ter de voltar ao seu trabalho de antes — escrever
uma elaborada narrativa de crime e investigação, cheia de
intrigas e contra-intrigas, fazer todas as correções, revisões e
novos rascunhos que um escritor precisa fazer, sem ser
capaz de ler? Seria necessário que outros lessem para ele, ou
talvez encontrar algum novo software engenhoso que lhe
permitisse escanear o que escrevera e obter uma reprodução
falada pelo computador. Ambas as soluções envolveriam
uma mudança radical da visualidade da leitura, da aparência
das palavras na página para um modo de percepção
essencialmente auditivo — na verdade, ouvir em vez de ler
e, talvez, falar em vez de escrever. Seria isso desejável, ou
mesmo possível?Essa mesma questão se apresentou a outro escritor que veio
consultar-se comigo dez anos antes. Charles Scribner Jr.,
também um literato, era o presidente da editora fundada por
seu bisavô nos anos 1840. Aos sessenta anos passou a sofrer
de alexia visual, provavelmente em consequência de um
processo degenerativo nas partes visuais do cérebro. Era um
problema devastador para um homem que publicara, entre
outras, a obra de Hemingway — um homem cuja vida girava
em torno de ler e escrever.
Como editor de livros, Scribner não tinha muita simpatia
pelos áudio-livros, introduzidos pouco tempo antes aos
consumidores. Mesmo assim, decidiu reconstruir toda a sua
vida literária no modo auditivo. Para sua surpresa, isso não se
revelou tão difícil quanto ele previra. Ele até começou a
gostar de ouvir áudio-livros:
Jamais me ocorrera que os livros falados se tornariam uma
parte fundamental da minha vida intelectual e das leituras
recreativas. Mas agora acho que já "li" centenas de livros
desse modo. Nunca fui um leitor rápido quando menino,
apesar de reter o que lia facilmente na memória.
Paradoxalmente, quando passei a ler livros gravados, minha
velocidade de leitura ficou melhor do que nunca, e minha
retenção tão boa quanto antes. Posso dizer com acerto que,
para mim, a descoberta desse modo de leitura foi uma
espécie de "abre-te sésamo" para que eu continuasse a
desfrutar da literatura.
Como Howard, Scribner preservou a capacidade de escrever, mas se afligia tanto com a incapacidade de ler o que
havia escrito que decidiu mudar para o ditado, algo que
nunca havia tentado antes. Felizmente essa mudança
também foi bem-sucedida: ditar funcionou tão bem que lhe
permitiu completar mais de oitenta colunas de jornal e dois
extensos relatos sobre sua vida no mundo editorial. "Talvez
este seja mais um exemplo de uma deficiência que acaba
burilando uma habilidade", escreveu. Com exceção de seus
parentes e amigos mais chegados, parecia que ninguém se
dava conta de que ele realizava tudo aquilo graças a um
modo de trabalhar inteiramente novo.
Seria de esperar, inclusive por parte do próprio Howard, que
ele também recorresse a um modo auditivo de "ler" e
escrever. No entanto, seu caminho foi outro.
Depois da semana de internação no Hospital Mount Sinai,
ele foi transferido para um hospital de reabilitação; ali passou
quase três meses estudando a si mesmo, o que era e o que
não era capaz de fazer. Descobriu que quando não tentava
ler um jornal ou um cartão de alguém lhe desejando
melhora, podia esquecer-se da alexia:
O céu era azul, o sol brilhava nas janelas do hospital, o
mundo não se tornara desconhecido de repente. Minha
alexia só existia quando eu enfiava a cara num livro. A
palavra impressa a trazia à tona e me lembrava de que havia,
sim, um problema. E desse modo nasceu a tentação de
simplesmente evitar a leitura.
Mas isso, logo percebeu, era inaceitável para ele como leitor
e escritor. Os áudio-livros podiam servir para outras pessoas,
não para ele. Ainda não conseguia sequer reconhecer as
letras individualmente, mas estava decidido a voltar a ler.
Dois meses depois de ter sofrido o derrame, ainda internado
no hospital de reabilitação, Howard tinha contínuas
dificuldades de reconhecer lugares. Perdia-se dentro do
hospital três ou quatro vezes por dia, e só conseguia
encontrar seu quarto quando finalmente reconhecia o piso,
"pelo modo como a luz entrava no corredor defronte ao
elevador". Continuava a apresentar também alguma agnosia
para objetos. Mesmo quando voltou para casa depois de três
meses, ele comentou, "vivia encontrando latas de atum
dentro da lavadora de louça e porta-lápis no freezer".
Com a leitura, porém, Howard notou alguns sinais de
melhora: "As palavras já não me pareciam escritas em um
alfabeto desconhecido. As letras, em si, tinham a aparência
das letras normais do inglês, e não do servo-croata que
imaginei depois do derrame".
Existem duas formas de alexia: uma grave, que impede o
reconhecimento até das letras individualmente, e outra mais
branda, que permite reconhecer letras, mas apenas uma por
uma, não simultaneamente como palavras. A essa altura,
Howard parecia ter passado à forma mais branda, talvez
graças a uma recuperação parcial dos tecidos afetados pelo
derrame ou ao uso pelo cérebro de trajetos alternativos (ou
talvez até à construção desses trajetos).
Com essa melhora neurológica, ele pôde, junto com seus
terapeutas, desenvolver novos modos de ler. Devagar,
laboriosamente, procurava adivinhar as palavras, letra por
letra, forçando-se a decifrar o nome de uma rua, de uma
loja, uma manchete no jornal. "Palavras conhecidas", ele
relatou,
Inclusive meu nome, são blocos de tipos com os quais não
tenho familiaridade, e preciso enunciá-las lentamente. Toda
vez que um nome reaparece em um artigo ou resenha, é
para mim tão estranho quanto da primeira vez que o vi.
Apesar disso, ele persistiu:
Embora essa não fosse a leitura fluente a que estava
habituado, frustrante como o diabo às vezes, eu ainda era
um leitor. A bomba que atingiu meu cérebro não conseguiu
me transformar em outra coisa. Ler estava arraigado em
mim. Eu não podia parar de ler do mesmo modo que não
podia parar meu coração. [...] A ideia de ser separado de
Shakespeare e companhia me arrasava. Minha vida fora
construída lendo tudo o que via pela frente.
Howard adquiriu com a prática um pouco mais de facilidade
para ler, embora pudesse demorar vários segundos para
decifrar uma única palavra. "Palavras de comprimentos
diferentes, como baú, gato e hipopótamo", ele observou,
"são processadas na minha cabeça a velocidades distintas.
Cada letra acrescentada aumenta o peso que estou tentando
erguer". Ler de relance uma página, ler no sentido usual,
ainda era impossível, e "todo o processo", ele escreveu, "me
deixava indescritivelmente exausto". No entanto, às vezes
ele olhava para uma palavra e um par de letras subitamente
lhe saltava à vista e era reconhecido — por exemplo, o bi no
meio do nome do seu editor —, ainda que as letras
precedentes e subsequentes permanecessem ininteligíveis.
Ele se perguntava se não teria sido assim, "juntando
pedaços", que ele aprendera a ler quando criança, se talvez
não seria assim o modo como todos nós aprendemos a ler
antes de começar a perceber as palavras, e mesmo as
sentenças, como um todo. (Pares de letras, e talvez grupos,
são particularmente importantes na construção e leitura de
palavras, e quer a pessoa esteja aprendendo a ler pela
primeira vez ou reaprendendo depois de um derrame,
parece ocorrer um progresso natural, começando por ver
letras isoladas e passando a ver pares ou sequências de letras.
Dehaene e colegas especularam que talvez o cérebro possua
neurônios "bigramas" dedicados a esse aprendizado.)
Tornar-se um leitor fluente é uma tarefa difícil que se realiza
em vários níveis; para a Maioria das crianças, requer anos de
prática e ensino (embora uma minoria precoce consiga
aprender sozinha e mais cedo que o normal). Em alguns
aspectos, Howard estava reduzido ao nível de uma criança
na fase inicial da alfabetização. Mas com uma vida inteira de
experiência como leitor, ele também podia contornar suas
deficiências em certo grau, pois seu vasto vocabulário, seus
conhecimentos gramaticais e seu comando literário e
idiomático ajudavam-no a adivinhar ou inferir palavras e até
sentenças com base em ínfimas pistas.
Qualquer que seja o idioma em que a pessoa lê, ocorre a
ativação da mesma área do córtex inferotemporal, a área da
formação visual de palavras. Faz relativamente pouca
diferença se a língua usa um alfabeto, como o grego ou o
inglês, ou ideogramas, como o chinês." Isso foi confirmado
por estudos de lesões como os de Déjerine, e por estudos
baseados em imagens do cérebro. Além disso, a ideia é
reforçada pela observação de distúrbios "positivos" —
excessos ou distorções de função produzidos por
hiperatividade dessa mesma área. O oposto da alexia, nesse
sentido, é a alucinação lexical ou textual, ou letras fantasmas.
Pacientes com distúrbios no trajeto visual (em qualquer
ponto da retina ao córtex visual) podem ser propensos a
alucinações visuais, e Dominic ffytche e colegas estimam
que cerca de um quarto desses pacientes sofrem alucinações
nas quais vêem "texto, palavras isoladas, letras individuais,
números ou notas musicais". Essas alucinações lexicais,
como descobriram ffytche e colegas, são associadas à
ativação perceptível da região occipito-temporal esquerda,
especialmente a área de formação visual de palavras — a
mesma que, quando lesada, causa alexia.
Portanto, quer examinemos pacientes com alexia, pacientes
com alucinações lexicais ou pessoas normais lendo, em
qualquer língua, chegamos forçosamente à mesma
conclusão: existe, em todo ser humano letrado, uma área no
hemisfério dominante — o hemisfério da linguagem —, um
sistema neuronal potencialmente disponível para o
reconhecimento de letras e palavras (e talvez outras formas
de notação visual — matemática ou musical, por exemplo).
Isso introduz uma questão fundamental: por que todos os
seres humanos têm esse equipamento inato para ler se a
leitura é uma invenção cultural relativamente recente?
A comunicação pela palavra falada — e portanto sua base
neural — traz todas as marcas de ter evoluído através dos
processos graduais da seleção natural. A anatomia em
mudança do cérebro do homem pré-histórico foi descoberta
com certo detalhamento com base em moldes
endocranianos e outras evidências fósseis, e o mesmo se
pode dizer das mudanças no trato vocal. Está claro que a fala
começou a desenvolver-se há centenas de milhares de anos.
Mas isso não se aplica à leitura, uma vez que a escrita surgiu
há pouco mais de 5 mil anos — tempo insuficiente para que
tenha evoluído por seleção natural. Embora a área de
formação visual das palavras no cérebro humano pareça ser
primorosamente sintonizada com o ato de ler, não pode ter
evoluído especificamente para tal propósito.
Poderíamos chamar essa questão de problema de Wallace,
pois Alfred Russell Wallace (que descobriu a seleção natural
independentemente de Darwin) interessou-se à fundo pelo
paradoxo das muitas habilidades potenciais do cérebro
humano — léxicas, matemáticas etc. — que não teriam
utilidade em uma sociedade primitiva ou pré-histórica. Ele
achava que embora a seleção natural pudesse explicar o
aparecimento de habilidades imediatamente úteis, não podia
explicar a existência de capacidades potenciais que só dali a
centenas de milhares de anos, com o desenvolvimento de
uma cultora avançada, poderiam tornar-se manifestas.
Incapaz de atribuir esses potenciais humanos a algum
processo natural, Wallace viu-se coagido a invocar o
sobrenatural: Deus deve tê-los implantado na psique
humana. Da perspectiva de Wallace, não poderia haver
melhor exemplo de um dom divino — uma nova e exclusiva
faculdade, aguardando latente a sua hora, à espera da
ascensão de uma cultura suficientemente avançada.
Darwin, compreensivelmente, horrorizou-se com tal ideia e
escreveu a Wallace: "Espero que não tenhas assassinado
completamente a tua criança e a minha". Darwin tinha uma
visão mais aberta do processo da seleção natural e adaptação,
pois anteviu que as estruturas biológicas poderiam encontrar
usos muito diferentes daqueles dos quais haviam
originalmente evoluído. (Stephen Jay Gould e Elizabeth
Vrba chamaram esse tipo de realocação de "exadaptação",
em vez de adaptação direta.)
Então como foi que surgiu a área de formação visual de
palavras no cérebro humano? Será que ela existe no cérebro
dos iletrados? Terá ela uma precursora nos cérebros de
outros primatas?Todos nós vivemos em um mundo de visões, sons e outros
estímulos, e nossa sobrevivência depende de fazermos uma
rápida e acurada interpretação deles. Compreender o mundo
à nossa volta tem de ser algo baseado em algum tipo de
sistema, algum modo rápido e certeiro de analisar o
ambiente. Embora ver objetos, defini-los visualmente,
pareça ser instantâneo e inato, constitui na verdade uma
tremenda façanha perceptual que requer toda uma
hierarquia de funções. Não vemos os objetos como tais;
vemos formas, superfícies, contornos e fronteiras, que se
apresentam em diferentes luminosidades ou contextos e
mudam de perspectiva quando se movimentam ou quando
nos movimentamos. Desse caos visual complexo e mutável
temos de extrair invariantes que nos permitam inferir ou
supor a qualidade do objeto. Não seria econômico supor que
existem representações individuais, ou engramas, para cada
um dos bilhões de objetos ao nosso redor. A capacidade de
combinação precisa ser convocada; precisamos de um
conjunto finito ou vocabulário de formas que possa ser
combinado de um número infinito de modos, assim como as
26 letras do alfabeto podem ser reunidas (sob determinadas
regras ou restrições) para formar quantas palavras ou
sentenças forem necessárias a uma língua.
Talvez alguns objetos possam ser reconhecidos logo que
nascemos ou pouco depois, por exemplo, os rostos. Afora
esses, porém, o mundo dos objetos precisa ser aprendido por
meio de experiência e atividade: olhando, tocando,
manuseando, correlacionando as impressões dadas pelos
objetos com a aparência deles. O reconhecimento visual de
objetos depende dos milhões de neurônios do córtex ínfero-temporal, e nessa área a função neuronal é muito plástica,
aberta e altamente responsiva a experiência e treinamento, à
educação. Os neurônios ínfero-temporais evoluíram em
função do reconhecimento visual geral, mas podem ser
recrutados para outros propósitos — mais notavelmente, a
leitura.
Essa realocação de neurônios é facilitada pelo fato de que
todos os sistemas (naturais) de escrita parecem ter em
comum certas características topológicas com o ambiente,
características que nosso cérebro evoluiu para decodificar.
Mark Changizi, Shinsuke Shimojo e colegas do Instituto de
Tecnologia da Califórnia fizeram uma análise por
computador de mais de uma centena de sistemas de escrita
antigos e modernos, inclusive sistemas alfabéticos e
ideogramas chineses. Mostraram que todos eles, embora
sejam geometricamente muito diferentes, têm em comum
certas semelhanças topológicas básicas. (Essa assinatura
visual não se evidencia em sistemas de escrita artificiais,
como a taquigrafia, que privilegiam a velocidade em vez do
reconhecimento visual.) Changizi et al. encontraram
invariantes topológicas semelhantes em um conjunto de
cenários naturais, o que os levou a supor que as formas das
letras "foram selecionadas para lembrar as conglomerações
de contornos encontradas em cenas naturais, recorrendo,
assim, aos nossos mecanismos já existentes de
reconhecimento de objetos".
A escrita, uma ferramenta cultural, evoluiu fazendo uso da
preferência de neurônios ínfero-temporais por certas
formas. "A forma das letras", escreve Dehaene, "não é uma
escolha cultural arbitrária. O cérebro restringe a tal ponto a
configuração de um sistema de escrita eficiente que há
pouca margem para o relativismo cultural. Nosso cérebro
primata só aceita um conjunto limitado de formas escritas".
Essa é uma elegante solução para o "problema de Wallace"
— na verdade, mostra que o problema não existe. A origem
da escrita e da leitura não pode ser vista como uma
adaptação evolucionária direta. Ela depende da plasticidade
do cérebro e do fato de que mesmo no pequeno período de
vida de um ser humano, a experiência — a seleção pela
experiência — é um agente de mudança tão poderoso
quanto a seleção natural. Esta, para Darwin, não proibia
desenvolvimentos culturais e individuais em uma escala
temporal centenas de milhares de vezes mais rápida do que
o desenvolvimento evolucionário — ao contrário, preparava
o terreno para eles. Somos letrados não por intervenção
divina, mas em virtude de uma invenção cultural e de uma
seleção cultural que faz um novo uso, brilhante e criativo,
de uma inclinação neural preexistente.
Embora a área de formação visual de palavras seja crucial
para o reconhecimento de palavras e letras, muitas outras
áreas do cérebro estão envolvidas nos níveis "superiores" da
leitura. Esse fato permitia a Howard, por exemplo, inferir
palavras a partir do contexto. Mesmo agora, nove anos
depois de ter sofrido o derrame, ele é incapaz de reconhecer
de relance palavras simples — mas a sua imaginação de
escritor não depende apenas de ler.
Enquanto ele ainda estava internado no hospital de
reabilitação, um de seus terapeutas sugeriu que ele usasse um
"livro de memória" para anotar compromissos e registrar
seus pensamentos. Howard, que toda a vida escrevera em
seu diário, adorou a ideia. Seu novo livro de memória
mostrou-se inestimável, ajudando não só a estabilizar sua
ainda errática memória, mas também a reforçar sua
identidade como escritor:
Eu sabia que não podia mais depender do "band-aid" da
memória. Eu podia esquecer uma palavra na segunda parte
do que estava dizendo, embora já houvesse usado o termo
um momento antes. [...] Aprendi a anotar as coisas no "livro
de memória" [no momento em que eu pensava nelas]. [...] O
livro de memória aumentou minha sensação de estar na
direção da minha própria vida. Tornou-se meu companheiro
constante: em parte diário, em parte caderno de anotações,
além de um livro comum. Os hospitais, em certo grau,
favorecem a índole passiva; o livro de memória me
devolveu um pedaço de mim mesmo.
Ter um livro de memória o convidava, forçava-o a escrever
todo dia, não só para formar palavras e sentenças legíveis,
mas também em um nível criativo muito mais profundo.
Seu diário sobre a vida no hospital, com suas diversas rotinas
e personagens, começou a atiçar sua imaginação de escritor.
Ocasionalmente, Howard podia hesitar quanto à grafia de
palavras pouco usuais ou nomes próprios — não conseguia
vê-los na imaginação, com o olhar da mente, da mesma
maneira que não podia percebê-los quando os tinha
impresso diante dos olhos. Desprovido da capacidade de usar
imagens mentais, ele tinha de empregar outras estratégias
para soletrar. A mais simples delas, descobriu, era escrever
uma palavra no ar com o dedo e deixar que o ato motor
tomasse o lugar do sensitivo.
O grande neurologista francês Jean-Martin Charcot, em uma
conferência que proferiu em 1883 sobre um caso de cegueira para palavras, descreve um paciente que, como Howard,
tinha alexia sem agrafía. Charcot escreve o nome do hospital
(que o próprio paciente havia escrito antes) e lhe pede que o
leia: "[O paciente] é incapaz de fazê-lo no início; mas
continua a esforçar-se e, enquanto realiza a tarefa, notamos
que ele traça, com a ponta do indicador direito, uma das
letras que constituem a palavra, até que, com grande
dificuldade, ele diz: 'La Salpêtrière'". Quando Charcot lhe dá
para ler o nome de uma rua, o paciente "traça com o dedo
no espaço as letras que compõem a palavra, e depois de
alguns momentos diz, 'É a Rue d'Aboukir, o endereço do
meu amigo'".
O paciente de Charcot progrediu rapidamente na habilidade
de "ler" traçando letras no ar, e em três semanas sua
velocidade de leitura quase sextuplicara. Ele relatou: "Não
sou tão bom em ler um texto impresso quanto em escrever,
pois quando escrevo tenho mais facilidade para reproduzir
mentalmente a letra com a mão direita, ao passo que é mais
difícil para mim reproduzir os caracteres impressos".
("Quando lê textos impressos", Charcot observou, "é
conveniente que ele tenha uma caneta na mão".)
Concluindo sua conferência, Charcot ressaltou: "Em resumo,
podemos dizer que ele só lê no ato de escrever".
Portanto, cada vez mais, e muitas vezes inconscientemente,
Howard começou a mover as mãos enquanto lia, traçando o
contorno das palavras e sentenças ainda ilegíveis para seus
olhos. Outra ocorrência notável foi que sua língua começou
a mover-se também, traçando as formas das letras nos
dentes ou no céu da boca. Isso lhe permitiu ler
consideravelmente mais rápido (embora ele ainda pudesse
demorar um mês ou mais para ler um livro que antes podia
ler numa noite). Assim, por uma extraordinária alquimia
sensório-motora, metamodal, Howard estava substituindo a
leitura por uma espécie de escrita. Estava, efetivamente,
lendo com a língua.
Mais de três meses depois do derrame, Howard teve alta do
hospital de reabilitação e voltou para sua casa, mas não a
reconheceu totalmente:
A casa parecia ao mesmo tempo estranha e familiar. [...] Era
como se um cenário de filme houvesse sido montado a
partir de esboços da verdadeira casa e seus cômodos. O mais
esquisito era o meu escritório. Tive uma sensação estranha
ao olhar meu computador. Todo o escritório, onde eu havia
escrito vários livros, lembrava-me um diorama num museu.
[...] Em anotações num post-it, minha caligrafia me pareceu
estranha, desconhecida.
Conseguiria ele usar novamente esse computador estranho,
outrora sua principal ferramenta de trabalho? Com a ajuda
do filho, e para sua surpresa, ele começou a testar suas
antigas habilidades com o computador e logo sentiu que elas
retornavam. Mas escrever algo criativo era outra questão. E
ler, mesmo sua errática caligrafia, continuava a ser
penosamente lento e difícil. Além do mais, ele escreveu
depois,
Eu estivera fora do mundo por meses. Não conseguia mais
manter as coisas direito na cabeça. Como pude imaginar que
seria capaz de voltar para minha mesa e começar de novo?
Eu claramente estava inapto para a ficção. Desliguei o
computador e saí para uma longa caminhada.
Entretanto, em certo sentido Howard se mantivera
praticando, escrevendo todos os dias, ainda que apenas em
seu livro de memória. De início, ele escreveu:
Não me passou pela cabeça escrever um livro. Isso não só
estava muito além das minhas habilidades, mas além da
minha imaginação. Mas sem que eu soubesse, outra parte do
meu cérebro estava começando a criar um enredo. Imagens
começaram a surgir de repente na minha cabeça. Tramas e
reviravoltas passaram a rondar minha imaginação. No leito
do hospital [eu estivera] [...] trabalhando arduamente,
inventando histórias, personagens e situações para o livro
que ainda não sabia estar escrevendo.
Decidiu escrever — se pudesse — um novo romance, seguindo o velho conselho de sua mãe:
Escreva sobre o que conhece. [...] E o que eu conhecia agora
era minha doença. Conhecia as rotinas do hospital e as
pessoas que eu via lá. Poderia escrever um livro contando
como era estar de fora das coisas, passar todo um período
deitado de costas, com enfermeiras e médicos ordenando e
reordenando meus dias.
Ele reintroduziria seu alter ego, o detetive Benny
Cooperman, mas seria um Cooperman transformado: o
grande detetive acorda numa cama de hospital, com amnésia
e alexia. Apesar disso, suas habilidades dedutivas continuam
intactas e lhe permitem costurar pistas díspares para
descobrir como foi parar ali e o que aconteceu nos
misteriosos dias que ele não consegue mais recordar.
Howard entrou em um ritmo acelerado, digitando por horas
e horas no computador todos os dias. O problema passou a
ser como corrigir e revisar o rascunho, já que ele tinha
problemas com a memória de curto prazo e era incapaz de
ler do modo normal. Ele empregou vários expedientes
usando seu processador de texto, alinhando certos
parágrafos, grafando trechos com tamanhos diferentes de
fonte, e depois de fazer tudo o que sua capacidade lhe
permitira, pediu a seu preparador de texto que lesse todo o
livro para ele em voz alta, de modo que ele pudesse gravar
na memória sua estrutura geral e reorganizá-lo na mente.
Esse processo meticuloso consumiu muitos meses de
trabalho árduo, mas suas habilidades de recordar e revisar
mentalmente, assim como as habilidades de Lillian Kallir
para arranjar mentalmente partituras de piano, aumentaram
sem parar com a prática.
Seu novo romance (que ele intitulou Memory book) foi
publicado em 2005, e não demorou muito foi seguido por
outro da série Benny Cooperman e, em 2007, por um relato
biográfico, The man who forgot how to read. Howard Engel
ainda é aléxico, mas encontrou um modo de continuar
pertencendo ao mundo literário. O fato de ele ser capaz
disso é testemunho de muitas coisas: da dedicação e
habilidade de seus terapeutas durante a reabilitação, de sua
própria determinação de voltar a ler e da adaptabilidade do
cérebro humano.
"Os problemas nunca desapareceram", Howard escreveu,
"mas eu me tornei mais esperto para resolvê-los".
É com o rosto que defrontamos o mundo, do instante do
nascimento até o da morte. Nele estão impressos nossa idade
e sexo. Nossas emoções, as indisfarçadas e instintivas, sobre
as quais Darwin escreveu, assim como as reprimidas, que
foram descritas por Freud, revelam-se no rosto juntamente
com pensamentos e intenções. Embora possamos admirar
braços e pernas, seios e nádegas, é, sobretudo, o rosto que
pode ser julgado "belo", em um sentido estético, "bom" ou
"distinto", em um sentido moral ou intelectual. E é
fundamentalmente pelo rosto que podemos ser
reconhecidos como indivíduos. Trazemos no rosto as
marcas do que vivenciamos e do nosso caráter; dizem que
aos quarenta anos um homem tem o rosto que merece.
Bebês de dois meses e meio respondem com um sorriso a
um rosto sorridente. "Quando a criança sorri", escreve
Everett Ellinwood, "normalmente leva o humano adulto a
interagir com ela — sorrir, falar, pegar no colo —, em outras
palavras, a iniciar o processo de socialização. [...] A relação
de entendimento recíproco entre mãe e filho só é possível
graças ao contínuo diálogo entre rostos." O rosto, para a
psicanálise, é o primeiro objeto que adquire sentido e
significado visual. Mas será que os rostos pertencem a uma
categoria especial para o sistema nervoso?
Desde que me conheço por gente, tenho dificuldade para
reconhecer rostos. Quando criança não me preocupava
muito com isso, mas na adolescência, em um colégio novo,
sofri muitos constrangimentos. Minha frequente
incapacidade de reconhecer os colegas deixava-os pasmos, às
vezes indignados. Não lhes ocorria (e por que deveria?) que
eu tinha uma deficiência perceptual. Geralmente eu
reconhecia amigos chegados sem grandes problemas, em
especial meus dois melhores amigos, Eric Korn e Jonathan
Miller. Mas isso, em parte, era porque eu identificava neles
traços especiais: Eric tinha sobrancelhas densas e usava
óculos de aro grosso, e Jonathan era alto, desengonçado e
tinha uma cabeleira ruiva desgrenhada. Jonathan era um
bom observador de posturas, gestos e expressões faciais, e
parecia nunca esquecer um rosto. Uma década depois,
quando fomos ver as fotos dos tempos de escola, ele ainda
podia reconhecer centenas dos nossos colegas, enquanto eu
não reconhecia nenhum.
E não era só com rostos. Quando saía para uma caminhada
ou um passeio de bicicleta, tinha de fazer exatamente o
mesmo percurso, pois sabia que se me desviasse, um
mínimo que fosse, no mesmo instante estaria
irremediavelmente perdido. Eu queria ser aventureiro, ir a
lugares exóticos, mas só podia fazer isso se um amigo me
acompanhasse na bicicleta ao lado.
Aos 76 anos, apesar de toda uma vida tentando compensar
minha deficiência, continuo com a mesma dificuldade para
reconhecer rostos e lugares. Desconcerto-me
particularmente quando vejo pessoas fora do contexto, até
mesmo se as tiver visto cinco minutos antes. Isso aconteceu
certa manhã pouco depois de uma consulta com meu
psiquiatra (há vários anos que vou ao consultório dele duas
vezes por semana). Poucos minutos depois de eu ter saído
da sala, um homem sobriamente vestido me cumprimentou
no saguão do edifício. Fiquei intrigado: aquele estranho
parecia me conhecer; e então o porteiro se dirigiu a ele pelo
nome — era, evidentemente, o meu psiquiatra. (Esse
episódio foi tema da nossa seção seguinte. Acho que ele não
acreditava totalmente quando eu dizia que meu problema
tinha causas neurológicas e não psiquiátricas.)
Poucos meses depois, meu sobrinho Jonathan Sacks veio me
visitar. Saímos para uma caminhada — eu morava então em
Mount Vernon, Nova York. Começou a chover. "E melhor a
gente voltar", Jonathan propôs, mas eu não consegui
encontrar minha casa nem minha rua. Depois de duas horas
dando voltas, ensopados, ouvi um grito. Era meu senhorio;
disse que me vira passar pela casa urnas três ou quatro vezes,
parecendo não a reconhecer.
Naquele período eu tinha de seguir pela Boston Post Road
para ir de Mount Vernon ao hospital em que trabalhava, no
Bronx, na avenida Allerton. Embora fizesse aquele trajeto
duas vezes ao dia por oito anos, a rua nunca se tornou
familiar para mim, nunca reconheci os prédios que a
ladeavam, e frequentemente eu entrava na esquina errada,
só percebendo o fato quando dava de cara com um dentre
dois pontos de referência que eram inconfundíveis até para
mim: de um lado, a avenida Allerton, sinalizada por uma
grande placa; do outro, a Bronx River Parkway, a grande
avenida arborizada que assoma para quem vem da Boston
Post Road.
Fazia já uns seis anos que eu trabalhava com minha assistente, Kate, quando combinamos de nos encontrar em um
escritório em Midtown para uma reunião com meu editor.
Cheguei, disse meu nome à recepcionista, mas não notei que
Kate já estava lá, sentada na sala de espera. Depois de uns
cinco minutos ela disse, sorrindo: "Olá, Oliver. Eu estava
aqui me perguntando quanto tempo você demoraria para me
reconhecer".
Festas, inclusive as minhas, são um desafio. (Mais de uma
vez Kate pediu a meus convidados para usarem crachá.) Já
fui acusado de ser "desligado", o que é sem dúvida verdade.
Mas acho que uma parte significativa do que chamam de
minha "timidez", "reclusão", "inépcia social",
"excentricidade" ou até "síndrome de Asperger" é
consequência e interpretação equivocada da minha
dificuldade de reconhecer rostos.
Essa dificuldade se estende não só às pessoas que me são
mais chegadas, mas até a mim mesmo. Em várias ocasiões,
por exemplo, pedi desculpas porque quase trombei com um
grandalhão barbudo e então me dei conta de que o
grandalhão barbudo era eu, refletido no espelho. A situação
oposta ocorreu certa vez num restaurante com mesas ao ar
livre. Sentado a uma mesa na calçada, olhei para a vidraça na
janela e me pus a ajeitar a barba, como tenho hábito de
fazer. Percebi então que o que eu pensava ser meu reflexo
não estava ajeitando a barba e olhava para mim com
estranhamento. Havia, sim, um sujeito de barbas grisalhas do
outro lado da vidraça, e ele provavelmente se perguntava
por que raios eu estava me arrumando diante dele.
Kate costuma alertar as pessoas a respeito desse meu
probleminha. Já vai dizendo às visitas: "Não pergunte se ele
se lembra de você, pois ele dirá que não. Apresente-se
dizendo seu nome e quem é". (E, para mim, pede: "Não diga
apenas não — é rude, magoará as pessoas. Diga 'Desculpe,
tenho uma enorme dificuldade para reconhecer pessoas.
Não reconheceria nem a minha própria mãe'".)
Em 1988 conheci Franco Magnani, o "artista da memória", e
nos dois anos seguintes passei semanas com ele conversando
sobre suas pinturas e sua vida, e até viajamos juntos para
visitar o vilarejo onde ele cresceu. Quando finalmente
submeti um artigo sobre ele à New Yorker, Robert Gottlieb,
na época editor-chefe da revista, leu o texto e deu seu
parecer: "Ótimo, fascinante — mas como é a aparência dele?
Pode acrescentar alguma descrição?". Rebati essa pergunta
incômoda (e para mim irrespondível) retrucando: "Que
importa a aparência dele? O artigo é sobre sua obra".
"Nossos leitores vão querer saber", Bob replicou. "Precisam
formar uma imagem dele."
"Vou ter de perguntar a Kate", falei. Bob me olhou com
estranheza.
Eu supunha simplesmente que tinha muita dificuldade para
reconhecer rostos, enquanto meu amigo Jonathan tinha
grande facilidade, que isso estava no limite da variação
normal e que ele e eu estávamos nos extremos opostos de
um espectro. Mas então viajei para a Austrália para visitar
meu irmão mais velho, Marcus, que por 35 anos eu vira só
muito raramente. Descobri que ele tinha exatamente a
mesma dificuldade de reconhecer rostos e lugares. Foi
quando comecei a perceber que isso estava um pouco fora
da variação normal: nós dois tínhamos uma característica
específica, chamada prosopagnosia, provavelmente com
uma base genética distinta.
Acabei percebendo de vários modos que havia outros como
eu. O encontro de duas pessoas com prosopagnosia, em
especial, pode ser complicadíssimo. Alguns anos atrás
escrevi a um colega elogiando seu novo livro. Sua assistente
telefonou a Kate para agendar um encontro, e as duas
combinaram para nós um jantar no fim de semana em um
restaurante do meu bairro.
"Talvez haja um problema", Kate avisou. "O dr. Sacks não
consegue reconhecer ninguém."
