Dea e Gwynplaine - cena do filme 'O Homem que Ri'de
Paul Leni (1928)
URSUS
Ursus e Homo eram ligados por estreita amizade. Ursus era um homem,
Homo era um lobo. Seus temperamentos combinaram. Quem havia batizado
o lobo fora o homem. Provavelmente também havia escolhido o próprio
nome; tendo achado Ursus bom para si, achara Homo bom para a fera. A
associação desse homem com esse lobo era proveitosa para as feiras, as festas
paroquiais, as esquinas das ruas onde os passantes se aglomeram, e atendia à
necessidade que o povo tem, em qualquer lugar, de ouvir baboseiras e
comprar panaceias.
Ursus com o seu lobo Homo
Esse lobo, dócil e graciosamente subalterno, era
agradável à multidão. Ver a domesticação é algo que apraz. Nosso supremo
contentamento é ver desfilarem todas as variedades de adestramento. É isso
que leva tanta gente à passagem dos cortejos reais. [...]
GWYNPLAINE E DEA
ONDE VEMOS A FACE DE QUEM SÓ VÍRAMOS AS AÇÕES
A natureza tinha sido pródiga em benefícios para Gwynplaine. Dera-lhe
uma boca que se abria até as orelhas, orelhas que se dobravam quase até os
olhos, um nariz disforme, feito para a oscilação dos óculos de um careteiro, e
um rosto para o qual não se podia olhar sem rir.
Como acabamos de dizer, a natureza enchera Gwynplaine de dádivas.
Mas fora mesmo a natureza?
Não a haviam ajudado?
Dois olhos parecendo pequenas aberturas; uma fissura como boca; uma
protuberância achatada, com dois buracos que eram as narinas; na face, um
amassado, e tudo isso resultando em riso. A natureza certamente não cria
sozinha obras-primas como essa.
Só uma questão: riso é sinônimo de alegria?
Na presença desse histrião — pois era um histrião —, se deixássemos a
primeira impressão de alegria se dissipar e observássemos esse homem com
atenção, reconheceríamos traços da arte. Um rosto como aquele não é
fortuito, mas intencional. Ser assim tão completo não é próprio da natureza.
O homem não pode nada quanto à sua beleza, mas pode tudo quanto à sua
feiura. De um perfil hotentote você não fará um perfil romano, mas de um
nariz grego você pode fazer um nariz calmuco. Basta eliminar a raiz do nariz
e afundar as narinas. O baixo latim da Idade Média não criou à toa o verbo
denasare. Gwynplaine tinha sido uma criança assim tão digna de atenção
para que se ocupassem dele a ponto de modificar seu rosto? Por que não?
Gwynplaine
Ainda que fosse com o propósito de exibição e de especulação. Ao que tudo
indicava, industriosos manipuladores de crianças haviam trabalhado para
obter aquela aparência. Parecia evidente que uma ciência misteriosa,
provavelmente oculta, que está para a cirurgia assim como a alquimia está
para a química, havia esculpido aquela carne, certamente em uma idade
muito tenra, e criado premeditadamente aquele rosto. Essa ciência, hábil nas
secções, nas supressões e nas ligaduras, havia fendido a boca, aberto os
lábios, desnudado as gengivas, distendido as orelhas, separado as cartilagens,
desordenado as sobrancelhas e as maçãs do rosto, alargado o músculo
zigomático, escondido as costuras e as cicatrizes, puxado a pele sobre as
lesões mantendo a face em estado de admiração; e dessa escultura poderosa e
profunda saíra esta máscara: Gwynplaine.
Ninguém nasce assim.
Seja como for, Gwynplaine era admiravelmente bem-sucedido. [...]
Gwynplaine era saltimbanco. Mostrava-se em público. Não havia efeito
comparável ao seu. Curava as hipocondrias apenas se expondo. Pessoas de
luto, confusas e constrangidas precisavam evitar rir indecentemente quando o
viam. Certo dia apareceu um carrasco, e Gwynplaine o fez rir. Era só olhar
para Gwynplaine que morriam de rir; ele falava, rolavam de rir. Ele era o
polo oposto da tristeza. A melancolia estava num extremo e Gwynplaine no
outro. Dessa forma, ele alcançara, nas feiras de atrações e nas ruas, uma fama
muito satisfatória de homem horrível.
