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excerto
O espetáculo de um tribunal repleto de eleitores
qualificados era o bastante para aquecer o coração de qualquer detentor de um
cargo de eleição e o Meritíssimo não conteve um largo sorriso ao receber o
jurados nos seus domínios, como se fossem todos voluntários. O sorriso
desapareceu lentamente quando terminou o breve discurso de boas-vindas,
enfatizando a importância das suas presenças. Harkin não se distinguia nem pelo
calor humano que irradiava nem pelo bom humor, e rapidamente ficou sério.
Aliás, tinha uma boa razão para isso. À sua frente estavam
mais advogados do que geralmente se via nas mesas de acusação e defesa. Os autos
do tribunal tinham averbada uma relação de oito advogados de acusação e nove de
defesa. Quatro dias antes, num tribunal fechado, Harkin tinha designado os
lugares para ambos os lados. Uma vez escolhido o júri, apenas os advogados de
cada uma das partes teriam assento naquelas mesas. Os outros teriam de ficar na
fila de cadeiras onde os consultores de júri se sentavam agora, muito atentos.
Também estipulou lugares para as partes: Celeste Wood, a viúva, e o
representante da Pynex. A disposição dos lugares foi anotada por escrito e
incluída num pequeno caderno de regras redigido especialmente para a ocasião
pelo Meritíssimo.
Desde que tinha dado entrada na justiça que o processo
era ativamente acompanhado e defendido. Passados quatro anos ocupava onze caixas
de arquivo de processos. Para chegar até ali, cada uma das partes gastara
milhões.
O julgamento deveria durar pelo menos um mês. Naquele
exato momento, e naquela sala do tribunal, estavam reunidos alguns dos maiores
egos e das mentes mais brilhantes do país. Fred Harkin estava resolvido a
dirigir o julgamento com mão de ferro.
Falando ao microfone, e apenas com o propósito de
informar, fez uma rápida sinopse do julgamento. Era importante assegurar que
todos percebessem porque estavam ali. Disse que o julgamento devia durar algumas
semanas e que os jurados não seriam isolados. Explicou ainda que havia uma
legislação especial para isentar um jurado do seu dever e perguntou se por acaso
o computador tinha deixado passar alguém com mais de sessenta e cinco anos.
Ergueram-se seis mãos.
Parecendo surpreendido, Harkin olhou para Glória Lane que
encolheu os ombros como se fosse uma ocorrência apenas normal. Desde que
quisessem, podiam sair imediatamente. Cinco aceitaram. Restavam por isso cento e
oitenta e nove potenciais jurados. Os consultores tomaram nota e riscaram os
cinco nomes. Os advogados, muito sérios, também tomaram notas.
- Agora, está presente algum cego? - perguntou o juiz. -
Quero dizer, legalmente cego? - Era uma pergunta bem-humorada e provocou alguns
sorrisos. Porque razão haveria um cego de se apresentar como jurado? Não havia
precedentes na matéria.
Lentamente, levantou-se uma mão no seio do grupo, no meio
da sétima fila. O jurado número sessenta e três, senhor Herman Grimes, cinqüenta
e nove anos, programador de computadores, branco, casado, sem filhos. Que diabo
era aquilo? Os especialistas, em ambos os lados, juntaram as cabeças. As
fotografias do processo de Herman Grimes mostravam a sua casa e havia uma ou
duas dele na varanda da frente. Morava no bairro há mais ou menos três anos. Os
formulários a seu respeito não indicavam nenhuma deficiência física.
- Levante-se, por favor - disse o juiz.
O senhor Herman Grimes, vestido informalmente,
levantou-se devagar, as mãos nos bolsos e com óculos aparentemente normais. Não
parecia cego.
- O seu número, por favor - pediu o juiz. Ao contrário
dos advogados e dos seus consultores, o juiz não tinha necessidade de memorizar
as informações sobre cada um dos jurados.
- Hum, sessenta e três.
- E o seu nome é? - O juiz folheava a pilha de impressos
de computador.
- Herman Grimes.
Harkin encontrou o nome e ergueu os olhos para o mar de
rostos.
- E o senhor é legalmente cego?
- Sim, senhor.
- Muito bem, senhor Grimes, de acordo com a nossa lei,
está dispensado do dever de jurado. Pode ir.
Herman Grimes não se mexeu, não saiu. Olhou para o pouco
que podia ver e disse.
- Porquê?
- Desculpe?
- Por que é que tenho de ir embora?
- Porque o senhor é cego.
- Isso sei eu.
- Bem, as pessoas cegas não podem servir como jurados -
disse Harkin, olhando para a direita, depois para a esquerda. - Pode ir, senhor
Grimes.
Herman Grimes hesitou, pensando numa resposta. A sala
estava silenciosa. Finalmente perguntou.
- Quem é que disse que os cegos não podem ser jurados?
Harkin estendeu a mão para um livro de Direito. O
Meritíssimo preparara-se escrupulosamente para aquele julgamento. Há
precisamente um mês que não presidia a nenhum outro caso e, isolado na sua sala,
dedicou-se ao estudo de petições, de procedimentos probatórios, da lei aplicável
e de tudo o que demais recente havia nas normas de procedimentos no tribunal.
Tinha escolhido dezenas de júris, todos os tipos de júris, para todos os tipos
de casos, e achava que tinha visto de tudo. E agora estava sendo encostado à
parede nos primeiros dez minutos da escolha do júri. E, como se não bastasse, o
tribunal estava superlotado.
- O senhor quer ser jurado, senhor Grimes? - perguntou
ele, forçando uma atitude bem-humorada enquanto folheava as páginas do livro e
olhava para a riqueza de talentos legais à sua frente.
O senhor Grimes começava a demonstrar hostilidade.
- Quero que me diga porque é que um cego não pode ser
jurado. Se estiver escrito na lei, então a lei é discriminatória e eu movo um
processo. Se não está escrito na lei, e é apenas uma questão de uso, então movo
um outro processo, e mais rapidamente ainda.
Não restaram dúvidas de que o senhor Grimes tinha alguns
conhecimentos sobre litígios judiciais.
De um lado da balaustrada de madeira estavam duzentas
pessoas comuns, pessoas levadas ao tribunal pela atração do poder da lei. Do
outro estava a própria lei - o juiz, numa cadeira mais alta do que as do resto
da sala, as arrogantes equipas de advogados, os funcionários do tribunal, os
policiais, os meirinhos. Em nome dos convocados, o senhor Herman Grimes acabava
de desferir um tremendo golpe contra o sistema e foi recompensado com risos
abafados e risotas dos seus colegas. Grimes não pareceu importar-se.
Do outro lado, os advogados sorriam porque os potenciais
jurados pulavam sorrindo, mexendo-se nas cadeiras e coçando a cabeça. Murmuravam
uns para os outros: "Nunca vi nada assim."
A lei dizia que uma pessoa cega podia ser dispensada do
júri e,assim que o juiz viu a palavra PODIA, resolveu rapidamente acalmar o
senhor Grimes e deixar o seu caso para mais tarde. Não fazia sentido ser
processado no seu próprio tribunal. Havia outros meios de excluí-lo do Júri .
Discutiria isso mais tarde com os advogados.
- Pensando melhor, senhor Grimes, acho que o senhor seria
um excelente jurado. Agora sente-se, por favor.
Herman Grimes fez um gesto afirmativo, sorriu e disse
cortesmente.
- Muito obrigado, senhor doutor juiz.
Como é que se avalia um jurado cego? Os especialistas
ruminavam a questão, enquanto viam Grimes curvar lentamente o corpo e sentar-se.
Quais seriam os preconceitos de um cego? Que lado iria ele favorecer? Num jogo
sem regras, um axioma muito conhecido dizia que as pessoas com deficiências e
desvantagens eram ótimos jurados para os queixosos porque compreendiam melhor o
significado do sofrimento. Mas havia inúmeras exceções.
Na última fila, Rankin Fitch esticou o pescoço para a
direita, na tentativa vã de captar a atenção de Carl Nussman, o homem que já
havia recebido um milhão e duzentos mil dólares para escolher o júri perfeito.
Nussman estava no meio dos seus consultores, segurando um bloco de notas e
estudando os rostos, como se desde o princípio soubesse que Herman Grimes era
cego. Acontece que isso não era verdade, e Fitch sabia perfeitamente. Era apenas
um fato sem importância que havia escapado na sua vasta teia de investigação.
Que mais terão eles deixado passar, pensou Fitch. E ia esfolar Nussman vivo, e
logo no primeiro intervalo do julgamento.