"Com o dr. W. é a mesma coisa", replicou a assistente dele.
"E tem mais", Kate acrescentou, "o dr. Sacks não é capaz de
encontrar restaurantes ou outros lugares; ele se perde com
muita facilidade. As vezes não consegue encontrar nem o
prédio onde mora."
"Sim, com o dr. W. é a mesma coisa", comentou a assistente.
Acabamos, sei lá como, conseguindo nos encontrar e desfrutar da companhia um do outro nesse jantar. Mas ainda
não tenho ideia da aparência do dr. W., e ele provavelmente
também não me reconheceria.
Esses exemplos até parecem cômicos, mas às vezes são
devastadores. Pessoas com prosopagnosia grave podem ser
incapazes de reconhecer o cônjuge ou de identificar seu
próprio filho em um grupo.
Jane Goodall também tem um certo grau de prosopagnosia.
Seu problema estende-se ao reconhecimento de
chimpanzés. Ela diz que muitas vezes não consegue
distinguir um chimpanzé pelo rosto. Assim que passa a
conhecê-lo bem, a dificuldade desaparece. Com sua família e
amigos ela também não tem dificuldade de reconhecimento.
No entanto, conta: "Tenho uma dificuldade tremenda
quando se trata de pessoas com rosto "comum". [...] Preciso
procurar por alguma verruga ou coisa assim. Fico muito
embaraçada! Posso passar um dia inteiro com alguém e não
reconhecer essa pessoa no dia seguinte".
Ela diz que também tem problemas para reconhecer lugares.
"Só mesmo quando tenho muita familiaridade com o trajeto
é que sei onde estou. Preciso olhar em volta e procurar
pontos de referência bem conhecidos para encontrar meu
caminho de volta. Isso era um grande problema na floresta,
e eu frequentemente me perdia".
Em 1985 publiquei "O homem que confundiu sua mulher
com um chapéu", um relato sobre o caso do dr. P., que
passara a sofrer de gravíssima agnosia visual. Ele se tornou
incapaz de reconhecer rostos ou expressões faciais. Além
disso, não podia identificar e nem ao menos categorizar
objetos; por exemplo, era incapaz de reconhecer uma luva,
de perceber que ela era um artigo de vestuário ou que se
assemelhava a uma mão. Uma ocasião, confundiu a cabeça
de sua mulher com um chapéu.
Depois que a história desse meu paciente foi publicada,
comecei a receber cartas de pessoas que comparavam suas
dificuldades de reconhecer lugares e rostos com as do dr. P.
Em 1991, Anne F. escreveu-me descrevendo seu caso:
Creio que três pessoas na minha família imediata têm
agnosia visual: meu pai, uma irmã e eu. Cada um de nós tem
características em comum com o dr. P., porém não no
mesmo grau, espero. A mais notável delas, que todos temos,
é a prosopagnosia. Meu pai, um homem que fez uma bem-sucedida carreira no rádio aqui no Canadá (ele tem um
talento especial para imitar vozes), foi incapaz de
reconhecer sua mulher em uma fotografia recente. Numa
festa de casamento, pediu a um estranho que identificasse o
homem sentado ao lado de sua filha (era o meu marido, e na
época estávamos casados havia cinco anos).
Em várias ocasiões já passei direto pelo meu marido,
olhando seu rosto, sem reconhecê-lo. No entanto, não
tenho dificuldade para reconhecê-lo em situações ou lugares
onde espero vê-lo. Também consigo reconhecer as pessoas
imediatamente assim que elas começam a falar, mesmo se
tiver ouvido a voz delas uma única vez muito tempo atrás.
Ao contrário do dr. P., acho que sou capaz de interpretar
bem as pessoas no nível emocional. [...] Não tenho o grau de
agnosia para objetos comuns que o dr. P. tinha. [Contudo],
como o dr. R, sou totalmente incapaz de fazer uma
representação topográfica do espaço. [...] Não tenho
memória para o lugar onde ponho as coisas, a menos que
codifique verbalmente a localização. Assim que um objeto
deixa minhas mãos, cai da borda do mundo em um vazio.
Enquanto Anne F. parece ter prosopagnosia e agnosia
topográfica de base familiar ou genética, outros podem
adquiri-las (ou outras formas de agnosia) em consequência
de um derrame, tumor, infecção ou traumatismo — ou,
como o dr. R, de uma doença degenerativa como a de
Alzheimer — que ocasione lesão em uma parte específica
do cérebro. Joan C., outra correspondente, era um caso raro:
tivera um tumor cerebral no lobo occipital direito quando
bebê, que foi removido quando ela estava com dois anos de
idade. Parece provável, embora seja difícil estabelecer com
certeza, que sua prosopagnosia resulte ou do tumor ou da
cirurgia. Sua incapacidade de reconhecer rostos frequentemente é mal interpretada pelas pessoas. "Já me chamaram de
mal-educada, desligada ou (segundo um psiquiatra) portadora
de distúrbio psiquiátrico", ela disse.
Continuei a receber cartas e mais cartas de pessoas com
prosopagnosia ou agnosia topográfica e tive então certeza de
que o "meu" problema visual não era incomum e sem dúvida
afetava muita gente no mundo inteiro.
O reconhecimento de rostos é crucial para os humanos, e a
grande Maioria de nós consegue identificar milhares de
rostosindividualmente, ou reconhecer com facilidade os
rostos familiares em uma multidão. É necessário uma
habilidade especial para fazer tais distinções, e ela é quase
universal não só nos humanos mas também em outros
primatas. Mas então como as pessoas com prosopagnosia se
arranjam?Nas últimas décadas aumentou muito nosso conhecimento
sobre a plasticidade do cérebro: como uma parte ou sistema
cerebral pode assumir as funções de uma área deficiente ou
lesada. Mas isso não parece ocorrer com a prosopagnosia ou
com a agnosia topográfica; essas geralmente são deficiências
vitalícias que não se atenuam conforme a pessoa avança em
anos. Portanto, quem sofre de prosopagnosia precisa ser
engenhoso, inventivo, encontrar estratégias, modos de
contornar sua deficiência: reconhecer pessoas por um nariz
incomum ou uma barba, pelos óculos ou pelo modo especial
de se vestir. Muitos prosopagnósicos reconhecem as
pessoas pela voz, postura ou modo de andar; além disso,
obviamente o contexto e a expectativa são fundamentais:
esperamos ver alunos na escola, colegas no escritório e assim
por diante. Tais estratégias, conscientes e inconscientes,
tornam-se tão automáticas que pessoas com prosopagnosia
moderada podem permanecer ignorantes do quanto seu
reconhecimento facial realmente é ruim e se espantam
quando isso lhes é revelado em testes (por exemplo, com
fotografias que omitem pistas auxiliares como cabelos ou
óculos).
Eu, por exemplo, sou incapaz de reconhecer determinado
rosto de relance, mas posso reconhecer várias coisas
relacionadas a um rosto: um nariz grande, um queixo
proeminente, sobrancelhas grossas, orelhas de abano. Traços
assim tornam-se marcadores que me permitem reconhecer
pessoas. (Acho que, por razões semelhantes, tenho mais
facilidade para reconhecer uma caricatura do que um retrato
ou uma fotografia simples.) Sou razoavelmente bom para
avaliar idade e gênero, embora mesmo nessas áreas eu já
tenha cometido algumas gafes embaraçosas. Sou muito
melhor em reconhecer pessoas pelo modo como elas se
movimentam, seu "estilo motor". E ainda que não consiga
reconhecer rostos específicos, sou sensível à beleza de um
rosto e às suas expressões.
Evito conferências, festas e grandes reuniões tanto quanto
possível, pois sei que elas me trarão ansiedade e situações
constrangedoras, decorrentes não só de não reconhecer
pessoas que conheço bem, mas também de cumprimentar
estranhos como se fossem velhos amigos. (Como muitos
prosopagnósicos, evito saudar as pessoas pelo nome, para
não dizer o nome errado, e dependo de outros para me
salvarem de gafes monumentais.)Tenho muito mais facilidade para reconhecer os cachorros
do meu bairro (pois possuem formas e cores características)
do que meus vizinhos. Por exemplo, quando vejo passar
uma moça com um cão da raça rhodesian ridgeback,
percebo que é a moradora do apartamento pegado ao meu.
Se avistar uma senhora com um golden retriever amistoso,
sei que é aquela que mora no fim do meu quarteirão. Mas se
eu topar com qualquer uma dessas mulheres sem que ela
esteja com seu cachorro, será como passar por uma estranha.
A idéia de que "a mente" — uma coisa imaterial, etérea —
podia incorporar-se em um pedaço de carne, o cérebro, era
intolerável ao pensamento religioso seiscentista. Daí o
dualismo de Descartes e outros. Mas os médicos, observando
os efeitos de derrames e outros danos ao cérebro, muito
tempo atrás já suspeitavam de que as funções da mente e do
cérebro eram associadas. Em fins do século xvin, o
anatomista Franz Joseph Gall supôs que todas as funções
mentais surgiam do cérebro — e não da "alma", como
muitos imaginavam, nem do coração ou do fígado. Ele
visualizou no cérebro uma coleção de 27 "órgãos", cada um
responsável por uma faculdade moral ou mental. Entre essas
faculdades, segundo Gall, estavam as que hoje chamamos de
funções perceptuais, como as sensações das cores e sons, de
faculdades cognitivas, como a memória, a aptidão mecânica
ou a fala e linguagem, e até as características "morais" como
amizade, benevolência ou orgulho. Por essas ideias
heréticas, ele foi exilado de Viena e acabou indo para a
França revolucionária onde, ele esperava, uma perspectiva
mais científica poderia ter acolhida.
O fisiologista Jean-Pierre Flourens decidiu investigar a teoria
de Gall removendo fatias do cérebro em animais vivos,
principalmente pombos. Não conseguiu encontrar nenhum
indício que correlacionasse áreas específicas do córtex com
faculdades específicas (talvez porque as ablações tenham de
ser extremamente delicadas e precisas, especialmente no
minúsculo córtex dos pombos). Por isso, Florens supôs que
as deficiências cognitivas que seus pombos apresentavam
conforme ele removia mais pedaços do córtex refletiam
apenas a quantidade de córtex removido, e não sua
localização, e inferiu que o que se aplicava às aves também
se aplicaria a seres humanos. O córtex, ele concluiu, era
equipotencial, tão homogêneo e indiferenciado quanto o
fígado. "O cérebro secreta pensamentos como o fígado
secreta bile", Florens comparou, não totalmente por gracejo.
A concepção do córtex equipotencial apresentada por Florens dominou o pensamento científico até o advento dos
estudos de Paul Broca nos anos 1860. Broca fez autópsias em
muitos pacientes com afasia expressiva e mostrou que todos
eles tinham lesões limitadas ao lobo frontal do lado
esquerdo. Em 1865 ele pôde fazer sua famosa afirmação
"falamos com o hemisfério esquerdo", e a idéia de um
cérebro homogêneo e indiferenciado pareceu ser posta de
lado.
Broca julgou que havia localizado um "centro motor para as
palavras" em uma parte específica do lobo frontal esquerdo,
hoje denominada área de Broca. Isso parecia prometer um
novo tipo de localização, uma genuína correlação de
funções neurológicas e cognitivas com centros específicos
no cérebro. A neurologia avançou confiantemente,
identificando diversos "centros": o centro motor para
palavras de Broca, foi seguido pelo centro auditivo para
palavras de Wernicke, e pelo centro visual para as palavras
de Déjerine, todos no hemisfério esquerdo, o hemisfério da
linguagem, e ainda por um centro de reconhecimento visual
no hemisfério direito.
Mas embora nos anos 1890 fosse reconhecida a agnosia visual de um tipo geral, pouco se sabia sobre a existência de
agnosia para categorias visuais específicas como rostos ou
lugares, ainda que autoridades como Hughlings Jackson e
Charcot já houvessem descrito agnosias específicas para
rostos e lugares decorrentes de lesão nas áreas posteriores do
hemisfério direito. Em 1872, Jackson descreveu um
paciente que, em seguida a um derrame nessa região, perdeu
a capacidade de "reconhecer lugares e pessoas. Em dado
momento ele não reconheceu sua mulher [...] e quando se
afastou de casa não encontrou o caminho de volta". Charcot,
em 1883, apresentou um relato de um paciente que tivera
capacidades excepcionais de formar imagens mentais e
memorizar, mas as perdeu subitamente. Esse homem,
relatou Charcot, "não consegue recordar nem mesmo seu
próprio rosto. Recentemente, em uma galeria pública, seu
caminho pareceu ser barrado por uma pessoa a quem ele
estava prestes a pedir desculpas, mas era apenas sua própria
imagem refletida em um espelho".
Apesar disso, mesmo em meados do século XX, muitos
neurologistas duvidavam que o cérebro possuísse áreas de
reconhecimento de categorias específicas. Talvez isso tenha
contribuído para retardar a identificação da cegueira para
rostos, a despeito das evidências de casos clínicos.
Em 1947, Joachim Bodamer, neurologista alemão, descreveu
três pacientes que eram incapazes de reconhecer rostos, mas
não tinham outras dificuldades de reconhecimento.
Bodamer achou que essa forma de agnosia acentuadamente
seletiva requeria um nome especial, tendo sido ele a cunhar
o termo "prosopagnosia"; julgou também que uma perda
assim específica devia implicar que existia no cérebro uma
área distinta para o reconhecimento de rostos. Essa ideia tem
sido debatida desde então: existe um sistema especial
dedicado apenas ao reconhecimento de rostos, ou será o
reconhecimento de rostos simplesmente uma função de um
sistema de reconhecimento visual mais geral? MacDonald
Critchley, escrevendo em 1953, criticou duramente o artigo
de Bodamer e a própria ideia da cegueira para rostos. "Não
parece plausível", ele escreveu, "que o rosto humano ocupe
uma categoria perceptual diferente de todos os outros
objetos no espaço, animados e inanimados. Pode haver
algum atributo de tamanho, forma, coloração ou motilidade
que distinga um rosto humano dos demais objetos de forma
a impossibilitar a identificação?".
Mas em 1955 o neurologista inglês Christopher Pallis
publicou um estudo primorosamente detalhado e
documentado sobre seu paciente A. H., engenheiro de uma
mina de carvão galesa. Esse paciente escreveu um diário e
pôde, assim, fornecer a Pallis uma descrição bem articulada e
perceptiva do que lhe aconteceu. Uma noite, em Junho de
1953, A. H. aparentemente sofreu um derrame. Ele se
sentiu "subitamente mal depois de alguns drinques em seu
clube". Pareceu estar confuso e foi levado para casa;
puseram-no na cama, ele dormiu mal. De manhã, ao
acordar, descobriu seu mundo visual completamente transformado, como relatou a Pallis:
Saí da cama. Minha mente estava lúcida, mas eu não
conseguia reconhecer o quarto. Fui ao banheiro. Tive
dificuldade para me localizar e reconhecer o lugar. Voltando
ao quarto para me deitar, percebi que não o reconhecia, ele
me parecia um lugar estranho.
Eu não via cores, só conseguia distinguir objetos claros dos
escuros. Depois descobri que todos os rostos eram iguais. Eu
não conseguia distinguir minha mulher das minhas filhas.
Mais tarde, tive de esperar que minha mulher ou minha mãe
falassem para reconhecê-las. Minha mãe tem oitenta anos.
Vejo os olhos, o nariz e a boca muito claramente, mas eles
não fazem sentido. Parecem todos traçados a giz, como num
quadro-negro.
Sua dificuldade não se limitava a reconhecer pessoas na vida
real:
Não consigo reconhecer pessoas em fotografias, nem a mim
mesmo. No clube, vi um estranho me encarando e
perguntei a um funcionário quem era. Você vai rir de mim:
era eu mesmo, olhando no espelho. [...] Tempos depois fui a
Londres e estive em vários cinemas e teatros. Não entendi
coisa alguma dos enredos. Nunca sabia quem era quem. [...]
Comprei alguns exemplares [das revistas] Men Only e
London Opinion. Não pude apreciar as fotografias, como
antes. Eu era capaz de decifrar os assuntos pelos detalhes,
mas assim não tinha graça. É preciso entender tudo de
relance.
A. H. tinha outros problemas visuais: um pequeno defeito
em um canto de seu campo visual, dificuldade transitória
para ler, total incapacidade de perceber cores e dificuldade
para identificar lugares. (Ele inicialmente tivera algumas
sensações esquisitas do lado esquerdo também — um certo
"peso" na mão e uma sensação de "picada" no dedo mínimo
e no canto esquerdo da boca.) Mas não apresentava agnosia
para objetos: era capaz de distinguir figuras geométricas,
desenhar objetos complexos, montar quebra-cabeças e jogar
xadrez.
Desde a época de Pallis, foi feita a autópsia de vários pacientes com prosopagnosia. Aqui os dados são claros:
praticamente todos os que passaram a apresentar
prosopagnosia, independentemente da causa, tinham lesão
no córtex de associação visual direito, em particular na parte
inferior do córtex occipito-temporal; quase sempre existia
lesão em uma estrutura chamada giro fusiforme. Esses
resultados de autópsia foram corroborados nos anos 1980
quando se tornou possível visualizar o cérebro de pacientes
vivos com exames de tomografia computadorizada e
ressonância magnética. Também nesse caso, os pacientes
prosopagnósicos apresentaram lesões na que veio a ser
chamada de "área facial fusiforme". (A atividade anormal na
área facial fusiforme também foi correlacionada com
alucinações de rostos, como demonstrado por Dominic Fytche e colegas.)
Nos anos 1990 esses estudos de lesões foram complementados por exames de ressonância magnética funcional,
visualizando o cérebro de pessoas enquanto elas olhavam
figuras de rostos, lugares e objetos. Esses estudos funcionais
demonstraram que olhar rostos ativa a área facial fusiforme
muito mais acentuadamente do que olhar as outras imagens
do teste.
Quem primeiro demonstrou que neurônios individuais nessa
área podiam demonstrar preferências foram Charles Gross e
colegas, em 1969. Eles usaram eletrodos no córtex ínfero-temporal de macacos. Gross encontrou células que
respondiam acentuadamente à visão de uma pata de macaco
— mas também, menos intensamente, a uma variedade de
outros estímulos, entre os quais uma mão humana.
Subsequentemente, Gross encontrou células com
preferência relativa por rostos.
Nesse nível puramente visual, os rostos são distinguidos
como configurações, em parte mediante a detecção das
relações geométricas entre olhos, nariz, boca e outros traços
(como concluíram Freiwald, Tsao e Livingstone). Mas não
há preferência, nesse nível, para rostos individuais; rostos
genéricos de caricaturas podem gerar as mesmas respostas
que rostos reais.
O reconhecimento de rostos ou objetos específicos só é obtido em um nível cortical superior, na área multimodal do
lobo temporal medial, que possui ricas conexões recíprocas
não só com a área facial fusiforme, mas também com outras
áreas úteis para a associação sensorial, a emoção e a
memória. Christof Koch, Itzhak Fried e colegas
demonstraram que células na área multimodal do lobo
temporal medial apresentam notável especificidade,
respondendo apenas, por exemplo, a imagens do presidente
da república, de aranhas, do edifício Empire State ou de uma
personagem do desenho Os Simpsons. Unidades neurais
específicas também podem responder à audição ou leitura de
um nome de pessoa ou objeto; por exemplo, em um
paciente, um conjunto de neurônios respondeu
acentuadamente a fotografias da Sidney Opera House e
também à sequência de letras "Sydney Opera", mas não aos
nomes de outros pontos de referência, como "Torre Eiffel".
Neurônios do lobo temporal medial são capazes de codificar
representações de rostos individuais, pontos de referência
ou objetos, de modo que possam ser facilmente
reconhecidos em um ambiente mutável. Tais representações
podem ser construídas com rapidez, em menos de um ou
dois dias depois da exposição a um indivíduo desconhecido.
Embora esses estudos usem registros de eletrodos de
neurônios isolados, cada uma dessas células está conectada a
milhares de outros neurônios, os quais, por sua vez, estão
ligados a outros milhares. (Além disso, algumas células
individuais podem responder a mais de um indivíduo ou
objeto.) Assim, na realidade a resposta de uma única célula
representa o ápice de uma imensa pirâmide computacional,
talvez recorrendo a inputs diretos ou indiretos do córtex
visual, auditivo ou tátil, áreas de reconhecimento de texto,
áreas de memória e emoção etc.
Nos humanos, alguma habilidade de reconhecer rostos está
presente já ao nascer ou pouco depois. Aos seis meses de
vida, como demonstrado em um estudo de Olivier Pascalis e
colegas, bebês são capazes de reconhecer uma ampla
variedade de rostos individuais, inclusive de outras espécies
(nesse estudo foram usadas imagens de macacos). Aos nove
meses, porém, os bebês tornam-se menos hábeis no reconhecimento de rostos de macaco, a não ser que tenham
sido continuamente expostos a eles. Já aos três meses, bebês
estão aprendendo a reduzir seu modelo de "rostos" àqueles
aos quais são frequentemente expostos. A implicação desse
trabalho para os humanos é profunda. Para um bebê chinês
criado em seu próprio meio étnico, os rostos caucasianos
podem, relativamente, "parecer todos iguais" e vice-versa.
"Um conhecido meu, que tem prosopagnosia, nasceu e foi
criado na China, estudou em Oxford e morou por décadas
nos Estados Unidos. Apesar disso, ele diz: "rostos europeus
são os mais difíceis. Todos me parecem iguais". Parece haver
uma habilidade para reconhecer rostos que é inata e,
podemos presumir, geneticamente determinada, e essa
capacidade ganha foco no primeiro ou segundo ano de vida,
de modo a nos tornar especialmente hábeis em reconhecer
os tipos de rostos que temos Maior probabilidade de
encontrar. Nossas "células faciais", já presentes desde o
nascimento, necessitam de experiência para se desenvolver
plenamente.
Com muitas outras capacidades, como a visão estereoscópica
e a habilidade linguística, ocorre o mesmo: existe alguma
predisposição ou potencial determinado pela genética, mas
ele requer estimulação, prática, um ambiente rico e
incentivo para que se desenvolva por completo. A seleção
natural pode ocasionar a predisposição inicial, mas a
experiência e a seleção pela experiência são necessárias para
a plena realização de nossas capacidades cognitivas e
perceptuais.
O fato de muitas pessoas com prosopagnosia (mas não todas)
também terem dificuldade para reconhecer lugares sugeriu a
alguns estudiosos que o reconhecimento de rostos e lugares
é mediado por áreas distintas mas adjacentes. Outros supõem
que ambos sejam mediados por uma única zona que talvez
seja mais orientada para rostos em uma ponta e para lugares
na outra.
O neuropsicólogo Elkhonon Goldberg, entretanto, questiona
toda essa ideia sobre centros ou módulos distintos e inatos
no córtex cerebral. Em sua opinião, em níveis corticais
superiores a organização talvez se dê, sobretudo, em
gradientes, nos quais áreas cuja função é desenvolvida pela
experiência e treinamento podem coincidir ou converter-se
gradualmente uma na outra. Em seu livro "The New Executive Brain", ele aventa que o princípio de gradientes é
uma alternativa evolucionária ao princípio de módulos, uma
alternativa que permitiria um grau de flexibilidade e
plasticidade impossível a um cérebro organizado de modo
puramente modular.
Embora a modularidade possa ser característica do tálamo —
um conjunto de núcleos com funções fixas, inputs e outputs
fixos — uma organização gradiental é mais característica do
córtex cerebral, argumenta Goldberg, e se torna cada vez
mais proeminente conforme subimos do córtex sensitivo
primário para o córtex de associação e chegamos ao nível
mais elevado, o córtex frontal. Portanto, modularidade e
gradientes podem coexistir e complementar-se mutuamente.
Muitas pessoas com prosopagnosia, mesmo quando sua
principal queixa é de cegueira para rostos, têm dificuldade
para reconhecer outras coisas específicas. Orrin Devinsky e
Martha Farah salientaram que alguns prosopagnósicos são
incapazes de distinguir uma pêra de uma maçã, por exemplo,
ou um pombo de um corvo, embora consigam reconhecer
corretamente a categoria geral das "frutas" e "aves". Joan C.
descreveu um problema semelhante: "Não reconheço
caligrafia do mesmo modo que não reconheço rostos. Ou
seja, posso ser capaz de identificar uma amostra de caligrafia
reconhecendo alguma característica saliente ou vendo-a no
contexto, mas fora isso, esqueça. Já deixei de reconhecer
minha própria letra".
Alguns pesquisadores aventaram que a prosopagnosia não é
puramente um problema de cegueira para rostos, e sim um
aspecto de uma dificuldade mais geral para distinguir objetos
individuais de qualquer classe, seja ela de rostos, de carros,
aves ou qualquer outra coisa.
Isabel Gauthier e colegas da Universidade Vanderbilt
testaram um grupo de especialistas em carros e um grupo de
observadores de pássaros, comparando-os com um grupo de
sujeitos normais. Constataram que a área facial fusiforme era
ativada quando todos os grupos olhavam para figuras de
rostos. Além disso, era ativada nos especialistas em carros
quando lhes era pedido para identificar veículos específicos,
e nos observadores de pássaros quando tinham de identificar
aves específicas. A área facial fusiforme é sintonizada
principalmente para o reconhecimento facial, mas parte
dela, ao que parece, pode ser treinada para distinguir outros
tipos de objetos individuais. (Poderíamos pensar, então, que
se um observador de pássaros ou de carros por infelicidade
passasse a sofrer de prosopagnosia, também perderia a
facilidade para identificar aves ou carros.)
O cérebro é mais do que uma coleção de módulos autônomos, cada um deles crucial para uma função mental
específica. Cada uma dessas áreas funcionalmente
especializada tem de interagir com dezenas ou centenas de
outras, e sua integração total cria algo como uma orquestra
imensamente complexa com milhares de instrumentos, uma
orquestra que rege a si mesma, com uma partitura ou
repertório sempre em mudança. A área facial fusiforme não
trabalha isolada; ela é um nodo vital em uma rede cognitiva
que se estende do córtex occipital à área pré-frontal. A
cegueira para rostos pode ocorrer mesmo com uma área
facial fusiforme intacta se houver lesão nas áreas faciais
occipitais inferiores. E pessoas com prosopagnosia
moderada, como Jane Goodall e eu, podem, após repetidas
exposições, aprender a identificar os indivíduos que nos são
mais conhecidos. Isso talvez ocorra porque estejamos
usando diferentes trajetos para fazê-lo, ou talvez, com
treinamento, possamos fazer melhor uso de nossa área facial
fusiforme relativamente fraca.
Fundamentalmente, o reconhecimento de rostos depende
não só da habilidade de analisar os aspectos visuais de um
rosto — seus traços particulares e sua configuração global —
e compará-los a outros, mas também da capacidade de
evocar as memórias, experiências e sentimentos associados a
esse rosto. O reconhecimento de lugares ou rostos
específicos, como salientou Pallis, anda em companhia de
um sentimento específico, uma sensação de associação e
significado. Enquanto o reconhecimento puramente visual
de rostos é mediado pela área facial fusiforme e suas
conexões, a familiaridade emocional é mediada em um nível
superior, multimodal, onde existem íntimas conexões com
os hipocampos e a amígdala, áreas dedicadas à memória e à
emoção. Por isso, A. H., depois do derrame, perdeu não só a
capacidade de identificar rostos, mas também sua sensação
de familiaridade; cada rosto e cada lugar parecia novo para
ele, sempre, mesmo se fosse visto vezes sem conta.
O reconhecimento é baseado no conhecimento, e a familiaridade, no sentimento, mas um não traz o outro. Cada qual
possui uma base neural distinta, e eles podem ser
dissociados; assim, embora ambos sejam perdidos juntos na
prosopagnosia, é possível ter familiaridade sem
reconhecimento ou reconhecimento sem familiaridade em
outras condições. O primeiro caso ocorre no déjà-vu e
também na "hiper-familiaridade" para rostos descrita por
Devinsky. Um paciente nessas condições pode ter a sensação de que "conhece" todo mundo dentro do ônibus ou na
rua e falar com eles como se fossem velhos amigos, apesar
de perceber que conhecer toda essa gente é impossível. Meu
pai sempre foi muito sociável e era capaz de reconhecer
centenas ou até milhares de pessoas, mas sua sensação de
"conhecer" gente tornou-se exagerada, talvez patológica, à
medida que ele se aproximou da casa dos noventa. Ele ia a
concertos no Wigmore Hall em Londres e, durante os
intervalos, dirigia-se a qualquer pessoa próxima,
perguntando: "Eu conheço você?".
O oposto ocorre com portadores da síndrome de
Capgras,para quem o rosto das pessoas, embora seja
reconhecido, não pode mais gerar uma sensação de
familiaridade emocional. Como um marido, uma esposa ou
um filho não transmitem aquela cálida sensação especial de
familiaridade, diz o paciente com essa síndrome, essas
pessoas não podem ser reais — têm de ser impostores
engenhosos, imitações. Pessoas com prosopagnosia têm uma
percepção intuitiva de que sua dificuldade de reconhecimento provém do cérebro. Em contraste, os portadores da
síndrome de Capgras mantêm uma convicção irredutível de
que eles próprios são perfeitamente normais enquanto a
outra pessoa é totalmente, ou até misteriosamente, errada.
Os casos de prosopagnosia adquirida, como A. H. ou o dr. P,
são relativamente raros. A Maioria dos neurologistas
provavelmente atende um ou dois desses pacientes, se tanto,
em toda a sua carreira. Já a prosopagnosia congênita (ou,
como alguns a chamam, prosopagnosia "desenvolvimental"),
é muito mais comum, e no entanto a Maioria dos
neurologistas não a reconhece. Heather Sellers, que toda a
vida teve prosopagnosia, escreveu sobre isso em 2007 num
ensaio autobiográfico: "Eu não conseguia reconhecer os
filhos do meu marido. [...] abraçava o homem errado no
mercado, pensando que fosse [meu marido]. [...] Meus
colegas permaneciam inidentificáveis depois de uma década.
[...] Eu vivia me apresentando aos vizinhos". Quando
consultou separadamente dois neurologistas sobre essas
queixas, ambos disseram que nunca haviam visto esse
problema antes, e que ele era "raríssimo".
Um eminente neurologista que escreveu sobre agnosia visual confessou-me que até recentemente nunca ouvira falar
de prosopagnosia congênita. No entanto, isso não é de todo
surpreendente, pois em geral quem tem prosopagnosia
congênita não consulta neurologistas sobre seu "problema",
assim como quem tem cegueira para cores desde o
nascimento não se queixa disso ao oftalmologista. A pessoa é
assim, e pronto.
Mas Ken Nakayama, de Harvard, que estuda a percepção
visual, há tempos suspeitava que a prosopagnosia é
relativamente comum, apesar de relativamente pouco
relatada. Em 1999 ele e seu colega Brad Duchaine, do
University College em Londres, começaram a usar a internet
para procurar pessoas que têm cegueira para rosto. Tiveram
um retorno impressionante. Agora estão estudando vários
milhares de indivíduos com prosopagnosia congênita em
graus que vão do brando ao totalmente incapacitante.
Embora os prosopagnósicos congênitos não tenham grandes
lesões no cérebro, um estudo recente de Lúcia Garrido e
colegas mostrou que eles apresentam mudanças sutis mas
distintas nas áreas cerebrais de reconhecimento de rostos. A
deficiência tende a ser familial: Duchaine, Nakayama e
colegas descreveram uma família na qual o problema afeta
dez membros — os pais e sete dos oito filhos (o oitavo não
pôde ser testado), além de um tio materno. Claramente
existem fortes determinantes genéticos em atuação nesse
caso.
Nakayama e Duchaine analisaram a base neural do
reconhecimento de rostos e lugares, trazendo-nos novos
conhecimentos e noções em todos os níveis, do genético ao
cortical. Também estudaram os efeitos psicológicos e as
consequências sociais da prosopagnosia desenvolvimental e
da agnosia topográfica: os problemas especiais que essas
deficiências podem criar para um indivíduo em uma cultura
social e urbana complexa.
A variação parece estender-se também em uma direção
positiva. Russell, Duchaine e Nakayama descreveram "superreconhecedores", pessoas com extraordinária habilidade para
reconhecer rostos, inclusive algumas que parecem ter
memórias indeléveis de praticamente todos os rostos que já
viram. Alexandra Lynch, uma de minhas correspondentes,
descreveu sua habilidade impressionante de reconhecer
pessoas:
Ontem aconteceu de novo. Eu estava indo para o metrô no
Soho quando identifiquei alguém a uns cinco metros de
distância (de costas, conversando em particular com um
amigo) como um homem que eu conhecia ou que já vira
antes. Era Mac, um marchand velho amigo da família. Eu o
vira pela última vez (brevemente) dois anos antes, em uma
inauguração na cidade. Acho que, além de termos sido
apresentados há uns bons dez anos, nunca falei com ele.
Essa é uma característica essencial da minha vida: vejo
alguém de relance e, sem um verdadeiro esforço, clique!
Situo seu rosto — sim, é aquela moça que nos serviu vinho
num bar de East Village no ano passado (novamente em um
bairro diferente e à noite, e não de dia). É verdade que adoro
gente, humanidade e diversidade [...] mas que eu saiba não
faço nenhum esforço para gravar as feições de balconistas de
sorveteria, vendedores de sapatos e amigos de amigos de
amigos. Um mínimo pedacinho de rosto, ou o modo de
andar de uma pessoa a dois quarteirões de distância podem
pôr minha mente para funcionar em busca de uma
identificação.