Era rindo que Gwynplaine fazia rir. No entanto, ele não ria. Seu
semblante ria, seu pensamento não. Essa espécie de rosto incomum, que o
acaso ou uma engenhosidade estranhamente especial lhe havia moldado, ria
sozinho. Gwynplaine não tinha nada a ver com aquilo. O exterior não
dependia do interior. Esse riso, que não fora por ele colocado em sua testa,
em seu semblante, em suas sobrancelhas, em sua boca, ele não conseguia
arrancar dali. Alguém aplicara o riso no seu rosto para sempre. Era um riso
automático e ainda mais irresistível por estar petrificado. Ninguém se
esquivava desse ricto. Duas convulsões da boca são contagiosas: o riso e o
bocejo. Por mérito da misteriosa operação provavelmente sofrida por
Gwynplaine ainda criança, todas as partes do seu rosto contribuíam com esse
ricto, toda a sua fisionomia era centrada nele, como uma roda se concentra no
em seu eixo; todas as suas emoções, quaisquer que fossem, ampliavam essa
estranha expressão de alegria, ou, melhor dizendo, agravavam-na. Uma
surpresa que tivera, uma mágoa que tivesse sentido, uma raiva que o tivesse
acometido, uma compaixão que tivesse experimentado só fariam aumentar
essa hilaridade dos músculos; ainda que tivesse chorado, riria. E o que quer
que fizesse, que quisesse, que pensasse, bastava Gwynplaine levantar a
cabeça para que a multidão, se ali se encontrasse, tivesse diante dos olhos
essa aparição: a gargalhada fulminante.
Imaginem uma cabeça de Medusa, porém alegre. [...]
Riso eterno. Entendamo-nos e expliquemo-nos. A crer nos maniqueístas,
o absoluto cede em alguns momentos, e o próprio Deus tem suas
intermitências. Também devemos entender-nos quanto à vontade. Não
admitimos que ela sempre consiga ser completamente impotente. Toda
existência se assemelha a uma carta que o post-scriptum modifica. Para
Gwynplaine, o post-scriptum era o seguinte: com força de vontade,
concentrando nela toda sua atenção, e desde que nenhuma emoção viesse a
distraí-lo ou a enfraquecer a persistência do seu esforço, ele conseguia
desfazer o eterno ricto do seu rosto, cobrindo-o com uma espécie de trágico
véu; então não riam mais diante dele; estremeciam.
Esse esforço, diga-se, Gwynplaine quase nunca fazia, pois causava um
cansaço doloroso e uma tensão insuportável. Além disso, bastava uma
mínima distração e uma mínima emoção para que, expulso por instantes, o
riso, irresistível como um refluxo, ressurgisse em seu rosto, tão mais intenso
quanto mais forte fosse, seja lá qual delas, a emoção.
A não ser por essa exceção, o riso de Gwynplaine era eterno.
Quem via Gwynplaine ria. Depois de rir, virava as costas. As mulheres,
principalmente, tinham horror. Aquele homem era medonho. A convulsão
cômica era como um tributo pago; era sentida alegremente, mas quase
mecanicamente. Depois, acalmado o riso, Gwynplaine era, para uma mulher,
insuportável de ver e impossível de olhar.
De resto, era alto, bem-feito, ágil, em nada disforme, salvo o rosto. Esse
era outro indício entre as suspeitas que permitiam entrever em Gwynplaine
mais uma criação de arte do que uma obra da natureza. Belo de corpo,
provavelmente Gwynplaine também havia sido belo de rosto. Ao nascer,
deve ter sido uma criança como qualquer outra. Mantiveram seu corpo
intacto e retocaram apenas a face. Gwynplaine tinha sido deliberadamente
moldado.
Pelo menos era o que parecia.
Haviam deixado seus dentes. Os dentes são imprescindíveis para o riso.
Até uma caveira os conserva.
A operação feita nele devia ter sido medonha. Ele não se lembrava dela,
o que não provava que não a tivesse sofrido. Essa escultura cirúrgica só podia
ter sido feita em uma criança muito pequena e, consequentemente, com pouca
consciência do que lhe acontecia, e que podia facilmente tomar uma ferida
por uma doença. Além do mais, desde aqueles tempos, nos lembramos disso,
os meios para fazer os pacientes dormirem e para suprimir a dor eram
conhecidos. Só que, então, eram chamados de magia. Hoje em dia são
chamados de anestesia.