- Agora, senhoras e senhores - continuou o juiz, de
repente com a voz agressiva e, agora que o perigo de um processo imediato de
discriminação tinha passado, ansioso por prosseguir - entramos na primeira fase
da seleção do júri, fase que deverá levar algum tempo. Trataremos de doenças
físicas que podem excluir algum dos convocados. Não vamos embaraçar ninguém, mas
se houver algum caso de deficiência física, temos de discuti-la. Começaremos com
a primeira fila.
Glória Lane ficou de pé ao lado da primeira fila e um
homem de uns sessenta anos ergueu o braço, levantou-se e saiu pelo pequeno
portão que dividia a sala em duas partes. Um meirinho conduziu-o ao banco das
testemunhas e empurrou o microfone para longe. O juiz sentou-se na ponta da
cadeira e inclinou-se para falar em voz baixa com o homem. Dois advogados, um de
cada lado, tomaram posição em frente da cadeira da testemunha, tapando a vista
do público. A estenografa completou o grupo fechado e o juiz perguntou
suavemente qual era o problema do homem.
Era uma hérnia discal e tinha uma carta do médico. Foi
dispensado e saiu apressadamente da sala.
Quando Harkin interrompeu os trabalhos para almoço, já
tinha dispensado treze pessoas por motivos médicos. O tédio era geral.
Recomeçariam à uma e meia, para fazer mais ou menos a
mesma coisa.
Nicholas Easter saiu sozinho do tribunal, andou seis
quarteirões até um Burger King, onde pediu um Whooper e uma coca-cola. Sentou-se
ao lado da janela, vendo as crianças brincando no balanço, lendo o USA Today e
comendo devagar porque tinha uma hora e meia.
A mesma loura que tinha estado na Computer Hut com jeans
muito justos vestia agora calças e uma camisa larga, Nikes novos e um pequeno
saco de ginástica pendurado no ombro. Encontrou Nicholas pela segunda vez quando
passou pela sua mesa com a bandeja e parou.
- Nicholas - disse ela, fingindo incerteza.
Nicholas olhou para ela e, por uma embaraçosa fração de
segundo, teve certeza de já a ter visto em algum lugar, mas não se lembrava do
nome.
- Não se lembra de mim? - disse ela, com um sorriso
simpático. - Estive na Computer Hut há duas semanas, à procura de...
- Sim, sim, claro que me lembro - olhou rapidamente para
as pernas bronzeadas de sol -, comprou um rádio digital.
- Isso mesmo. Chamo-me Amanda. Se não estou errada, até
lhe dei o meu número de telefone. Aposto que o perdeu...
- Não quer sentar?
- Obrigada - sentou-se rapidamente e pegou uma batata
frita.
- Ainda tenho o seu número de telefone - disse ele. - Na
verdade...
- Não se preocupe. Tenho certeza de que ligou várias
vezes. O minha secretária eletrônica está quebrada.
- Não. Ainda não telefonei. Mas estava pensando em
telefonar.
- Imagino - disse ela, e quase riu. Tinha dentes
perfeitos que mostrava com prazer e o cabelo preso em um rabo-de-cavalo. Era
graciosa e bem feita demais para praticar corrida. E, além disso, não tinha o
menor sinal de suor no rosto.
- Então, o que faz por aqui? - perguntou-lhe ele.
- Vou para a minha aula de aeróbica.
- E come batatas fritas antes da aeróbica?
- Porque é que não deveria comer?
- Não sei. Parece um bocado esquisito.
- Também é preciso comer carboidratos.
- Claro. E também fuma antes da aeróbica?
- Às vezes. Por isso é que não me telefonou? Porque eu
fumo?
- Na verdade, não.
- Diga a verdade, Nicholas. Não me vou ofender - disse
ela, sempre sorrindo e tentando parecer tímida.
- Tudo bem, passou-me isso pela cabeça.
- Foi o que pensei. Já namorou alguma vez com uma
fumante?
- Que me lembre, não.
- Porquê?
- Sei lá, talvez não queira ser fumante passivo. Não sei,
nunca pensei muito nisso.
- E você? Já alguma vez fumou? - Mordeu outra batata
frita, observando-o atentamente.
- Claro. Todo os garotos experimentam fumar. Quando tinha
dez anos, roubei um maço de Camels de um encanador que tinha ido a minha casa
arranjar umas coisas. Em dois dias fumei o maço todo, e pensei que ia morrer de
câncer - comeu um pedaço do sanduíche.
- E foi tudo?
Ele mastigou e pensou um pouco antes de responder.
- Acho que sim. Que me lembre... Porque começou a fumar?
- Por idiotice. Estou tentando deixar.
- Ótimo. Ainda é muito jovem.
- Obrigada. Deixe-me adivinhar. Quando deixar de fumar,
você me liga...
- Talvez telefone de qualquer maneira.
- Já ouvi isso tantas vezes - disse ela, sorrindo de
provocação. Bebeu um longo gole e disse: - Posso perguntar-lhe o que é que está
fazendo por aqui?
- Estou comendo um Whopper. E você?
- Já disse. Estou a caminho do ginásio.
- Ah, é verdade. Estou só de passagem, tenho uns negócios
no centro, tive fome e entrei.
- Porque é que trabalha na Computer Hut?
- O que quer me perguntar é porque é que desperdiço a
minha vida trabalhando numa loja para ganhar uma miséria? É isso?
- Mais ou menos...
- Sou estudante.
- Ah sim? E está estudando onde?
- Em lugar nenhum. Estou em trânsito entre uma escola e
outra.
- E qual foi a última?
- No Norte do Texas.
- E a próxima, onde é?
- Provavelmente no Sul do Mississipi.
- O que é que está estudando?
- Informática. Você gosta muito de fazer perguntas...
- Mas são todas de resposta fácil, não acha?
- Sim, acho que sim. Onde é que trabalha?
- Não trabalho. Divorciei-me de um homem rico. Não tenho
filhos. Tenho vinte e oito anos, voltei a ser solteira e pretendo continuar
assim, mas um namoro de vez em quando também pode ser interessante. Porque é que
não me telefona?
- Rico, como? Muito rico?
Ela riu e olhou para o relógio.
- Tenho de ir. A minha aula começa daqui a dez minutos. -
Levantou-se, pegou o saco, deixou o tabuleiro na mesa. - Adeus.
Saiu e foi embora no seu pequeno BMW.
O resto dos doentes foi rapidamente dispensado do júri e,
às três da tarde, o número de jurados estava reduzido a 159. O juiz Harkin deu
ordem para um intervalo de quinze minutos e, quando voltaram a reunir-se na sala
de audiências, informou que ia começar a segunda fase de seleção do júri. Fez um
longo discurso sobre a responsabilidade cívica, e praticamente desafiou cada um
dos potenciais jurados a declarar uma dificuldade não médica. A primeira
tentativa partiu do atarefado executivo de uma empresa que se sentou no banco
das testemunhas e explicou em voz baixa ao juiz, aos dois advogados e à
estenografa que trabalhava oitenta horas por semana para
uma grande empresa, que estava perdendo muito dinheiro e que qualquer tempo fora
do escritório era um autêntico desastre. O juiz mandou-o voltar para o lugar e
esperar por uma decisão.
A segunda tentativa foi a de uma mulher de meia-idade que
dirigia em sua casa uma creche, aliás, sem alvará.
- A minha vida é tomar conta de crianças, Meritíssimo -
murmurou ela, esforçando-se para não chorar. - É tudo o que posso e sei fazer.
Ganho duzentos dólares por semana, que mal dão para viver. Se tiver de ficar no
júri, tenho de contratar uma estranha para tomar conta das crianças. Os pais não
vão gostar e, além disso, não tenho meios para pagar mais ninguém. Fico
completamente arruinada.
Os potenciais jurados observaram-na com grande interesse
quando desceu do banco das testemunhas, passou pela fila onde antes estava
sentada e saiu da sala. A sua história devia ser muito boa.
Às cinco e meia, já tinham sido dispensadas onze pessoas
e outras dezesseis, sem conseguir comover o juiz, tinham sido mandadas regressar
aos seus lugares. O juiz mandou Glória Lane distribuir um outro questionário,
mais longo do que os anteriores, e disse aos jurados que deviam entregá-lo
devidamente preenchido na manhã seguinte. Dispensou-os com uma firme advertência
sobre a desvantagem de discutir o caso com estranhos.