Os super-reconhecedores, escrevem Russell et al, "são
aproximadamente tão bons quanto muitos prosopagnósicos
[congênitos] são ruins", ou seja, são cerca de dois ou três
des-vios-padrões acima da média, enquanto os
prosopagnósicos mais graves apresentam habilidades de
reconhecimento facial dois ou três desvios-padrões abaixo
da média. Portanto, a diferença entre os melhores
reconhecedores de rostos e os piores dentre nós é
comparável à que existe entre pessoas com QI 150 e pessoas
com QI 50, enquanto as demais ocupam todos os níveis
intermediários. Como ocorre em qualquer curva normal, a
imensa Maioria situa-se em algum ponto no meio.
Estima-se que a prosopagnosia congênita severa atinge no
mínimo 2% da população — 6 milhões de pessoas só nos
Estados Unidos. (Uma porcentagem muito Maior, talvez
10%, situa-se notavelmente abaixo da média na identificação
de rostos, mas não apresenta deficiência totalmente
incapacitante.) Para essas pessoas, que têm dificuldade para
reconhecer marido, esposa, filhos, professores e colegas,
ainda não existe um reconhecimento oficial nem a
compreensão do grande público.
Isso contrasta com a situação de outra minoria neurológica,
os 5% ou 10% da população que sofre de dislexia.
Educadores e outros mostram-se cada vez mais conscientes
das dificuldades especiais, e em muitos casos dos talentos
especiais, que as crianças disléxicas podem ter, e começam
agora a beneficiá-las com estratégias e recursos educacionais.
Por enquanto, as pessoas com vários graus de cegueira para
rostos têm de depender de sua própria engenhosidade e de
estratégias particulares, começando por educar os outros
sobre seu problema insólito, mas não raro. A prosopagnosia
vem sendo cada vez mais um tema de livros, sites e grupos
de apoio onde as pessoas com cegueira para rostos ou
agnosia topográfica podem trocar ideias sobre seus
problemas e, não menos importante, compartilhar
estratégias para reconhecer rostos e lugares quando seus
mecanismos usuais "automáticos" estão comprometidos.
Ken Nakayama, que está contribuindo notavelmente para
ampliar o conhecimento científico da prosopagnosia,
também tem experiência pessoal nesse assunto e pôs o
seguinte aviso em seu escritório e em seu site:
Em razão de problemas visuais recentes e de uma leve
prosopagnosia, estou tendo mais dificuldade para reconhecer
pessoas que devo conhecer. Por gentileza, ajude-me
dizendo seu nome quando nos encontrarmos. Muito
obrigado.
Quando Galeno, no século II, e Leonardo, treze séculos depois, observaram que as imagens recebidas pelos dois olhos
eram um tanto diferentes, nenhum deles avaliou totalmente
a importância dessa disparidade. Foi somente no início dos
anos 1830 que Charles Wheatstone, um jovem médico,
começou a suspeitar que, embora o cérebro fundisse essas
imagens de algum modo automático e inconsciente, as
discrepâncias entre as duas imagens retinianas eram na
verdade cruciais para a misteriosa habilidade que o cérebro
tem de gerar a sensação de profundidade.
Wheatstone confirmou sua conjectura com um método
experimental tão simples quanto brilhante. Fez pares de
desenhos de um objeto sólido como ele é visto das
perspectivas ligeiramente diferentes dos dois olhos e criou
um instrumento que usava espelhos para assegurar que cada
olho visse apenas seu próprio desenho. Chamou o
instrumento de estereoscopio, termo derivado do grego que
significa "visão sólida". Quando se olhava pelo estereoscopio,
os dois desenhos planos fundiam-se e produziam um único
desenho tridimensional no espaço.
(Não precisamos de um estereoscópio para ver em
profundidade estereoscópica; para a Maioria das pessoas é
relativamente fácil aprender a "fundir livremente" esse tipo
de desenhos, simplesmente divergindo ou convergindo os
olhos. Por isso, é estranho que a estereopsia não tenha sido
descoberta séculos antes: Euclides ou Arquimedes poderiam
ter desenhado diagramas estereoscópicos na areia, como
observou David Hubel, e descoberto a estereopsia no século
III ou IV a.C, mas isso, pelo que sabemos, não ocorreu.)
A fotografia foi inventada apenas alguns meses depois da
publicação do artigo de Wheatstone descrevendo seu
estereoscópio, em 1838, e logo as fotografias estereoscópicas
tornaram-se muito populares. A rainha Vitória foi
presenteada com um estereoscópio após admirar um
exemplar na Grande Exposição do Palácio de Cristal; depois
disso, nenhuma sala de visitas vitoriana estava completa sem
um desses aparelhos. Com o desenvolvimento de
estereoscópios menores e mais baratos, de impressões
fotográficas mais fáceis de obter e até de salas especiais para
ver imagens estereoscópicas, poucas pessoas na Europa ou
América deixavam de ter acesso a instrumentos
estereoscópicos em fins do século XIX.
Em fotografias estereoscópicas era possível ver os
monumentos de Paris e Londres e grandes paisagens
naturais como as cataratas do Niágara ou os Alpes em toda a
sua majestade e profundidade, com tal verossimilhança que
dava às pessoas a sensação de pairar sobre as cenas reais.
Em 1861, Oliver Wendell Holmes (que inventou o popular Visor Estéreo Holmes), em um de vários artigos sobre
estereoscopios publicados na revista Atlantic Monthly,
discorreu acerca do prazer especial que as pessoas pareciam
ter com essa mágica ilusão de profundidade:
Deixar de fora os objetos circundantes e concentrar toda a
atenção [...] produz uma exaltação onírica [...] na qual parece
que deixamos nosso corpo para trás e, como espíritos
desencarnados, adentramos uma cena desconhecida após
outra.
Obviamente, há muitos outros modos de avaliar a
profundidade além da visão estereoscópica: a oclusão de
objetos distantes por objetos mais próximos, a perspectiva (o
fato de que linhas paralelas reais convergem conforme se
afastam de nós e os objetos distantes parecem menores), as
sombras (que delineiam a forma dos objetos), a perspectiva
"aérea" (o ar intermediário faz objetos mais distantes
parecerem borrados e azulados), e o mais importante: a
paralaxe do movimento — a aparência mutável de relações
espaciais conforme nos movemos pelo mundo. Todas essas
informações, atuando juntas, podem dar uma sensação de
realidade, espaço e profundidade. Mas o único modo de
realmente perceber a profundidade — vê-la, em vez de
avaliá-la — é a estereoscopia binocular.
Na casa onde morei quando menino, na Londres dos anos
1930, tínhamos dois estereoscopios: um modelo grande e
antiquado de madeira, no qual eram postas lâminas de vidro,
e um menor, portátil, onde víamos fotografias
estereoscópicas impressas em papelão. Também possuíamos
livros de anáglifos bicolores — fotografias estereoscópicas
impressas em vermelho everde que deviam ser vistas com
óculos dotados de urna lente vermelha e a outra verde, o
que efetivamente restringia cada olho a ver apenas uma das
imagens.
Assim, quando aos dez anos eu me apaixonei pela fotografia,
evidentemente quis fazer meus pares de fotos estereoscópicas. Isso era fácil, bastava mover a câmera horizontalmente
por pouco mais de seis centímetros entre as exposições,
imitando a distância entre os dois olhos. (Eu ainda não
possuía uma câmera estereoscópica de duas lentes, que
registrava simultaneamente os pares estereoscópicos.)
Depois de ler sobre como Wheatstone explorou efeitos
telescópicos exagerando ou revertendo a disparidade entre
duas imagens, também comecei a fazer experimentos desse
tipo. Tirei fotos com separações cada vez Maiores entre elas,
e então fiz um hiperestereoscópio, usando um tubo de
papelão de aproximadamente um metro de comprimento
com quatro espelhinhos. Dessa maneira eu podia, na prática,
transformar-me numa criatura de olhos muito separados.
Podia olhar através do meu hiperestereoscópio objetos
muito distantes, como a cúpula da Catedral de Saint Paul,
que normalmente é vista no horizonte como um
semicírculo achatado, e vê-la em toda a sua rotundidade,
projetada na minha direção. Também construí
experimentalmente um "pseudoscópio", que transpunha as
visões dos dois olhos revertendo em certo grau o efeito
estereoscópico e fazia objetos distantes parecerem mais
próximos do que os objetos que estavam perto, e até
transformava rostos em máscaras ocas. Isso, obviamente,
contradizia o senso comum, assim como as outras indicações
de profundidade dadas pela perspectiva e pela oclusão:
algumas imagens ficavam mudando repetidamente de
convexas para côncavas, provocando uma sensação esquisita
e desnorteante, advinda do esforço do cérebro para conciliar
duas hipóteses rivais.
Depois da Segunda Guerra Mundial entraram em voga novas
técnicas e formas de estereoscopia. Um pequeno
estereoscópio feito de plástico chamado View-Master
funcionava com carretéis de minúsculas transparências
Kodachrome que íamos vendo uma a uma mediante o
acionamento de uma alavanca. Apaixonei-me pela distante
América nessa época, graças, em parte, aos carretéis do
View Master que me mostraram os magníficos cenários do
Oeste e Sudoeste americano.
Havia também o Vetógrafo Polaroid, no qual imagens
estereoscópicas eram polarizadas em ângulos retos entre si;
elas eram vistas através de óculos especiais Polaroid que
possuíam lentes polarizadas também em ângulo reto, de
modo que cada olho visse apenas sua própria imagem. Os
vetógrafos, em contraste com os anáglifos em vermelho e
verde, podiam ser multicores, o que os tornava
especialmente atrativos.
Outro recurso era o estereograma lenticular, no qual as duas
imagens eram impressas em estreitas faixas verticais
alternadas, cobertas por plástico sulcado transparente. Os
sulcos serviam para transmitir cada conjunto de imagens ao
olho apropriado, eliminando a necessidade de óculos
especiais. Vi pela primeira vez um estereograma lenticular
logo após a guerra, no metrô de Londres — por acaso, num
anúncio publicitário do sutiã Maidenform. Escrevi à
Maidenform pedindo que me vendessem um daqueles
cartazes, mas não me responderam; devem ter imaginado
que eu era algum adolescente obcecado por sexo em vez de
um simples estereófilo.
Finalmente, no começo dos anos 1950 apareceram os filmes
em 3-D (como Museu de cera, o filme de terror sobre o
museu de Madame Tussaud), para serem vistos com óculos
Polaroid de lentes vermelha e verde. Como obras
cinematográficas, alguns deles eram horrorosos — mas
outros, como Rastros do Inferno, eram belíssimos e faziam
um uso primoroso, delicado e sutil da fotografia
estereoscópica.
Ao longo dos anos, fiz uma coleção de estereogramas e
livros sobre estereoscopia. Tornei-me membro atuante da
Sociedade Estereoscópica de Nova York, e em nossas
reuniões encontrava outros aficionados da estereoscopia.
Assinávamos revistas especializadas, e alguns de nós
participavam de convenções sobre o tema. Os mais
entusiasmados levavam sua camera estereoscópica e saíam
para "fins de semana estereoscópicos". A Maioria das pessoas
não vive pensando particularmente no quanto a estereoscopia acrescenta ao seu mundo visual, mas nós nos
deleitávamos com tudo isso. Enquanto alguns podem não
notar grande diferença se fecharem um olho, nós, estereófilos, percebemos nitidamente uma enorme
mudança, pois nosso mundo subitamente perde qualidade
espacial e profundidade e se torna plano como uma carta de
baralho. Talvez nossa estereoscopia seja mais acentuada;
talvez vivamos, subjetivamente, em um mundo com mais
profundidade; ou pode ser apenas que tenhamos Maior
consciência da estereoscopia, assim como há quem seja mais
atento para as cores ou as formas. Desejamos compreender
como a estereoscopia funciona. Esse não é um problema
trivial, pois se conseguirmos entender a estereoscopia,
seremos capazes de entender não só um simples e brilhante
estratagema visual, mas algo da natureza da sensibilidade
visual e da própria consciência.
É preciso perder o uso de um olho por um período substancial para descobrir como a vida se altera na ausência dele.
Paul Romano, um oftalmologista pediátrico aposentado de
68 anos, contou sua história na revista Binocular Vision &
Strabismus Quarterly. Ele sofreu uma grande hemorragia
ocular que acarretou a perda quase total da visão em um
olho. Após um único dia de visão monocular, ele observou:
"Vejo objetos, mas frequentemente não os reconheço —
perdi minha memória de localização física. [...] Minha sala
de trabalho está uma bagunça. [...] Agora que estou reduzido
a um mundo bidimensional, não sei onde as coisas estão".
No dia seguinte ele escreveu: "Monocularmente, as coisas
não são as mesmas que eram binocularmente. [...] Cortar a
carne no prato — é difícil ver a gordura e a cartilagem que
desejo separar. [...] Não consigo reconhecê-las como
gordura e cartilagem em apenas duas dimensões".
Passado quase um mês, embora o dr. Romano estivesse
ficando menos desajeitado, persistia uma imensa sensação de
perda:
Embora dirigir em velocidade normal substitua a perda da
percepção da profundidade pela estereopsia do movimento,
perdi minha orientação espacial. Não tenho mais aquela
sensação de saber exatamente onde me encontro no espaço
e no mundo. Antes o norte era lá — agora não sei onde é.
[...] Tenho certeza de que perdi meu cálculo intuitivo.
Concluiu depois de 35 dias:
[...] embora a cada dia eu me adapte melhor à
monocularidade, não posso imaginar como passar o resto da
vida desse jeito. [...] a percepção de profundidade
estereoscópica binocular não é só um fenômeno visual. É
um modo de vida. [...] A vida em um mundo bidimensional
é muito diferente daquela em um mundo tridimensional, e
muito inferior.
No decorrer das semanas, o dr. Romano foi-se sentindo mais
à vontade em seu mundo monocular, mas foi com imenso
alívio que, após nove meses, ele finalmente recuperou sua
visão estereoscópica.
Nos anos 1970 eu mesmo tive uma experiência de perda de
estereoscopia, quando fui posto em um minúsculo quarto
sem janelas em um hospital londrino depois de uma cirurgia
por causa de uma ruptura do tendão do quadríceps. O quarto
não devia ser Maior do que uma cela de prisão, e minhas
visitas reclamavam disso, mas eu logo me adaptei e até gostei
dele. Os efeitos de seu horizonte limitado só mais tarde se
evidenciaram para mim, como descrevi em Com uma perna
só:
Fui transferido para um novo quarto, um quarto espaçoso,
depois de vinte dias em minha cela minúscula. Eu estava me
instalando, feliz da vida, quando de repente notei uma coisa
estranhíssima. Tudo o que estava perto de mim tinha a
solidez, as dimensões e a profundidade apropriadas — mas
tudo o que estava mais longe era totalmente plano. Além de
minha porta aberta havia a porta da ala fronteiriça; além
daquela porta, um paciente sentado numa cadeira de rodas;
além dele, no peitoril da janela, um vaso de flores; e além
deste, do outro lado da rua, as janelas de frontão da casa em
frente — e tudo isso, uns sessenta metros, talvez, [...]
parecia exposto como uma gigantesca fotografia em cores no
ar, primorosamente colorida e detalhada, mas perfeitamente
plana.
Nunca me ocorrera que a estereoscopia e a noção de espaço
podiam mudar tanto depois de apenas três semanas em um
espaço pequeno. Minha estereoscopia retornou, aos saltos,
depois de umas duas horas, mas eu fiquei tentando imaginar
o que acontecia com prisioneiros confinados por períodos
muito mais longos. Já ouvira histórias de pessoas que viviam
em florestas pluviais tão densas que sua visão nunca
avançava além de uns dois metros de distância. Dizia-se que
quando eram levadas para fora da mata, sua ideia ou
percepção do espaço e distância além de dois metros era tão
limitada que elas tentavam tocar o topo das montanhas
distantes estendendo os braços.
Quando fiz residência em neurologia, no começo dos anos
1960, li os extraordinários artigos de David Hubel e Torsten
Wiesel sobre os mecanismos neurais da visão. Seu trabalho,
pelo qual depois receberiam o Prêmio Nobel, revolucionou
nossa compreensão de como os mamíferos aprendem a ver,
e mostrou especialmente quanto a experiência visual logo no
início da vida é crucial para o desenvolvimento de células ou
mecanismos especiais no cérebro necessários para a visão
normal. Entre estes encontram-se as células binoculares no
córtex visual, indispensáveis para a construção da noção de
profundidade a partir de disparidades retinianas. Hubel e
Wiesel demonstraram em animais que quando a visão
binocular normal é impossibilitada por algum problema
congênito (como em muitos gatos siameses, que nascem
estrábicos) ou por experimento (cortando-se um dos
músculos do globo ocular de modo a provocar no sujeito um
estrabismo divergente), essas células binoculares não se
desenvolvem, e o animal fica privado permanentemente da
estereoscopia. Um número significativo de pessoas adquire
problemas semelhantes — conhecidos coletivamente como
estrabismo —, um desalinhamento que em alguns casos é
demasiado sutil para ser notado mas suficiente para interferir
no desenvolvimento da visão estereoscópica.
Talvez 5% ou 10% da população, por razões variadas, tenha
pouca ou nenhuma visão estereoscópica, embora muitos não
se apercebam disso e só venham a descobrir o fato depois de
um cuidadoso exame por um oftalmologista ou optometrista. No entanto, há muitos relatos sobre pessoas com
cegueira estereoscópica que realizam verdadeiras façanhas
de coordenação visuomotora. Wiley Post, o primeiro a fazer
a volta ao mundo em um voo solo, tão famoso nos anos
1930 quanto Charles Lindbergh, executou sua proeza depois
de ter perdido um olho aos vinte e poucos anos. (Depois se
tornou pioneiro no voo em grande altitude e inventou um
traje de voo pressurizado.) Alguns atletas profissionais são
cegos de um olho, e essa é também a condição de no
mínimo um eminente cirurgião oftálmico.
Nem todos os que têm cegueira estereoscópica são pilotos
ou atletas de elite, e alguns podem ter dificuldade para
avaliar a profundidade, enfiar a linha na agulha ou dirigir,
mas de modo geral se viram bem recorrendo apenas a
informações monoculares. E os que nunca tiveram visão
estereoscópica mas vivem bem sem ela podem ter
dificuldade para entender por que há quem dê tanta atenção
à estereopsia. O cineasta Errol Morris nasceu com
estrabismo e depois perdeu quase totalmente a visão de um
olho, mas acha que se sai perfeitamente bem. "Vejo as coisas
em três dimensões", ele diz. "Movo a cabeça quando preciso
— a paralaxe é suficiente. Não vejo o mundo plano." E gracejou dizendo que considerava a estereopsia um mero
"bônus" e achava "bizarro" meu interesse por ela.
Tentei argumentar com ele, discorrer sobre a natureza
especial, a beleza da esteropsia. Mas não é possível
comunicar a quem tem cegueira estereoscópica como é a
estereopsia; a qualidade subjetiva, a essência da estereopsia é
única, e não menosnotável que a da cor. Por mais
espetacularmente que uma pessoa com visão monocular
possa desempenhar suas tarefas, nesse sentido específico ela
é totalmente deficiente.
E a estereopsia, como estratégia biológica, é crucial para um
diversificado conjunto de animais. Predadores em geral
possuem olhos voltados para a frente, com acentuada
sobreposição dos dois campos visuais; em contraste, presas
tendem a possuir olhos nas laterais da cabeça, o que lhes dá
visão panorâmica e as ajuda a avistar o perigo mesmo se ele
vier por trás. O tubarão-martelo é um predador temível em
parte porque a forma esquisita de sua cabeça permite que
seus olhos, voltados para a frente, tenham uma separação
Maior — o tubarão-martelo é um hiperestereoscópio vivo.
Outra estratégia assombrosa é a do molusco siba, cujos olhos
bem separados normalmente permitem um alto grau de
visão panorâmica, mas podem ser girados para a frente por
um mecanismo muscular especial quando o animal está
prestes a atacar, dando-lhe a visão binocular necessária para
disparar seus tentáculos com pontaria letal.
Em primatas como nós, os olhos voltados para a frente têm
outras funções. Os olhos enormes e próximos dos lémures
servem para aclarar a complexidade da folhagem escura e
densa; a vegetação, se a cabeça ficar parada, é quase
impossível de deslindar sem visão estereoscópica — e em
uma selva repleta de ilusões e logros, a estereopsia é
indispensável para detectar a camuflagem. Do lado mais
exuberante, acrobatas aéreos como os gibões teriam imensa
dificuldade para saltar de galho em galho sem os poderes
especiais dados pela estereoscopia. Um gibão de um olho só
pode se dar mal — e o mesmo vale para um tubarão ou uma
siba de um olho só.
A esteroscopia é altamente vantajosa para esses animais,
apesar de seu custo: o sacrifício da visão panorâmica, a
necessidade de mecanismos neurais e musculares especiais
para coordenar e alinhar os olhos e, não menos importante,
o desenvolvimento de mecanismos cerebrais especiais para
computar a profundidade a partir das disparidades das duas
imagens visuais. Portanto, na natureza a estereoscopia não
tem nada de "mero bônus", mesmo que alguns humanos
consigam se sair bem sem ela e até obter certas vantagens
por não possuí-la.
Em Dezembro de 2004 recebi uma carta inesperada de uma
mulher chamada Sue Barry. Ela recordou que nos havíamos
conhecido em 1996, numa festa de lançamento do ônibus
espacial em Cabo Cañaveral (seu marido, Dan, era
astronauta). Conversamos na ocasião sobre diferentes modos
de vivenciar o mundo; por exemplo, como Dan e outros
astronautas perdiam a orientação, a noção de "em cima" e
"embaixo", nas condições de microgravidade do espaço
sideral e tinham de encontrar modos de se adaptar. Sue
contou-me então sobre seu próprio mundo visual: como ela
crescera estrábica, seus olhos não funcionavam conjuntamente, e ela via o mundo com um olho por vez,
alternando rápida e inconscientemente os dois. Perguntei se
isso lhe trazia alguma desvantagem. Não, ela respondeu;
vivia perfeitamente bem: dirigia carro, podia jogar softball e
fazer tudo o que os outros faziam. Mesmo não sendo capaz
de ver em profundidade diretamente, como as outras
pessoas, ela podia avaliar a profundidade usando outras
informações.
Perguntei a Sue se ela podia imaginar que aparência teriam
as coisas se fossem vistas estereoscopicamente. Sue disse que
sim, achava que podia; afinal, ela era catedrática de
neurobiologia, lera os artigos de Hubel e Wiesel e muitas
outras obras sobre o processamento visual, a visão binocular
e a estereopsia. Julgava que esses conhecimentos davam-lhe
uma percepção especial acerca do que lhe faltava: ela sabia
como devia ser a estereopsia, mesmo que nunca a houvesse
vivenciado.
Mas agora, quase nove anos depois de nossa primeira
conversa, ela se sentia compelida a me escrever sobre esta
questão:
O senhor me perguntou se eu podia imaginar como seria a
aparência das coisas quando vistas com os dois olhos. Eu
achava que podia. [...] Mas estava errada.
Ela podia afirmar isso porque agora tinha estereopsia — e era
além de tudo o que ela poderia ter imaginado. Deu-me então
detalhes de sua história visual, começando com o momento
em que seus pais notaram seu estrabismo, poucos meses
depois de seu nascimento:
Os médicos disseram que meu problema provavelmente
desapareceria quando eu crescesse. Talvez esse fosse o
melhor conselho, na época. Estávamos em 1954, onze anos
antes de David Hubel e Torsten Wiesel publicarem seus
fundamentais artigos sobre o desenvolvimento visual, os
períodos críticos e os gatos estrábicos. Hoje um cirurgião
realinha os olhos de uma criança estrábica durante o
"período crítico" [...] a fim de preservar a visão binocular e a
estereopsia. A visão binocular depende do bom alinhamento
dos dois olhos. O dogma geral diz que os olhos têm de ser
realinhados no primeiro ou segundo ano de vida. Se a
cirurgia ocorrer depois disso, o cérebro já terá feito suas
conexões de modo a impedir a visão binocular.
Sue foi submetida a cirurgias para corrigir o estrabismo,
primeiro nos músculos do olho direito, quando ela tinha
dois anos, depois nos do esquerdo e finalmente em ambos,
aos sete anos. Aos nove anos ela ouviu do cirurgião que
podia "fazer qualquer coisa que uma pessoa com visão
normal podia fazer, exceto pilotar aviões". (Pelo visto, Wiley
Post já fora esquecido nos anos 1960.) Agora quem a olhasse
não a veria como uma pessoa vesga, porém ela desconfiava
que seus olhos ainda não trabalhavam juntos, de que algo
estava errado, embora ela não soubesse especificar o quê.
"Ninguém me disse que eu não tinha visão binocular, e
permaneci despreocupadamente ignorante do fato até o
penúltimo ano da faculdade", ela escreveu. Foi quando fez
um curso de neurofisiologia:
O professor descreveu o desenvolvimento do córtex visual,
as colunas de dominância ocular, a visão monocular e
binocular e os experimentos com gatos criados com
estrabismo artificial. Ele mencionou que esses gatos
provavelmente não tinham visão binocular e estereopsia.
Fiquei pasma. Não imaginava que houvesse um modo de ver
o mundo ao qual eu não tinha acesso.
Depois do espanto inicial, Sue começou a investigar sua visão estereoscópica:
Fui para a biblioteca e me engalfinhei com os textos
acadêmicos. Tentei fazer todos os testes para visão
estereoscópica que encontrei, e falhei em todos. Descobri
inclusive que se devia ver uma imagem tridimensional
através do View-Master, o visor estereoscópico de
brinquedo que me haviam dado depois da terceira operação.
Encontrei o velho brinquedo na casa dos meus pais, mas não
vi imagem tridimensional através dele. Todas as outras pessoas que tentavam conseguiam.
Sue então pensou na possibilidade de existir algum tipo de
terapia para adquirir visão binocular. Entretanto, contou, "os
médicos me disseram que seria perda de tempo e dinheiro
tentar uma terapia da visão. Era tarde demais. Eu só poderia
ter adquirido visão binocular se os meus olhos houvessem
sido adequadamente alinhados até os dois anos de idade. E
por ter lido a obra de Hubel e Wiesel sobre o
desenvolvimento visual e os períodos críticos no início da
vida, aceitei esse parecer".
Vinte e cinco anos se passaram. Durante esse tempo, Sue se
casou, criou filhos e seguiu a carreira acadêmica em
neurobiologia. Afora alguma dificuldade para dirigir —
quando entrava no fluxo de tráfego de uma rodovia, era
difícil estimar a velocidade dos carros que vinham pela
preferencial — ela se saía muito bem com seus recursos
monoculares para avaliar espaço e distância. De vez em
quando, até caçoava de pessoas binoculares:
Fiz algumas aulas de tênis com um talentoso profissional.
Um dia, pedi-lhe que pusesse uma venda e tentasse rebater a
bola com um olho só. Mandei uma bola bem alta e
contemplei aquele exímio atleta dar com a raquete no ar.
Frustrado, ele arrancou a venda do olho e a jogou longe.
Admito envergonhada que adorei ver como ele se
atrapalhou: uma espécie de vingança contra todos os atletas
de dois olhos.
Mas ao aproximar-se da casa dos cinquenta, Sue começou a
ter outros problemas:
Ficava cada vez mais difícil ver à distância. Não só os
músculos dos olhos se cansavam mais depressa, mas, além
disso, o mundo parecia tremular quando eu olhava ao longe.
Era difícil enfocar as letras nas placas de rua ou distinguir se
uma pessoa estava andando na minha direção ou se
afastando. [...] Ao mesmo tempo, meus óculos, usados para
ver à distância, me deixavam hipermetrope. Na sala de aula
eu não conseguia ler minhas anotações e ver os alunos ao
mesmo tempo. [...] Decidi que era hora de adotar lentes
bifocais ou progressivas. Resolvi procurar um oftalmologista
que me prescrevesse lentes progressivas para melhorar a
acuidade visual e exercícios visuais para fortalecer os
músculos oculares.
Consultou a dra. Theresa Ruggiero, optometrista
desenvolvimental, que constatou que várias formas de
desequilíbrio vinham-se desenvolvendo nos olhos de Sue.
Isso ocorre em alguns casos depois de cirurgia para corrigir
estrabismo. Por isso, a visão razoável que ela tivera por
décadas agora estava sendo solapada.
A dra. Ruggiero confirmou que eu via o mundo com visão
monocular. Só usava os dois olhos juntos quando olhava
para algo a cinco centímetros do meu rosto. Ela me disse
que eu invariavelmente avaliava mal a localização dos
objetos quando os via só com o olho esquerdo. E, mais
importante, descobriu que meus olhos eram verticalmente
desalinhados. O campo visual do olho esquerdo era cerca de
três graus acima em relação ao do direito. A dra. Ruggiero
pôs diante do meu cristalino direito um prisma que
transferia mais para cima todo o campo visual do olho
direito. [...] Sem o prisma, eu tinha dificuldade para ler as
letras da tabela optométrica na tela do computador na outra
ponta da sala, pois elas pareciam tremular. Com o prisma, a
tremulação se reduzia bastante.
(‘"Tremulação' talvez fosse um termo brando demais", Sue
explicou depois, porque não se tratava de um bruxuleio
como aqueles que vemos no ar em dias muito quentes. Era
uma oscilação em um ritmo rápido, atordoante, de várias
vezes por segundo.)
Sue pôs seus novos óculos, junto com o prisma, em 12 de
Fevereiro de 2002. Dois dias depois, fez sua primeira sessão
de terapia visual com a dra. Ruggiero — uma longa sessão na
qual, usando óculos Polaroid para permitir que a cada olho
se apresentasse uma imagem diferente, ela tentou fundir as
duas imagens. No começo ela não entendeu o que
significava "fusão", como era possível unir as duas imagens,
mas depois de tentar durante vários minutos descobriu que
era capaz de fazê-lo, apenas por um segundo de cada vez.
Embora olhasse através de um par de imagens
estereoscópicas, ela não tinha percepção de profundidade;
ainda assim, dera o primeiro passo, conseguindo uma "fusão
plana", nas palavras da dra. Ruggiero.
Sue pensou, quem sabe se ela mantivesse os olhos alinhados
por mais tempo isso permitiria não só a fusão plana, mas
também uma fusão estereoscópica? A dra. Ruggiero deu-lhe
mais exercícios para estabilizar o acompanhamento de
movimentos e a sustentação do olhar, e Sue aplicou-se
diligentemente em fazê-los em casa. Três dias depois, uma
coisa estranha aconteceu:
Notei hoje que a luminária pendente no teto da nossa
cozinha está diferente. Ela parece ocupar mais espaço entre
mim e o teto. As bordas estão mais arredondadas. E um
efeito sutil, mas perceptível.
Na segunda sessão com a dra. Ruggiero, em 21 de Fevereiro,
Sue repetiu os exercícios com os óculos Polaroid e
experimentou um exercício novo, usando contas coloridas
presas num cordão a distâncias diferentes. Chamado
exercício das contas de Brock, essa prática foi ensinada a Sue
para que ela fixasse os dois olhos num mesmo ponto do
espaço, de modo que seu sistema visual, em vez de suprimir
as imagens de um ou de outro olho, as fundisse. O efeito
dessa sessão foi imediato:
Voltei para o carro e meu olhar encontrou o volante. Ele
"saltou" do painel. Fechei um olho, depois o outro, tornei a
olhar com os dois, e o volante pareceu diferente. Decidi que
a luz do sol poente estava me pregando peças, e fui para
casa. Mas no dia seguinte me levantei, fiz os exercícios
visuais e entrei no carro para ir ao trabalho. Quando olhei o
retrovisor, ele se ressaltou à frente do parabrisa.
Sua nova visão era "deliciosa", Sue escreveu. "Eu não tinha
ideia do que estava perdendo." Em suas palavras, "coisas
comuns pareciam extraordinárias. Luminárias flutuavam,
torneiras salientavam-se no espaço". Mas também era "um
tanto desnorteante. Eu não sabia a que distância um objeto
devia 'salientar-se' à frente de outro para uma determinada
distância entre os dois. [...] [E] um pouco como se eu
estivesse na casa dos espelhos de um parque de diversões ou
sob o efeito de alguma droga. Vivo fitando as coisas. [...] O
mundo realmente parece diferente". Ela incluiu alguns
trechos de seu diário:
22 de Fevereiro: Notei que a borda da porta aberta do meu
escritório parecia projetar-se na minha direção. Ora, eu
sempre soube que a porta se projetava na minha direção por
causa da forma da porta, da perspectiva e de outras
indicações monoculares, mas nunca a vira em profundidade.
Isso me fez olhar de novo, primeiro com um olho e depois
com o outro, para me convencer de que tinha uma
aparência diferente. Ela estava inequivocamente ali.
Na hora do almoço, olhei para meu garfo sobre o prato de
arroz, e o garfo estava no ar, defronte ao prato. Havia um
espaço entre o garfo e o prato. Eu nunca tinha visto isso
antes. [...] Fiquei olhando para uma uva espetada na ponta
do garfo. Podia vê-la em profundidade.
1.º de março: Hoje eu estava passando diante do esqueleto
completo de cavalo no subsolo do prédio onde trabalho
quando vi o crânio do cavalo tão saliente que dei um pulo
para trás e gritei.
4 de março: Hoje de manhã, quando corria com o cachorro,
notei que os arbustos pareciam diferentes. Cada folha parecia
salientar-se no seu espacinho tridimensional particular. As
folhas não simplesmente se sobrepunham umas às outras
como eu costumava vê-las. Eu podia ver o espaço entre as
folhas. O mesmo acontece com os ramos das árvores, os
pedregulhos no chão, as pedras em um muro. Tudo tem
mais textura.
A carta de Sue prosseguia nessa veia lírica, descrevendo
experiências totalmente novas para ela, além de qualquer
coisa que ela pudesse ter imaginado ou inferido antes. Ela
descobrira que não existia substituto para a experiência
pessoal, que havia um abismo intransponível entre o que
Bertrand Russell chamou de "conhecimento por descrição" e
"conhecimento direto" e que não havia jeito de passar de um
para o outro.