Além desse rosto, os que o haviam criado lhe deram recursos de ginasta
e de atleta; suas articulações, utilmente deslocadas e próprias para flexões no
sentido inverso, haviam recebido uma educação de palhaço e podiam, como
dobradiças de porta, mover-se em qualquer sentido. Em sua adaptação ao
ofício de saltimbanco, nada fora negligenciado.
Seus cabelos foram tingidos de ocre, de uma vez por todas; segredo que
redescobrimos atualmente e do qual as belas mulheres se servem; o que antes
tornava feio, hoje é considerado um bom recurso de embelezamento.
Gwynplaine tinha os cabelos amarelos. Essa tintura, aparentemente corrosiva,
havia deixado seus cabelos crespos e ásperos ao toque. Esse eriçamento
selvagem, mais crina do que cabeleira, cobria e escondia um crânio
impenetrável, feito para conter pensamentos. A tal operação, que havia
retirado a harmonia do seu rosto e colocado toda aquela carne em desordem,
não atingira a caixa óssea. O ângulo facial de Gwynplaine era poderoso e
surpreendente. Por trás daquele sorriso, havia uma alma sonhadora, como a
de todos nós.
De resto, esse riso era para Gwynplaine um verdadeiro talento. Nada
podendo fazer em relação a ele, dele tirava proveito. Era com esse riso que
ganhava a vida.
Gwynplaine — sem dúvida, todos já o reconheceram — era aquele
menino que, certa noite de inverno, fora abandonado na costa de Portland e
recolhido em uma pobre cabana itinerante em Weymouth.
Então, o menino já era um homem. Quinze anos haviam se passado.
Estávamos em 1705. Gwynplaine chegava a seus vinte e cinco anos.
Ursus mantivera consigo as duas crianças. Formavam um grupo
nômada.
Ursus e Homo tinham envelhecido. Ursus tornara-se completamente
careca. O lobo estava grisalho. A idade dos lobos não é contada como a idade
dos cães. Segundo Molin, há lobos que vivem oitenta anos, entre eles o
pequeno koupara, cavioe vorus, e o lobo das grandes planícies de Say, canis
nubilus.
DEA
A menininha encontrada sobre a mulher morta era agora uma crescida
criatura de dezesseis anos, pálida, de cabelos escuros, magra, frágil, quase
trêmula de tanta delicadeza, chegando a dar medo de quebrá-la,
admiravelmente bela, olhos cheios de luz, cega.
Gwynplaine retira Dea de cima do
cadáver da mãe
A fatal noite de inverno, que derrubara a mendiga e sua criança na neve,
havia feito um duplo estrago. Matara a mãe e cegara a menina.
A gota serena havia paralisado para sempre as pupilas daquela criança,
agora uma mulher. Em seu rosto, através do qual a luz não passava, os cantos
dos lábios, tristemente abaixados, expressavam esse amargo desapontamento.
Seus olhos, grandes e claros, tinham esta estranheza: apagados para ela, para
os outros brilhavam. Misteriosos fachos de luz iluminando apenas o exterior.
Ela, que não tinha luz, irradiava luz. Os olhos ausentes resplandeciam. Essa
cativa das trevas iluminava o meio sombrio onde se encontrava. Do fundo de
sua escuridão incurável, por trás desse muro negro que chamamos de
cegueira, ela irradiava luminosidade. Não enxergava o Sol no exterior, mas
enxergava-se nela a alma.
Seu olhar morto tinha algo de imobilidade celeste.
Ela era a noite, e dessa sombra irremediável, amalgamada a ela mesma,
despontava como uma estrela.
Ursus, obcecado pelos nomes latinos, batizou-a Dea. Consultara um
pouco seu lobo; dissera-lhe: “Você representa o homem, eu represento o
bicho; nós somos o mundo aqui de baixo. Essa pequena representará o mundo
lá do alto. Toda essa fraqueza é a onipotência. Dessa forma, o universo
inteiro — humanidade, animalidade, divindade — estará em nossa cabana”.
O lobo não fizera nenhuma objeção.