Naquela tarde de segunda-feira, Rankin Fitch não estava
na sala quando o juiz encerrou a sessão. Estava no escritório no outro lado da
rua. Não havia qualquer registro de Nicholas Easter em nenhuma das faculdade do
Norte do Texas. A loura tinha gravado a curta conversa no Burger King e Fitch
ouviu o cassete duas vezes. A decisão daquele segundo encontro provocado tinha
sido dele. Era arriscado, mas funcionou. Naquele momento, ela já estava em um
avião regressando a Washington. A secretária eletrônica de Biloxi ia continuar
ligada até acabar a seleção do júri. Se Easter resolvesse telefonar, o que Fitch
duvidava, não ia encontrá-la.
***
O questionário tinha perguntas do tipo "Atualmente, fuma?
Em caso afirmativo, quantos maços por dia? Em caso afirmativo, há quanto tempo
fuma?
Em caso afirmativo, quer deixar de fumar? Já fumou por
vício? Algum membro da sua família, ou alguém que conhece bem, sofreu de alguma
doença diretamente associada ao fumo? Em caso afirmativo, quem? (Espaço abaixo.
Por favor, indique o nome da pessoa, a doença e se
curou). Acredita que o tabaco causa a) câncer do pulmão; d) doenças cardíacas;
c) hipertensão; d) nenhuma das enunciadas; e) todas as enunciadas?
Na página três estavam os assuntos mais complexos. Qual é
a sua opinião sobre a utilização do imposto sobre o tabaco para a manutenção de
centros médicos destinados ao tratamento dos problemas de saúde com ele
relacionados? Dê a sua opinião sobre a utilização do imposto sobre o tabaco para
subsidiar os plantadores de tabaco. Dê a sua opinião sobre se o cigarro deve ser
proibido em todos os locais públicos. Na sua opinião, quais os direitos dos
fumantes? Grandes espaços em branco na folha destinavam-se a essas respostas.
Na página quatro estavam os nomes de dezessete advogados
inscritos para o julgamento e seguia-se a relação de oitenta ligados, de um modo
ou de outro, aos primeiros dezessete. Conhece pessoalmente algum destes
advogados? Já esteve envolvido em algum processo com qualquer um deles?
Não. Não. Não. Nicholas marcou as respostas rapidamente.
Na página cinco estavam os nomes de potenciais
testemunhas, sessenta e duas pessoas, incluindo Celeste Wood, a viúva e
queixosa. Conhece algumas dessas pessoas? Não.
Preparou outra xícara de café instantâneo e acrescentou
dois pacotes de açúcar. Na noite anterior tinha ficado trabalhando naquelas
perguntas durante duas horas. Como não conseguiu acabar, ainda teve de trabalhar
durante uma hora de manhã, bem cedo, assim que o sol despontou. Comeu uma banana
no café da manhã. Pensou na última pergunta e respondeu a lápis, com uma letra
perfeita, quase perfeita demais: tudo em letra de forma, porque a sua escrita
era quase ilegível. Sabia que, ainda antes do fim do dia, as suas palavras
seriam estudadas por um grupo de grafólogos de ambas as partes, grupo que pouco
se importaria com o seu sentido, centrando a atenção na maneira como desenhava
as letras. Nicholas queria parecer ordeiro e cuidadoso, inteligente e de mente
aberta. Capaz de ouvir com os dois ouvidos e decidir com justiça, um árbitro que
as partes disputassem como jurado.
Nicholas tinha lido três livros sobre análise
grafológica.
Voltou para a questão do imposto sobre o tabaco porque
era a mais difícil. Tinha a resposta pronta porque havia pensado muito no
assunto e queria escrever com clareza. Ou talvez vagamente. Ou, talvez ainda, de
um modo que não traísse os seus sentimentos, não assustando nenhum dos lados.
Muitas daquelas perguntas tinham sido usadas no caso
Cimmino, no ano anterior, em Allentown, Pensilvânia. Naquele tempo, Nicholas era
David, David Lancaster, um estudante de cinema, com uma verdadeira barba negra,
que trabalhava numa loja de vídeo. No segundo dia da seleção do júri, copiou o
questionário antes de entregá-lo. Era um caso semelhante, mas com uma viúva e
uma fábrica diferentes e, embora tivesse cem advogados envolvidos, eram todos
diferentes dos desse julgamento. Apenas Fitch se mantinha.
Nicholas/David conseguiu passar nas duas eliminatórias,
mas estava quatro filas atrás quando o júri foi escolhido. Raspou a barba, jogou
fora os óculos comprados numa farmácia e, um mês depois, saiu da cidade.
A mesa de jogo, de armar, vibrava levemente quando
escrevia. Aquela também era a sua mobília de jantar: a mesa e as três cadeiras
diferentes. Na salinha à direita havia uma frágil cadeira de balanço, uma
televisão em cima de uma caixa de madeira e um sofá empoeirado, comprado numa
feira por quinze dólares. Provavelmente podia alugar um mobiliário melhor, mas
isso exigiria formulários e era uma pista. Lá fora, praticamente revistavam o
lixo que fazia para descobrirem quem ele era.
Pensou na loura e imaginou onde iria aparecer nesse dia,
sem dúvida com um cigarro na mão e ansiosa para outra conversa sobre cigarro.
Nem sequer lhe passou pela cabeça a idéia de telefonar, mas gostaria de saber
para qual dos lados trabalhava. Provavelmente, para as fábricas de cigarro: era
exatamente o tipo de pessoa que Fitch gostava de usar.
Nicholas conhecia suficientemente a lei para saber que
era contra a ética contratar a loura, ou qualquer outra pessoa, para abordar
diretamente um possível jurado. Também sabia que Fitch tinha dinheiro suficiente
para fazer a loura desaparecer sem deixar traço e reaparecer em outro julgamento
como ruiva, com um penteado diferente e interessada em horticultura. Há certas
coisas que não são passíveis de prova.
O único quarto era quase todo ocupado por um colchão de
tamanho familiar, sem estrado, também comprado numa feira. Uma série de caixas
de papelão servia de cômoda. As peças de roupa espalhavam-se pelo chão.
Era uma casa provisória, do tipo das que se usam por um
mês ou dois antes de sair da cidade no meio da noite, que era exatamente o que
pretendia fazer. Estava ali há seis meses e o apartamento era a sua residência
oficial, pelo menos a que constava no registro de eleitor e na carta de
motorista do Mississipi. Tinha um apartamento melhor a seis quilômetros de
Biloxi, mas não podia arriscar-se a que alguém o visse lá.
Assim, vivia feliz na pobreza, outro estudante sem
dinheiro, sem bens e com poucas responsabilidades. Tinha quase certeza de que os
espiões de Fitch não tinham entrado no seu apartamento, mas não queria arriscar.
Era um apartamento barato, mas cuidadosamente arrumado. Não encontrariam nada de
revelador.
Às oito horas terminou o questionário e fez a última
revisão. O do caso Cimmino fora respondido à mão, num estilo completamente
diferente. Depois de meses de prática para mudar a letra, tinha certeza de que
não poderiam encontrar nenhuma semelhança. No caso Cimmino, havia trezentos
possíveis jurados; agora, eram quase duzentos. Por que razão alguém haveria de
suspeitar que ele se encontrava em ambas as listas de convocação?
Através da cortina que cobria a janela da cozinha
examinou rapidamente o estacionamento para se certificar de que não havia
fotógrafos nem intrusos.
Três semanas antes Nicholas tinha visto um, afundado no
banco de uma pickup.
Hoje, nem sombras de espiões. Trancou a porta do
apartamento e saiu a pé.
No segundo dia, Glória Lane foi muito mais eficiente na
tarefa de determinar os lugares. Os cento e quarenta e oito jurados restantes
ficaram do lado direito, doze em cada uma das doze filas, com quatro na
passagem. Com todos no mesmo lado da sala era mais fácil comandá-los. Os
questionários foram recolhidos à entrada, rapidamente copiados e distribuídos a
ambas as partes. Naquele momento, em salas fechadas e sem janelas, as respostas
já
estavam sendo analisadas pelos consultores.
No outro lado da passagem, um grupo bem comportado de
jovens da área das finanças, repórteres, curiosos e outro tipo de público
olhavam para os enormes grupos de advogados que, por sua vez, estudavam os
potenciais jurados. Fitch estava agora na primeira fila, mais perto da sua
equipe de defesa, com um acólito bem vestido de cada lado, ambos prontos para
obedecer às suas ordens.