Seria de supor que o súbito aparecimento de uma qualidade
de sensação ou percepção inteiramente nova pudesse gerar
confusão ou medo, mas Sue pareceu adaptar-se com notável
facilidade ao seu novo mundo. De início ficou espantada,
desorientada, e teve de calibrar sua nova percepção visual da
profundidade e distância com suas ações e movimentos. De
modo geral, porém, ela se sentiu bem à vontade e foi
ganhando cada vez mais familiaridade com a estereoscopia.
Embora continue consciente da novidade da visão
estereoscópica e exulte com ela, também a sente, agora,
como algo "natural", acha que está vendo o mundo como ele
realmente é, como deveria ser. As flores, ela diz, "parecem
intensamente reais, infladas"; antes lhe pareciam "achatadas"
ou "esvaziadas".
A aquisição da estereoscopia depois de quase meio século de
cegueira estereoscópica também trouxe para Sue muitos
benefícios práticos. Dirigir está mais fácil, introduzir a linha
na agulha também. No trabalho, quando ela olha ao
microscópio binocular, pode ver paramécios nadando em
vários níveis, vê-los diretamente em vez de inferir
alternando o foco do microscópio para cima e para baixo
repetidamente. E isso é uma fonte inesgotável de fascinação:
Nos seminários [...] minha atenção é arrebatada pelo modo
como uma cadeira vazia se apresenta no espaço, e toda uma
fileira de assentos ocupa minha atenção por vários minutos.
Eu gostaria de tirar um dia inteiro só para andar por aí e
olhar. De fato, hoje deiuma escapada de uma hora até o
viveiro da faculdade para olhar as plantas e flores de todos os
ângulos.
A Maioria dos telefonemas e cartas que recebo falam de
reveses, problemas, perdas de vários tipos. Já a carta de Sue
era uma história não de destituição ou lamento, mas do
súbito ganho de um novo sentido e sensibilidade que trazia
deleite e júbilo. Apesar disso, também havia em sua carta
uma nota de perplexidade e reserva: ela não sabia se existiam
outras experiências ou histórias como a dela e espantou-se
ao descobrir, em tudo o que leu, que obter a estereoscopia
na vida adulta era "impossível". E se perguntava: será que ela
sempre possuíra em seu córtex visual células binoculares que
estavam só esperando pelas informações certas? Seria o
período crítico no início da vida menos crítico do que em
geral se supõe? Qual era minha opinião a respeito de tudo
isso?
Matutei sobre a carta de Sue durante alguns dias e a debati
com vários colegas, entre eles Bob Wasserman, um
oftalmologista, e Ralph Siegel, fisiologista da visão.
Algumas semanas depois, em Fevereiro de 2005, os três
fomos ver Sue em sua casa em Massachusetts. Levamos
equipamento oftalmológico e vários estereoscópios e
estereogramas.
Sue nos recebeu com prazer e, enquanto conversávamos, ela
nos mostrou fotos de sua infância, já que estávamos
interessados em reconstituir a fase inicial de sua história
visual. As fotografias deixavam bem claro seu estrabismo
quando menina, antes das cirurgias. Perguntamos se ela
alguma vez havia conseguido ver em três dimensões. Sue
pensou um pouco e então respondeu que sim, talvez —
muito ocasionalmente, quando pequena, deitada na grama,
ela podia subitamente ver, por um ou dois segundos, uma
folha de grama ressaltar do plano de fundo; quase se
esquecera desse fato até ser questionada por nós. A grama
tinha de estar bem perto de seus olhos, a poucos centímetros, exigindo que ela (como qualquer um de nós)
convergisse os olhos. Eis portanto uma indicação de que o
potencial para a estereopsia estava presente e poderia ser
trazido à tona se ela movesse os olhos na posição apropriada
para a visão estereoscópica.
Na carta, Sue escrevera: "Acho que toda a minha vida desejei ver as coisas em Maior profundidade, mesmo antes de
saber que tinha deficiência de percepção nessa área". Essa
estranha, tocante observação levou-me a pensar na
possibilidade de ela haver retido alguma memória muito
vaga, quase inconsciente de alguma vez ter visto as coisas
em Maior profundidade (pois ela não teria um sentimento de
perda ou nostalgia por algo que nunca possuiu). Era
importante aplicar-lhe testes com estereogramas especiais
que não contivessem indicações ou informações sobre a
profundidade — perspectiva ou oclusão, por exemplo. Eu
havia levado um estereograma com linhas impressas —
palavras e frases breves sem relação entre si — que quando
vistas estereoscópicamente apareciam em vários planos de
profundidade, mas quando vistas com um só olho, ou sem a
verdadeira visão estereoscópica, pareciam estar no mesmo
plano. Sue olhou essa imagem no estereoscopio e a viu
como um plano. Só quando lhe dei a dica de que algumas
das linhas impressas estavam em níveis diferentes ela tornou
a olhar e disse "Ah, agora estou vendo". Depois disso,
conseguiu distinguir todos os sete níveis e ordená-los
corretamente.
Se lhe fosse dado tempo suficiente, Sue talvez pudesse ter
visto todos os sete níveis sem ajuda, mas os fatores que
regem a percepção "de cima para baixo" — saber ou ter ideia
do que se deve ver — são cruciais em muitos aspectos da
percepção. Uma atenção especial, uma busca especial pode
ser necessária para reforçar uma faculdade fisiológica
relativamente fraca. Parece provável que tais fatores atuem
fortemente para Sue, sobretudo nesse tipo de situação em
que está sendo feito um teste. Na vida real, suas dificuldades
são bem menores, pois todos os outros fatores —
conhecimento, contexto e expectativa, assim como
perspectiva, oclusão e paralaxe de movimento — ajudam-na
a vivenciar a tridimensionalidade da realidade à sua volta.
Sue conseguiu ver em profundidade nos desenhos em verde
e vermelho que levei. Achou "espetacular" uma dessas
imagens — um impossível diapasão com três dentes de
alturas crescentes, figura que bem poderia estar entre as
incríveis ilusões de ótica projetadas por M. C. Escher. Ela
viu o topo do dente superior três ou quatro centímetros
acima do plano do papel. No entanto, Sue dissera que sua
estereoscopia era "rasa"; Bob e Ralph viram o dente superior
a uns doze centímetros acima do plano, enquanto eu o vi
cinco centímetros ainda mais acima.
Isso me surpreendeu, pois estávamos todos à mesma distância do desenho, e eu imaginava que, por alguma espécie de
trigonometria neural, houvesse uma relação fixa entre a
disparidade das imagens e sua profundidade percebida.
Intrigado, escrevi a Shinsuke Shimojo, do Instituto de
Tecnologia da Califórnia, especialista em muitos aspectos da
percepção visual. Ele respondeu, explicando que quando
olhamos um estereograma, o processo computacional do
cérebro baseia-se não apenas na indicação binocular das
disparidades, mas também em informações monoculares
como tamanho, oclusão e paralaxe de movimento. As
informações monoculares podem atuar contra as
binoculares, e o cérebro tem de sopesar esses conjuntos de
informações para chegar a uma média ponderada. O
resultado final diferirá entre os indivíduos, pois existe uma
imensa variação, mesmo na população normal: algumas
pessoas servem-se predominantemente de informações
binoculares, outras das monoculares, e a Maioria usa uma
combinação dos dois conjuntos. Quando olha para uma
imagem estereoscópica como a do diapasão, uma pessoa
acentuadamente binocular verá uma profundidade
estereoscópica incomum; uma pessoa com orientação monocular verá em profundidade bem menor; outras, servindo-se de informações binoculares tanto quanto monoculares,
verão algo intermediário. A formulação de Shimojo
corroborou a obstinada convicção de alguns de nós,
membros da Sociedade Estereoscópica de Nova York, de
que vivemos em um mundo visualmente "mais profundo"
do que a Maioria das pessoas.
Ainda naquele dia fizemos uma visita à optometrista, dra.
Theresa Ruggiero, que descreveu a primeira consulta de Sue,
em 2001. Na ocasião, Sue queixara-se de cansaço nos olhos,
especialmente ao dirigir, de falta de nitidez visual e de uma
desconcertante tremulação ou salto de imagens — mas não
mencionara a ausência da estereoscopia.
A dra. Ruggiero contou que ficou muito feliz quando,
imediatamente depois de conseguir a fusão no plano, Sue
descobriu a estereoscopia. O esforço consciente e o ato de
mover os olhos até deixá-los na posição para a fusão
binocular, supôs a doutora, podem ter sido cruciais para essa
conquista de Sue. E salientou, mais que a obtenção inicial da
estereoscopia, a reação ousada e positiva de Sue à sua nova
aquisição, junto com uma ferrenha determinação de mantê-la e intensificá-la, por mais trabalho que viesse a ser
necessário.
De fato, isso lhe deu e continua a dar trabalho: árduos
exercícios de fusão por no mínimo vinte minutos diários.
Com esses exercícios, Sue descobriu que estava começando
a perceber a profundidade a distâncias cada vez Maiores, em
contraste com a fase inicial em que só a percebia a pouca
distância, como no casodo volante do carro. Sua acuidade
estereoscópica continua a melhorar aos saltos, e Sue
consegue ver em profundidade com disparidades cada vez
menores — mas quando interrompeu a terapia por seis
meses, houve uma regressão rápida. Isso a aborreceu
profundamente, e ela retomou a rotina de exercícios visuais,
executando-os todos os dias "religiosamente".
Sue usa uma metáfora cinética para seu aprendizado do uso
da visão estereoscópica: é como reaprender a andar. "Tive de
criar uma nova coreografia para meus movimentos
oculares", ela escreveu recentemente, "como mover os
olhos em harmonia, antes de poder explorar meus circuitos
binoculares latentes e ver em profundidade estereoscópica".
Sue continua a exercitar laboriosamente sua percepção e
acuidade estereoscópicas, e sua percepção da profundidade
pela estereoscopia voltou a crescer. Além disso, ela adquiriu
uma habilidade que não possuía quando lhe fizemos a
primeira visita: ver estereogramas de pontos aleatórios. À
primeira vista, eles não parecem conter imagem alguma.
Mas conforme continuamos a fitá-los pelo estereoscópio,
vamos nos apercebendo de uma estranha turbulência entre
os pontos, até que uma surpreendente ilusão — uma
imagem, uma forma — subitamente aparece muito acima ou
muito abaixo do plano do papel. Essa ilusão requer alguma
prática para ser vista, e muitas pessoas, até mesmo com visão
binocular normal, não conseguem vê-la. Mas esse é o mais
puro teste de visão estereoscópica, pois não contém nenhuma pista monocular; somente fundindo
estereoscópicamente com a visão binocular milhares de
pontos que parecem ser aleatórios o cérebro pode construir
uma imagem tridimensional.
David Brewster, um cientista do século xix que se inspirou
no trabalho de Wheatstone, observou uma forma afim de
ilusão estereoscópica. Fitando um papel de parede com
pequenos motivos repetitivos, ele notou que às vezes, com a
convergência ou divergência certa do olhar, os padrões
podiam tremular ou mover-se e então, de um salto, aparecer
em um surpreendente relevo estereoscópico, parecendo
flutuar à frente ou atrás do papel de parede. "Brewster
escreveu sobre essas ilusões estereoscópicas e pensou ter
sido o primeiro a observá-las — embora pareça provável que
esses "autoestereogramas" sejam vistos há milênios, nos
padrões repetitivos da arte islâmica, celta e de muitas outras
culturas. Manuscritos medievais como o Livro de Kells e os
Evangelhos de Lindisfarne, por exemplo, contêm padrões
fascinantemente intricados, desenhados com tanta exatidão
que é possível ver páginas inteiras, a olho nu, em relevo
estereoscópico. (John Cisne, paleobiólogo da Universidade
Cornell, aventou que esses estereogramas talvez fossem
"algum tipo de segredo corporativo entre os membros da
elite educada das Ilhas Britânicas nos séculos VII e VIII".)
Há uma ou duas décadas, elaborados autoestereogramas
foram popularizados pela série de livros Olho mágico. As
ilusões são imagens que podemos ver sem estereoscópio,
mas contêm fileiras horizontais de padrões repetidos do tipo
"papel de parede" com ligeiras diferenças. A primeira vista,
todos os padrões parecem estar no mesmo nível, mas
quando aprendemos a divergir ou convergir os olhos,
deixando que cada um enfoque uma fileira diferente,
aparecem surpreendentes ilusões estereoscópicas. Sue adora
esses livros, e eles acrescentaram outra dimensão à sua
recém-descoberta vida com estereoscopia: "Acho esses
autoestereogramas de papel de parede fáceis (e fascinantes)",
ela escreveu recentemente, "provavelmente porque pratico
a fusão convergente e divergente com regularidade". No
verão de 2005, Bob Wasserman e eu fizemos outra visita a
Sue, desta vez em Woods Hole, Massachusetts, onde ela
estava coordenando um programa de bolsas de estudo em
neurobiolo-gia. Ela me contara que a enseada local às vezes
ficava cheia de organismos luminosos, minúsculos
dinoflagelados em sua Maioria, e adorava nadar no meio
deles. Chegamos em meados de agosto e descobrimos que
era a época perfeita; a água reluzia com as criaturas
luminosas ("Noctiluca scintillans — adoro esse nome", Sue
comentou). Depois de escurecer, fomos para a praia,
munidos de máscara e snorkel. Da orla podíamos ver a água
faiscando como se vaga-lumes estivessem nadando, e
quando mergulhamos e movemos os braços e pernas na
água, nuvens de minúsculos fogos de artifício acenderam-se
ao redor dos nossos membros. Nadamos com as luzes
noturnas passando rápido por nossos olhos, como as estrelas
vistas da Enterprise ao atingir a "velocidade de dobra". Em
um trecho onde os Noctiluca eram especialmente
numerosos, Bob comparou: "E como nadar numa galáxia,
num enxame globular".
Sue entreouviu e disse: "Agora eu os vejo em 3-D — antes
pareciam brilhar todos num mesmo plano". Ali não havia
contornos, fronteiras, objetos grandes que causassem
oclusão ou dessem perspectiva. Não havia contexto de
espécie alguma: era como estar imerso num gigantesco
estereograma de pontos aleatórios, e, no entanto, agora Sue
via os Noctiluca a diferentes profundidades e distâncias no
espaço tridimensional. Queríamos fazer-lhe perguntas para
obter uma descrição melhor de sua experiência, mas Sue,
normalmente ávida para falar sobre a visão esteroscópica,
estava hipnotizada pela beleza dos organismos cintilantes.
"Chega de pensar!", ela pediu. "Entreguem-se aos Noctiluca."
Empenhada em encontrar uma analogia para o que vi
vendava, Sue cogitara, na primeira carta que me mandou,
que sua experiência talvez fosse semelhante à de alguém que
nasceu totalmente cego para as cores, capaz de ver apenas
em tons de cinza, e de repente ganhasse a capacidade de ver
a paleta completa. Essa pessoa, ela escreveu, "provavelmente
ficaria deslumbrada com a beleza do mundo. Como poderia
parar de olhar?". Embora eu gostasse dessa analogia poética
de Sue, não sabia se a idéia era válida. (Meu amigo e colega
Knut Nordby, que era totalmente cego para cores, achava
que ganhar a percepção das cores como um "recurso
adicional" depois de toda uma vida sem elas seria
tremendamente desnorteante, impossível de integrar ao seu
mundo visual já completo. Ele achava que a cor seria
ininteligível e não teria nenhuma associação, nenhum
significado para alguém como ele.)
Mas para Sue a estereoscopia claramente não era uma adição
gratuita ou sem sentido ao seu mundo visual. Ela ficou um
tanto confusa de início, porém logo se entusiasmou com a
nova experiência e a sentiu não como uma adição arbitrária,
mas como um enriquecimento, um aprofundamento natural
e delicioso da visão que já possuía. No entanto, termos como
"enriquecimento" ou "aprofundamento", pensava Sue, não
faziam jus à sua aquisição da estereoscopia. Não se tratava
apenas de um aumento qualitativo; era algo inteiramente
novo. A estereoscopia é subjetivamente diferente, ela
garante. Essa diferença estende-se inclusive à percepção de
representações bidimensionais, como fotografias, filmes ou
pinturas, que hoje Sue vê com "mais realismo", pois seus
sistemas estereoscópicos agora ativados permitem-lhe
imaginar o espaço de um modo antes impossível para ela.
David Hubel acompanhou com interesse o caso de Sue e
correspondeu-se com ela e comigo sobre o assunto. Ele
observou que a ciencia ainda sabe pouquíssimo sobre a base
celular da estereoscopia. Não sabemos se, mesmo em
animais, células sensíveis a disparidades (as células
binoculares especializadas para a estereoscopia) estão
presentes desde o nascimento (embora Hubel suspeite que
estejam). Não sabemos o que acontece com essas células
quando há estrabismo ou ausência de experiência binocular
no início da vida ou, mais crucialmente, se elas são capazes
de recuperar-se mais tarde se o indivíduo aprender a
posicionar os olhos para obter a fusão binocular. Com
respeito a Sue, ele escreveu: "Parece-me que [sua reaquisição
da estereopsia] ocorreu rápido demais para que seja devida a
um restabelecimento de conexões, e prefiro supor que o
mecanismo estava lá o tempo todo, necessitando apenas do
restabelecimento da fusão para ser posto em
funcionamento". No entanto, ele acrescentou, "essa é só
uma hipótese!".
O que emerge da experiência de Sue é que parece haver
suficiente plasticidade no cérebro adulto para que essas
células e circuitos binoculares, se alguns houverem
sobrevivido ao período crítico, sejam reativados muito
tempo depois. Em tal situação, embora a pessoa possa ter
pouca ou nenhuma visão estereoscópica da qual se recorde,
o potencial para a estereopsia ainda assim está presente e
pode ganhar vida, inesperadamente, se for possível obter um
bom alinhamento dos olhos. E notável isso ter
aparentemente ocorrido com Sue após um período latente
de quase cinquenta anos.
Embora Sue de início pensasse que seu caso fosse único,
descobriu pela internet, várias outras pessoas com
estrabismo e problemas afins que obtiveram
inesperadamente a visão estereoscópica com ajuda de terapia
visual. O caso dessas pessoas, como o de Sue, sugere que se
alguém possuir até mesmo pequenas ilhas de função no
córtex visual, pode haver uma chance razoável de reativá-las
e expandi-las mais tarde, apesar de um lapso de décadas.
Seja qual for sua base neurológica, o aumento do mundo
visual de Sue proporcionou-lhe efetivamente um sentido
adicional, uma circunstância que o resto de nós dificilmente
pode imaginar. Para ela, a estereopsia continua a ter a
qualidade de uma revelação. "Depois de quase três anos", ela
escreveu, "minha nova visão continua a me surpreender e
deleitar. Num dia de inverno, saí correndo da sala de aula
para um almoço rápido em uma lanchonete. Depois de dar
alguns passos fora do prédio, parei de chofre. A neve caía
preguiçosamente à minha volta em flocos grandes e úmidos.
Eu podia ver o espaço entre cada floco, e todos os flocos
juntos produziam uma bela dança tridimensional. No
passado, a neve me pareceria cair em uma lâmina plana
ligeiramente à minha frente. Era a mesma sensação de olhar
para um globo de neve de brinquedo. Mas agora eu me
sentia dentro do globo de neve, em meio aos flocos. Esqueci
o almoço e fiquei lá, olhando a neve cair durante vários
minutos. Uma felicidade incomensurável se apoderou de
mim. Um floco de neve pode ser lindíssimo —
especialmente quando o vemos pela primeira vez."
PÓS-ESCRITO
Sete anos depois de adquirir a estereoscopia, Sue ainda se
encanta com o seu "novo" sentido e acha que graças a ele
seu mundo visual está infinitamente mais rico. Desde que
me escreveu em 2004, ela continua a refletir sobre o que
ocorre com ela e a fazer contato com muitas pessoas em
situação semelhante e com estudiosos da visão. Em 2009 ela
publicou um livro encantador e profundo sobre sua jornada,
"Fixing my gaze: a scientist's journey into seeing in three
dimensions".
Em 17 de Dezembro de 2005, um sábado, fui nadar de manhã, como de costume, depois decidi ir ao cinema. Cheguei
alguns minutos antes do começo da sessão e me sentei no
fundo da plateia. Não havia nenhum indício de algo
incomum antes dos trailers. Comecei então imediatamente a
tomar consciência de uma espécie de tremulação, uma
instabilidade visual à esquerda. Pensei que seria o princípio
de uma enxaqueca visual, mas logo percebi que, fosse o que
fosse, afetava apenas o olho direito, por isso tinha de
originar-se no próprio olho e não no córtex visual, como
ocorre nas enxaquecas.
Quando a tela do cinema escureceu depois do primeiro
trailer, o local da tremulação à esquerda acendeu como um
carvão em brasa cingido de cores espectrais — turquesa,
verde, laranja. Assustei-me: será que eu estava tendo uma
hemorragia no olho, um bloqueio da artéria central da
retina, um descolamento retiniano? Percebi em seguida um
ponto cego no interior da área incandescente, pois olhando
apenas com o olho direito para a esquerda, onde uma fileira
de luzes no chão indicava a saída, constatei que todas as
lâmpadas da frente estavam "faltando".
Senti o pânico assomando. Será que a área escura continuaria
a aumentar até o olho direito ficar totalmente cego? Será que
eu devia sair dali imediatamente? Procurar um pronto-socorro? Telefonar para Bob, meu amigo oftalmologista? Ou
deveria ficar ali quieto e esperar que o problema se
resolvesse espontaneamente? O filme começou, mas não
prestei atenção; estava absorto em checar minha visão a
intervalos de poucos segundos.
Por fim, dali a uns vinte minutos, saí bruscamente do cinema. Talvez tudo ficasse bem assim que eu me visse à luz do
dia, no mundo real. Mas não. A tremulação abrandara-se um
pouco, mas quando eu usava apenas o olho direito
continuava a faltar um pedaço em forma de empadão no
meu campo visual à esquerda. Voltei andando, quase
correndo, ao meu apartamento, e telefonei para Bob. Ele fez
algumas perguntas, sugeriu uns testes instantâneos e então
me disse para procurar um oftalmologista imediatamente.
Duas horas depois eu estava no consultório do oftalmologista. Contei-lhe meu caso e indiquei o quadrante de
cegueira no olho direito. Ele ouviu com atenção, impassível,
e, depois de verificar meus campos visuais, pegou o
oftalmoscópio e examinou o olho. Largou o instrumento,
aprumou-se e me fitou, com olhos diferentes. Antes disso
ele estava informal, despreocupado — não éramos
exatamente amigos, mas éramos colegas, ambos médicos.
Agora, subitamente eu estava em uma categoria muito
diferente. Falou com cuidado, escolhendo as palavras; tinha
um ar sério e preocupado. "Vejo pigmentação", ele disse,
"alguma coisa atrás da retina. Pode ser um hematoma, ou
pode ser um tumor. Se for tumor, pode ser benigno ou
maligno". Pareceu respirar fundo. "Pensemos na pior
hipótese", prosseguiu. Não sei bem o que ele falou em
seguida, pois uma voz havia começado a gritar dentro da
minha cabeça "câncer, câncer, câncer...", e eu não conseguia
mais ouvi-lo. Ele disse que me encaminharia o mais rápido
possível ao dr. David Abramson, um renomado especialista
em tumores oculares.
De volta ao meu apartamento naquela noite, testando meu
olho direito, espantei-me ao ver que as barras horizontais do
condicionador de ar pareciam todas deformadas, convergiam
e entravam umas nas outras, enquanto as barras verticais
divergiam. Não consigo me lembrar agora como foi que
passei o resto da semana. Estava muito inquieto, fiz longas
caminhadas e, dentro de casa, andei de um lado para outro.
As noites, então, foram péssimas — eu precisava me
derrubar com soníferos.
19 DE DEZEMBRO DE 2005: DIAGNÓSTICO
Consegui uma consulta com o dr. Abramson logo cedo na
segunda-feira. Kate, minha grande amiga e assistente, foi
comigo para dar apoio moral. O dr. Abramson, homem
tranquilo, discreto, comedido e reservado, tinha um brilho
travesso nos olhos. "Prazer em conhecê-lo", eu disse.
"Já nos conhecíamos", ele respondeu, e me lembrou de que
fora meu aluno nos anos 1960. Tinha vívidas lembranças das
minhas aulas e de algumas das minhas idiossincrasias.
Recordou que em toda a sua vida de estudante de medicina
meu curso fora o único que sempre concluía a semana com
um debate aberto acompanhado de uma xícara de chá. Era
curioso, pensei (e talvez ele também) que mais de 35 anos
depois de ter sido seu mentor eu agora fosse seu paciente.
Ele fez um exame preliminar dos meus olhos e pingou
colírio para dilatar as pupilas. Em seguida, fotografou e
examinou a retina com ultrassom. Falamos pouco durante
esses exames. Depois fomos para uma sala Maior e nos
sentamos. O dr. Abramson trouxe um modelo grande do
olho, com um corte para revelar sua anatomia interna.
Pegou um objeto preto de aparência hedionda — irregular,
espiralado, lembrava uma pequena couve-flor — e o
posicionou próximo à entrada do nervo óptico. O significado
era claro: eu tinha um tumor, e maligno. Lembrei que, na
Inglaterra, o juiz usa um barrete preto antes de pronunciar a
sentença de morte. Aquela couve-flor negra tinha o mesmo
significado. Senti que havia recebido a sentença de morte.
"E um melanoma", ele confirmou, mas emendou logo que
raramente os melanomas oculares sofrem metástase —
pouquíssimas eram as probabilidades de que se espalhasse
além do olho. Ainda assim, não se podia deixar que ele
persistisse e crescesse no olho, sem tratamento. Até
recentemente, o procedimento recomendado era a remoção
total do olho (ele próprio fizera milhares dessas enucleações
durante anos), mas agora se achava que a radiação podia ter a
mesma eficácia, permitindo manter o olho e a visão
remanescente. O dr. Abramson mal terminara a explicação e
eu já estava perguntando quando seria feita a tal radiação —
amanhã? Ele respondeu que haveria uma espera de três
semanas, pois os feriados de Natal e Ano-Novo estavam
chegando, mas me assegurou que durante esse período não
ocorreria um crescimento significativo do tumor; essas
coisas tendem a crescer muito lentamente. Seria preciso
algum tempo para produzir a placa radioativa, que seria feita
sob medida para focalizar a radiação precisamente sobre o
tumor. E então a placa seria colocada na lateral do meu olho,
o que iria requerer o desligamento de um dos músculos oculares. Em uma segunda operação, alguns dias mais tarde, a
placa seria removida, e o músculo religado.
Meu tumor decerto levara algum tempo para atingir esse
tamanho, ele acrescentou, e perguntou se eu observara
alguma falha no meu campo visual nos últimos meses.
Infelizmente, eu nunca verificara. Nunca notara nada de
errado até dois dias antes, no cinema, e depois vira aquelas
distorções visuais esquisitas, a deformação das horizontais e
verticais durante o fim de semana. Isso, explicou o dr.
Abramson, era devido ao inchaço e distorção da retina, e
desapareceria quando o tumor e o edema a ele associado
regredissem com o tratamento. Mas se as distorções
piorassem, ele sugeriu, eu poderia usar um tapa-olho por
algumas semanas até que elas cessassem.
Praticamente todos os melanomas oculares são sensíveis à
radiação, ele prosseguiu. Havia uma boa chance de que o
tumor fosse morto pela radiação, seguida, se necessário, por
aplicação de laser. Infelizmente o meu tumor estava em um
local ruim — pouco mais de cem células, um milímetro
apenas, distante da fóvea, a parte da retina onde se forma a
imagem e a acuidade visual é máxima. Mas se fosse possível
frear o avanço do tumor, ele disse, eu conservaria, por
algum tempo, a visão 20/20 que sempre tive nesse olho.
Posteriormente poderia ocorrer alguma perda de visão,
devido aos efeitos tardios da radiação. Ainda assim, eu
deveria ter uma substancial "janela" — talvez anos — de boa
visão antes que isso ocorresse.
"Você provavelmente dá notícias desse tipo a muitos
pacientes", comentei com o dr. Abramson. Perguntei como
eu parecia ter recebido a notícia. Com muita calma, ele
respondeu, mas ainda seria preciso digeri-la.
19 DE DEZEMBRO DE 2005
Acordo de um pesadelo. No momento em que abro o olho
direito, percebo algo errado. A Escuridão avançou um pouco
— agora quase não posso ver nada à esquerda. Estou calmo e
racional na superfície; sei que, com o dr. Abramson, estou
nas melhores mãos possíveis, mas sinto dentro de mim uma
criança apavorada, gritando por socorro.
21 DE DEZEMBRO DE 2005
Ter câncer, qualquer câncer, significa uma mudança
instantânea de condição, uma mudança instantânea na vida.
O diagnóstico é um limiar além do qual está toda uma
existência, por mais longa que venha a ser, de exames,
tratamentos, vigilância — e sempre, consciente ou
inconsciente, uma sensação de reserva quanto ao futuro.
Hoje, o primeiro dia do inverno, preciso fazer exames de
função do fígado. Será que o monstro se alastrou para o meu
fígado? Terá garras nas minhas entranhas? Morrerei de
melanoma? Esse pensamento não me abandona nem por um
momento.
Fiz um trato com o tumor: pode ficar com o meu olho, se
fizer questão, contanto que deixe o resto de mim em paz.
No Hospital Memorial Sloan-Kettering há uma passarela
especial com uma indicação: "Reservado para Pacientes do
MSK". Eu já a notara outras vezes, ao visitar pessoas ali
internadas. "Coitados", eu pensava quando via gente usando
aquela passarela. Agora quem segue por ela sou eu.
Colhem meu sangue — estará normal? Exame de rotina:
pulso, pressão arterial etc. Minha pressão está um pouco alta,
150/80 — normalmente é de 120/70. O elevador para as
salas de raio X parece ter uma estranha forma trapezóide,
com as paredes convergindo no fundo. Será parte do mundo
da casa dos espelhos, o mundo de distorções métricas e
topológicas que terei de atravessar? Kate me assegura que
desta vez, pelo menos, não são os meus olhos. O elevador é
mesmo trapezóide.
Depois de uma bateria de exames e preenchimento de papéis no hospital, volto ao consultório do dr. Abramson, a
alguns quarteirões. Começo a conhecer o lugar e o pessoal
que lá trabalha, e eles agora estão começando a me
conhecer. Entrei para um novo clube: o Clube do Melanoma
Ocular da Grande Nova York (eu que já sou membro do
Clube Mineralógico de Nova York... e da Sociedade
Estereoscópica de Nova York, da qual talvez logo me torne
o único sócio monocular).
"21 de Dezembro, primeiro dia do Inverno", digo a Kate.
"Um dia auspicioso", ela replica, tentando me animar. "Os
dias começam a ficar mais longos."
"Os seus talvez", retruco azedo.
22 DE DEZEMBRO DE 2005
4h00: Acordei. Frio. O medo. Abro o olho direito. A
Escuridão voltou a crescer, está querendo rodear minha
ilhazinha de visão, meu ponto de fixação, minha fóvea. Logo
ela será totalmente engolfada.
10h00: Visão muito melhor. Acho que minha observação
das 4 da manhã estava relacionada à penumbra do quarto e
ao fato (agora estou aprendendo) de que a área cega, o
escotoma, varia conforme a iluminação — pode ficar Maior
e até anular a visão central se a luminosidade for pouca.
Quando fecho o olho direito, vejo novamente luzes
brilhantes, as luzes ofuscantes que são os arautos da
cegueira. Um crescente em forma de concha, com borda em
Technicolor, logo acima do meu ponto de fixação.
23 DE DEZEMBRO DE 2005
Percebi que, quando uso apenas o olho direito, não consigo
ler — as linhas são indistintas, escorregadias, imensamente
distorcidas, e tremem de momento a momento. Eu não
imaginava que isso me aconteceria tão cedo. Talvez eu tenha
evitado ler nestes últimos dias, ou lido apenas com o olho
esquerdo, sem me dar conta. Agora tendo a fechar o olho
direito quando leio — isso é inconsciente, involuntário,
quase automático.
24 DE DEZEMBRO DE 2005
Acordei depois de uma boa noite de sono e, com o sol da
manhã se derramando pela janela, esqueci por um momento
que sou uma "vítima do câncer". Sentia-me bem, e os
sintomas visuais não eram intrusivos. Sentir-me bem é
sempre algo perigoso para mim — tenta-me a excessos. De
manhã, na piscina, nadei por tempo demasiado: uma hora,
principalmente de costas, mas depois fiz várias chegadas em
estilo livre, coisa que o dr. Abramson desaconselhou (talvez
porque isso tenda a aumentar o edema na retina), seguidas
por meia hora de exercícios vigorosos com bola e na esteira.
Foi aí que minha visão voltou a incomodar — testando o
olho direito uma hora depois, descobri que não conseguia
ler nem as manchetes do New York Times. Isso me
apavorou, pois me mostrou como é perder a visão central.
Agora, duas horas e meia depois, o edema está se abrandando (se é que era edema), embora a visão do olho direito
ainda esteja instável: as linhas e superfícies serpenteiam e se
recurvam. Acho mais fácil pôr uma venda no olho direito e
usar só o esquerdo, que pelo menos tem visão estável.
Dentro da margem flamejante, coruscante, do escotoma,
continuamente se formam as mais variadas imagens
involuntárias — rostos, figuras, paisagens. Já me ocorreram
imagens parecidas brevemente, no início de uma enxaqueca
ou antes de adormecer, mas nunca, pelo que me lembro,
essa formação contínua de imagens mentais como agora.