E foi assim que a menina encontrada chamou-se Dea.
Quanto a Gwynplaine, Ursus não se deu ao trabalho de inventar-lhe um
nome. Na manhã do mesmo dia em que ele havia constatado a desfiguração
do menino e a cegueira da menina, perguntara: “Boy, como você se chama?”.
E o menino respondera: “As pessoas me chamam de Gwynplaine”.
— Gwynplaine; pode ser — dissera Ursus.
Dea ajudava Gwynplaine em seus exercícios.
Se a miséria humana pudesse ser resumida, o seria em Gwynplaine e
Dea. Pareciam ter nascido cada um em um compartimento do sepulcro;
Gwynplaine no horrível, Dea no negro. Suas existências eram feitas de trevas
de espécies diferentes, recolhidas nos dois formidáveis lados da noite. Essas
trevas, Dea as tinha em seu interior, e Gwynplaine em seu exterior. Em Dea
havia fantasma, e, em Gwynplaine, espectro. Dea estava no lúgubre, e
Gwynplaine no pior. Havia para Gwynplaine, enxergando, uma pungente
possibilidade que não existia para Dea, cega: comparar-se a outros homens.
Ora, em uma situação como a de Gwynplaine, admitindo-se que ele
procurasse tomar consciência dela, comparar-se era deixar de se
compreender. Ter, como Dea, um olhar vazio, do qual o mundo está ausente,
é um grande infortúnio, menor, no entanto, do que este: ser seu próprio
enigma; sentir também algo de ausente que é seu próprio ser; ver o universo e
não se ver. Dea tinha um véu, a escuridão, e Gwynplaine tinha uma máscara,
seu rosto. Coisa indescritível: era com sua própria carne que Gwynplaine
estava mascarado. Ignorava como era seu semblante. Sua fisionomia se
desvanecera. Haviam-no envolvido em uma falsificação de si mesmo. Tinha
como face uma ocultação. Sua cabeça vivia e seu rosto estava morto. Não se
lembrava de um dia tê-lo visto. O gênero humano, tanto para Dea como para
Gwynplaine, era um fato exterior; estavam distantes dele; ela era sozinha, ele
era sozinho; o isolamento de Dea era fúnebre, ela não via nada; o isolamento
de Gwynplaine era sinistro, ele via tudo. Para Dea, a criação não ia além da
audição e do tato; o real era restrito, limitado, breve, logo perdido; tinha
como infinito apenas a escuridão. Para Gwynplaine, viver era ter para sempre
a multidão diante de si e fora de si. Dea era a proscrita da luz; Gwynplaine
era o banido da vida. Certamente ali estavam dois desesperançados. O auge
da calamidade possível fora alcançado. Haviam chegado lá, tanto ele como
ela. Um observador que os tivesse visto teria sentido o próprio pensamento
converter-se em incomensurável piedade. Quanto não deviam sofrer! Um
decreto de infelicidade pesava visivelmente sobre essas duas criaturas
humanas; a fatalidade, envolvendo dois seres que nada tinham feito, jamais
transformara tão bem o destino em tortura e a vida em inferno.
Estavam num paraíso.
Amavam-se.
Gwynplaine adorava Dea. Dea idolatrava Gwynplaine.
— Você é tão lindo! — dizia-lhe ela.
OCULOS NON HABET, ET VIDET
Apenas uma mulher na face da terra enxergava Gwynplaine. Era aquela
cega.