Na terça-feira, o juiz Harkin era um homem numa missão e
levou menos de uma hora para completar o exame dos impedimentos não médicos.
Foram dispensados mais seis, deixando ao todo cento e quarenta e dois jurados.
Finalmente chegou a hora do espetáculo. Wendall Rohr, com
o que parecia ser o mesmo casaco desportivo de xadrez, o mesmo colete branco e a
mesma gravata vermelha e amarela, levantou-se e caminhou para a balaustrada para
se dirigir ao "seu" público. Estalou os dedos ruidosamente, abriu as mãos e
disse com um sorriso largo e quase sombrio.
- Sejam bem-vindos - disse dramaticamente, como se o que
estava para acontecer fosse algo cuja lembrança guardariam para sempre com
carinho.
Apresentou-se, depois apresentou os membros da sua equipe
que iam participar no julgamento e só então pediu à queixosa, Celeste Wood, para
ficar de pé.
Enquanto a apresentava aos potenciais jurados, conseguiu
usar duas vezes a palavra "viúva". Celeste era uma mulher pequena, de cinqüenta
e cinco anos, com vestido preto, meias e sapatos pretos que não podiam ser
vistos debaixo da balaustrada e um leve e doloroso sorriso de quem ainda está de
luto, embora o marido já estivesse morto há quatro anos. Na verdade, já tinha
estado quase para casar de novo, acontecimento que Wendall se apressou a
cancelar. Tudo bem, pode amar o homem, explicou-lhe, mas faça-o discretamente e,
seja como for, não pode casar antes do fim do julgamento. O fator simpatia.
Supostamente, a senhora está sofrendo, disse ele.
Fitch tinha conhecimento do casamento adiado, mas também
sabia que havia poucas probabilidades do fato se tornar público.
Depois de apresentar todos os que estavam no seu lado da
sala, Rohr fez um rápido sumário do caso, uma exposição ouvida com muito
interesse pelos advogados da defesa e pelo juiz. Parecia que estavam todos
prestes a atacar se Rohr ultrapassasse a barreira invisível entre o fato e o
argumento. Ele não a ultrapassou, mas divertiu-se sobremaneira com o suspense
que criou.
Seguiu-se um longo pedido para que os jurados fossem
honestos, sinceros, sem medo de levantar as suas tímidas mãozinhas se tivessem a
menor dúvida que fosse. "Nós, os advogados, precisamos absolutamente perceber as
suas dúvidas para podermos conduzir os interrogatórios no sentido de os
satisfazer."
Compreendem que não podemos saber o que estão pensando
olhando simplesmente para os seus rostos - disse ele, com outro flash de dentes.
Naquele momento, pelo menos oitenta pessoas na sala do
tribunal tentavam desesperadamente interpretar cada sobrancelha erguida, cada
lábio franzido.
Para acelerar o processo, Rohr consultou um bloco de
notas e disse:
- Algum dos presentes já foi jurado em outro processo de
Direito Civil? As pessoas que estejam nestas circunstâncias, por favor, levantem
a mão. -
Ergueu-se uma dezena de mãos obedientemente. Rohr
examinou o grupo e escolheu uma mulher na primeira fila. - Senhora D. Millwood,
estou certo? - Ela corou e fez um gesto afirmativo. Todas as pessoas na sala
estavam olhando para ela, ou a esforçar-se para conseguir vê-la.
- Se não me engano, a senhora fez parte de um júri em um
processo de Direito Civil há alguns anos - disse Rohr, com simpatia.
- Sim - pigarreou ela, preparando-se para falar mais
alto.
- Que tipo de caso foi? - É óbvio que ele conhecia o caso
ao mais ínfimo pormenor: tinha sido há sete anos, naquele mesmo tribunal. Era
outro juiz e o queixoso não recebeu nada. O arquivo fora copiado há algumas
semanas. Rohr tinha até falado com o advogado do queixoso, que era seu amigo.
Começou com aquela pergunta e com aquela jurada porque era uma forma fácil de
aquecimento, uma nota suave para mostrar aos outros como era indolor levantar a
mão e falar sobre o assunto.
- Foi um acidente de automóvel - disse ela.
- Onde foi o julgamento?
- Aqui mesmo.
- Ah, neste tribunal - Wendall parecia surpreendido, mas
os advogados de defesa sabiam que estava fingindo.
- O júri chegou a um veredicto nesse caso?
-Sim.
-E qual foi?
- Foi a favor do réu.
- E o queixoso?
- Na nossa opinião, não foi gravemente ferido.
- Compreendo. Acha que estar nesse júri foi uma
experiência agradável para si?
Ela pensou por um momento e depois disse:
- Não foi mau. O pior foi o tempo perdido. Muito tempo
perdido, o senhor sabe, quando os advogados se põem a discutir sobre isto, ou
sobre aquilo.
Um grande sorriso.
- Sim, sim, costumamos fazer isso muitas vezes. Não há
nada desse caso que influencie a sua capacidade para julgar este?
- Não, acho que não.
- Muito obrigado, D. Millwood.
O marido da senhora Millwood era contabilista num pequeno
hospital que fechou as portas depois de ser apanhado num caso de negligência
médica. A senhora Millwood tinha toda razão para secretamente detestar grandes
veredictos. Jonathan Kotlack, o advogado da acusação encarregado da seleção
final do júri, há muito tempo que tinha retirado o nome dela da lista.
Entretanto, em volta da mesa, a menos de dez passos de
Kotlack, os advogados de defesa consideravam que ela tinha grandes
probabilidades de ser escolhida. Joann Millwood seria um valor acrescido para a
defesa.
Rohr fez as mesmas perguntas aos outros veteranos de
júris e a repetição fez com que a sessão fosse monótona. Foi aí que passou para
o assunto delicado da reforma das leis civis, com uma série de perguntas sobre
os direitos das vítimas, os processos judiciais frívolos e o preço dos seguros.
Algumas daquelas perguntas deram origem a pequenas
discussões, mas ele conseguiu evitar que provocassem problemas. Era quase hora
do almoço e os jurados perderam o interesse. O juiz Harkin determinou um
intervalo de uma hora e os seguranças evacuaram a sala.
Os advogados ficaram. Glória Lane e a sua equipe
distribuíram caixas com pequenos sanduíches amassados e maçãs vermelhas. Ia ser
um almoço de trabalho. Precisavam resolver moções pendentes, de todo tipo, e o
Meritíssimo estava pronto para a discussão. Foi servido café e chá gelado.
O recurso aos questionários era uma grande ajuda para a
seleção do júri.
Enquanto Rohr fazia perguntas na sala do tribunal,
dezenas de pessoas, em outras salas, examinavam as respostas escritas e marcavam
nomes nas suas listas. A irmã de um dos potenciais jurados tinha morrido de
câncer do pulmão.
Sete outros tinham amigos ou parentes com sérios
problemas de saúde, problemas que os potenciais jurados atribuíam ao tabaco.
Pelo menos metade fumava ou já tinha fumado. A maior parte dos primeiros admitia
ter vontade de deixar de fumar.
Os dados foram analisados, passados para o computador e,
no meio da tarde do segundo dia, os impressos estavam sendo distribuídos e
revistos.
Depois de ordenar um primeiro intervalo às quatro e meia,
o juiz Harkin mandou outra vez evacuar a sala e dirigiu a análise dos dados.
Durante quase três horas, as respostas escritas foram discutidas e debatidas e,
no final, foram retirados da lista mais trinta e um nomes. Glória Lane recebeu
ordem para telefonar imediatamente a essas pessoas dando-lhes a boa-nova.
Harkin estava decidido a terminar a seleção na
quarta-feira. As apresentações de abertura estavam marcadas para a manhã de
quinta. Chegou mesmo a insinuar que deviam trabalhar algumas horas no sábado.
Às oito da noite de terça-feira ouviu a última moção, bem
curta, e mandou os advogados para casa. Os advogados da Pynex encontravam-se com
Fitch nos escritórios de Whitney & Cable & White, onde um delicioso banquete de
sanduíches frios e batatas fritas engorduradas os esperava. Fitch queria
trabalhar e enquanto os advogados exaustos serviam lentamente os seus pratos de
papel, dois assistentes distribuíam cópias das últimas análises grafológicas.
"Comam depressa“ mandou Fitch, como se alguém pudesse
pensar em saborear aquela comida. O número de jurados era agora de cento e onze
e a escolha começaria no dia seguinte.