25 DE DEZEMBRO DE 2005
Todo mundo diz "Feliz Natal!", e eu retribuo, mas este é o
Natal mais desolador que já passei. O New York Times de
hoje traz fotos e histórias de várias personalidades que
morreram em 2005. Estarei nessa lista em 2006?
Kate tenta manter o otimismo. "O dr. Abramson falou que
isso não vai matar você", argumenta. "Venha o que vier, nós
vamos enfrentar". Não sei, não. A ideia da cegueira me
apavora, tanto quanto pensar na possibilidade de estar entre
o desafortunado um por cento.
30 DE DEZEMBRO DE 2005
8h00: Hoje cedo, quando abri os olhos, a nuvem escura no
olho direito estava muito Maior. Sentei-me, olhei pela janela
com o olho direito e quase não vi céu nenhum; depois olhei
para o centro do ventilador no teto e descobri que três das
cinco pás estavam quase invisíveis para esse olho— eu só
conseguia enxergar os tocos das pás, próximos do meu ponto
de fixação.
10h00: Agora, duas horas após ter me levantado, percebo
que o escotoma regrediu e que posso ver todas as pás, exceto
uma. A posição é importante, pois o edema parece
acumular-se quando me deito na horizontal à noite — talvez
convenha dormir com a cabeça apoiada.
Tenho dificuldade para me concentrar, me aquietar. Difícil,
também, escrever — não escrevi nada (exceto breves cartas)
desde que concluí um capítulo sobre epilepsia musicogênica
há uma semana —, embora venha pelo menos pensando
sobre sinestesia e música.
16h00: Humor e energia muito melhores! Acabei de escrever a Maior parte de "Música colorida", meu capítulo sobre
sinestesia.
1.º DE JANEIRO DE 2006
Neste dia de Ano-Novo, vejo-me acalentando medos e
esperanças, enfrentando desafios inéditos para mim. Há uma
pequena, mas significativa chance de que seja meu último
ano — mas venha ou não a sê-lo, minha vida certamente se
transformará, já se transformou, de um modo radical.
Questões de amor e trabalho, do que mais importa,
assumiram intensidade e urgência especiais.
5 DE JANEIRO DE 2006
Ando impaciente e aborrecido por ter de esperar tanto pela
cirurgia. Terá esse período de feriados custado um tempo
precioso, permitido que o tumor continuasse a roer minha
visão? O dr. Abramson me garante que fará tudo ao seu
alcance para matar o tumor e preservar minha visão tanto
quanto possível. E fico feliz por tê-lo reencontrado (apesar
das circunstâncias). Ele é não só um médico brilhante, mas
também um homem extremamente sensível — coisa
importantíssima quando se lida com quem tem câncer.
Nunca parece apressado nem impaciente. Ouve atentamente
o que digo e responde com grande delicadeza e tato. Acho
que ele me entende — a mim e ao melanoma.
Tive um sono agitado esta noite, sonhos e preocupações
com o olho, com a visão — e também com a vida. Temores
de todo tipo percorrem minha mente em disparada,
misturados a lamentação e recriminações (inúteis) pelo fato
de o tumor não ter sido diagnosticado antes. Por que não
percebi a importância daquelas densas linhas onduladas, das
estrelinhas e tufos que por meses eu andava vendo no teto
branco da piscina sempre que nadava de costas? Como pude
chegar ao absurdo de menosprezá-los como "fragmentos de
enxaqueca" ou reflexo dos meus cílios nos óculos de
natação, quando um experimento rápido poderia me mostrar
— como descobri ontem — que eles só eram vistos com o
olho direito e também eram visíveis sem os óculos de natação? Eu podia, eu devia ter prestado atenção, questionado,
buscado esclarecimento meses atrás.
Bob, no entanto, acha que isso não teria feito uma diferença
apreciável, mas o que é condenável — e nisso fico furioso
com meu ex-oftalmologista, com Kate e comigo mesmo — é
que meu exame oftalmológico "anual", não sei porquê,
deixou de ser feito por dois anos consecutivos, portanto
fiquei 32 meses sem um exame dos olhos. Esse atraso
poderia, talvez, ter-me custado a visão e até a vida — mas
não devo pensar nisso; devo é me concentrar na sorte que
tenho porque a coisa foi pega agora e, segundo o dr.
Abramson, é totalmente tratável.
9 DE JANEIRO DE 2006: CIRURGIA
10h00: Dentro de aproximadamente uma hora irei para a
cirurgia; não sei até que ponto ficarei consciente, nem se
quero ficar. Em operações anteriores — no ombro e na
perna — eu estava ávido para saber, quase para participar dos
procedimentos. Desta vez gostaria de estar totalmente
inconsciente. Kate e Bob estão aqui comigo, tentam me
tranquilizar e me distrair.
17h00: Fiquei inconsciente durante o procedimento — que
alegria, que delícia! À medida que o fentanil foi fazendo
efeito, a dor ciática que me atormenta há meses foi
desaparecendo, e mergulhei numa inconsciência mais
profunda que o mais profundo dos sonos. Quando acordei, o
dr. Abramson me fez uma ou duas perguntas para testar
minha orientação e condição cognitiva. Onde eu estava? O
que tinha sido feito? Respondi que estava na sala de
recuperação e que ele desligara o músculo reto lateral do
olho direito e colocara a placa contendo radioiodo (1-125,
para ser preciso) na esclera. Lamentei que não fosse rutênio
radioativo em vez de iodo (tenho uma queda pelos metais do
grupo da platina), mas pelo menos 125 era memorável por
ser o menor número que era a soma de dois quadrados de
dois modos diferentes. Espantei-me quando disse isso; não
pensara nada de antemão. Veio à mente de supetão. (Alguns
minutos depois, percebi um engano: 65 é o menor dos
números com essas características.) Continuei em um estado
loquaz, ligeiramente eufórico e — coisa atípica em mim —
simpático e sociável. Bati papo com todas as enfermeiras.
Kate veio me visitar na sala de recuperação (depois me
contou que precisou assegurar às enfermeiras que minha
pulsação baixa era normal, pois sou um nadador de longa
distância).
Agora, seis horas depois, deitado, vejo centelhas, cintilações
ocasionais no olho direito. Pergunto-me se serão partículas
ou raios emitidos pelo rádio-iodo que atingem minha retina.
(Isso me recorda os relógios radioativos que meu tio Abe
fazia, e como eu os comprimia contra minhas pálpebras
fechadas quando menino para ver cintilações parecidas...
isso poderia ter ajudado a causar o tumor?)
Meu olho está coberto por um grosso chumaço de gaze e
uma venda rígida para protegê-lo de solavancos. Na porta do
meu quarto há uma placa com alerta de radioatividade. Só se
pode entrar obedecendo a instruções — e eu não posso sair.
Não são permitidas mulheres grávidas nem crianças, e
ninguém pode me beijar enquanto a placa radioativa estiver
instalada. Não me é permitido ir para casa; estou detido no
hospital. Estou "radioativo".
4h00: Levantei inquieto, não consigo mais dormir. A venda
pressiona meu olho, me oprime (um engraçadinho teve a
ideia de me trazer um livro chamado The blindfold, mas
minha ciática — que me atormentava havia meses — continua misteriosamente em suspensão. O quarto está
sossegado, nada para fazer, posso contemplar as lentas águas
do rio East.
9h00: Olhando pela janela com o olho esquerdo, que não
está vendado, espanto-me ao ver carros em galhos de
árvores, como brinquedos. Com um olho tampado, não
tenho nenhuma sensação de distância nem profundidade —
uma prévia de como será se eu perder a visão central do
olho direito.
15h00: Visitas e telefonemas ininterruptos desde cedo.
Maravilhoso — mas cansativo. Kate saiu, foi procurar algo
que me conforte o estômago e o espírito, e voltou com bagel
e salmão; outros amigos trouxeram-me chocolates e frutas,
sopa de bolas de matzá, pão challah e arenque em shmaltz.
Arenque e peixe defumado é o que mais tenho vontade de
comer quando estou abatido. Com tudo isso e mais a comida
do hospital, estou bem abastecido e satisfeito por estar
sozinho agora.
16h00: Um manto cobriu a cidade — uma tênue névoa
cinzenta torna o rio East invisível e abranda os contornos
pesados dos prédios à minha volta. Um manto belo e
delicado.
17h00: Uma pontada no olho, seguida por um tumulto de
formas roxas raiadas, estrelas-do-mar, margaridas,
expandindo-se a partir de uma infinitude de pontos
separados. O tumulto parece ocupar todo o campo visual.
Ele me fascina e me assusta. Estará acontecendo alguma
coisa anormal, atípica, antilógica lá dentro? Ou será meu
cérebro preenchendo vazios, gerando visões em reação ao
desligamento da visão do olho operado?
19h00: O dr. Abramson veio para uma longa conversa por
volta das seis da tarde. Como eu estava me sentindo em
geral? E quanto ao olho? Descrevi minha "tempestade
visual", as estrelas-do-mar etc. Ele achou que provavelmente
foi uma reação retiniana à radiação. Aproveitando a deixa,
mencionei minha ideia — meio a sério, meio de brincadeira
— de que a radioatividade no meu olho talvez seja forte o
suficiente para fazer fulgurar os meus minerais
fluorescentes. Talvez eu possa fazê-los brilhar fixando neles
o meu olho radioativo, os meus raios — seria um truque
genial para impressionar os amigos! O dr. Abramson achou
graça, disse que eu devia pedir a Kate para trazer os minerais, e ele então tiraria meu curativo para que eu pudesse
tentar.
Ele também explicou que, daqui a algumas semanas, talvez
seja uma boa ideia fazer uma aplicação de laser na retina,
para matar células malignas que possam ter sobrevivido à
radiação. Mas o meu tumor está situado quase em cima da
fóvea, e se ela for destruída, perderei totalmente a visão
central. Ele pensou em um meio-termo: aplicar o laser nos
dois terços do tumor que estão mais distantes da fóvea,
mantendo uma boa distância dela. Também mencionou
alguns tratamentos mais novos: injeções de uma substância
no olho que possa impedir o crescimento de vasos
sanguíneos dentro do tumor e, assim, matá-lo por falta de
sangue, e uma nova vacina antimelanoma, ainda
experimental. Mas tudo isso, por enquanto, está no futuro, é
hipotético; ele torce para que a radiação e o laser dêem
conta do recado.
Enquanto isso, tenho ainda 32 horas até quinta-feira à tarde,
quando será feita outra cirurgia para remover a placa
radioativa.
11 DE JANEIRO DE 2006
Meu grande amigo Kevin apareceu aqui às 6h15, uma
surpreendente, mas muito bem-vinda figura de enormes
sobrancelhas peludas. Vinha de sua ronda matinal e ainda
trajava o jaleco branco. "Olhe só!", ele disse, apontando para
a janela, e eu olhei e vi uma delicadíssima aurora rosada
transfundindo-se no céu noturno, seguida por um
fumacento nascer do sol sobre o rio East, que me lembrou
Krakatoa.
Meu escotoma não é bem um ponto cego; parece mais uma
janela, através da qual vejo prédios estranhos, figuras que se
movem, pequenas cenas a desenrolar-se diante de mim. Em
outros momentos, vejo escrita, letras embaralhadas que não
consigo ler — hieróglifos ou runas — em toda a área do
escotoma. Uma vez vi um imenso segmento circular com
números, pareceu-me parte de um relógio ou calendário
asteca. Não tenho o poder de influenciar essas visões; elas
acontecem autonomamente e não têm ligação, que eu possa
discernir, com o que estou pensando ou sentindo. As
centelhas, as tempestades visuais, podem provir da minha
retina, mas essas visões com certeza vêm de um nível
superior, têm de ser construídas no meu cérebro,
recorrendo, mesmo que indiretamente, a seu estoque de
imagens.
Se fico olhando para alguma coisa e depois fecho os olhos,
continuo a vê-la com tanta nitidez que quase duvido de que
os fechei. Um exemplo espantoso aconteceu alguns minutos
atrás, quando eu estava no banheiro. Eu tinha lavado as
mãos, estava olhando para a pia quando, não sei porquê,
fechei o olho esquerdo. Continuei a ver a pia em todos os
seus detalhes. Voltei para o quarto, matutando: esse curativo
no olho direito deve ser totalmente transparente! Foi meu
primeiro pensamento — absurdo, como um instante depois
me dei conta. O curativo não tinha nada de transparente —
era um grande bloco de plástico, metal e gaze com mais de
um centímetro de espessura. E debaixo dele o meu olho
ainda tinha um músculo desligado e não podia enxergar
coisa alguma. Durante os cerca de quinze segundos em que
mantive o olho são fechado não podia ter visto nada. No
entanto, vi a pia — tão nítida, brilhante e real quanto
poderia ser. Sei lá por que razão, a imagem na minha retina,
ou no meu cérebro, não estava sendo apagada do modo
normal. E não se tratava meramente de uma pós-imagem.
As pós-imagens, pelo menos para mim, são extremamente
breves e pobres — se olho para uma lâmpada, posso ver seu
filamento incandescente por um ou dois segundos. Essa imagem que eu via agora era tão detalhada quanto a realidade.
Continuei a ver a pia, o armário ao lado dela, o espelho
acima, a cena inteira por uns bons quinze segundos — uma
genuína persistência de visão. Algo muito esquisito estava
acontecendo no meu cérebro. Eu nunca vivenciara um
fenômeno assim. Seria isso — como minhas imagens
involuntárias, minhas alucinações de desenhos, de pessoas
— simplesmente uma consequência de ter um olho
vendado? Ou seria a retina cancerosa, irritada,
semidestruída, agora acesa pela radiação do radioiodo,
enviando estranhos sinais descontrolados para o meu
cérebro?
12 DE JANEIRO DE 2006
8h00: Hoje à tarde, após exatamente 76 horas, o implante
radioativo será removido, e o músculo desligado será
religado; se tudo correr como deve, terei alta amanhã.
18h00: Pensei que esta cirurgia seria tão tranquila e indolor
quanto a anterior, mas quando passou o efeito da anestesia, a
dor que senti foi a pior de toda a minha vida — me deixou
arquejante. Só consigo evitá-la mantendo o olho
absolutamente imóvel; o menor movimento parece dilacerar
o músculo ocular recém-religado.
19h00: O dr. Abramson veio examinar meu olho. Tirou a
venda; vi tudo borrado, mas ele disse que isso passaria em
mais ou menos um dia. Deu-me instruções minuciosas para
pingar colírio várias vezes por dia, disse para eu não me
preocupar se tiver visão dupla transitoriamente e para me
sentir à vontade para telefonar-lhe, dia ou noite, se achar
que alguma coisa atípica está acontecendo.
Tenho a desagradável sensação de que o olho está grudento,
com uma crosta, deve ser de tanto colírio. Preciso lutar
contra o impulso de esfregá-lo.
Meia-noite: Finalmente a dor começa a ficar tolerável. Nas
últimas seis horas tomei doses colossais de Percocet e Dilaudid. Nada parecia afetar a dor até que, uma hora atrás, o
dr. Abramson prescreveu uma dose caprichada de Tylenol.
Curiosamente, isso funcionou onde os opiáceos não haviam
ajudado.
Voltei para casa hoje de manhã. Em geral um paciente fica
feliz por sair do hospital, mas eu lamentei. Lá eu estava
cercado por pessoas atenciosas que cuidavam de tudo de que
eu precisava; sempre recebia visitas, era paparicado. Agora
tudo isso acabou, estou de volta ao meu apartamento,
sozinho. Não posso sair — caiu uma nevasca, as ruas estão
congeladas —, e não me atrevo a andar lá fora tendo, para
todos os efeitos, apenas um olho funcionando no momento.
15 DE JANEIRO DE 2006
7h00: Tivemos uma tempestade de neve, um vendaval
uivante durante a noite, mas o que posso ver agora de tudo
isso me parece bonito. De manhã sempre é pior. Acordo
com uma janela de visão no olho direito, pequena e
embaçada, atravessada por listras e manchas móveis e grande
distorção das horizontais e verticais, como as que são vistas
através de uma lente olho de peixe.
10h00: Quase uma semana se passou desde a cirurgia, e estou farto de ficar em ambiente fechado; arrisquei-me a sair,
apesar da neve, segurando no braço de um amigo. Lá fora
faz um frio tremendo, venta e está tudo congelado. As rodas
dos veículos giram em falso; vimos um carro, estacionado
sobre gelo, ser empurrado pela ventania por uns bons cinco
centímetros.
No olho direito tudo parece nadar, e não só
metaforicamente — estou olhando através de um filme ou
líquido móvel. Todas as formas parecem fluidas, distorcidas,
em movimento. Imagino minha retina quase flutuando no
líquido acumulado por trás dela, mudando de forma como
uma água-viva, ou talvez um colchão de água. Olhando pela
janela para um prédio alto e retangular do outro lado da rua,
vejo-o, como numa casa dos espelhos, com o topo, ou a
parte do meio (dependendo de onde fixo o olhar), alargado e
bulboso. Isso acontece com todas as verticais; as horizontais
tendem a ser comprimidas umas contra as outras. No
espelho do banheiro, a parte superior do meu reflexo é
distorcida: minha cabeça parece grotescamente achatada.
Explicaram-me que esses efeitos provêm do edema sob a
retina e sumirão dentro de poucos dias. Nem sempre
consigo acreditar nisso; sinto que algo próximo da cegueira
no olho direito me atingiu mais depressa do que eu pensava
(ou de que outros poderiam prever). Além disso, suspeito
que houve uma demora fatal entre o diagnóstico e o
tratamento. De que naquelas três semanas ocorreu um dano
adicional e irreversível, conforme a visão se deteriorou,
passando de um ponto cego não muito grande para
praticamente a obliteração de todo o hemisfério visual
superior. Não posso deixar de pensar que o melanoma deveria ter sido tratado como uma emergência e submetido à
radiação sem demora. Tenho certeza de que estou sendo
irracional, e espero estar equivocado nesse aspecto — mas
ele forma um núcleo de desconfiança e suspeita que pode
inflar e se transformar num tornado de paranóia.
16 DE JANEIRO DE 2006
Acabo de escrever a Simon Winchester contando que gostei
muito de ouvir seu audiolivro "Outposts".
Vivo em um mundo de palavras, e necessito ler; grande
parte da minha vida é ler. Isso agora está difícil, com o olho
direito temporariamente fora de uso, e o esquerdo com seus
velhos problemas. Levei um soco no olho esquerdo quando
menino, o que resultou numa catarata, e desde então ele tem
visão abaixo do normal. Isso não tinha importância quando
meu olho dominante possuía visão 20/20, mas agora tem.
Meus óculos de leitura costumeiros não são fortes o bastante
para o olho esquerdo; sou obrigado a usar lente de aumento,
o que torna a leitura muito mais lenta e me impede de
abranger a página como um todo.
Fui à livraria com Kate em busca de livros com letras grandes — descobri desolado que quase todas as obras com letras
grandes que eles têm são manuais de "faça você mesmo" ou
romances açucarados. Não encontrei quase nenhum livro
passável em toda a seção de obras com letras grandes. Parece
até que os deficientes visuais também são considerados
deficientes intelectuais. Estou com vontade de escrever um
artigo para o Times esbravejando sobre isso. Os audiolivros
têm mais opções, mas toda a minha vida eu fui um leitor, e
em geral não gosto que leiampara mim. O audiolivro de
Simon Winchester foi uma agradável exceção à regra.
17 DE JANEIRO DE 2006
O dr. Abramson alertou-me que enquanto a retina ainda
estiver nadando no edema haverá dias em que enxergarei
muito bem e outros em que estarei quase cego. Mesmo
assim, tenho reações exageradas a essas flutuações: exulto
nos momentos bons, me desespero nos maus. "I librate
between a glum and a frolic" ["Vagueio entre o desalento e o
festejo"], como disse Auden em seu poema "Talking to
myself".
Sinto uma falta terrível de nadar — a piscina é onde me
sinto melhor, penso melhor, e preciso dela todos os dias.
Mas não estou liberado para nadar por duas semanas depois
da cirurgia. O dr. Abramson tem plena consciência do que é
essa privação para mim; ele também é um nadador
inveterado — pendurou nas paredes do seu consultório
várias medalhas que ganhou. Ele poderia ter sido atleta
profissional se não houvesse escolhido a medicina.
Como não quis incomodar o dr. Abramson (embora ele
dissesse que eu podia telefonar a qualquer hora), liguei para
Bob hoje de manhã e pedi que examinasse meu olho. Ele
trouxe o oftalmoscópio, dilatou a pupila, fez um exame
longo e meticuloso, depois resumiu o que viu: o melanoma
como uma montanha negra no meio da retina; um lado tão
íngreme que parece "um penhasco", ele disse. Não
encontrou sinais de hemorragia nem de nada errado. Mas a
luz cegante do oftalmoscópio me deixou totalmente sem
visão central nesse olho por várias horas. Tudo o que eu
olhava com o olho direito desaparecia — o centro do relógio
sumia, restando ao seu redor um halo de visão periférica
(que apelidei de "visão bagel"). Fiquei horrorizado. Se uma
coisa dessas fosse permanente e afetasse os dois olhos, seria
terrivelmente incapacitante — será com isso que as pessoas
com degeneração macular têm de conviver?
Meio-dia: O olho ainda estava muito anuviado e dilatado às
nove da manhã, mas nas últimas três horas isso diminuiu, e
o 12 e o 1 começam a ser visíveis novamente quando fixo o
olhar no centro do relógio.
Mas algo aconteceu com a percepção das cores no olho.
Quando saí de manhã para uma caminhada, avistei na sarjeta
uma vistosa bola de tênis verde, mas ela perdeu totalmente a
cor quando a olhei só com o olho direito. O mesmo
aconteceu com uma maçã verde e com uma banana: as duas
ficaram cinzentas, horríveis. Segurei a maçã com o braço
esticado e vi o centro acinzentado circundado pelo verde
normal, como se a visão em cores estivesse preservada ao
redor da fóvea, mas não nela. Os azuis, verdes, malvas e
amarelos parecem todos atenuados ou perdidos; os
vermelhos vivos e os laranjas são os menos afetados; quando
peguei uma laranja na fruteira para fazer um teste, sua cor
pareceu quase normal.
25 DE JANEIRO DE 2006
Hoje e ontem, décimo segundo e décimo terceiro dias depois do fim do tratamento com radiação, observei, pela
primeira vez em uma semana, sinais inequívocos de
melhora. As maçãs começaram a recobrar sua cor verde, e a
acuidade também melhorou. Na noite passada, consegui ler
em letras de tamanho normal (a autobiografia de Luria)
durante meia hora antes de dormir. Desde o dia em que fui
para o hospital, por boa parte do mês eu não conseguira ler
até adormecer, como é meu costume.
Mas continuam os sonhos estranhos, quase pesadelos. Em
um deles, duas noites atrás, pessoas eram torturadas, cegadas
com agulhas quentes cravadas nos olhos. Quando chegou
minha vez, me debati, soltei um grito abafado e me forcei a
acordar. Ontem despertei (ou talvez estivesse só meio
adormecido) com relâmpagos. Fiquei surpreso — não havia
previsão de tempestade — e esperei pelo trovão. Não
trovejou. O céu estava limpo. Percebi então que
provavelmente fora um lampejo da minha retina lesada e
anormalmente ativa. Eu tivera cintilações antes, e
fulgurações, mas nunca desse tipo.
Esta manhã, sonhei com um bosque de árvores-do-chá, as
quais, eu pensava no sonho, exerciam uma poderosa
proteção contra o câncer para quem vivesse debaixo delas.
26 DE JANEIRO DE 2006
São apenas 8h00 e nove pessoas já aguardam na sala de espera do dr. Abramson. Será que elas, será que todos nós aqui
temos melanoma ocular? Hoje não há crianças, mas vejo
vários adultos ainda jovens, homens e mulheres, embora o
melanoma ocular seja mais comum depois dos sessenta anos.
Será que eu aos quarenta ou aos vinte anos já andava por aí
com um gene que predispõe ao melanoma ocular? Ou terá
sido uma mutação, uma das muitas, cada vez mais frequentes
neste nosso planeta poluído, carcinogênico?
Conto ao dr. Abramson sobre a perda temporária da visão
central no olho direito depois da luz cegante do
oftalmoscópio de Bob e sobre as mudanças de cores que
notei desde então. Ele diz que tudo isso, ainda que talvez
tenha sido exacerbado pela cirurgia, radiação e luz cegante,
provavelmente é temporário e deve desaparecer. Ele me
examina e vê uma pequena necrose e calcificação do tumor
— o resultado esperado da radiação. Sua impressão: estamos
"no rumo", mas eu provavelmente precisarei de um
"retoque" de laser dentro de mais ou menos um mês. Não
preciso mais limitar minhas atividades, estou liberado para
nadar. Viva!
19h00: Apesar de tudo, não foi uma semana totalmente
improdutiva. Kate digitou (e ampliou) dois dos meus
capítulos sobre música para eu revisar, e falei com várias
pessoas com sinestesia esta semana, todas fascinantes a seu
modo. Talvez, apesar das minhas dificuldades para ler e da
minha obsessão em testar os campos visuais, as mudanças de
cor etc, eu ainda possa ter esperança de concluir meu livro
sobre música.
Nas semanas seguintes, continuei a sentir oscilações, com o
olho direito quase cego em certos dias e melhor em outros,
com distorções "olho de peixe" e muita sensibilidade à luz.
Precisei usar óculos de sol de aviador para sair de casa, evitar
sol ofuscante e clarões de flash, que poderiam cegar meu
olho operado por horas. Andei com o olho vendado boa
parte do tempo, para que a imagem normal do olho são não
tivesse de competir com as distorções do olho direito. Em
março, o dr. Abramson completou com uma aplicação de
laser o meu tratamento com radiação, e duas semanas depois
o edema finalmente começou a diminuir. Com isso, a visão
do olho direito começou a se estabilizar, as distorções e a
sensibilidade à luz foram desaparecendo gradualmente.
Permaneceram, porém, anomalias na percepção das cores,
embora (ao contrário das distorções) elas não ficassem
evidentes quando eu usava os dois olhos. Se eu fechasse o
olho são, via-me subitamente em um mundo cromático
diferente. Um gramado de dentes-de-leão amarelos de
repente se transformava num gramado de dentes-de-leão
brancos, e as flores mais escuras enegreciam. Uma vistosa
samambaia verde, a selaginela, ganhava um tom índigo
escuro quando eu a examinava com uma lupa usando o olho
direito. (Meu olho direito sempre fora dominante, e apesar
de agora estar muito pior do que o esquerdo, eu ainda tinha
o gesto automático de pôr a lupa ou monóculo diante dele.)
Ocorriam também curiosas sufusões, ou difusões de cores.
Por exemplo, quando eu olhava com o olho direito para uma
flor cor de malva clara cercada por folhas verdes, o verde
circundante ocupava toda a imagem da flor, e eu passava a
vê-la dessa cor. Quando olhava para um prado de
campânulas e fechava o olho esquerdo, elas se tornavam
verdes e deixavam de se distinguir da vegetação em volta.
Era como um truque de mágica — ora você vê, ora não vê
—, e deveras impressionante, enxergar um mundo diferente
em cada olho.
Quando o dr. Abramson me examinou em Maio, disse que o
edema desaparecera totalmente e que o tumor começara a
encolher; com sorte, acrescentou, eu poderia contar com
uma visão boa e estável por anos.
Tudo continuou bem nos dois meses seguintes, e eu fiz cada
vez menos anotações nos grossos cadernos pretos intitulados
"Diário do Melanoma". Só fui retomar as notas detalhadas
depois de quase um ano. A partir de Julho de 2006, porém,
houve um retorno gradual dos problemas visuais —
especialmente distorção, diminuição da acuidade e
sensibilidade à luz — além de novamente algum
crescimento de uma área do tumor.
O dr. Abramson usou o termo mais brando "persistência"
para se referir ao fato, e achou que outra aplicação de laser,
mas fraca, daria cabo do problema. Mas quando me submeti
ao procedimento em Dezembro, não ajudou. Começou a
parecer que aquela estreita faixa da retina próxima à fóvea,
que ele evitara cuidadosamente atingir com o laser para
manter alguma visão central, teria, afinal, de ser sacrificada.
Em abril de 2007 as distorções se haviam extremado no olho
direito, e isso afetava minha visão mesmo com os dois olhos
abertos. Eu via as pessoas como figuras bizarras, alongadas
como nas pinturas de El Greco, inclinadas para a esquerda —
lembravam-me os selenitas insetoides ilustrados na minha
edição de Os primeiros homens da Lua, de H. G. Wells. E o
tipo de extensão visual que começara um ano antes,
inicialmente limitada às cores, agora afetava tudo o que eu
olhava. Os rostos, em especial, adquiriam protuberâncias
translúcidas, intumescidas, quase protoplásmicas, como um
retrato de Francis Bacon.
Descobri que estava fechando involuntariamente o olho
direito com frequência cada vez Maior. Sua acuidade, em Maio de 2007, despencara para 20/600 — eu não conseguia
ler nem a Maior letra na tela. Até esse ponto eu considerara
a perda da visão central um desastre, mas agora estava
enxergando tudo tão mal e com tantas distorções que
comecei a pensar na possibilidade de ser melhor para mim
ficar sem a visão central no olho direito. Aumentava sem
parar minha sensação de que havia cada vez menos a perder
— por isso, marcamos uma terceira aplicação de laser que
finalmente liquidaria o resto do tumor e, talvez, a visão
central remanescente naquele olho.
JUNHO DE 2007
A aplicação de laser, duas semanas depois, levou cerca de
uma hora e envolveu dezenas de minúsculas cauterizações.
Saí do hospital com um pesado curativo no olho, para
protegê-lo até passar o efeito da anestesia. Por volta das nove
da noite, removi o curativo, sem saber o que veria ou não
veria.
Vi uma enorme opacidade negra obscurecendo parcialmente
a visão central, como uma ameba com pseudópodes. Parecia
expandir-se, contrair-se, pulsar — mas sua borda era bem
nítida. Introduzi um dedo nela, e o dedo desapareceu,
engolfado por uma espécie de buraco negro. No espelho do
banheiro, olhando meu reflexo, não consegui ver minha
cabeça com o olho direito — via apenas os ombros e a parte
de baixo da barba. Não enxergava a ponta da caneta quando
escrevia.
Quando saí na manhã seguinte, via apenas a metade inferior
das pessoas na rua. Lembrei-me do senhor Artifoni, do
Ulisses de Joyce, "um par de robustas calças" a perambular
por Dublin. As ruas estavam cheias de saias e calças, pernas e
quadris que se moviam sem sua metade superior. (Poucos
dias depois o escotoma se expandiu, e eu só conseguia ver os
pés das pessoas.) Isso, é claro, acontece quando fecho o olho
esquerdo. Usando os dois olhos, minha visão é
notavelmente "normal" — muito mais do que vinha sendo
há meses, pois agora o olho direito não atrapalha o esquerdo.
Ele está fora do páreo, completamente cego, pelo menos no
que diz respeito à visão central. Curiosamente, isso é um
grande alívio — quisera ter feito esse laser meses atrás.
A visão estereoscópica, porém, agora que sou quase
totalmente monocular, está muito comprometida — inexiste
na metade ou nos dois terços superiores do meu campo
visual, embora esteja parcialmente intacta na base, onde
conservo alguma visão periférica. Vejo a metade inferior das
pessoas em profundidade estereoscópica, e a metade
superior totalmente achatada e bidimensional. E,
logicamente, assim que olho para a metade inferior usando o
que me resta de visão central, essa metade também se
achata.
Naquela noite em que tirei a bandagem pela primeira vez, vi
com o olho direito um glóbulo preto, uma ameba. No dia
seguinte, ela se fixara como um negrume com a forma da
Austrália, inclusive com uma pequena protuberância no
canto sudeste que eu chamei de Tasmânia. Espantei-me na
primeira noite com o fato de que, quando eu olhava para o
teto, o glóbulo desaparecia, ficava tão camuflado que eu não
podia mais ter certeza de sua existência. Precisava testar para
me assegurar, e então via que ele ainda estava lá — meu
buraco negro tornara-se um buraco branco, adquirira a cor
do teto à sua volta. Ainda era um buraco, e se eu movesse
meu dedo da periferia para o centro, o dedo desaparecia
assim que transpunha a agora invisível margem do
escotoma.
Eu sabia que o ponto cego normal que todos nós temos,
onde o nervo óptico adentra o olho, é preenchido
automaticamente, por isso não nos apercebemos de sua
existência. Só que o ponto cego normal é minúsculo,
enquanto meu escotoma era enorme e obscurecia mais de
metade do campo visual do olho direito. No entanto, depois
de um ou dois segundos olhando para uma superfície
branca, ele podia ser completamente preenchido e se
tornava branco em vez de preto. No dia seguinte, fiz o teste
com o céu azul e obtive o mesmo resultado. O escotoma
ganhou o tom do céu, mas desta vez não precisei delimitar
suas margens com o dedo, pois quando um bando de aves
passou voando, desapareceu subitamente dentro do
escotoma e emergiu do outro lado segundos depois — como
uma nave de guerra klingon com o escudo de invisibilidade
acionado.
Esse preenchimento, descobri, era estritamente localizado e
dependia da fixação constante do olhar. Ao menor
movimento do olho ele se dissipava e a horrorosa ameba
preta voltava. Era localizado, mas persistente, pois se eu
olhasse para uma superfície vermelha por alguns minutos e
em seguida para uma parede branca, via uma grande ameba
(ou Austrália) vermelha na parede, que permanecia por uns
dez segundos antes de se tornar branca.