O que Gwynplaine havia feito por ela, ela sabia por meio de Ursus, a
quem Gwynplaine contara sua dura caminhada de Portland a Weymouth e as
agonias que envolviam seu abandono. Ela sabia que, muito pequena,
mamando num cadáver, quase morrendo sobre o corpo de sua mãe morta,
uma criatura, não muito maior do que ela, a recolhera; que essa criatura,
eliminada e como que enterrada sob a sombria recusa universal, ouvira seu
choro; que, mesmo quando todos tinham sido surdos para com ele, ele não
fora surdo para com ela; que essa criança isolada, frágil, rejeitada, sem
nenhum ponto de apoio aqui embaixo, arrastando-se no deserto, morta de
cansaço, esgotada, havia aceitado das mãos da noite esse fardo, uma outra
criança; que ele, que nada tinha a esperar dessa obscura distribuição a que
chamamos sorte, incumbira-se de um destino; que, sendo miséria, angústia e
desgraça, fizera-se providência; que abrira seu coração quando o céu se havia
fechado; que, perdido, salvara; que, não tendo teto nem abrigo, fora asilo; que
se passara por mãe e ama de leite; que, estando sozinho no mundo,
respondera ao abandono com uma adoção; que, estando nas trevas, dera esse
exemplo; que, mesmo se encontrando já tão amargurado, aceitara como
acréscimo a miséria alheia; que, sobre esta terra onde parecia não haver
ninguém por ele, descobrira o dever; que, quando todos teriam hesitado,
avançara; que, quando todos teriam recuado, enfrentara; que havia passado
sua mão pela abertura do sepulcro e dali a retirara, ela, Dea; que, seminu,
dera-lhe seus farrapos, pois ela estava com frio; que, faminto, pensara em
dar-lhe de comer e beber; que, por aquela menina, aquele menino combatera
a morte, e a combatera sob todas as formas, sob a forma de inverno e de neve,
sob a forma de solidão, sob a forma de terror, sob a forma de frio, fome e
sede, sob a forma de furacão; que, por ela, Dea, esse titã de dez anos se
lançara na luta com a imensidão noturna. Ela sabia que ele, criança, havia
feito tudo isso, e que agora, homem, era para ela, débil, sua força; para ela,
indigente, sua riqueza; para ela, doente, sua cura; para ela, cega, seu olhar.
Através das profundezas desconhecidas pelas quais se sentia mantida a
distância, distinguia claramente essa dedicação, essa abnegação, essa
coragem. O heroísmo, na zona imaterial, tem um contorno. [...]
No plano ideal, a bondade é o sol; e Gwynplaine fascinava Dea.
Para a massa, com cabeças demais para pensar e olhos demais para
enxergar, para a massa que, sendo ela própria superfície, se mantém na
superfície, Gwynplaine era um palhaço, um grotesco, um pouco mais e um
pouco menos que um animal. A massa só enxergava a cara.
Para Dea, Gwynplaine era o salvador que a retirara da tumba e a levara
para fora, era o consolador que tornava sua vida possível, o libertador cuja
mão ela sentia em sua mão nesse labirinto que é a cegueira; Gwynplaine era o
irmão, o amigo, o guia, o amparo, o semelhante celeste, o esposo alado e
radiante; e, onde a massa via o monstro, ela via o arcanjo.
É que Dea, cega, via a alma.
ENAMORADOS QUE COMBINAM MUITO BEM
Ursus, filósofo, compreendia. Ele aprovava a fascinação de Dea.
Ele dizia:
— O cego vê o invisível.
Ele dizia:
— A consciência é visão.
Olhava para Gwynplaine e resmungava:
— Meio monstro, mas meio deus.
Gwynplaine, por sua vez, estava encantado com Dea. Existe o olho
invisível, o espírito, e o olho visível, a pupila. Era com o olho visível que
ele
a enxergava. Dea tinha a fascinação pelo ideal, Gwynplaine tinha a
fascinação pelo real. Gwynplaine não era feio, era medonho; tinha diante de
si seu oposto. Tanto quanto era assustador, Dea era delicada. Ele era horror,
ela era graça. Em Dea havia devaneio. Ela parecia um sonho que, de certa
forma, tomara corpo. Havia, em toda a sua pessoa, em sua estrutura eólica,
em sua flexível e fina silhueta inquieta como o junco, em suas costas talvez
invisivelmente aladas, nas curvas discretas do seu contorno indicando o sexo,
mais à alma, porém, que aos sentidos, em sua brancura que era quase
transparência, na augusta oclusão serena do seu olhar divinamente fechado
para a terra, na inocência sagrada do seu sorriso, uma delicada semelhança
com um anjo; no entanto, era tão somente uma mulher.
Gwynplaine, como já dissemos, comparava-se e comparava Dea.
Sua existência, tal como era, resultava de uma dupla escolha
extraordinária. Era o ponto de intersecção dos dois raios, o de baixo e o do
alto, do raio negro e do raio branco. A mesma migalha pode ser ciscada ao
mesmo tempo por dois bicos, o do mal e o do bem, um dando a bicada, outro
dando o beijo. Gwynplaine era essa migalha, átomo mutilado e acariciado.