A manhã pertenceu a Durwood Cable, ou Durr, como era
conhecido em toda a Costa, de onde realmente nunca saiu nos seus sessenta e um
anos de vida. Como sócio mandatário da Whitney & Cable & White, Sir Durr fora
cuidadosamente escolhido por Fitch para se encarregar da maior parte do trabalho
de defesa da Pynex. Como advogado, depois juiz, e agora outra vez advogado, Durr
tinha passado grande parte dos últimos trinta anos olhando para jurados e
falando com eles. Para ele, o ambiente do tribunal era relaxante porque era um
palco - nada de telefone, nem transeuntes, nem secretárias atarefadas -, cada um
tinha um papel, todos seguiam um roteiro, com os advogados como estrelas.
Movimentava-se e falava com grande convicção, mas entre os passos e as sentenças
os olhos não perdiam rigorosamente nada.
Enquanto o seu adversário Rohr era espalhafatoso,
gregário e teatral, Durr tinha uma atitude formal e bastante fria. O obrigatório
terno escuro, uma gravata dourada bastante ousada, a camisa branca, contrastando
agradavelmente como rosto bronzeado. Durr era apaixonado por pesca de alto mar e
passava muitas horas no seu barco, ao sol. O alto da sua cabeça era calvo e
muito bronzeado.
Houve uma época em que esteve seis anos sem perder um
caso. Foi aí
que Rohr, seu inimigo, e às vezes seu amigo, o venceu num
caso de acidente de dois milhões.
Aproximou-se da balaustrada e olhou sério para as cento e
onze pessoas sentadas nos bancos. Sabia onde morava cada uma delas, quantos
filhos e netos tinham. Cruzou os braços, levou dois dedos ao queixo, como um
professor pensativo e disse com voz sonora e agradável:
- O meu nome é Durwood Cable e represento a Pynex, uma
antiga indústria que fabrica cigarros há oitenta anos. - Pronto! Ele não se
envergonhava disso! Durante dez minutos falou sobre a Pynex, apresentando-a
magistralmente como uma entidade não agressiva, cheia de calor humano, quase
digna de simpatia.
Passou então destemidamente para o assunto da escolha.
Enquanto Rohr tinha insistido no tema do vício, ele falou sobre a livre escolha.
- Podemos concordar com o fato de que o tabaco em excesso
é
perigoso? - perguntou, e viu a maioria das cabeças fazer
um gesto afirmativo. -
Quem é que pode negá-lo? Muito bem, então. Agora, uma vez
que isso é do conhecimento geral, também podemos concordar que os fumantes devem
conhecer os perigos do tabaco? - Mais gestos afirmativos, ninguém levantou a
mão. Cable observou os rostos, especialmente o rosto inexpressivo de Nicholas
Easter, agora na terceira fila, o oitavo a partir da passagem. Devido às
dispensas dos potenciais jurados, Easter tinha deixado de ser o jurado número
cinqüenta e seis para passar a ser o número trinta e dois, avançando mais em
cada sessão. O seu rosto não revelava nada, além de uma total atenção ao que se
passava.
- Esta é uma questão muito importante - disse Cable em
voz lenta, as palavras ecoando no silêncio. Com o dedo em riste, apontou-o
delicadamente e continuou. - Por acaso, há alguém neste júri que não ache que
quem fuma deve conhecer os perigos do tabaco?
Esperou, observando atentamente todos os rostos e,
finalmente, apanhou um. Houve alguém na quarta fila que levantou a mão. Cable
sorriu, deu um passo para a frente e disse:
- Sim. Se não me engano é a senhora D. Tutwiler.
Levante-se, por favor. -
A sua provável satisfação por encontrar um voluntário
durou pouco. A senhora Tutwiler era uma mulher frágil de sessenta anos e parecia
muito zangada. Ficou de pé, com as costas muito direitas, levantou o queixo e
disse:
- Tenho uma pergunta para o senhor, doutor Cable.
- Certamente.
- Se todos sabem que o tabaco é perigoso, porque é que os
seus clientes continuam a fabricá-lo?
Alguns dos jurados sorriram. Todos os olhos se voltaram
para Durwood Cable que continuou sorrindo, calmo e impassível.
- Excelente pergunta - respondeu ele, em voz alta. Não
tinha intenção de responder. - Senhora Tutwiler, a senhora acha que a produção
de cigarros devia ser proibida?
- Acho.
- Mesmo quando as pessoas desejam exercer o seu direito
de fumar, ou de não fumar?
- Fumar é um vício, doutor Cable, e o senhor sabe
perfeitamente.
- Muito obrigado, senhora Tutwiler.
- Os fabricantes exageram na nicotina, viciam as pessoas
e, além disso, fazem campanhas publicitárias para continuar a vender os seus
produtos.
- Muito obrigado senhora Tutwiler.
- Ainda não acabei - disse ela em voz alta, segurando com
força a cadeira à sua frente e parecendo mais alta. - Os fabricantes sempre
negaram que o tabaco vicia. É uma mentira, e o senhor sabe isso muito bem.
Porque é que não dizem nos maços de cigarros?
O rosto de Durr continuou impassível. Esperou
pacientemente e, depois, perguntou com extrema delicadeza.
- Já acabou, senhora Tutwiler?
Ela ainda queria dizer outras coisas, mas de repente
pensou que talvez aquele não fosse o lugar.
- Sim - respondeu, quase num murmúrio.
- Muito obrigado. Reações como a sua são vitais para o
processo da seleção do júri. Muito obrigado. Já pode sentar-se minha senhora.
Ela olhou à sua volta para ver se alguém ia levantar para
discutir a sua opinião, mas como ninguém se manifestou, sentou-se pesadamente. A
senhora Tutwiler podia perfeitamente ter ido para casa naquele momento.
Cable passou de imediato para assuntos mais delicados.
Fez uma quantidade de perguntas, provocou muitas respostas e deu aos
especialistas em linguagem corporal muito material para trabalhar. Terminou ao
meio dia, com tempo para um rápido almoço. Harkin pediu aos jurados para
voltarem às três horas mas, para os advogados, a ordem foi para almoçar depressa
e regressar dentro de 45 minutos.
À uma da tarde, com a sala vazia, as portas fechadas e os
advogados amontoados em volta das mesas, Jonathan Kotlack levantou-se e informou
o tribunal.
- A acusação aceita o jurado número um.
Não foi surpresa para ninguém. O número um era Rikki
Coleman, uma jovem mulher, mãe de dois filhos, que nunca tinha fumado e que
trabalhava na gestão de arquivos num hospital. Kotlack e a sua equipe tinham-lhe
dado nota sete, numa escala de um a dez, baseando-se nas suas respostas ao
questionário, no seu trabalho na área de saúde, no fato de ter completado o
curso liceal e no grande interesse demonstrado por tudo o que havia sido dito
até ali. A defesa deu-lhe seis como nota, não fosse uma série de indesejáveis
que seguiam o seu nome na lista, a teriam recusado."
- Essa foi fácil - resmungou Harkin. - Continuando:
jurado número dois, Raymond C. La Monette.
O senhor La Monette foi a primeira escaramuça estratégica
na seleção do júri. Nenhuma das partes o queria - ambas lhe tinham dado quatro e
meio.
Fumava muito, mas estava desesperado para deixar de
fumar. As suas respostas eram completamente indecifráveis e inúteis. Os
especialistas em linguagem corporal, dos dois lados, declararam que o senhor La
Monette detestava todos os advogados e tudo o que com eles estivesse
relacionado.
Alguns anos antes quase fora morto por um motorista
bêbado. E o processo que lhe movera não deu em nada.
De acordo com as regras de seleção de júris, cada lado
tinha direito a um determinado número de impugnações peremptórias, ou
eliminações, como eram chamadas, por meio das quais podia recusar um jurado sem
apresentar nenhuma razão. Devido à importância do caso, o juiz Harkin tinha
concedido dez impugnações para cada lado, em lugar das quatro habituais. Os dois
lados queriam cortar La Monette, mas precisavam guardar as suas impugnações para
outros jurados menos desejáveis.
Foi pedido à acusação para falar primeiro e, depois de
uma pequena demora, Kotlack disse:
- A acusação impugna o número dois.
- Impugnação peremptória número um da acusação - disse
Harkin, enquanto tomava nota.
Uma pequena vitória para a defesa. Baseado numa decisão
de última hora, Durr Cable ia recusá-lo também.
A acusação usou outra impugnação para o jurado número
três, a mulher do executivo de uma companhia, e também para o número quatro. As
impugnações estratégicas continuaram e praticamente dizimaram a primeira fila.