O ponto cego, vamos chamá-lo assim, não se preenche apenas com cor, mas também com padrões. Diverti-me fazendo
experimentos com meu escotoma, testando seus poderes e
limitações. Era fácil preenchê-lo com um padrão repetitivo
simples — comecei com o tapete do meu escritório —,
embora um padrão demorasse um pouco mais do que uma
cor, necessitando talvez de uns dez a quinze segundos para
ser reproduzido. Ele começava a ser preenchido a partir das
bordas, como gelo quando se cristaliza em uma poça. A
frequência espacial e a delicadeza dos detalhes no padrão
eram cruciais. Meu córtex visual tinha pouca dificuldade
para fazer o preenchimento de padrões miúdos, mas dos
mais graúdos ele não dava conta. Por exemplo, se eu me
postasse a meio metro de uma parede de tijolo, meu escotoma assumia um tom vermelho vivo, mas sem detalhes. Se
eu estivesse a seis metros de distância, ele era preenchido
por um distinto padrão atijolado.
Se os tijolos eram exatamente iguais aos originais eu não
tinha como saber, mas eles eram bons o bastante para
constituir um simulacro plausível da parede "faltante". Eu só
podia ter certeza sobre a exatidão da réplica se fitasse
padrões repetitivos absolutamente previsíveis, como um
tabuleiro de xadrez ou um papel de parede. Uma vez olhei
para o céu, e ele estava repleto de nuvens brancas gordas e
lanosas, mas o pseudocéu gerado no escotoma continha
minúsculas nuvens esfarripadas. Refleti que meu córtex
visual estava fazendo o melhor que podia, talvez trabalhando
por amostragem ou estimando a proporção entre as nuvens
brancas e o céu azul, mesmo sem conseguir reproduzir
fielmente as formas reais das nuvens. Comecei a conceber
meu córtex visual não apenas como um rígido dispositivo
duplicador, mas como um calculador de médias, capaz de
fazer uma amostragem do que lhe era apresentado e
produzir uma representação estatisticamente plausível (ainda
que não fotograficamente acurada). E me perguntei se não
seria isso que os polvos e sibas faziam quando se
camuflavam: assumir as cores, padrões e até as texturas do
fundo do mar ou das plantas ou corais ao redor, não com
exatidão, mas com plausibilidade suficiente para enganar
predadores e presas.
Descobri que também era possível preencher movimentos,
em certa medida. Se eu olhasse para o rio Hudson, os
movimentos de seus lentos remoinhos e pequenas
ondulações se reproduziam no meu escotoma.
Mas havia limites rigorosos. Eu não era capaz de simular um
rosto, uma pessoa, um objeto complexo. Não podia preencher minha própria cabeça no espelho quando ela era
obscurecida pelo escotoma. Mas fiz outra descoberta e me
assombrei. Um belo dia, ao brincar de escotomizar, olhei
para meu pé com o olho direito e o "amputei" com meu
ponto cego pouco acima do tornozelo. Mas quando fiz
alguns movimentos com o pé, remexendo os dedos, o toco
pareceu adquirir uma espécie de extensão rosada translúcida
circundada por um fantasmagórico halo protoplásmico.
Continuei mexendo os dedos e a imagem assumiu uma
forma mais definida até que, depois de mais ou menos um
minuto, eu tinha um pé fantasma completo, um fantasma
visual dotado dos dedos faltantes, que pareciam mover--se
de acordo com os movimentos reais que eu fazia. O pé não
tinha uma aparência inteiramente sólida ou real — pois faltavam-lhe os detalhes da superfície, a aparência da pele —,
ainda assim, era admirável. Coisa parecida ocorreu com
minha mão quando a escotomizei, "amputando-a" acima do
pulso. Tentei depois fazer o mesmo com mãos de outras
pessoas, mas não funcionou de jeito nenhum. Ficou claro
que o pé, a mão, os movimentos e as sensações, a imagem
corporal e as intenções tinham de ser meus.
Depois da aplicação de laser em Junho, notei que podia
visualizar meus braços ou outras partes do meu corpo em
ação, mesmo de olhos fechados, com uma nitidez e
intensidade muito Maiores do que jamais me haviam sido
possíveis. "Ver" meus braços quando eu os movia parecia
atestar que a sensibilidade ou a conexão entre as áreas visuais
e motoras do córtex se intensificara — uma intensidade de
comunicação ou correlação entre elas sem precedentes para
mim.
Outra coisa estranha impressionou-me um ou dois dias
depois da aplicação de laser de Junho de 2007. Em dado momento, depois de fitar as prateleiras com livros no meu
quarto durante alguns minutos, fechei os olhos e vi, por dez
ou quinze segundos, as centenas de livros dispostos nas
prateleiras em detalhes primorosos, quase perceptuais. Isso
não era preenchimento; era algo muito diferente: uma
persistência de visão semelhante àquela que me ocorrera no
hospital dezoito meses antes, quando tive a impressão de ver
a pia muito claramente "através" do curativo no olho.
Talvez perder a visão central no olho direito fosse equivalente a cobri-lo com uma gaze pós-operatória no aspecto de
privar o cérebro de informações perceptuais. Eu tinha a
sensação de que meu córtex visual agora vivia em um estado
intensificado ou sensibilizado, em certa medida liberado de
restrições puramente perceptuais.
Algo semelhante ocorreu alguns dias depois, quando eu
andava em direção a um apinhado cruzamento cheio de
bicicletas, carros, ônibus e gente passando apressada em
todas as direções. Fechei os olhos por um minuto e
continuei a "ver" toda aquela cena complexa, repleta de cor
e movimento, com tanta clareza quanto se estivesse de
olhos abertos.
Para mim isso foi especialmente surpreendente, pois em
geral minha capacidade de visualização é ruim. Tenho
dificuldade de evocar o rosto de um amigo, a minha sala ou
qualquer outra coisa. A persistência de visão que eu
vivenciava era rica e impremeditadamente detalhada, muito
mais do que qualquer imagem voluntária. Era tão minuciosa
que eu podia ver as cores dos carros e às vezes ler suas
placas, às quais eu não havia prestado uma atenção
consciente. Involuntária, aleatória, irreprimível, a imagem
me parecia semelhante a imagens fotográficas ou eidéticas
— porém, em contraste com as eidéticas, esta tinha uma
duração muito definida e breve, de dez ou quinze segundos,
após os quais se dissipava aos poucos.
Uma ocasião, passeava com um amigo quando vi dois homens se aproximando de nós, ambos de camisa branca,
reluzindo ao sol da tarde. Parei, fechei os olhos e constatei
que podia continuar a vê-los, aparentemente andando em
nossa direção. Quando abri os olhos, fiquei assombrado ao
constatar que os homens de camisa branca não estavam à
vista. Já tinham passado por nós, é claro, mas eu estivera tão
absorto no que "via" de olhos fechados — um fragmento do
passado em suspensão — que tive um súbito choque de
descontinuidade. Usei o termo "suspensão", mas o que eu
visualizava também tinha movimento. Os homens estavam
caminhando, andando a passos largos, e no entanto
permaneciam no centro da minha imagem mental enquanto
andavam, sem chegar a lugar algum, como quem anda numa
esteira rolante. Eu havia capturado esse bocado de
movimento, e era como um filme muito curto que ficasse
passando continuamente pelo projetor, reciclando-se em
minha mente depois que os sujeitos haviam sumido. Isso
tinha uma qualidade paradoxal, como um instantâneo de
movimento sem nenhum trânsito real.
Diverti-me bastante com essa persistência de visão, e a Times Square, com suas brilhantes luzes coloridas, seus
cartazes cheios de lampejos e movimentos, tornou-se meu
lugar favorito para testá-la. O estímulo mais potente era o
fluxo óptico, quando uma rápida série de imagens passava
diante dos meus olhos; era especialmente agradável quando
eu viajava como passageiro num carro em alta velocidade.
Parecia haver uma analogia e talvez um parentesco entre o
fenômeno do preenchimento e a persistência da visão.
Ambos surgiram com grande intensidade após a perda da
visão central, ainda que se houvessem insinuado vagamente
antes. Ambos permaneceram intensos por dois ou três
meses no verão de 2007, depois foram enfraquecendo
(embora continuem, de forma atenuada, até hoje).
"Preenchimento", eu achava, era um termo inadequado para
um processo que nem sempre se limitava a reconstituir uma
área cega, e que podia prosseguir em uma espécie de
incontinência de alastramento visual. (Isso também se prefigurara naquelas últimas semanas antes da aplicação de laser
em Junho, quando eu, semicego, via rostos incharem e
ganharem protuberâncias, como nas pinturas de Francis
Bacon.
Um dia, fiz experimentos com esse espalhamento visual,
olhando com o olho direito para uma velha árvore que tinha
uma copa verde particularmente exuberante e viçosa. O
preenchimento não tardou a ocorrer, e a área faltante
ganhou o verde e a textura do restante da folhagem. Em
seguida aconteceu uma "ampliação do preenchimento", uma
extensão da folhagem, especialmente em direção à esquerda,
que resultou numa imensa massa assimétrica de "folhas". Só
percebi como isso ficara bizarro quando abri o olho
esquerdo e vi a verdadeira forma da árvore. Fui para casa e
consultei um antigo ensaio de Macdonald Critchley sobre tipos de "perseverança" visual que ele
chamava de "paliopsia" e "espalhamento visual ilusório".
Critchley considerava análogos esses dois fenômenos: um
era a perseverança no tempo, o outro, no espaço.
Aqui talvez se deva usar a palavra "patológico", pois não é
possível ter uma vida visual normal quando toda percepção
acaba sendo estendida e borrada no espaço e no tempo; é
preciso limitação ou inibição, fronteiras bem definidas, para
demarcar nitidamente a percepção.
Os pacientes de Critchley tinham tumor cerebral ou outros
distúrbios do cérebro, ao passo que eu tinha apenas uma
lesão na retina. Ainda assim, claramente eu estava
vivenciando fenômenos cerebrais — o dano na retina,
supus, gerara uma excitação anormal em meu córtex visual.
Muitos anos atrás — descrevi esse caso em meu livro Com
uma perna só — sofri uma lesão nos nervos e músculos de
uma perna que acarretou estranhos sintomas cerebrais
semelhantes ao de um distúrbio no lobo parietal. Quando
escrevi sobre isso ao neuropsicólogo russo A. R. Luria, ele
falou em "ressonâncias centrais de um distúrbio periférico".
Agora eu estava apresentando uma ressonância desse tipo na
esfera visual.
Em Junho de 2007 também sofri um surto repentino de
alucinações, aparições inesperadas sem relação nenhuma
com o mundo exterior, e desde então elas continuam a
ocorrer, em certo grau. Para os neurologistas, existem as
alucinações visuais simples ou elementares e as alucinações
complexas. Nas simples, ocorrem alucinações de cores,
formas e padrões; nas complexas, pode haver figuras,
animais, rostos, paisagens etc. Eu, de modo geral, tenho as
simples.
Quase desde o início apareceram em meu campo visual
centelhas, listras ou glóbulos de luz, além de padrões
complexos semelhantes a couro de crocodilo. Às vezes
penso que uma parede tem um padrão ou textura quando na
realidade ela é lisa, e preciso tocá-la para saber se a
granulação é ou não real.
Frequentemente, mesmo com os dois olhos abertos, vejo
em todo o meu campo visual uma infinidade de pequenos
tufos, como em um gramado. Em outros momentos há
tabuleiros de xadrez, em geral preto e branco, mas às vezes
levemente coloridos. O tamanho aparente desses tabuleiros
depende de onde os estou "projetando". Se eu olhar para um
pedaço de papel a quinze centímetros de distância, talvez
veja um tabuleiro do tamanho de um selo postal; se olhar
para o teto, ele pode ter uns trinta centímetros quadrados; se
olhar para um muro branco do outro lado da rua, pode ter o
tamanho de uma vitrine de loja. Alguns dos meus tabuleiros
são retilíneos, outros curvilíneos, e outros ainda têm forma
hiperbólica. Às vezes um tabuleiro passa por uma fissão ou
multiplicação e se transforma em uma dezena de tabuleiros
menores, dispostos em linhas e colunas. Complexas colchas
de retalho ou mosaicos também são comuns, e parecem ser
variantes ou elaborações dos padrões básicos de tabuleiro de
xadrez. Esses tendem a transformar-se uns nos outros numa
mudança constante, calidoscópica.
Também vejo padrões ladrilhados ou marchetados de peças
poligonais (frequentemente hexagonais), algumas achatadas
e outras tridimensionais, como uma colmeia ou um
radiolário. Às vezes há espirais ou anéis concêntricos, ou
padrões radiais como os de toalhas de croché.
Ocasionalmente vejo "mapas" — mapas de cidades enormes,
desconhecidas, como a visão que temos à noite de um avião
voando baixo, com rodoanéis e radiais iluminados,
lembrando feéricas teias de aranha gigantes.
Muitos desses padrões são microscopicamente detalhados.
Vejo milhares de luzes nas minhas cidades noturnas. Essas
imagens ou alucinações são mais nítidas, têm uma
granulação mais fina do que a das imagens formadas pela
percepção — é como se minhas imagens mentais fossem
visualizadas com um olho interior de acuidade 20/5 em vez
20/20.
Os padrões mais constantes (perfeitamente visíveis com os
dois olhos abertos, em especial quando meu campo visual
não contém nada além deles) são compostos de traços retos
ou curvos que lembram letras ou números. Ocasionalmente
reconheço um 7 ou um Y, um T ou um delta. O mais das
vezes, porém, são ininteligíveis, como runas. Parecem uma
caixa de letras de brinquedo, com tipos espalhados ao acaso
e em todos os ângulos. São padrões muito tênues e
frequentemente têm linhas duplas, dando a impressão de ter
sido entalhados, como inscrições em pedra. Essas
pseudoletras e pseudonúmeros costumam bruxulear e
formar-se, dissolver-se e novamente se formar em frações
de segundo por todo o meu campo visual. Às vezes, se olho
para um segmento horizontal da parede, as runas aparecem
em fileiras, como em um friso.
Durante boa parte do tempo consigo não fazer caso deles, do
mesmo modo que não ligo para o zumbido que tenho no
ouvido há alguns anos. Mas frequentemente à noite, quando
diminuem as visões e os sons do dia, posso aperceber-me
subitamente dessas tênues alucinações. E muitas vezes é um
vazio de imagens — um teto, uma pia, o céu — que me
torna consciente dos padrões visuais e imagens que
percorrem continuamente o meu campo visual. Essas
pequenas alucinações não deixam de ser interessantes:
mostram-me a atividade de fundo, o funcionamento a esmo
do meu sistema visual, gerando e transformando padrões,
nunca em repouso.
QUINTA-FEIRA, 20 DE DEZEMBRO DE 2007
Eu andava mais ou menos tranquilo com relação ao meu
tumor. Ele parecia relativamente indolente e contido, e o dr.
Abramson havia dito que era raro ocorrer metástase em
melanomas oculares como o meu. Mas na segunda-feira (dia
17, dois anos depois de o tumor se manifestar), na academia,
observei na pele, logo abaixo do ombro esquerdo, um ponto
negro aproximadamente circular do tamanho de uma moeda
pequena. Levei um susto e senti medo: era uma pinta
pretíssima levemente em relevo, com uma borda bem
definida; não se parecia com um machucado comum. Seria, ominosamente, o começo de um melanoma de pele,
metástase do tumor em meu olho?
Quando mostrei a pinta a Mark e Peter, que vieram jantar
em minha casa hoje à noite, os dois se mostraram surpresos
e preocupados. "Tem mau aspecto, muito escura", Mark
observou. "Acho que você deve mandar examiná-la dentro
de 24 horas". Não parecia um melanoma, ele acrescentou,
mas também não lembrava coisa alguma que eleja tivesse
visto. Estamos, como em 2005, quase às vésperas dos
feriados de Natal, e isso significa que devo procurar fazer o
exame amanhã, do contrário terei de esperar até o Ano-Novo. Temo ficar obcecado por isso, pôr-me à beira do
pânico se não for possível esclarecer a coisa imediatamente.
Já estou nervoso... acho que vou ter de tomar um sedativo.
SEXTA-FEIRA, 21 DE DEZEMBRO DE 2007
O dermatologista, dr. Bickers, um homem gentil, sensível e
também muito experiente, percebeu minha ansiedade e me
encaixou nas suas consultas de hoje. Examinou meu braço e
o resto da pele, não viu problema nenhum. A mancha
negra, ele disse, é apenas um pequeno sangramento no
interior de uma mancha pardacenta, daquelas que vão
sarapintando a nossa pele conforme envelhecemos.
Provavelmente eu dei alguma topada; o sangue se dissipará
dentro de alguns dias. Meu alívio foi imenso —
enlouqueceria se tivesse de esperar até Janeiro por um
exame.
Por cerca de uma década antes do melanoma, eu fora um
membro ativo da Sociedade Estereoscópica de Nova York;
desde criança me divertira brincando com estereoscópios e
ilusões da estereoscopia. Ver o mundo em profundidade
sempre me parecera natural, tão indissociável do meu
mundo visual como a visão em cores. Dava-me a sensação
da solidez dos objetos e da realidade do espaço, o meio
fascinante e transparente onde eles residem. Percebia
nitidamente como o meu mundo visual desabava de imediato quando eu fechava um olho e se reexpandia no
instante em que eu tomava a abri-lo. Como muitos outros
membros da Sociedade Estereoscópica, eu parecia viver, em
comparação com a Maioria das pessoas, em um mundo
visualmente mais profundo.
A convivência com Stereo Sue e seu lírico deleite ao ganhar
visão estereoscópica depois de toda uma vida de cegueira
para profundidade intensificou minha valorização da
estereopsia. Aliás, eu passara boa parte de 2004 e 2005
concentrado na estereoscopia, pensando e escrevendo sobre
o tema e me correspondendo com Sue.
E então, em Junho de 2007, quando o melanoma invadiu
minha fóvea e precisei da aplicação de laser, perdi
totalmente a visão central daquele olho e, com ela, a
estereoscopia. O achatamento total e súbito do mundo visual
que eu explorava quando menino fazendo experimentos
com um olho fechado tornou-se então uma condição
permanente. Algumas pessoas têm mesmo pouca visão
estereoscópica ou fazem tão pouco uso das informações
binoculares que mal notariam a diferença se perdessem a
esteroscopia. Minha situação era bem diferente. A
estereoscopia fora um aspecto essencial da minha vida
visual, e sua perda teve um impacto profundo em muitos
níveis, dos desafios práticos do cotidiano a toda a concepção
de "espaço". De fato, as mudanças foram tão radicais que
demorei a reconhecê-las plenamente.
A visão estereoscópica tem a máxima importância na nossa
vizinhança imediata, e foi aí que tive todo tipo de problemas
no início, alguns cômicos, outros perigosos. Quando
estendia a mão para pegar um canapé numa festa, eu me via
agarrando o ar, errando o alvo por quase vinte centímetros.
Uma ocasião, errei o copo por quase trinta centímetros e
servi o vinho no colo de um colega. Mais perigoso é quando
não vejo degraus ou a calçada e tropeço ou caio. Quando não
há sombras ou outras indicações, vejo degraus apenas como
linhas no chão e não tenho idéia de sua profundidade, muito
menos se sobem ou descem. Particularmente traiçoeiros são
aqueles que não consigo prever, como um par de degraus
numa praça ou em uma sala de estar com piso em desnível
(a Maioria desses ambientes também não tem corrimão, que
podem servir como indicação visual). Descer um lance de
escadas é um risco real e às vezes aterrador, e preciso ir tateando, testando cada degrau com o pé. Às vezes meus
olhos transmitem uma sensação de achatamento tão vívida
que compete com o que meu pé diz. Mesmo quando todos
os outros sentidos, inclusive o senso comum, me dizem que
há outro degrau, quando não vejo sua profundidade, hesito,
confuso. Depois de uma longa pausa, avanço com o pé, mas
o poder dominante da visão faz desse um passo nada fácil.
Essas dificuldades (como muitas outras nos últimos dois
anos) fazem-me lembrar Flatland — O país plano, o clássico
livro de Edwin Abbott publicado em 1884; seus personagens
habitam um mundo bidimensional e são eles próprios figuras
geométricas bidimensionais. Ocasionalmente são
confrontados com mudanças espontâneas na aparência das
coisas que só podem ser explicadas, dizem seus teóricos, se
for postulada a existência de objetos tridimensionais que se
movem em um espaço tridimensional e apresentam fatias de
si mesmos ao atravessarem a superfície em duas dimensões
do País Plano. Portanto, os habitantes do País Plano inferem
a existência de uma dimensão espacial que eles não
enxergam. Essa é uma analogia forçada com minha situação,
mas sempre me vem à mente quando preciso inferir a
profundidade apesar de meu olho me mostrar algo às vezes
avassaladoramente plano.
Paradoxalmente, perdi o medo de altura. Eu antes ficava
todo arrepiado e nervoso quando olhava para a rua de um
andar alto num prédio. Quando morava em Topanga
Canyon, evitava me aproximar do acostamento alcantilado
da sinuosa estrada do desfiladeiro. A ideia de cair me dava
calafrios. Mas agora que perdi a percepção de profundidade,
essas sensações desapareceram, e posso olhar de grandes
alturas com total indiferença.
Ocasionalmente tenho sensações pseudoestereoscópicas,
como quando algo plano, um jornal no chão, por exemplo,
parece-me erguido no ar. Ao abrir a porta de casa, já
confundi o capacho com uma mesa, e parei de chofre,
desnorteado. Às vezes imagino que pode haver degraus
quando vejo linhas no chão, a borda de um tapete ou alguma
outra delimitação. Será que essa delimitação é acompanhada
por um desnível ou não? Por isso, tenho de parar e testar
cautelosamente com a ponta do pé. Euraramente cometía
esses erros de percepção quando contava com os dois olhos,
pois a estereoscopia serve para esclarecer e decidir situações
quando as informações monoculares podem ser ambíguas ou
enganosas.
Atravessar ruas, lidar com escadas, simplesmente caminhar
— coisas que antes dispensavam a atenção consciente —
agora requerem cuidado e previsão constantes. Pessoas que
passaram a Maior parte da vida sem visão estereoscópica,
como Sue, podem adaptar-se com relativa facilidade a esses
desafios, mas eu, que fazia um uso excepcional e talvez
excessivo de informações binoculares para ver em estéreo,
sinto imensa dificuldade para tocar a vida com um olho só.
Acordo toda manhã num mundo amontoado, as coisas todas
por cima umas das outras. Não há espaço em lugar algum,
não há distância entre os objetos.
Eu antes gostava de ver nas ruas as lampadazinhas penduradas em árvores na época do Natal — pareciam criar glóbulos
de luzes piscantes suspensos no ar. Agora vejo uma árvore
assim enfeitada como um disco, sem Maior profundidade do
que um céu estrelado. E quando vou ao jardim botânico, já
não posso fitar, como antes adorava fazer, a densa folhagem
das árvores e arbustos e ver camada após camada,
profundidade após profundidade — agora é tudo uma
confusão plana.
Meu reflexo no espelho não parece mais estar atrás do
espelho, e sim no mesmo plano do vidro. Vejo manchas na
minha roupa no espelho e tento tirá-las com a mão, e só
então percebo que são manchas na superfície do vidro. Uma
confusão desse tipo me fez pensar, em um dia de Fevereiro,
que estava nevando dentro da cozinha — parecia que o lado
de fora da janela não era mais distante do que o lado de
dentro.
Embora em geral eu deteste o achatamento de tudo e lamente a perda da profundidade, ocasionalmente aprecio meu
mundo bidimensional. Às vezes vejo uma sala, uma rua
tranquila ou uma mesa posta como uma natureza-morta,
uma bela composição visual, como imagino que ela poderia
ser vista por um pintor ou um fotógrafo restrito a trabalhar
em uma tela ou em um filme. Descubro um novo prazer ao
olhar para pinturas e fotos, agora que sou mais cônscio da
arte da composição. Nesse sentido, quando penso que não
me dão sequer a ilusão de profundidade, elas podem ser mais
belas.
Uma tarde fui comer sushi em um restaurante japonês. Uma
das atrações da minha mesa na calçada era a visão de uma
nogueira-do-japão do outro lado da rua. No meio do dia,
naquela época do ano, os raios do sol criavam uma sombra
detalhada da árvore, com suas folhas delicadas, na parede
amarela a cerca de um metro e meio mais atrás. Mas agora,
sem a estereoscopia, eu via a árvore e sua sombra no mesmo
plano, como se ambas estivessem pintadas na parede — uma
visão ao mesmo tempo espantosa e bela, pois a realidade
tridimensional transformara-se numa pintura japonesa.
A visão estereoscópica à distância pode ser menos
imediatamente importante, mas a incapacidade de avaliar
distâncias deixa-me propenso a grandes, às vezes absurdas
dúvidas e ilusões. No conto "A esfinge", de Edgar Allan Poe,
o narrador vê uma gigantesca criatura articulada subindo por
um monte distante; só depois percebe que está vendo um
pequenino inseto, praticamente diante do seu nariz. Eu
achava "A esfinge" uma história um tanto forçada até perder
a estereoscopia. Agora tenho experiências como essa
constantemente. Outro dia, vi um fiapo na lente dos óculos
e tentei removê-lo, e então me dei conta de que o "fiapo"
era uma folha na calçada.
Não é apenas a noção de profundidade e distância que está
prejudicada, mas também, de vez em quando, a própria
noção de perspectiva, tão crucial para o reconhecimento de
que nos encontramos em um mundo de objetos sólidos
dispostos no espaço. Quando estive no galpão da casa de um
amigo em Long Island, de início não reconheci o local
como um galpão, pois via apenas linhas verticais, horizontais
e diagonais, como um diagrama geométrico inscrito no céu.
E então, de súbito, ele adquiriu perspectiva e se tornou
reconhecível como um galpão, embora ainda me parecesse
plano, como uma fotografia ou uma pintura.
Minha incapacidade de perceber profundidade e distância
leva-me a combinar ou fundir objetos próximos e distantes
em estranhos híbridos ou quimeras. Um dia estranhei ao
descobrir uma teia cinzenta entre meus dedos, até perceber
que estava vendo o carpete cinza, um metro abaixo — agora
visto no mesmo plano das minhas mãos e interpretado como
parte delas. Uma ocasião, fiquei horrorizado quando olhei
para um amigo de perfil e notei gravetos ou lascas de
madeira saindo dos olhos dele. Logo descobri que
pertenciam à árvore do outro lado da rua. Avistei um
homem que atravessava a Praça Union com um enorme
andaime nos ombros — sujeito maluco, carregar uma coisa
dessas, pensei — e então percebi que o andaime estava a dez
metros dele: outra fusão. E houve uma vez em que vi o topo
de um carro de bombeiro empalado no teto do meu carro,
depois me dei conta de que o carro dos bombeiros estava a
mais de dez metros atrás do meu. Curiosamente, porém,
saber disso ou mover a cabeça para demonstrar o fato pela
paralaxe do movimento faz pouca diferença para a ilusão.
Uma enorme barcaça com trinta metros de altura que avistei
em um congestionamento de trânsito era, na verdade, o
espelho retrovisor lateral do carro à minha frente. O
estranho guarda-chuva verde de uma mulher, descobri, era
uma árvore trinta metros atrás dela. E uma noite levei um
tremendo susto quando estava lendo na cama: "vi" o
ventilador de teto prestes a despencar sobre a luminária logo
acima da minha cabeça — eu "sei" que esses dois objetos
estão a pelo menos um metro e meio de distância um do
outro, mas isso não impede a súbita ilusão.
Nada mais se projeta em minha direção nem se afasta de
mim; não existe a sensação de "na frente" ou "atrás"; há
apenas uma inferência baseada em oclusão e perspectiva.
Antes o espaço era um reino profundo e acolhedor onde eu
podia me situar e andar à vontade. Podia entrar nele, viver
nele, e ele tinha uma relação espacial com tudo o que eu
enxergava. Esse tipo de espaço não existe mais para mim
visualmente — ou mentalmente.
Depois de dois anos desprovido de estereoscopia, hoje me
viro bem. Aprendi a dar apertos de mão, servir o vinho no
copo, descer e subir escadas. Voltei a andar de bicicleta e a
dirigir — recorrendo à paralaxe do movimento e ao fato de a
percepção ser complementada pela ação, de eu estar agindo
em um mundo tridimensional, embora ele me pareça
bidimensional. Em geral, consigo "desmascarar" minhas
ilusões e fusões. Mas isso não altera minha sensação de que
um aspecto fundamental do mundo visual me foi tirado e de
que as coisas nunca mais terão a aparência que tinham
outrora, nunca mais me parecerão certas. A realidade visual
que enfrento é totalmente errada — pois eu sei muito bem
como as coisas eram e como devem ser.
Agora só em sonhos tenho visão tridimensional. Toda a vida
tive ocasionais sonhos em estéreo, na Maioria dos quais
estou olhando pelo estereoscópio um par de lindas
fotografias, talvez de uma paisagem urbana ou das
profundezas do Grand Canyon. Acordo desses sonhos para
uma realidade que é incorrigivelmente, irreversivelmente, enlouquecedoramente plana.
Minha visão permaneceu nesse estado, mais ou menos estável, por dois anos. Eu era capaz de fazer a Maioria das coisas
que desejasse, pois possuir visão periférica no olho direito
ainda me dava um campo visual completo, mesmo que lhe
faltasse a profundidade diretamente à frente. Com essa visão
periférica, eu mantinha um pequenino crescente de
estereopsia próximo à base do campo visual, e isso era
importante porque me dava uma noção implícita ou
inconsciente de profundidade e espaço, mesmo não
havendo estereopsia no resto do campo visual. Mas também
podia ser torturante, pois a região de estereopsia ficava
abaixo do meu ponto de fixação, e toda vez que eu tentava
focalizar alguma coisa com meu olho são, ela imediatamente
se achatava.
Tudo isso mudaria em 27 de setembro de 2009. O dia
começou como qualquer outro; nadei, tomei o café da
manhã e estava escovando os dentes quando tive a
impressão de que uma película cobriu meu olho direito. Sua
visão periférica, a única visão que ele ainda tinha, ficou
enevoada. Pensei que meus óculos estivessem embaçados.
Tirei-os, fiz a limpeza — mas a película continuou lá. Eu
podia ver objetos através dela, porém os contornos eram
indistintos.
"Coisas da vida", pensei (embora nunca houvesse me
acontecido nada semelhante). "Vai passar daqui a pouco."
Mas não passou. A névoa foi ficando cada vez mais densa.
Fui tomado pelo medo e por uma sensação de perigo. O que
estaria acontecendo? Telefonei para o consultório do dr.
Abramson; ele não estava, mas seu colega recomendou que
eu fosse para lá imediatamente. O dr. Marr examinou o olho
e confirmou o que eu suspeitava: havia um sangramento,
provavelmente na retina, e agora o sangue estava
penetrando no humor vítreo no fundo do olho. A causa da
hemorragia não estava clara, mas era bem possível que o
tumor, a radiação e as repetidas aplicações de laser
houvessem deixado cicatrizes na retina, tornando-a mais
frágil e aumentando a probabilidade de que algum vaso
sanguíneo se desgastasse ou se rompesse. Nada havia a fazer
naquele momento.
No fim da tarde eu não conseguia contar meus dedos nem
enxergar distintamente coisa alguma com o olho direito. Só
podia sentir uma luminosidade difusa vinda da janela e
algum movimento, como quando fechamos os olhos sob
uma luz forte e percebemos se uma mão se agitar diante das
nossas pálpebras. Disseram-me que o sangue se dissiparia,
mas poderia demorar uns seis meses ou mais — agora, na
prática, meu olho direito estava totalmente cego.
Não pude evitar a lembrança daquele outro dia, o dia em que
tudo começou a dar errado, no fim de 2005 — e dos quase
quatro anos de luta durante os quais o olho se aguentou,
com a retina cada vez mais mordiscada ou fulminada. Seria
este o golpe final?
Para tirar a mente do universo visual, sentei-me ao piano,
fechei os olhos e toquei um pouco. Depois, para embotar os
sentimentos e não ficar ruminando, tomei dois comprimidos
para dormir e fui para a cama.
Dormi profundamente. Acordado pelo rádio-relógio, fiquei
ouvindo de olhos fechados, com a mente vagueando entre o
sono e a vigília, e só quando abri os olhos e não vi coisa
alguma com o olho direito, além de uma luz baça na direção
por onde o sol entrava intenso, foi que a lembrança do que
ocorrera subitamente me voltou.
Na segunda de manhã, Kate chegou e sugeriu que fôssemos
dar uma volta. Assim que entramos na afobação matinal da
avenida Greenwich, abarrotada de gente equilibrando copos
de café e celulares, pessoas passeando com cachorro, pais
levando filhos para a escola, percebi que estava encrencado.
Eu me sobressaltava, me apavorava, porque as pessoas e
objetos pareciam se materializar, aparecer de repente do
meu lado direito. Se Kate não estivesse andando à minha
direita, protegendo meu lado cego, eu trombaria com tudo,
tropeçaria nos cachorros, cairia por cima dos carrinhos de
bebê, sem ter a menor noção de que eles estavam onde
estavam.
Não valorizamos nossa visão periférica tanto quanto
deveríamos, pois grande parte do tempo temos pouca
consciência explícita sobre ela. Olhamos, focalizamos,
miramos com a fóvea, a nossa visão central. Mas é a visão
periférica, ao redor, que nos dá um contexto, uma noção de
como o que estamos olhando se situano mundo mais amplo.
E é especialmente com o movimento que a visão periférica
se sintoniza: ela nos alerta para movimentos inesperados nas
laterais, e então a visão central se desloca para focalizá-los.
Para mim, agora, uma fatia considerável da periferia à minha
direita — quarenta graus ou mais, como uma enorme fatia
de bolo — foi comida da minha visão. Na prática, não
enxergo coisa alguma à direita do meu nariz. Eu havia
perdido a visão central do olho antes, mas a visão periférica
ainda era suficiente para me dar um aviso, uma indicação das
coisas que aconteciam daquele lado. Agora até isso eu perdi.
Não percebo nada, e tudo que aparece em meu campo visual
deste lado é inesperado e me sobressalta. Não consigo
superar o desnorteio, ou mesmo choque, quando pessoas ou
objetos me surgem de repente do lado direito. Uma enorme
fatia do espaço não existe mais para mim, e a idéia de que
pode existir alguma coisa nesse espaço também desapareceu.
Os neurologistas falam em "negligência unilateral" ou
"hemianopsia", mas esses termos técnicos não dão ideia do
quanto é esquisito um estado assim. Anos atrás, tive uma
paciente com um espantoso abandono do lado esquerdo de
seu corpo e do espaço, decorrente de um derrame no lobo
parietal direito. Mas isso não me preparou para estar em
situação praticamente idêntica (embora, obviamente,
causada por um problema ocular e não cerebral). E me dei
conta disso ainda mais vividamentequando Kate e eu
voltamos da nossa caminhada para meu escritório. Fui na
frente e entrei no elevador, mas Kate havia desaparecido.
Presumi que ela devia estar falando com o porteiro ou
pegando a correspondência, e fiquei aguardando que me
alcançasse. Por fim, uma voz ao meu lado — a voz dela —
perguntou: "O que está esperando?" Pasmei. Não só porque
não a vira à direita, mas também porque nem sequer
imaginei que ela pudesse estar lá, uma vez que "lá" não
existia para mim. Os ingleses têm um ditado, "fora das vistas,
fora do pensamento", que é literalmente verdade em casos
assim.
9 DE NOVEMBRO DE 2009
Seis semanas se passaram desde a hemorragia. Pensei que
com o tempo me acostumaria à semicegueira, ao
hemiespaço, mas isso não aconteceu. Toda vez que alguém
ou alguma coisa aparece de repente à minha direita, é tão
inesperado como da primeira vez. Continuo em um mundo
de subitaneidade e descontinuidade, de aparições e
desaparecimentos inopinados.
Só consigo lidar com isso virando a cabeça constantemente,
para monitorar o que está acontecendo na área cega. (Na
verdade, preciso torcer todo o tronco para compensar os
cerca de sessenta graus que não enxergo.) Mas isso, além de
ser cansativo, parece absurdo, pois no que diz respeito à
minha percepção, tenho um campo visual completo —
subjetivamente não sinto falta de nada, por isso não há nada
a ser procurado. Possivelmente também parece esquisito
para as outras pessoas, que estranham minhas contorções e
viradas para olhar para elas.
Outros sentidos além da visão originam situações paralelas.
Quando uma pessoa toma uma anestesia espinhal completa,
por exemplo, perde toda a sensação e capacidade de
movimento na metade inferior do corpo. Mas essa descrição
não faz justiça ao estranhamento que a pessoa sente. A
noção que ela tem do corpo termina abruptamente no nível
do anestésico, e o que existe abaixo não parece mais ser
parte da pessoa, pois não está enviando informações ao
cérebro testemunhando sua existência. Desapareceu, e levou
consigo o seu lugar, o seu espaço.
A pessoa pode, obviamente, olhar suas pernas "faltantes", e
isso é ainda mais estranho, de certo modo, pois as pernas
parecem-lhe curiosamente irreais, alienígenas — quase
como modelos de cera em um museu de anatomia. Exames
de imagem funcional mostram que as partes anestesiadas do
corpo realmente perdem sua representação no córtex
sensitivo. E assim parece ser com o lado direito do meu
campo visual — ele não envia mais sinais ao cérebro, não
tem mais representação ali. No que respeita ao cérebro, ele
não existe.
6 DE DEZEMBRO DE 2009
Já se vão dez semanas desde a hemorragia, e o que consegui
em matéria de adaptação ainda é surpreendentemente
pouco. Tenho de me lembrar vezes sem conta de verificar,
de me certificar de que o lado cego não está sendo
abandonado ou esquecido — isso ainda está longe de ser
automático. Me pergunto se algum dia finalmente me
adaptarei, e fico pensando no que escreveu um de meus
correspondentes, Stephen Fox:
Muito pior do que a perda da profundidade foi a nova
limitação do campo visual. Meu braço direito encheu-se de
hematomas de tanto trombar com batentes de porta, pois
meu cérebro ainda reage como se eu estivesse captando o
panorama completo com os dois olhos. Também vivo
derrubando objetos de cima da mesa com o braço direito. O
escopo limitado continua a ser um problema, mesmo depois
de 22 anos, especialmente em estações de metrô apinhadas,
onde o caminho das pessoas pode convergir de modo súbito
e silencioso à minha direita, resultando ocasionalmente em
colisões embaraçosas.
A avenida Greenwich, assim como o mundo exterior em
geral, permanece tão cheia de perigos, reais e imaginários,
como no dia em que saí para minha primeira caminhada
pós-hemorragia muitas semanas atrás. As pessoas passam
apressadas, tão absortas em seus celulares e mensagens de
texto que ficam também funcionalmente cegas e surdas,
desligadas do ambiente; outras andam com cãezinhos
minúsculos, uns insetos na ponta de uma guia comprida e
invisível que é como uma armadilha para fazer tropeçar os
deficientes visuais; crianças costuram em disparada de
patinete, abaixo do nível dos olhos. E há outros perigos:
bueiros, grades, hidrantes, portas que se abrem de repente,
ciclistas entregando comida — a cena toda parece planejada
para aumentar o faturamento dos ortopedistas. Não me
atrevo a andar desacompanhado; felizmente, meus amigos
me ajudam, andam comigo e são meus guias e protetores do
lado cego. E eu nem sonharia em dirigir um carro a esta
altura.
Tento ficar do lado direito da calçada para que ninguém me
ultrapasse pelo lado cego, mas nem sempre isso é possível; a
calçada geralmente é lotada e não sou o dono dela para
poder usá-la a meu gosto. Vivo perdendo as coisas na minha
própria mesa de trabalho — os óculos de leitura, a caneta-tinteiro, uma carta que acabei de escrever — se as puser do
lado direito.
No entanto (leio no livro de Frank Brady A singular view:
The art of seeing with one eye, quase todas as pessoas que
perdem um olho adaptam-se a essa perda, mais facilmente se
forem jovens ou se a perda da visão for gradual, ainda mais
se o olho afetado não for o dominante e se a visão do outro
olho for boa. (Eu, infelizmente, me enquadro muito mal em
todos esses critérios.) A Maioria, com o tempo, consegue
voltar a ter uma vida plena e livre — desde que se conserve
uma atenção especial, uma hiperconsciência do lado
faltante, ressalva Brady.
Talvez isso venha a ser possível para mim também, no futuro. Mas por ora está longe de ser minha situação. Estranhos
incidentes parecem me perseguir. Outro dia, voltando de
uma caminhada com meu amigo Billy, eu o "perdi" ao entrar
no elevador. Havia alguém à direita, que por um momento
pensei ser Billy. Depois percebi que era um estranho, que
também parecia surpreso e confuso, ou mesmo um tanto
assustado, pelo fato de eu me virar e encará-lo perplexo.
Devia pensar que eu era doido. Só quando me virei ainda
mais para a direita encontrei Billy, à esquerda do estranho,
nas profundezas do meu lugar nenhum.
Cinco minutos depois, quando entramos no meu apartamento e pus a chaleira a esquentar para o chá, Billy tornou a
desaparecer — e eu o descobri, depois de uma pausa
estonteada, precisamente onde o havia deixado. Ele não se
movera, mas quando me virei eu o pusera no meu ponto
cego, meu "lugar nenhum" visual e mental. Mais uma vez
me espantei por isso poder acontecer em poucos segundos
e, de certo modo, contrariando a memória e o bom senso.
Toda vez que isso ocorre, meu assombro é o mesmo.
O tempo dirá se sou capaz de me adaptar a esse novo desafio
visual — ou quem sabe antes disso a hemorragia se dissipe e
minha visão periférica do lado direito seja restaurada ao
menos em parte. Nesse meio-tempo, tenho um grande
"lugar nenhum" em meu campo visual direito e em meu
cérebro, do qual não sou nem nunca poderei ser
diretamente consciente. Para mim, pessoas e objetos
continuam a "evaporar" ou "surgir do nada" — essas não são
mais metáforas para mim: são a descrição mais próxima que
me ocorre para explicar como vivencio o nada e o lugar
nenhum.
Até que ponto somos os autores, os criadores das nossas
sensações? Quanto elas são predeterminadas pelo cérebro ou
pelos sentidos com que nascemos, e em que medida
moldamos nosso cérebro pelo que vivenciamos? Os efeitos
de uma intensa privação perceptual como a cegueira podem
lançar uma luz inesperada sobre essas questões. Ficar cego,
especialmente em uma fase avançada da vida, traz um
desafio colossal, potencialmente esmagador: encontrar um
novo modo de viver, de ordenar o mundo pessoal, quando o
velho mundo foi destruído.
Em 1990, enviaram-me um livro extraordinário, "Touching
the Rock: an Experience of Blindness", de John Hull,
catedrático de ensino religioso na Inglaterra. Hull cresceu
enxergando parcialmente. Teve catarata aos treze anos e
ficou cego do olho esquerdo quatro anos depois. A visão do
seu olho direito permaneceu razoável até por volta dos 35
anos, mas no decênio seguinte ocorreu um declínio
constante da visão; Hull precisou de lupas cada vez mais
potentes e teve de escrever com canetas cada vez mais
grossas. Em 1983, aos 48 anos, ficou totalmente cego.
"Touching the Rock" é o diário que ele ditou nos três anos seguintes. E rico em sagazes percepções sobre sua transição
para uma vida de cego, mas para mim o mais impressionante
é sua descrição da atenuação gradual, depois de tornar-se
cego, de sua imagética e memória visuais, até finalmente a
extinção de ambas (exceto em sonhos) — um estado que ele
chamou de "cegueira profunda".
Com isso Hull quer indicar não só a perda de imagens e
memórias visuais, mas a perda da própria ideia de ver, tanto
assim que para ele até mesmo conceitos como "aqui", "ali" e
"defronte" parecem ter perdido o sentido. A ideia de que os
objetos têm uma aparência, ou características visíveis,
desapareceu. Ele deixou de ser capaz de imaginar que
aspecto tem o número 3 a menos que o trace no ar com o
dedo. Pode construir a imagem motora de um 3, mas não a
visual.
No começo, Hull ficou muito aflito com isso; não podia mais
evocar o rosto de sua mulher ou de seus filhos, nem as
paisagens e lugares que ele amava. Mas depois acabou por
aceitar tudo com notável serenidade, como uma resposta
natural à sua perda da visão. Pareceu, inclusive, achar que a
perda da imagética visual era pré-requisito para o pleno
desenvolvimento, a intensificação, de seus outros sentidos.
Dois anos depois de se tornar totalmente cego, Hull parecia
tão desprovido de imagens mentais e de memória visual
quanto um cego congênito. Com profunda religiosidade, e
em uma linguagem que às vezes lembra a de São João da
Cruz, ele entrou no estado de cegueira profunda, ao qual se
entregou com uma espécie de aquiescência e alegria.
Descreveu a cegueira profunda como "um mundo autêntico
e autônomo, um lugar todo especial. [...] Ser alguém que vê
com o corpo todo é estar em uma das condições humanas
concentradas".
Ser "alguém que vê com o corpo todo", para Hull, significava
transferir sua atenção, seu centro de gravidade, para os
outros sentidos, e estes assumiram então uma nova riqueza e
poder. Por exemplo, ele escreveu que o som da chuva, ao
qual nunca antes prestara muita atenção, agora podia
delinear para ele toda uma paisagem; na calçada do jardim o
som da chuva era um, na grama, era outro, e assim por
diante nos arbustos, na cerca que separava o jardim da rua:
A chuva tem um modo de revelar os contornos de tudo;
joga um manto colorido sobre coisas antes invisíveis; em
vez de um mundo intermitente e, portanto, fragmentado, a
chuva que cai ininterruptamente cria a continuidade da
sensação acústica. [...] apresenta de uma vez a totalidade de
uma situação [...] dá uma ideia daperspectiva e das
verdadeiras relações de uma parte do mundo com outra.
Com sua nova intensidade (ou atenção) das sensações
auditivas, aliada à intensificação dos seus outros sentidos,
Hull passou a sentir intimidade com a natureza, um
profundo "estar no mundo", acima de qualquer coisa que ele
conhecera quando podia ver. A cegueira, para ele, tornou-se
"uma dádiva misteriosa, paradoxal". Não se trata de mera
"compensação", ele ressalta, e sim de toda uma nova ordem,
um novo modo de ser humano. E assim ele se desvencilhou
de sua nostalgia visual, da tensão ou falsidade de tentar
passar por "normal", e encontrou um novo foco, uma nova
liberdade e identidade. Suas aulas na universidade
expandiram-se, ele ficou mais fluente; seus textos ganharam
força e profundidade; ele se tornou mais ousado e mais
confiante nas esferas intelectual e espiritual. Sentiu que
finalmente pisava em terreno firme.
A descrição de Hull pareceu-me um exemplo perfeito de
como um indivíduo privado de uma forma de percepção
pôde redirecionar-se para um novo centro, uma nova
identidade perceptual. No entanto, julguei extraordinário
que uma aniquilação da memória visual como a que ele
descreveu pudesse ocorrer para um adulto com décadas de
experiência visual rica e significativa à qual ele podia
recorrer. Mas eu não podia duvidar do relato de Hull, escrito
com o mais escrupuloso cuidado e lucidez.
Os neurocientistas cognitivos sabem, já há algumas décadas,
que o cérebro tem muito mais plasticidade do que se pensava. Helen Neville foi pioneira nessa área, mostrando que em
pessoas com surdez pré-lingual (ou seja, que nasceram ou se
tornaram surdas antes de aproximadamente dois anos de
idade) as partes auditivas do cérebro não se degeneraram.
Permaneceram ativas e funcionais, porém com atividade e
função novas: foram transformadas, "realocadas", na
terminologia de Neville, para processar a linguagem visual.
Estudos comparáveis com cegos congênitos ou pessoas que
ficaram cegas com pouca idade mostram que algumas áreas
do córtex visual podem ser realocadas e usadas para
processar sons e sensações do tato.
Com essa realocação de partes do córtex visual, a audição, o
tato e outros sentidos podem adquirir nos cegos uma
hiperacuida-de talvez inimaginável para qualquer pessoa que
vê. Bernard Morin, o matemático que nos anos 1960
demonstrou como se pode fazer a eversão de uma esfera,
perdeu a visão aos seis anos em decorrência de glaucoma.
Em sua opinião, seu talento matemático requeria um tipo
singular de senso espacial — uma percepção e imaginação
hápticas provavelmente fora do alcance de qualquer
matemático capaz de enxergar. E um tipo semelhante de
talento espacial ou tátil foi fundamental para a obra de
Geerat Vermeij, um conquiliólogo que identificou muitas
novas espécies de molusco com base em minúsculas
variações na forma e contorno das conchas. Vermeij ficou
cego aos três anos de idade.
Diante dessas descobertas e relatos, os neurocientistas
começaram a reconhecer, nos anos 1970, que poderia existir
uma certa flexibilidade ou plasticidade no cérebro, pelo
menos nos dois primeiros anos de vida. Mas pensavam que,
passado esse período crítico, o cérebro tornava-se muito
menos plástico.
No entanto, o cérebro permanece capaz de mudanças radicais em resposta a uma privação sensorial. Em 2008, Lofti
Merabet, Alvaro Pascual-Leone e colegas mostraram que
mesmo em adultos que vêem, passar apenas cinco dias de
olhos vendados produziu marcantes mudanças para formas
não visuais de comportamento e cognição; esses
pesquisadores relataram as mudanças fisiológicas no cérebro
que acompanham tais modificações. (Fizeram questão de
distinguir entre essas mudanças rápidas e reversíveis, que
parecem fazer uso de conexões intersensoriais preexistentes
mas latentes, e as mudanças duradouras que ocorrem
especialmente em resposta à cegueira congênita ou iniciada
em tenra idade, a qual pode acarretar grandes reorganizações
nos circuitos corticais.)
Aparentemente, o córtex visual de Hull, mesmo na idade
adulta, adaptou-se à perda da entrada de informações visuais
assumindo outras funções sensitivas — audição, tato, olfato
— enquanto deixava de lado a capacidade de visualizar
imagens. Supus que o ocorrido com Hull fosse típico da
cegueira adquirida: a resposta, mais cedo ou mais tarde, de
todos os que perdem a visão, e um exemplo brilhante da
plasticidade do córtex.
No entanto, quando publiquei um ensaio sobre o livro de
Hull em 1991, recebi, surpreso, várias cartas de pessoas
cegas, muitas delas em um tom meio intrigado e até
indignado. Várias dessas pessoas escreveram que não se
identificavam com o caso de Hull, pois mesmo décadas
depois de terem perdido a visão ainda conservavam suas
imagens e memórias visuais. Uma mulher, que perdera a
visão aos quinze anos, escreveu:
Embora eu seja totalmente cega [...] considero-me uma
pessoa muito visual. Ainda "vejo" objetos à minha frente.
Agora que estou digitando, posso ver minhas mãos no
teclado. [...] Não me sinto à vontade em um novo ambiente
enquanto não tiver um quadro mental de seu aspecto.
Também preciso de um mapa mental para me deslocar
independentemente.
Será que eu estava errado, ou pelo menos estava sendo
parcial, aceitando o caso de Hull como a resposta típica à
cegueira? Seria culpado de dar peso demais a um modo de
resposta, esquecendo-me de outras possibilidades
radicalmente diferentes?
Essa minha impressão chegou ao auge alguns anos depois,
quando recebi carta de um psicólogo australiano chamado
Zoltan Torey. Ele me escreveu não sobre a cegueira, mas a
respeito de um livro seu cujo tema era mente-cérebro e a
natureza da consciência. Em sua carta ele também
mencionou que ficara cego em um acidente aos 21 anos.
Embora fosse aconselhado a "mudar do modo de adaptação
visual para o auditivo", ele seguira na direção oposta:
resolvera desenvolver no mais alto grau possível o seu "olhar
interior", sua capacidade de trabalhar com imagens mentais.
E fora extremamente bem-sucedido, ele disse, pois
desenvolvera um notável poder de gerar, reter e manipular
imagens na mente, tanto assim que conseguira construir um
mundo visual virtual que lhe parecia tão real e intenso
quanto o mundo perceptual que ele havia perdido — aliás, às
vezes até mais real e mais intenso. Essa imagética, além
disso, permitia-lhe fazer coisas que poderiam parecer
impossíveis a um cego.
"Troquei sozinho todas as calhas do telhado de várias
cumeeiras da minha casa", ele escreveu, "e para isso depende
unicamente do poder de manipulação precisa e bem focada
do meu espaço mental, agora totalmente maleável e
responsivo". Torey depois descreveu mais detalhadamente
esse episódio, mencionando que seus vizinhos ficaram
muito preocupados quando viram um cego sozinho no
telhado — e à noite (muito embora, obviamente, a escuridão não fizesse diferença para ele).
E ele sentia que seu recém-intensificado poder de visualizar
imagens punha à sua disposição modos de raciocinar que
antes não estavam ao seu alcance, permitindo que ele se
visualizasse no interior de máquinas e outros sistemas para
conceber soluções, modelos e designs.
Respondi à carta de Torey sugerindo que pensasse em
escrever outro livro, mais pessoal, analisando como sua vida
fora afetada pela cegueira e como ele reagira a ela do modo
mais improvável e aparentemente paradoxal. Alguns anos
depois, ele me enviou os originais de "Out ofdarkness". Nesse
novo livro, Torey descreve as memórias visuais de sua
infância e juventude na Hungria antes da Segunda Guerra
Mundial: os ônibus azul-celeste de Budapeste, os bondes
amarelo-ovo, o acendimento dos lampiões a gás, o funicular
do lado de Buda. Descreveu sua juventude despreocupada e
privilegiada, caminhando com seu pai pelas matas
montanhosas com vista para o Danúbio, praticando esportes
e pregando peças na escola, crescendo em um meio
intelectualizado de escritores, atores e profissionais liberais
de todas as áreas. O pai de Torey era diretor de um estúdio
de cinema e costumava dar roteiros para o filho ler. Torey
escreveu: "Isso me deu a oportunidade de visualizar
histórias, enredos e personagens, exercitar minha
imaginação — uma habilidade que anos mais tarde se
tornaria um salva-vidas e uma fonte de força".
Tudo isso terminou brutalmente com a ocupação nazista, o
cerco de Buda e por fim a ocupação soviética. Torey, então
adolescente, viu-se arrebatado por grandes questões — o
mistério do universo, da vida e, sobretudo, o mistério da
consciência, da mente. Aos dezanove anos, sentindo que
precisava mergulhar na biologia, engenharia, neurociência e
psicologia, mas sabendo que não havia chances para uma
vida intelectual na Hungria soviética, Torey fugiu do país.
Foi parar na Austrália, onde, sem dinheiro e sem contatos,
trabalhou em diversos serviços braçais. Em Junho de 1951,
deixou cair um plugue em um tambor de ácido na fábrica
química onde trabalhava, e esse acidente dividiu sua vida em
duas fases:
A última coisa que vi com total clareza foi uma centelha de
luz no jorro de ácido que engolfaria meu rosto e mudaria
minha vida. Foi um lampejo de um nanossegundo,
emoldurado pelo círculo negro da borda do tambor, a menos
de trinta centímetros. Essa é a cena final, o tênue fio que me
liga ao meu passado visual.
Quando ficou claro que suas córneas haviam sido
irremediavelmente lesadas e que ele teria de passar o resto
da vida como um cego, aconselharam-no a reconstruir sua
representação do mundo com base na audição e no tato e a
"desistir de uma vez de ver e visualizar". Mas isso era algo
que Torey não podia e não queria fazer. Ele salientara, na
primeira carta que me escreveu, a importância de uma
escolha crítica naquela conjuntura: "De imediato, resolvi
descobrir quanto um cérebro destituído de um dos sentidos
poderia fazer para reconstruir uma vida". Assim expresso,
parece algo abstrato, como um experimento. Mas em seu
livro percebemos os sentimentos avassaladores que estavam
por trás de sua resolução: o horror à escuridão — "a
escuridão vazia", como Torey costuma dizer; "a névoa
cinzenta que estava me engolfando" — e o desejo ardente
de aferrar-se à luz e à visão, de manter, nem que fosse
apenas na memória e na imaginação, um mundo visual
vívido e vivo. O próprio título de seu livro diz tudo isso, e a
nota de desafio soa desde o começo.
Hull, que não usou suas imagens mentais de modo deliberado, perdeu-as dentro de dois ou três anos e se tornou
incapaz de lembrar como era a aparência de um 3; Torey, no
entanto, logo se tornou capaz de multiplicar números de
quatro dígitos entre si, como se escrevesse numa lousa:
visualizava toda a operação em sua mente e "pintava" de
cores diferentes as suboperações.
Torey manteve uma atitude cautelosa e "científica" em
relação às suas imagens mentais, tratando de verificar por
todos os meios disponíveis a exatidão das imagens que
visualizava. "Aprendi a reter a imagem de um modo
provisório", ele escreveu, "conferindo-lhe credibilidade e
importância apenas quando alguma informação fizesse
pender a balança a seu favor". Logo ele adquiriu suficiente
confiança na acurácia de suas imagens mentais para confiar-lhes sua vida, como na ocasião em que consertou o telhado
sozinho. E essa confiança estendeu-se a outros projetos
puramente mentais. Ele se tornou capaz de visualizar, por
exemplo, o lado interno de uma caixa de engrenagens diferenciais em ação, como se estivesse lá dentro. "Consegui",
ele escreveu, "observar os dentes mordendo, engatando e
revolvendo, distribuindo os giros como era necessário.
Comecei a brincar com essa visão interior em problemas
técnicos e mecânicos, visualizando como subcomponentes
relacionam-se no átomo ou na célula viva". Esse poder de
recorrer a imagens mentais foi crucial, na opinião de Torey,
para que ele chegasse a uma nova concepção do problema
da mente-cérebro, visualizando o cérebro como "um
perpétuo malabarismo de rotinas interagentes".
Logo depois de receber o manuscrito de "Out of Darkness",
recebi também a prova de outro ensaio biográfico sobre a
cegueira: "My Path Leads to Tibet", de Sabriye Tenberken.
Enquanto Hull e Torey são pensadores, dedicados cada qual
ao seu modo à interioridade, aos estados do cérebro e da
mente, Tenberken é uma pessoa de ação; já viajou, muitas
vezes sozinha, por todo o Tibete, onde por séculos os cegos
vêm sendo tratados como sub-humanos a quem são negados
educação, trabalho, respeito e um papel na comunidade.
Praticamente sem ajuda, Tenberken transformou essa
situação ao longo de uma década. Criou uma forma de braille
tibetano, fundou as primeiras escolas para cegos na região e
integrou as pessoas formadas nessas escolas às suas
comunidades.
A própria Tenberken é deficiente visual quase desde o
nascimento, mas até os doze anos conseguia discernir rostos
e paisagens. Quando criança, na Alemanha, adorava pintar, e
tinha predileção especial por cores, e quando não foi mais
capaz de decifrar formas e contornos, ainda conseguia usar
as cores para identificar objetos.
Apesar de já ser cega por doze anos quando foi para o Tibet, Tenberken continuou a usar seus outros sentidos,
juntamente com descrições verbais, memórias visuais e uma
forte sensibilidade pictórica e sinestésica, para construir
"imagens" de paisagens e aposentos, de ambientes e cenas —
imagens mentais tão vívidas e detalhadas que maravilhavam
seus ouvintes. Algumas podiam diferir da realidade de um
modo gritante ou cômico, como ela relatou ao descrever um
incidente em que foi de carro com um acompanhante até
Nam Co, o grande lago salgado do Tibete. Tenberken
voltou-se avidamente na direção do lago e viu, na
imaginação, "uma praia de sal cristalizado tremeluzindo
como neve ao sol do entardecer, na orla de uma grande
massa de água turquesa. [...] E embaixo, nos flancos verde-escuros da montanha, alguns nômades vigiam seus iaques a
pastar". Acontece que ela não estava "olhando" para o lago
— voltada para outra direção, "fitava" rochas e uma paisagem
cinzenta. Tais disparidades não a desconcertam nem um
pouco. Ela gosta de possuir uma imaginação tão vívida. E
uma imaginação essencialmente artística, que pode ser
impressionista, romântica e nada verídica, enquanto a de
Torey é a imaginação de um engenheiro e tem de ser
factual, exata nos mínimos detalhes.
Jacques Lusseyran foi um combatente da Resistência
Francesa cuja autobiografia,
"Et La lumière Fut", fala
principalmente de sua luta contra os nazistas e depois de sua
vida no campo de concentração de Buchenwald, mas
também inclui belas descrições de suas adaptações iniciais à
cegueira. Ele ficou cego em um acidente pouco antes de
fazer oito anos, uma idade que ele depois concluiu ser
"ideal" para tal eventualidade, pois, embora já possuísse uma
rica experiência visual à qual recorrer, "os hábitos de um
menino de oito anos ainda não estão formados, no corpo ou
na mente. Seu corpo é infinitamente flexível".
De início, Lusseyran começou a perder suas imagens
mentais:
Pouco depois de ficar cego, já comecei a esquecer os rostos
da minha mãe, do meu pai e da Maioria das pessoas que eu
amava. [...] Parei de pensar se a pessoa era morena ou loira,
se tinha olhos azuis ou verdes. Achava que as pessoas que
enxergavam gastavam tempo demais observando essas coisas
vazias. [...] Eu já nem pensava sobre isso. Parecia-me que as
pessoas não possuíam mais essas coisas. Às vezes, na minha
mente, homens e mulheres apareciam sem cabeça ou sem
dedos.
Coisa semelhante aconteceu com Hull, que escreveu: "Cada
vez mais já nem tento imaginar a aparência das pessoas. [...]
Acho cada vez mais difícil me dar conta de que as pessoas
têm alguma aparência e atribuir algum significado à idéia de
que elas têm feições".
Por outro lado, enquanto renunciava ao mundo visual real e
muitos de seus valores e categorias, Lusseyran começou a
construir e usar, mais à maneira de Torey, um mundo visual
imaginário. Passou a se identificar como pertencente a uma
categoria especial: os "cegos visuais".
A visão interior de Lusseyran começou com uma sensação
de luminosidade, uma radiância informe que afluía em
torrentes. Os termos da neurologia fatalmente soam
redutivos nesse contexto quase místico, mas ainda assim
poderíamos arriscar a interpretação de que se trata de um
fenômeno de liberação, uma excitação espontânea, quase
eruptiva do córtex visual, agora privado das entradas normais
de informações visuais. (Esse fenômeno talvez seja análogo
ao zumbido auditivo ou aos membros fantasmas dos
amputados, embora o menino o dotasse de uma qualidade
superna.) Mas evidencia-se que, em vez de apenas ver
aquela luminosidade difusa, ele adquiriu uma grande
capacidade de visualizar imagens.
Seu córtex visual, o "olho interior", foi ativado, e a mente de
Lusseyran construiu uma "tela" onde era possível projetar o
que quer que ele pensasse e, se necessário, manipular
aquelas imagens como em um monitor de computador. "A
tela não era como uma lousa, retangular ou quadrada, na
qual depressa chegamos à borda da moldura", ele escreveu.
Minha tela sempre era tão grande quanto eu precisava que
fosse. Como não estava em lugar algum no espaço, ela estava
em toda parte ao mesmo tempo. [...] Nomes, figuras e
objetos em geral não apareciam na minha tela sem uma
forma, não vinham apenas em preto e branco, mas em todas
as cores do arco-íris. Nada entrava em minha mente sem ser
banhado em uma certa quantidade de luz. [...] Em poucos
meses meu mundo pessoal transformou-se em um ateliê de
pintura.
A grande capacidade de visualização foi crucial para o jovem
Lusseyran, mesmo na tarefa nada visual (poderíamos pensar)
de aprender braille, e em seus brilhantes êxitos na escola. A
visualização não lhe foi menos crucial no mundo real, o
mundo exterior. Lusseyran descreveu caminhadas que fez
com seu amigo Jean, contando que uma ocasião, quando
subiram por uma encosta no vale do Sena, ele pôde dizer a
Jean:
"Olhe! Desta vez estamos no topo. [...] Dá para ver toda a
curva do rio, exceto quando o sol bate nos olhos!" Jean
espantou-se, arregalou os olhos e exclamou: "Você tem
razão!" Essa cenazinha repetiu-se entre nós de mil formas.
Toda vez que alguém mencionava algum evento, este
imediatamente se projetava em seu lugar na tela, que era
uma espécie de tela de pintura interior. [...] Comparando
meu mundo com o dele [Jean], conclui que o dele tinha
menos imagens e nem de longe tantas cores. Isso o deixava
quase zangado, e ele dizia: "Afinal de contas, qual de nós
dois é cego?"
Foram os seus poderes supernormais de visualização e
manipulação visual — visualizar as posições e movimentos
das pessoas, a topografia de qualquer espaço, as estratégias de
defesa e ataque — combinados à sua personalidade
carismática (e à seu "nariz" ou "ouvido" aparentemente
infalíveis para detectar possíveis traidores) que mais tarde
transformaram Lusseyran em ícone da Resistência Francesa.
A essa altura eu lera quatro autobiografias, cada qual muito
diferente em sua descrição da experiência visual de uma
pessoa cega: Hull com seu mergulho consentido na
"cegueira profunda", Torey com sua "visualização
compulsiva" e meticulosa construção de um mundo visual
interior, Tenberken com sua liberdade visual impulsiva,
quase romanesca, aliada ao seu notável e específico dom da
sinestesia, e Lusseyran, que se identificava como um dos
"cegos visuais". E me perguntava: será que existe uma
experiência típica da cegueira?
Dennis Shulman, psicólogo clínico e psicanalista que faz
conferências sobre temas bíblicos, é um cinquentão afável e
barbudo que perdeu gradualmente a visão na adolescência e
ficou totalmente cego na época em que entrou para a
universidade. Quando nos conhecemos, alguns anos atrás,
ele me disse que seu caso era completamente diferente do
de Hull:
Ainda vivo em um mundo visual, depois de 35 anos de
cegueira. Tenho memórias e imagens mentais vívidas.
Minha mulher, que eu nunca vi — penso nela visualmente.
Meus filhos também. Vejo a mim mesmo visualmente —
mas é como da última vez em que me vi, quando tinha treze
anos, embora eü me desdobre para atualizar essa imagem.
Faço muitas conferências, e minhas anotações são em
braille; mas quando as repasso mentalmente, vejo-as de um
modo visual — são imagens visuais, não táteis.
Arlene Gordon, uma septuagenária que trabalhou como
assistente social, relatou uma situação bem parecida. Em suas
palavras: "Fiquei pasma quando li [o livro de Hull]. O caso
dele é muito diferente do meu". Como Dennis, ela ainda se
identifica, sob vários aspectos, como uma pessoa visual.
"Meu senso das cores é muito forte", ela disse. "Escolho o
que visto. Penso: ah, esta peça vai combinar com aquela,
assim que me dizem as cores." E de fato ela estava vestida
com muita elegância e tinha óbvio orgulho de sua aparência.
Ela ainda tinha muitas imagens visuais: "Se eu mover os
braços para a frente e para trás diante dos olhos, vejo-os,
apesar de ser cega há mais de trinta anos". Aparentemente,
mover seus braços traduzia-se em uma imagem mental.
Ouvir audiolivros, ela acrescentou, fazia seus olhos arderem
se ela os escutasse portempo demasiado; nessa atividade, ela
sentia que estava "lendo", pois o som das palavras faladas
transformava-se em linhas impressas em um livro que ela
visualizava vividamente diante de si.
O comentário de Arlene lembrou-me Amy, uma paciente
que ficara surda aos nove anos, mas era tão hábil em leitura
labial que eu frequentemente me esquecia de que ela não
escutava. Uma ocasião em que distraidamente virei o rosto
enquanto estava falando com ela, Amy reclamou: "Não
estou mais ouvindo".