Só dois jurados sobreviveram. A carnificina foi menor na
segunda fila, com cinco sobreviventes às várias impugnações, duas delas do
próprio tribunal. Quando a seleção passou para a terceira fila estavam
escolhidos sete jurados. O oitavo na fila, Nicholas Easter, jurado número trinta
e dois, era matéria desconhecida; até
aquele momento tinha prestado bastante atenção e, de
certo modo, parecia desejável, embora provocasse em ambos os lados verdadeiros
arrepios.
Wendall Rohr, falando agora pela acusação, porque Kotlack
estava em conferência com um especialista sobre dois jurados da quarta fila,
usou uma das suas impugnações peremptórias para o número vinte e cinco. Era a
nona impugnação da acusação. A última estava reservada para um republicano muito
temido e notório, na quarta fila, se chegassem até lá. A defesa rejeitou o
número vinte e seis, queimando a sua oitava impugnação peremptória. Os jurados
números vinte e sete, vinte e oito e vinte e nove foram aceitos. O número trinta
foi impugnado pela defesa com causa válida, um pedido no tribunal para
dispensá-lo por motivos mútuos, sem ter sido preciso usar a impugnação de nenhum
dos lados. Durr Cable pediu ao tribunal que não constasse dos autos algo que
queria discutir em particular. Rohr ficou um tanto perplexo, mas não se opôs. A
estenografa do tribunal parou de escrever. Cable entregou uma pasta fina a Rohr
e outra igual ao juiz. Baixando a voz, disse:
- Meritíssimo, soubemos, por meio de certas fontes, que a
jurada numero trinta, Bonnie Tyus, é viciada em Ativan. Nunca foi tratada, nunca
foi presa, nunca admitiu sequer ter um problema. Certamente não o revelou nos
questionários nem nos nossos breves interrogatórios. Vive discretamente, tem um
emprego e um marido... embora seja já o terceiro.
- Como é que sabe isso tudo? - perguntou Harkin.
- Através de uma investigação extensiva que fizemos a
todos os potenciais jurados. Meritíssimo, posso garantir que não houve qualquer
contato não autorizado com a senhora Tyus.
A descoberta fora de Fitch. Encontraram o segundo marido
da senhora Tyus em Nashville, onde lavava trailers de tratores numa estação de
serviço que funcionava vinte e quatro horas por dia. Por cem dólares, em
dinheiro vivo, contou alegremente tudo aquilo de que se lembrava sobre a sua
ex-mulher.
- Tem alguma coisa a dizer, doutor Rohr? - perguntou
Harkin.
Sem hesitar um segundo, Rohr mentiu.
- Temos a mesma informação, Meritíssimo. Olhou
amavelmente para Joríathan Kotlack que, por sua vez, olhou zangado para outro
advogado, encarregado do grupo que incluía a senhora Tyus. Já haviam gasto mais
de um milhão para a seleção do júri e deixaram passar um fato crucial!
- Muito bem. A jurada número trinta está dispensada por
causa justificada.
De volta aos autos. Jurado trinta e um?
- Meritíssimo, pode conceder-nos alguns minutos? - pediu
Rohr.
- Sim. Mas seja breve.
Depois de trinta nomes examinados, dez tinham sido
escolhidos, nove eliminados pela acusação, oito pela defesa e três dispensados
pelo tribunal. Era improvável que chegassem à quarta fila, pelo que Rohr,
restando-lhe uma única impugnação, olhou atentamente para os jurados trinta e
um, trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco e trinta e
seis e murmurou para seu grupo:
- Qual é o mais indesejável? - Os dedos apontaram
unanimemente para o trinta e quatro, uma mulher branca, grande e com cara de má,
que desde o primeiro dia os assustava. Chamava-se Wilda Haney e há um mês todos
tinham resolvido evitar a vasta Wilda. Estudaram novamente a sua ficha mais
alguns segundos e concordaram em aceitar os números trinta e um, trinta e dois,
trinta e três e trinta e cinco e, embora nenhum deles fosse muito atraente,
pareciam melhores do que a imensa Wilda.
Num grupo mais cerrado, a poucos metros deles, Cable e
seus homens resolveram eliminar o trinta e um, aceitar o trinta e dois, impugnar
o trinta e três -
Herman Grimes, o cego -, aceitar o trinta e quatro, Wilda
Haney, e eliminar, se necessário, o trinta e cinco.
Foi assim que Nicholas Easter se tornou o décimo primeiro
jurado escolhido para ouvir Wood contra Pynex. Quando o tribunal reabriu às três
horas, com a presença do júri, o juiz começou a chamar os nomes dos doze
escolhidos. Passaram pela pequena porta e sentaram-se nas cadeiras dos jurados.
Nicholas ficou com a cadeira número dois, na primeira fila. Com vinte e sete
anos, era o segundo jurado mais jovem. Eram nove brancos, três negros, sete
mulheres, cinco homens, um deles cego. Três eventuais substitutos sentaram-se
nas cadeiras de armar, muito juntas umas das outras, num canto do banco dos
jurados. Então, durante meia hora, o juiz Harkin fez severas advertências aos
jurados e aos advogados das partes envolvidas no julgamento.
Qualquer tipo de contato com jurados era passível de
rigorosas sanções, penalidades monetárias e, talvez, de anulação do julgamento,
eventual expulsão da Ordem de Advogados, e morte.
Proibiu os jurados de discutir o caso com qualquer
pessoa, mesmo cônjuges ou companheiros e, com um sorriso alegre, despediu-se de
todos, tenham uma boa-noite, vemo-nos amanhã de manhã, às nove em ponto.
Os advogados ouviam, desejando ardentemente poder sair
com os jurados. Mas tinham muito a fazer. Quando todos saíram, exceto os
advogados e os funcionários do tribunal, o Meritíssimo disse:
- Meus senhores, agora vamos discutir as moções que me
foram apresentadas.
***
Nicholas Easter, por um lado devido a uma combinação de
impaciência e tédio e, por outro, por causa da sensação de que alguém estava à
sua espera, entrou discretamente pela porta dos fundos do prédio do tribunal,
porta que não estava fechada à chave. Subiu a escada raramente usada e entrou em
um corredor estreito por trás da sala de audiências. A maior parte dos
departamentos da Câmara Municipal abria às oito e já havia movimento e ruído no
primeiro andar. Mas, no segundo, havia muito pouco. Nicholas Easter espreitou
para dentro da sala do tribunal: estava vazia. As pastas com papéis já
tinham chegado e estavam espalhadas em desordem sobre as
mesas. Os advogados, provavelmente, estariam nos fundos da sala, perto da
máquina de café, contando anedotas e preparando-se para a batalha.
Nicholas Easter conhecia bem o terreno. Três semanas
antes, um dia depois de ter recebido a intimação para fazer parte do júri, tinha
estado perto da sala de audiências. Como estava vazia, aproveitara para explorar
os corredores e os espaços à sua volta: o pequeno escritório do juiz, a sala de
café - onde os advogados conversavam, sentados em frente das mesas antigas
cheias de revistas e jornais -, as salas das testemunhas - com cadeiras de armar
e sem janelas -, a sala onde os acusados perigosos e algemados esperavam as
sentenças e, é claro, a sala do júri.
Nessa manhã, a sua intuição estava certa e dava pelo nome
de Lou Dell, uma mulher atarracada de sessenta anos, com calças de poliéster,
tênis velhos e uma franja grisalha caída sobre os olhos. Estava sentada no
corredor ao lado da porta da sala do júri, lendo um velho livro de ficção e
esperando que alguém entrasse nos seus domínios. Levantou-se de um salto, pegou
uma folha de papel sobre a qual estava sentada e disse.
- Bom-dia. Posso ajudá-lo? - O rosto maciço parecia um só
sorriso. Os olhos brilhavam maliciosos.
- Nicholas Easter - disse ele, segurando a mão que ela
lhe estendia. Ela apertou a dele com força, sacudiu-a vigorosamente e encontrou
o nome. Outro largo sorriso - Bem-vindo à sala dos jurados. É o seu primeiro
julgamento?
-Sim.
- Entre - disse ela, empurrando-o praticamente para
dentro da sala. - Há
ali café e bolinhos - puxou o braço dele e apontou para
um canto. - Fui eu que os fiz - disse com orgulho, levantando um cesto com
pãezinhos negros e engordurados. - É uma espécie de tradição. Trago sempre estes
pãezinhos no primeiro dia. Até lhes chamo pãezinhos do júri. Prove um.