"A senhora quer dizer que não está me vendo", corrigi.
"O senhor pode chamar isso de ver", ela replicou, "mas eu
sinto como ouvir."
Amy, embora fosse totalmente surda, ainda construía
mentalmente o som da fala. Tanto Dennis como Arlene
falaram de modo semelhante não só de uma intensificação
das imagens mentais e da imaginação depois de perderem a
visão, mas também do que parecia ser uma transferência
muito mais imediata de informações provenientes da
descrição verbal — ou de suas próprias sensações do tato,
movimento, audição ou olfato — para uma forma visual. De
modo geral, suas experiências pareciam muito semelhantes
às de Torey, embora não houvessem exercitado
sistematicamente sua capacidade de trabalhar com imagens
mentais como ele fizera, nem conscientemente tentado
criar um mundo visual totalmente virtual.
O que acontece quando o córtex visual deixa de ser limitado
ou compelido pela entrada de informações visuais? A
resposta simples é que, isolado do exterior, o córtex visual
torna-se hipersensível a todo tipo de estímulo interno: sua
própria atividade autônoma, sinais vindos de outras áreas
cerebrais — áreas auditivas, táteis e verbais —, e
pensamentos, memórias e emoções.
Torey, em contraste com Hull, teve um papel
acentuadamente ativo na construção de suas imagens
mentais, assumiu o controle delas no momento em que as
bandagens foram removidas. Talvez isso tenha ocorrido
porque ele já se sentia muito à vontade com a imagética
visual, e estava habituado a manipulá-la à seu modo.
Sabemos que Torey tinha uma forte propensão para o visual
antes do acidente, e que desde menino fora hábil em criar
narrativas visuais baseadas nos roteiros de cinema que seu
pai lhe dava para ler. (Não temos informações desse tipo sobre Hull, pois as anotações de seu diário só começam
quando ele fica cego.)
Torey precisou de meses de intensa disciplina cognitiva
dedicada a melhorar suas imagens mentais, torná-las mais
tenazes, mais estáveis e maleáveis, enquanto Lusseyran
parece ter feito isso desde o início. Esse fato talvez se
explique porque Lusseyran ainda não tinha oito anos quando
ficou cego (Torey tinha 21), e assim seu cérebro era mais
capaz de adaptar-se a uma nova e drástica contingência. Mas
a adaptabilidade não termina na juventude. É evidente que
Arlene, que ficou cega na casa dos quarenta, também foi
capaz de se adaptar de modos bem radicais, desenvolvendo a
habilidade de "ver" suas mãos movendo-se diante dela, de
"ver" as palavras dos livros que liam para ela, de construir
detalhadas imagens mentais a partir de descrições verbais.
Ficamos com a impressão de que, em grande medida, a
adaptação de Torey foi moldada por uma motivação
consciente, por vontade e propósito, enquanto a de
Lusseyran teve por base uma poderosa aptidão fisiológica, e
a de Arlene está em algum ponto entre esses dois processos.
A de Hull, por ora, permanece enigmática.
Em que medida essas diferenças refletem uma predisposição
básica, independente da cegueira? Será que as pessoas que
enxergam e são boas visuaiizadoras, que têm fortes
imagens mentais, manteriam ou até intensificariam seus
poderes imagéticos se ficassem cegas? Será que, por sua vez,
as pessoas que não têm boa capacidade de visualização
tendem a mergulhar na "cegueira profunda" ou a sofrer
alucinações se perderem a visão? Qual é a variação da
capacidade de visualizar imagens nas pessoas que enxergam?
Tomei consciência pela primeira vez das grandes variações
nas capacidades de visualização e memória visual quando
tinha uns catorze anos. Minha mãe era cirurgiã e especialista
em anatomia comparativa, e eu levei para ela um esqueleto
de lagarto que tinha pegado na escola. Ela o observou
atentamente por um minuto, virou-o nas mãos e em
seguida, sem tornar a olhar para ele, fez vários desenhos,
girando-o mentalmente cerca de trinta graus por vez. Assim
ela produziu uma série cujo último desenho era exatamente
igual ao primeiro. Eu não conseguia imaginar como ela fizera
isso. Quando ela explicou que podia ver o esqueleto em sua
mente, tão claro e vívido como se estivesse olhando para
ele, e que simplesmente fazia a rotação da imagem em um
duodécimo de círculo por vez, fiquei impressionado e me
senti muito estúpido. Não era capaz de visualizar quase nada
— no máximo, imagens tênues e evanescentes sobre as
quais eu não tinha controle.
Minha mãe torcia para que eu seguisse seus passos e me
tornasse um cirurgião, mas quando percebeu como eram
péssimas as minhas capacidades visuais (e como eu era
desajeitado, sem habilidade mecânica), resignou-se com a
ideia de que eu teria de me especializar em alguma outra
coisa.
Alguns anos atrás, em uma conferência médica em Boston,
falei sobre os casos de cegueira de Torey e Hull, contei
como Torey parecia ser "capacitado" pelos poderes de
visualização que ele desenvolvera e como Hull tornou-se
"deficiente" — ao menos em certos aspectos — com a perda
de sua capacidade de visualização de imagens e da memória
visual. Quando terminei de falar, um homem na plateia
pediu que eu fizesse uma estimativa do quanto as pessoas
com visão normal podiam se sair bem nas atividades da vida
sem a ajuda de imagens mentais. E prosseguiu dizendo que
ele não tinha nenhuma capacidade de visualização de
imagens, ou pelo menos nenhuma que ele pudesse evocar
deliberadamente, e que em sua família ninguém tinha. Ele
inclusive supunha que isso ocorria com todo mundo até que,
quando estudava em Harvard, participou de testes
psicológicos e descobriu que aparentemente era desprovido
de uma capacidade mental que todos os outros estudantes
possuíam em graus variados.
"E qual é a sua profissão?", perguntei, pensando o que será
que esse coitado pode fazer.
"Sou cirurgião", ele respondeu. "Cirurgião vascular. E
anatomista. E projeto painéis solares." Mas como, indaguei,
ele reconhecia o que estava vendo?
"Isso não é problema", ele explicou. "Suponho que devem
existir representações ou modelos no cérebro que
correspondam àquilo que eu estou vendo e fazendo. Mas
eles não são conscientes. Não consigo evocá-los."
Isso parecia incompatível com o caso de minha mãe. Ela
claramente tinha imagens mentais muito vívidas e podia
manipulá-las com facilidade, embora (agora eu refletia) isso
talvez fosse uma qualidade adicional, um luxo, e não um
pré-requisito para sua carreira de cirurgiã.
Será esse também o caso de Torey? Sua capacidade de
visualização tão desenvolvida, embora claramente seja uma
fonte de grande prazer, será mesmo tão indispensável
quanto ele a considera? Será que ele, na verdade, poderia ter
sido capaz de fazer tudo o que fez — marcenaria, conserto
do telhado, construção de um modelo da mente — sem
nenhuma visualização consciente de imagens? Ele próprio se
faz essa pergunta.
O papel das imagens mentais no pensamento foi analisado
por Francis Galton no livro "Inquiries into Human Faculty and
its Development", publicado em 1883. (Galton, primo de
Darwin, era um homem impetuoso de muitos interesses, e
seu livro inclui capítulos com temas bem diversificados,
entre eles impressões digitais, eugenia, apitos para cães,
criminalidade, gêmeos, sinestesia, medidas psicométricas e
genialidade hereditária.) Seu estudo das imagens mentais
voluntárias é apresentado em forma de questionário, com
perguntas como: "Você é capaz de visualizar distintamente
as feições de todos os seus parentes próximos e muitas outras
pessoas? Você consegue, se quiser, fazer sua imagem mental
[...] sentar-se, ficar em pé ou virar-se lentamente? Você é
capaz de [...] vê-la com suficiente nitidez para poder
desenhá-la com calma (supondo que saiba desenhar?)". O
cirurgião vascular seria uma lástima em testes como esse —
de fato, foram questões desse tipo que o desconcertaram
quando ele era estudante em Harvard. No entanto, no fim
das contas, que importância isso teve?
Quanto à significância da visualização de imagens, Galton é
ambíguo e cauteloso. Aventa, por um lado, que "os homens
de ciência, como classe, possuem débeis poderes de
representação visual", e por outro que "uma faculdade de
visualização vívida é de grande importância no que respeita
aos processos superiores de raciocínio generalizado". Em sua
opinião, "é indubitável o fato de que mecânicos, engenheiros e arquitetos geralmente possuem a faculdade de
ver imagens na mente com notável clareza e precisão", mas
acrescenta: "Entretanto, devo dizer que a faculdade faltante
parece ser substituída tão a contento por outrosmodos de
concepção [...] que os homens que se declaram totalmente
deficientes na capacidade de ver imagens na mente podem,
ainda assim, fornecer descrições verossímeis do que viram e
de outros modos expressar-se como se fossem dotados de
uma vívida imaginação visual. Também eles podem tornar-se pintores dignos da Academia Real".
Uma imagem mental, para Galton, consistia na visualização
de uma pessoa ou um lugar conhecido: era a reprodução ou
reconstituição de algo vivenciado. No entanto, também
existem imagens mentais de um tipo muito mais abstrato e
visionário, imagens de algo que nunca foi visto pelo olho
físico mas que podem ser conjuradas pela imaginação
criativa e servem de modelo para investigar a realidade.
Em seu livro Image and reality: Kekulé, Kopp, and the
scientific imagination, Alan Rocke ressalta o papel crucial
dessas imagens e modelos na vida criativa de cientistas,
especialmente químicos do século XIX. Discorre
especialmente sobre August Kekulé e seu famoso devaneio,
andando de ônibus em Londres uma ocasião, que o levou a
visualizar a estrutura de uma molécula de benzeno, um
conceito que revolucionaria a química. Embora as ligações
químicas sejam invisíveis, eram para Kekulé tão reais, tão
visualmente imagináveis quanto as linhas de força em torno
de um ímã para Faraday. Kekulé afirmou ter "uma necessidade irresistível de visualização".
De fato, é muito difícil conversar sobre química sem usar
tais imagens e modelos, e em "Mindsight" o filósofo Colin
McGinn escreve: "As imagens não são apenas variações
secundárias da percepção e raciocínio, de interesse teórico
desprezível; elas são uma robusta categoria mental que pede
uma investigação independente. [...] As imagens mentais
[...] deveriam ser adicionadascomo uma terceira grande
categoria [...] aos pilares gêmeos da percepção e cognição".
Algumas pessoas, como Kekulé, têm claramente uma grande
capacidade de visualização nesse sentido abstrato, mas a
Maioria de nós usa alguma combinação de visualização experiencial (a imagem mental da nossa casa, por exemplo) e
visualização abstrata (imaginar a estrutura de um átomo).
Temple Grandin, por sua vez, julga que seu tipo de
visualização é diferente. Ela raciocina totalmente com base
em imagens exatas do que já viu, como se olhasse uma
fotografia bem conhecida ou tivesse um filme rodando em
sua cabeça. Quando imagina o conceito de "céu", por
exemplo, sua associação instantânea é com o filme Stairway
to heaven, e a imagem em sua mente é a de uma escada que
sobe até as nuvens. Se alguém comenta que o dia está
chuvoso, ela visualiza uma determinada "fotografia" de
chuva, sua própria representação literal e icônica de um dia
chuvoso. Como Torrey, ela tem grande capacidade de
visualização; sua memória visual extremamente acurada
permite-lhe andar mentalmente por uma fábrica que ela está
projetando, notando os detalhes estruturais mesmo antes de
o projeto ser construído. Quando menina, ela supunha que
era assim que todo mundo pensava, e hoje ainda se espanta
com a idéia de que alguém não consegue evocar imagens
mentais como bem entender. Quando lhe contei que eu não
era capaz de fazer tal coisa, ela perguntou: "Mas então como
é que você pensa?".
Quando falo com uma pessoa, cega ou não, ou quando tento
pensar em minhas representações internas, não sei se
palavras, símbolos e imagens de vários tipos são as principais
ferramentas de pensamento ou se existem formas de
pensamento que antecedem tudo isso, formas de
pensamento essencialmente amodais. Alguns psicólogos
falam em "interlíngua" ou "mentalês", que para eles é a
linguagem própria do cérebro, e o grande psicólogo russo
Lev Vygotsky falava em "pensar em significados puros". Não
consigo decidir se isso é uma verdade profunda ou se carece
de sentido — é o tipo de recife onde encalho quando penso
sobre o pensar.
O próprio Galton ficava perplexo quando o assunto era a
imagética visual: ela era variadíssima e, embora às vezes
parecesse uma parte essencial do pensamento, outras vezes
parecia irrelevante. Essa incerteza caracteriza o debate sobre
as imagens mentais desde então. Um contemporâneo de
Galton, o pioneiro psicólogo experimental Wilhelm Wundt,
guiado pela introspecção, achava que visualizar imagens era
uma parte essencial do pensamento. Outros afirmaram que o
pensamento era desprovido de imagens e consistia
inteiramente em proposições analíticas ou descritivas; já os
behavioristas não davam importância alguma ao pensamento
— só o que existia era o "comportamento". Seria a
introspecção, sozinha, um método confiável de observação
científica? Poderia produzir dados consistentes,
reproduzíveis, mensuráveis? Só no começo dos anos 1970
uma nova geração de psicólogos mergulhou nessas questões.
Roger Shepard e Jacqueline Metzler pediram a sujeitos em
um experimento que realizassem tarefas mentais que
requeriam fazer a rotação, em pensamento, da imagem de
uma figura geométrica — o tipo de rotação imaginária que
minha mãe fez quando desenhou de memória o esqueleto
do lagarto. Nesses primeiros experimentos quantitativos, eles
conseguiram determinar que girar uma imagem requeria
intervalos de tempo diferentes — tempos proporcionais ao
grau de rotação. Fazer uma rotação de sessenta graus em
uma imagem, por exemplo, levava duas vezes mais tempo
do que girá-la em trinta graus, e noventa graus de rotação
demoravam três vezes mais. A rotação mental tinha uma
velocidade, era contínua e constante, e demandava esforço,
como qualquer ato voluntário.
Stephen Kosslyn abordou o tema da visualização de imagens
de outro ângulo, e em 1973 publicou um artigo fundamental
contrastando o desempenho de "imaginadores" e
"verbalizadores" a quem foi pedido que lembrassem uma
série de desenhos. Kosslyn tinha a hipótese de que, se as
imagens internas fossem espaciais e organizadas como
figuras, os "imaginadores" deveriam ser capazes de focalizar
seletivamente uma parte da imagem e que seria preciso
tempo para que transferissem a atenção de uma parte da
imagem para outra. O tempo requerido, ele supôs, seria
proporcional à distância que o "olhar da mente" precisava
viajar.
Kosslyn conseguiu demonstrar que tudo isso era verdade,
indicando que as imagens mentais são essencialmente
espaciais e organizadas no espaço como figuras. Seu trabalho
revelou-se muito fecundo, mas o debate em curso sobre o
papel da imagética visual prossegue. Zenon Pylyshyn e
outros afirmam que fazer a rotação mental de imagens e
"escaneá-las" poderia ser interpretado como resultado de
operações não visuais puramente abstratas na
mente/cérebro.
Nos anos 1990, Kosslyn e outros conseguiram combinar
experimentos sobre visualização de imagens com exames de
tomografia (pet) e ressonância magnética funcional. Com
isso, puderam mapear as áreas cerebrais envolvidas na
execução de tarefas que exigem visualizar imagens. A
visualização de imagens, eles concluíram, ativa muitas das
mesmas áreas do córtex visual ativadas pela percepção, e isso
mostra que as imagens mentais são uma realidade fisiológica
além de psicológica, e que elas usam no mínimo alguns dos
mesmos trajetos neurais que a percepção visual.
Estudos clínicos também indicam que a percepção e a
visualização de imagens têm uma base neural comum nas
partes visuais do cérebro. Em 1978, Eduardo Bisiach e
Cláudio Luzzatti, na Itália, relataram os casos de dois
pacientes que passaram a sofrer de hemianopia depois de um
derrame, e não eram mais capazes de enxergar à direita.
Quando lhes pediam para imaginar a si mesmos andando por
uma rua bem conhecida e descrever o que viam, eles
mencionavam apenas as lojas do lado direito da rua; mas se
depois lhes fosse pedido que fizessem meia-volta e
percorressem o caminho no sentido oposto, eles então
descreviam as lojas que não tinham "visto" antes, as que
agora se encontravam do seu lado direito. Esses casos
magnificamente estudados mostram que uma hemianopia
pode causar não só a bissecção do campo visual, mas
também uma bissecção das imagens mentais.
Esse tipo de observações clínicas sobre os paralelos entre a
percepção visual e a visualização de imagens já é feito há no
mínimo um século. Em 1911, os neurologistas ingleses
Henry Head e Gordon Holmes examinaram vários pacientes
com pequenas lesões nos lobos occipitais — lesões que não
acarretaram a cegueira total, apenas pontos cegos no campo
visual. Constataram, questionando meticulosamente os
pacientes, que nas suas imagens mentais ocorriam pontos
cegos exatamente no mesmo local. E em 1922 Martha Farah
et al. relatou que, em um paciente que perdera parcialmente
a visão de um lado em decorrência de uma lobectomia
occipital, o ângulo visual em suas imagens mentais também
estava reduzido, e de um modo que condizia inteiramente
com sua perda perceptual.
Para mim, a mais convincente demonstração de que ao menos alguns aspectos das imagens mentais e da percepção
visual podem ser inseparáveis ocorreu em 1986, quando
examinei o sr. I., um artista que se tornou completamente
cego para as cores em consequência de uma lesão na
cabeça. Ele se afligiu com a súbita incapacidade de
perceber as cores, e ainda mais com sua total incapacidade
de evocá-las na memória e em imagens mentais. Até suas
ocasionais enxaquecas visuais passaram a ser desprovidas de
cor. Pacientes como o sr. I. sugerem que a conexão entre
percepção e imagens mentais é muito intensa nas partes
superiores do córtex visual.
Ter características em comum, e até compartilhar áreas ou
mecanismos neurais, é uma coisa, mas Kosslyn e outros vão
além e aventam que a percepção visual depende das imagens
mentais, fazendo uma correspondência entre o que o olho
vê, as informações enviadas pela retina e as imagens da
memória no cérebro. O reconhecimento visual, para esses
cientistas, não poderia ocorrer sem essa correspondência.
Kosslyn supõe, além disso, que visualizar imagens pode ser
crucial para o próprio raciocínio — resolver problemas,
planejar, projetar, teorizar. Essa hipótese encontra apoio em
estudos que pediram a pessoas para responder a perguntas
que pareciam requerer visualização de imagens — por
exemplo: "Qual verde é mais escuro, o de uma ervilha congelada ou o de um pinheiro?", "Qual é a forma das orelhas do
Mickey Mouse?", "Em que mão a Estátua da Liberdade
segura a tocha?" — ou que resolvessem problemas cuja
solução pode ser obtida por meio da visualização de imagens
ou de um pensamento não visual mais abstrato. Kosslyn fala
aqui em duplicidade no modo como as pessoas pensam,
contrastando o uso das representações "figurativas", que são
diretas e imediatas, com as "descritivas", que são analíticas e
mediadas por símbolos verbais ou de outros tipos. Em alguns
casos, ele supõe, um modo será preferido ao outro,
dependendo do indivíduo e do problema a ser resolvido. Às
vezes ambos os modos ocorrerão lado a lado (embora a
representação por imagem provavelmente seja mais rápida
do que a descrição) e em outras ocasiões pode-se começar
com uma representação figurativa — imagens — e passar a
uma representação puramente verbal ou matemática.
Que dizer, então, de pessoas como eu, ou como o cirurgião
vascular de Boston que não consegue evocar
voluntariamente nenhuma imagem mental? Devemos
inferir, como meu colega bostoniano, que nós também
temos imagens mentais, modelos e representações no
cérebro, imagens que permitem a percepção e o
reconhecimento visual, mas ficam abaixo do limiar da
consciência.
Se o papel central das imagens mentais é permitir a percepção e o reconhecimento visual, para que elas servem se a
pessoa ficar cega? E o que acontece a seus substratos neurais,
as áreas visuais que ocupam quase metade de todo o córtex
cerebral? Sabemos que em adultos que perdem a visão pode
ocorrer alguma atrofia nos trajetos e centros de
retransmissão que vão da retina ao córtex cerebral — mas há
pouca degeneração do córtex visual em si. Exames de
ressonância magnética funcional do córtex visual não
mostram diminuição de atividade em tal situação; na
verdade, vemos o inverso: eles revelam atividade e sensibilidade intensificadas. O córtex visual, privado da entrada
de informações provenientes da visão, continua a ser um
bom terreno neural, vago e clamando por uma nova função.
Em alguém como Torey, isso pode liberar mais espaço
cortical para as imagens mentais; em alguém como Hull,
relativamente mais pode ser usado por outros sentidos —
percepção e atenção auditiva, talvez, ou percepção e atenção
táteis.
Esse tipo de ativação modal cruzada pode ser um fator para
explicar por que alguns cegos, como Dennis Shulman,
"vêem" braille quando lêem com o dedo. Isso pode ser mais
do que mera ilusão ou uma metáfora elegante: talvez seja
reflexo do que realmente está ocorrendo no cérebro dessa
pessoa, pois segundo Sa-dato, Pascual-Leone et ah, há boas
evidências de que ler em braille pode ativar intensamente as
partes visuais do córtex. Essa ativação, mesmo na ausência
de informações captadas pela retina, pode ser uma parte
crucial da base neural das imagens mentais.
Dennis também relatou que a intensificação de seus outros
sentidos aumentara sua sensibilidade às nuances mais
delicadas da fala e autoapresentação das pessoas. Ele podia
reconhecer muitos de seus pacientes pelo cheiro, declarou,
e frequentemente era capaz de captar estados de tensão ou
ansiedade ignorados pelo próprio paciente. Achava que se
havia tornado muito mais sensível aos estados emocionais
dos outros desde que perdera a visão, pois agora já não
prestava atenção à aparência visual, que muitos de nós
aprendem a camuflar. Em contraste, vozes e odores podiam
revelar o íntimo das pessoas.
O robustecimento de outros sentidos com a cegueira
permite várias adaptações notáveis, entre elas a "visão facial",
a capacidade de usar indicações sonoras ou táteis para sentir
a forma ou tamanho de um espaço e das pessoas ou objetos
que ele contém.
O filósofo Martin Milligan, que teve os dois olhos removidos
aos dois anos de idade em decorrência de tumores malignos,
escreveu sobre seu caso:
Cegos congênitos com audição normal não ouvem apenas
sons: eles podem ouvir objetos (isto é, têm consciência deles
principalmente através dos ouvidos) quando estes se
encontram razoavelmente próximos, contanto que não
estejam baixo demais; e do mesmo modo podem "ouvir"
parte da forma de seu ambiente imediato. [...] Posso ouvir
objetos silenciosos, como postes de iluminação e carros
estacionados com o motor desligado, conforme me
aproximo deles e os deixo para trás, pois, sendo ocupantes
de espaço, eles adensam a atmosfera, quase certamente por
causa do modo como absorvem e/ou ecoam os sons dos
meus passos e outros pequenos sons. [...] Em geral não é
necessário que eu mesmo produza sons para obter essa
percepção, embora ajude. Objetos na altura da cabeça
provavelmente afetam um pouco as correntes de ar que
chegam ao meu rosto, o que contribui para que eu me
aperceba deles — razão por que alguns cegos se referem a
esse tipo de percepção como seu "sentido facial".
O máximo desenvolvimento da visão facial tende a ser
encontrado em pessoas que nasceram cegas ou perderam a
visão em tenra idade; para o escritor Ved Mehta, que é cego
desde os quatro anos, ela é tão desenvolvida que ele
caminha depressa e confiantemente sem bengala, e às vezes
as pessoas demoram a perceber que ele não enxerga.
Embora o som dos próprios passos ou da bengala possa ser
suficiente, já foram relatadas outras formas de
ecolocalização. Ben Underwood desenvolveu uma espantosa
estratégia semelhante à dos golfinhos: emitia estalos
regulares com a boca e interpretava acuradamente os ecos
resultantes dos objetos próximos. Tamanha era sua
habilidade de se mover dessa maneira que ele era capaz de
participar de esportes coletivos e até de jogar xadrez.
Muitos cegos dizem que usar bengala ajuda-os a "enxergar" o
ambiente onde estão, pois o tato, a ação e o som são
imediatamente transformados em um quadro "visual". A
bengala funciona como uma substituição ou extensão
sensitiva. Mas é possível dar a um cego uma imagem mais
detalhada do mundo usando tecnologia mais moderna? Paul
Bach-y-Rita foi pioneiro nesse campo e passou décadas
testando os mais diversos tipos de substituto sensitivo,
embora seu interesse especial fosse desenvolver dispositivos
que pudessem ajudar os cegos fazendo uso de imagens táteis.
(Em 1972 ele publicou um livro presciente no qual fez um
levantamento de todos os mecanismos cerebrais que possam
permitir uma substituição sensorial. Essa substituição, ele
ressaltou, dependeria da plasticidade do cérebro — e a idéia
de que o cérebro tinha algum grau de plasticidade era
revolucionária na época.)
Bach-y-Rita pensou na possibilidade de conectar à pele a
saída de dados de uma câmera de vídeo, ponto por ponto,
permitindo a um cego formar uma "imagem tátil" de seu
ambiente. Isso poderia funcionar, ele pensou, pois as
informações táteis são organizadas topograficamente no
cérebro, e a acurácia topográfica é essencial para a formação
de uma imagem quase virtual. Finalmente ele passou a usar
minúsculas placas com cerca de uma centena de eletrodos
na parte mais sensível do corpo, a língua. (A língua possui a
Maior densidade de receptores sensitivos do corpo, e além
disso ocupa, proporcionalmente, a Maior quantidade de
espaço no córtex sensitivo. Isso a torna singularmente
adequada à substituição sensitiva.) Com esse dispositivo, do
tamanho de um selo postal, os sujeitos de seu experimento
puderam formar na língua uma "imagem" útil, apesar de
imprecisa.
Ao longo dos anos esses dispositivos foram ganhando
complexidade, e hoje novos protótipos possuem entre
quatro e seis vezes a resolução da primeira versão de Bach-y-Rita. Volumosos cabos de câmera foram substituídos por
óculos equipados com minicâmeras, permitindo aos sujeitos
dirigir a câmera de um modo mais natural, com movimentos
da cabeça. Com esse recurso, cegos conseguem andar por
um cômodo que não seja atravancado demais ou apanhar
uma bola que venha rolando em sua direção.
Isso significa que eles agora estão "vendo"? Certamente estão
apresentando o que os behavioristas chamam de
"comportamento visual". Bach-y-Rita descreveu como seus
sujeitos aprenderam "a fazer avaliações perceptuais usando
meios visuais de interpretação, como perspectiva, paralaxe,
aproximação e afastamento do alvo e estimativas de
profundidade". Muitas dessas pessoas sentiram-se como se
estivessem novamente enxergando, e exames de ressonância
magnética funcional mostraram forte ativação de áreas
visuais no cérebro enquanto elas estavam "vendo" com a
câmera. ("Ver" ocorria particularmente quando os sujeitos
eram capazes de mover voluntariamente a câmera, apontá-la
para um lado e para o outro, olhar com ela. Olhar era crucial,
pois não há percepção sem ação, não há ver sem olhar.)
Restaurar a visão de quem alguma vez a teve, seja por meios
cirúrgicos, seja por um dispositivo de substituição sensitiva,
é uma coisa, pois essa pessoa teria um córtex visual intacto e
uma vida inteira de memórias visuais. Mas outra coisa é dar a
visão a alguém que nunca enxergou, nunca experimentou
luz ou imagens. Isso poderia parecer impossível,
considerando o que agora sabemos sobre os períodos
críticos do cérebro e a necessidade depelo menos alguma
experiência visual nos dois primeiros anos de vida para
estimular o desenvolvimento do córtex visual. (Entretanto, o
trabalho recente de Pawan Sinha e outros indica que o
período crítico talvez não seja tão crítico como se
pensava). Foram feitas tentativas de dar visão lingual
também a cegos congênitos, com algum êxito. Uma jovem
musicista, que nasceu cega, disse que "viu" os gestos do
maestro pela primeira vez na vida. Embora o córtex visual
em cegos congênitos tenha um volume mais de 25% menor,
aparentemente ele ainda pode ser ativado por substituição
sensorial, o que foi confirmado, em vários casos, por exames
de ressonância magnética funcional.
Há evidências crescentes de que são extraordinariamente
ricas as interconexões e interações das áreas sensitivas do
cérebro, portanto é difícil dizer se alguma coisa é puramente
visual, puramente auditiva ou puramente qualquer coisa. O
mundo dos cegos pode ser especialmente rico desses estados
intermediários — o intersensitivo, o metamodal —, estados
para os quais não possuímos uma linguagem comum.
"On Blindness" é uma troca de cartas entre o filósofo cego
Martin Milligan e outro filósofo, Bryan Magee. Embora seu
mundo não visual lhe pareça coerente e completo, Milligan
percebe que as pessoas que vêem têm acesso a um sentido, a
um modo de conhecimento, que lhe é negado. Mas assevera
que os cegos congênitos podem ter (e geralmente têm)
experiências perceptuais ricas e variadas, mediadas pela
linguagem e por imagens mentais de um tipo não visual.
Podem ter, portanto, imagens mentais auditivas ou imagens
mentais olfativas. Mas será que têm imagens mentais do tipo
visual, um "olhar da mente"?
Nesse ponto Milligan e Magee não conseguem chegar a um
consenso. Magee afirma que Milligan, um cego, não pode
ter um verdadeiro conhecimento do mundo visual. Milligan
discorda e garante que embora a linguagem apenas descreva
pessoas e eventos, ela às vezes representa a experiência
direta ou o conhecimento.
Nota-se que muitas crianças que nasceram cegas possuem
memória superior e são verbalmente precoces. Podem
desenvolver uma fluência tão extraordinária na descrição de
rostos e lugares que os outros (e elas próprias) acabam em
dúvida de que sejam realmente cegas. Os escritos de Helen
Keller são um famoso exemplo que nos surpreende com sua
brilhante qualidade visual.
Quando era menino, eu adorava ler "Conquest of México" e "Conquest of Peru", de Prescott. Achava que "via" aqueles
lugares graças às descrições intensamente visuais, quase
alucinógenas do autor. Anos depois, espantei-me ao
descobrir que não só Prescott jamais estivera no México e
no Peru, mas ainda por cima ele havia sido praticamente
cego desde os dezoito anos. Será que ele, como Torey,
compensou a cegueira desenvolvendo incríveis poderes de
imaginação visual, ou será que suas brilhantes descrições
visuais eram, de certo modo, simuladas, possibilitadas pelos
poderes evocativos e pictóricos da linguagem? Em que grau
a descrição, a imagem posta em palavras, pode funcionar
como substituto para o ato real de ver ou para a imaginação
visual pictórica?
Depois de ficar cega na casa dos quarenta, Arlene Gordon
descobriu que a linguagem e a descrição eram cada vez mais
importantes, pois estimulavam sua capacidade de lidar com
imagens mentais mais do que antes e, em certo sentido,
permitiam-lhe ver. "Adoro viajar", ela me disse. "Eu vi
Veneza quando estive lá." Ela explicou que seus
companheiros de viagem descreviam os lugares, e ela então
construía uma imagem mental baseada nos detalhes que eles
lhe forneciam, em suas leituras e em suas próprias memórias
visuais. "Pessoas que vêem têm prazer em viajar comigo",
ela comentou. "Faço perguntas, e elas então olham e vêem
coisas que, se não fosse por mim, passariam despercebidas. É
tão comum pessoas que têm visão não verem nada! É um
processo recíproco — enriquecemos mutuamente os nossos
mundos."
Temos aqui um paradoxo — delicioso — que não consigo
resolver: se de fato existe uma diferença fundamental entre a
vivência e a descrição, entre o conhecimento direto e o
conhecimento mediado do mundo, por que então a
linguagem é tão poderosa? A linguagem, a mais humana das
invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não
deveria ser possível. Pode permitir a todos nós, inclusive os
cegos congênitos, ver com os olhos de outra pessoa.
FIM
Oliver Sacks -
nascido em Londres, em 1933 - é um neurologista britânico cujos livros,
alguns sobre os seus próprios doentes, se tornaram best-sellers da
literatura e êxitos do cinema. Licenciou-se em Medicina em 1958, na
Universidade de Oxford. É professor de Psiquiatria na Universidade de
Columbia.
-
Migraine, 1970 (Enxaqueca)
-
Awakenings, 1973 (Tempo de despertar)
-
A Leg to Stand on, 1984
(Com uma perna só)
-
The Man who Mistook his Wife for a Hat, 1985 (O homem que confundiu sua mulher com um chapéu)
-
Seeing voices: A Journey into the Land of the Deaf, 1989 (Vendo vozes: Uma viagem ao mundo
dos surdos)
-
An Anthropologist on Mars, 1995 (Um antropólogo em Marte)
-
The Island of the Colorblind, 1997 (A ilha dos daltônicos)
-
Uncle Tungsten: Memories of a chemical boyhood, 2001 (Tio Tungstênio:
Memórias de uma infância química)
-
Oaxaca Journal (2002)
-
Musicophilia, 2007 (Alucinações Musicais)
-
The Mind's Eye, 2010 (O Olhar da Mente)
ϟ
O Olhar da Mente
título original: The Mind's Eye
Oliver Sacks
Tradução: Laura Teixeira Motta
Companhia das Letras, 2010
Digitalização, formatação e revisão - Lúcia Garcia
Fonte: Grupo Génesis do Conhecimento
13.Fev.2011
Publicado por
MJA
|