A mesa estava cheia de vários tipos de pão dispostos em
bandejas, dois bules cheios de café ainda deitavam vapor. Pratos e xícaras,
colheres e garfos, açúcar, natas, adoçantes de vários tipos. E, no centro da
mesa, estavam os pãezinhos do júri. Nicholas tirou um: aliás, não teve
alternativa senão tirar um.
- Faço estes pãezinhos há dezoito anos - disse ela. -
Antes colocava passas, mas tive de desistir... - Revirou os olhos, como se o
resto da história fosse escandaloso demais.
- Porquê?- perguntou ele.
- Dão gases. Sabe que às vezes, na sala de audiências, o
silêncio é tão grande que consegue ouvir os menores ruídos. Entende a que me
refiro?
- Acho que sim.
- Café?
- Muito obrigado. Bebo lá fora.
- Como quiser - rodou o corpo e apontou para uma pilha de
papéis no centro de uma mesa comprida. - Está ali uma lista de folhas de
instruções do juiz Harkin. Ele quer que cada um dos jurados fique com uma: leia
atentamente e assine por baixo. Eu depois recolho a folha com as assinaturas.
- Obrigado.
- Se precisar de mim, estou no corredor, perto da porta.
É onde fico.
Imagine que desta vez vão pôr um maldito policial perto
de mim. Quando me disseram, nem queria acreditar. Até me mete nojo. Deve ser
algum incapaz, um estúpido qualquer que não consegue acertar num celeiro com uma
espingarda.
Mas, pronto, também é verdade que este é o maior
julgamento que já tivemos aqui. Ou melhor, como processo civil. Não imagina os
criminosos que já
estiveram aqui. - Segurou a maçaneta da porta e puxou-a.
- Se precisar de mim, estou aqui fora, querido.
A porta se fechou e Nicholas olhou para o pão doce. Com
muito cuidado deu-lhe uma pequena mordidela. Era quase só farelo e açúcar e, por
segundos, pensou nos sons da sala de audiências. Voltou a pôr o pão no cesto e
colocou café em um copo de plástico. Os copos de plástico tinham de desaparecer.
Se queriam obrigá-lo a acampar ali quatro ou seis semanas, tinham de arranjar
xícaras de vidro. E se o tribunal podia pagar aqueles bolinhos, também podia
pagar croissants.
Não havia café. Nicholas logo percebeu. E também não
havia água quente para o chá, para o caso de algum dos jurados não gostar de
café. O
almoço tinha de ser muito bom. Não ia passar seis semanas
comendo salada de atum.
As doze cadeiras estavam dispostas ordenadamente em volta
da mesa disposta no centro da sala. A espessa camada de poeira de que se tinha
apercebido há três semanas fora limpa. A sala estava muito mais limpa e pronta
para ser usada. Numa das paredes estava pregado um grande quadro negro, com giz
novo e apagadores. Na parede oposta, do chão ao teto, havia três janelas que
davam para o jardim do tribunal, cheio de relva verde e fresca, embora o Verão
já tivesse acabado há um mês. Nicholas olhou através de uma das janelas para o
movimento nos passeios.
A lista do juiz Harkin versava sobre algumas coisas que
deviam ser feitas e sobre uma série de coisas que deviam ser evitadas.
Organizem-se. Elejam um líder e, se não for possível, notifiquem o juiz, que
escolherá o líder. Usem os botões vermelhos e brancos de jurados durante todo o
julgamento. Lou Dell é a pessoa responsável pela distribuição dos botões. Tragam
alguma coisa para ler.
Não hesitem em pedir qualquer coisa. Não discutam o caso
entre vocês enquanto não forem instruídos para isso pelo juiz. Não discutam o
caso com ninguém. Ninguém mesmo. Não saiam do edifício do tribunal sem permissão
expressa. Não usem o telefone sem autorização. O almoço será trazido de fora e
servido na sala do júri. Todos os dias, antes do julgamento recomeçar às nove
horas, será apresentado um menu. Notifiquem imediatamente o tribunal se virem ou
ouvirem qualquer coisa suspeita que possa, ou não, estar relacionada com os seus
deveres de jurado neste caso.
Estranhas advertências as duas últimas. Mas Nicholas
conhecia os pormenores de um julgamento contra fábricas de cigarro no Leste do
Texas, um julgamento que estourou no fim da primeira semana, quando descobriram
que agentes misteriosos percorriam a pequena cidade oferecendo enormes quantias
em dinheiro aos familiares e parentes dos jurados. Os agentes desapareceram
antes de serem apanhados e nunca se soube para qual dos lados trabalhavam,
embora as acusações partissem dos dois lados. Cabeças mais frias apostavam que
era trabalho dos homens do tabaco. Aparentemente, o júri tinha grande simpatia
por eles e a defesa ficou muito feliz quando o julgamento foi anulado.
Embora sem meios para provar, Nicholas tinha certeza de
que Kankin Fitch era o fantasma responsável pelo subornos.
Assinou o papel e deixou-o em cima da mesa. Ouviu vozes
no corredor: Lou Dell estava cumprimentando outro jurado. A porta abriu-se com
uma pancada surda e o senhor Herman Grimes entrou com a bengala batendo à sua
frente. A sua mulher acompanhava-o, atrás dele e sem tocá-lo, mas examinando a
sala e descrevendo-a ao marido em voz baixa.
- Sala comprida, sete e meio por quatro e meio. Está de
frente para o comprimento, mesa longa no sentido do comprimento, no centro da
sala, com cadeiras em volta, a cadeira mais próxima está a dois metros e meio de
você. -
Ele ouvia, imóvel, movendo apenas a cabeça em cada
direção que ela descrevia. Lou Dell estava parada à porta, com as mãos na
cintura, e cheia de vontade de dar um pãozinho-doce ao homem cego.
Nicholas avançou alguns passos e apresentou-se. Segurou a
mão estendida de Herman e trocaram amabilidades. Cumprimentou a senhora Grimes,
depois conduziu Herman para a mesa onde a comida estava disposta, serviu-lhe
café num copo de plástico, pôs açúcar e nata, mexeu com a colher e descreveu os
bolinhos e os pães, desafiando Lou Dell que continuava à porta.
Herman não estava com fome.
- O meu tio favorito é cego - disse Nicholas,
dirigindo-se aos três. - Será
uma honra se me permitir ajudá-lo durante o julgamento.
- Sou perfeitamente capaz de me defender sozinho - disse
Herman com um leve traço de indignação, mas a mulher não conseguiu disfarçar um
sorriso de simpatia. Depois, piscou um olho e meneou a cabeça afirmativamente.
- Tenho certeza que pode - disse Nicholas. - Mas sei que
há uma quantidade de pequenas coisas que talvez lhe possa ser útil. Só quero
ajudar.
- Muito obrigado - respondeu ele depois de uma breve
pausa.
- Muito obrigada - disse a mulher.
- Se precisarem de mim, estou no corredor - disse Lou
Dell.
- A que horas quer que venha buscá-lo? - perguntou a
senhora Grimes.
- Às cinco. Se acabar antes, telefono. - Quando acabou de
falar, Lou Dell já tinha fechado a porta.
Os olhos de Herman estavam cobertos pelos óculos escuros.
Tinha cabelo espesso, bem penteado, castanho começando a ficar grisalho. Quando
ficaram sozinhos, Nicholas disse:
- Temos de tratar de alguns papéis. Sente-se na cadeira
que está à sua frente que eu lhe explico do que se trata.
Herman procurou a mesa com a mão, apoiou o copo sobre a
mesa e depois procurou a cadeira. Examinou-a com as pontas dos dedos,
orientou-se e sentou-se. Nicholas pegou uma das folhas com as instruções e
começou a ler.
Depois de terem gasto fortunas na seleção do júri, as
opiniões eram praticamente dadas de graça: todos tinham opinião. Os
especialistas da defesa congratulavam-se por terem escolhido um júri tão bom,
embora a maior parte das demonstrações de júbilo fossem em prole da legião de
advogados que trabalhavam "24 horas por dia". Durr Cable tinha visto júris
piores, mas também já tinha visto outros muito mais amigáveis. Aprendera há
muitos anos que era praticamente impossível prever as ações de qualquer júri.
Fitch estava feliz, ou tão feliz quanto se podia permitir, embora isso não o
impedisse de discutir e resmungar contra tudo. Havia quatro fumantes no júri.
Fitch prendia-se à crença tácita de que a Costa do Golfo, com as suas casas de
topless, os cassinos e a proximidade de Nova Orleans, não era um mau lugar para
se estar naquele momento, sobretudo tendo em conta a tolerância da região para
com o vício em geral.
No outro lado da rua, Wendall Rohr e o seu grupo de
advogados declararam-se satisfeitos com a composição do júri. Estavam
especialmente felizes com a inesperada presença do senhor Grimes, o primeiro
jurado cego na história: pelo menos, tanto quanto conseguiam lembrar-se. O
senhor Grimes insistiu em ser avaliado exatamente como os que possuíam visão e
ameaçou processar o tribunal se o tratassem de modo diferente. A sua volúvel
confiança nos processos aqueceu os corações de Rohr e companhia e a sua
deficiência física era o sonho de qualquer advogado de acusação. A defesa
apresentou todos os tipos possíveis de objeção, incluindo a incapacidade de ver
as provas que seriam exibidas. O juiz Harkin permitiu que os advogados
submetessem o senhor Grimes a um teste discreto, e ele garantiu que poderia ver
se as provas fossem corretamente identificadas por escrito. O Meritíssimo
decidiu então que um dos relatores do tribunal ficaria incumbido de descrever as
provas exibidas.
Inserir-se-ia um disquete no computador em Braille do
senhor Grimes e, à noite, ele poderia ler essas descrições. O senhor Grimes
ficou muito feliz com isso e parou de falar de processos contra a discriminação.
A defesa amaciou um pouco, especialmente quando soube que o senhor Grimes tinha
fumado durante muitos anos e que não tinha qualquer problema em relação à
presença de fumantes.
Assim, as duas partes estavam cautelosamente satisfeitas
com o júri. Não tinham escolhido nenhum radical. Não foi detectada nenhuma
atitude reprovável.
Os doze tinham terminado o ensino secundário, dois eram
licenciados e três tinham cursos médios. As respostas escritas de Easter faziam
perceber que tinha de fato terminado o ensino secundário, mas não fora possível
descobrir que tipo de formação teria posteriormente adquirido.
Os advogados, enquanto se preparavam para o primeiro dia
de julgamento, meditavam sobre a grande questão, cuja resposta gostariam de
adivinhar. Olhando para os mapas da posição dos jurados e estudando os rostos
pela milionésima vez, interrogavam-se: "Quem será o líder?"
Todos os júris têm um líder e dele depende o veredicto.
Iria aparecer imediatamente ou esperaria para tomar o controle durante a
deliberação?
Naquela altura, nem os jurados o sabiam.
Às dez horas em ponto, o juiz Harkin olhou para a sala
cheia e resolveu que tudo estava em ordem. Bateu levemente com o martelo e os
murmúrios cessaram. Todos estavam prontos. Inclinou a cabeça na direção do seu
velho meirinho com o uniforme castanho desbotado e disse:
- Traga o júri.
Todos os olhos se voltaram para a porta ao lado do banco
dos jurados.
Lou Dell apareceu primeiro, conduzindo o grupo como uma
galinha mãe, depois os doze selecionados entraram em fila e ocuparam os seus
lugares. Os três substitutos tomaram as suas posições nas cadeiras desdobráveis.
Depois de todos se acomodarem - ajeitando as almofadas e as bainhas das saias,
pondo malas e livros no chão -, os jurados pararam os seus movimentos e,
evidentemente, notaram que estavam sendo examinados com ávida atenção.
- Bom-dia - disse o Meritíssimo com voz sonora e um largo
sorriso. Quase todos inclinaram as cabeças em resposta.
- Vejo que todos encontraram a sala do júri e espero que
tenham se organizado. - Fez-se uma pausa enquanto ele se levantava da mesa para
receber os quinze formulários distribuídos e recolhidos por Lou Dell,
devidamente assinados. - Já têm um líder? — perguntou.
Os doze menearam a cabeça afirmativamente ao mesmo tempo.
- Ótimo. Quem é?
- Sou eu, Meritíssimo — disse Herman Grimes, na primeira
fila, e por uma fração de segundo a defesa, todos os advogados, consultores de
júri e representantes da companhia, sentiram uma pontada coletiva no peito.
Depois, respiraram lentamente, sem a menor indicação de nada além de um grande
amor e afeição pelo jurado cego que era agora o líder do júri. Talvez os outros
onze sentissem pena dele.
FIM

Sobre
Herman Grimes,
o personagem cego, escreve Barbara
Pierce (NFB)
In order to get the plot off
to a fast start, the protagonist, Nicholas Easter, has to take control of the
jury without calling any attention to himself. Understandably, Grisham wants to
keep the reader in doubt about which side Easter is working for, so he avoids
telling the story from Easter's point of view. All the lawyers and jury experts
are worried because they can't learn much about Easter's past or his prejudices.
So Grisham's literary problem is how to focus attention away from Easter, the
true leader of the jury, enough to divert the attention of the lawyers on both
sides while maintaining reader interest. Grisham's answer is to introduce a
blind man, Herman Grimes, into the jury pool and begin with his threats to sue
if he is not allowed to remain in the pool. Then, when he makes it onto the
jury, Grisham has the group elect him foreman. It's an interesting solution to
the problem, but I'm pretty sure Grisham never bothered to learn anything about
blindness or blind people competent enough to be elected foreman of a jury. Some
things about Grimes are plausible and appropriate. He is a computer programmer
and a conscientious note-taker during the trial. He adheres exactly to the
judge's instructions about jury behavior. He is clearly bright and wants others
to treat him with dignity. But the poor guy never has a chance. Grisham
saddles him with a wife from Hell. Part way through the trial the judge has to
sequester the jury in a local motel. The sighted wife, who has been delivering
him in the morning and retrieving him at the end of each day, insists that she
be included in the sequestration order so that she can take care of her husband.
During the discussion in which she convinces the judge to include her, the blind
man is present, clearly does not wish to have his wife included, and is
incapable of arguing his case. From first to last Grimes is a social misfit.
Even when his wife is not preventing him from talking with the other jurors, he
shows little capacity for making friends or engaging in small-talk. The
blindness stereotypes are all present. His entrance the first morning is
heralded by a thump at the door. When it swings open, he comes in waving his
"walking stick." His wife follows him in, providing a description of the size
and layout of the room in a rapid undertone. Easter rushes up, despite the wife,
and guides him to the table, where he immediately "gropes" for a chair, orients
himself to it carefully, and sits down while his coffee is brought to him.
Despite the fact that the trial takes weeks, he never does learn, or even try,
to get his own coffee in the jury room or do anything for himself at the motel.
His only significant interaction seems to be with his "Braille computer"—
whatever that is supposed to be. A specially assigned court reporter prepares
detailed descriptions of the exhibits, which are given to him on disk. But all
this detail is inconsistent, as far as I can tell, with actual access equipment.
The real purpose of the detail seems to be to construct additional barriers
between the blind juror and the other eleven.
I have asked myself how I would have preferred Grisham to resolve his structural
problem. The honest answer is that I wouldn't much care as long as he didn't
make things more difficult for blind people or members of any other minority.
poor old Grimes simply embodies a lot of the stereotypes of blindness today. But
we know how insidious and damaging those stereotypes can be, and we know just
how untrue they are. It's the millions of readers who already share Grisham's
prejudices about blindness and blind people who will be all the more grounded in
their ignorance for having read The Runaway Jury. And there doesn't seem to be a
lot we can do to counteract the damage Grisham has done, except to speak out
against the injustice and live, as clearly as we can, lives that refute his
foolish notions. The one mildly amusing piece of poetic justice near the end of
the book occurs when the author is forced to remove the foreman from the trial.
He has anchored the foreman in such isolated moral rectitude that he has no
choice but to get rid of him before he can bring the verdict in. Grisham can
think of no better way of removing Grimes, the conscience of the jury, but to
drug him—he thought his coffee tasted peculiar but drank it anyway. Grisham
couldn't be bothered to create a blind character who could serve as a role model
showing what blind people can do, but at least the poor man refused to lie down
and be disposed of quietly. In this way, at least, Grimes can serve as an
inspiration to all blind people. None of us can be suave, commanding, and
independent all the time, but we can and must refuse to lie down and be written
off.
Occasionally one comes across
a blind character in a book who does not embarrass the rest of us in some way.
With The Runaway Jury, John Grisham has not contributed to this small collection
of normal blind characters. in
National Federation of the Blind
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O Júri
-excerto-
Autor: John Grisham
Título Original: The Runaway Jury (1996)
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