Gwynplaine era o produto de uma fatalidade associada a uma providência. A
desgraça lhe apontara o dedo, a felicidade também. Dois destinos extremos
compunham sua estranha sorte. Havia sobre ele um anátema e uma bênção.
Era o maldito eleito. Quem era ele? Não sabia. Quando olhava para si mesmo
via um desconhecido. Mas esse desconhecido era monstruoso. Gwynplaine
vivia em uma espécie de decapitação, tendo um rosto que não era dele. Esse
rosto era assustador, tão assustador que divertia. Provocava tanto medo que
fazia rir. [...]
Para que isso fosse possível, era preciso que a bela não visse o
desfigurado. Para aquela felicidade, era necessária esta infelicidade. A
providência fizera Dea cega.
Gwynplaine sentia-se vagamente o objeto de uma redenção. [...]
Gwynplaine e Dea eram um casal, e seus dois patéticos corações se
adoravam. Um ninho e dois pássaros; era essa sua história. Eram iniciados na
lei universal, que é a de encantar-se, procurar-se e encontrar-se.
De forma que o ódio se enganara. Os perseguidores de Gwynplaine,
quaisquer que tenham sido, e a enigmática obsessão, de onde quer que tenha
vindo, não conseguiram alcançar seu objetivo. Quiseram produzir um
desesperado, produziram um encantado. De antemão, fora unido a uma ferida
com poder de cura. Fora predestinado a ser consolado por uma desolação. A
tenaz do carrasco lentamente se transformara em mão de mulher.[...]
O AZUL NO NEGRO
Assim viviam, um pelo outro, esses desafortunados, Dea apoiada,
Gwynplaine aceito.
Essa órfã tinha esse órfão. Essa enferma tinha esse disforme.
As viuvezes se esposavam.
Uma inefável ação de graças emanava desses dois abandonos. Eram
gratos.
A quem?
À imensidão obscura.
Agradecer sempre, é o quanto basta. A ação de graças tem asas e vai
onde deve ir. Suas preces sabem disso melhor do que você.
Quantos homens acreditaram orar a Júpiter enquanto oravam a Jeová!
Quantos crentes com seus amuletos são ouvidos pelo infinito! Quantos ateus
não percebem que, pelo simples fato de serem bons e tristes, oram a Deus!
Gwynplaine e Dea eram reconhecidos.
A deformidade é a expulsão. A cegueira é o precipício. A expulsão era
adotada; o precipício era habitável.
Gwynplaine via baixar sobre ele, em plena luz, em um arranjo do
destino que parecia um sonho colocado em perspectiva, uma branca nuvem
de beleza em forma de mulher, uma visão radiante na qual havia um coração;
e essa aparição, quase névoa, porém mulher, o estreitava; e essa visão o
abraçava; e esse coração o queria bem. Sendo amado, Gwynplaine deixava de
ser disforme; uma rosa pedia a larva em casamento, entrevendo nessa larva a
divina borboleta; Gwynplaine, o rejeitado, era escolhido.
Ter o que é necessário, isso é tudo. Gwynplaine tinha o que precisava.
Dea tinha o que precisava.
A abjeção do desfigurado, aliviada e como que sublimada, expandia-se
em êxtase, em contentamento, em esperança; enquanto isso, na escuridão,
uma mão se estendia diante da sombria hesitação da cega na escuridão.
Era o enlace de duas desgraças no ideal, uma absorvendo a outra. Duas
exclusões se aceitavam. Duas lacunas se combinavam para se completar.
Uniam-se por meio do que lhes faltava. Naquilo em que um era pobre, o
outro era rico. A infelicidade de um era o tesouro do outro. Se Dea não fosse
cega, teria escolhido Gwynplaine? Se Gwynplaine não fosse desfigurado,
teria preferido Dea? Provavelmente, ela não iria querer a deformidade, nem
ele a enfermidade. Que felicidade era para Dea que Gwynplaine fosse
medonho! Que sorte para Gwynplaine que Dea fosse cega! Não fosse sua
providencial associação, não teriam chance. Uma prodigiosa necessidade um
do outro estava na base de seu amor. Gwynplaine salvava Dea. Dea salvava
Gwynplaine. Encontro de misérias produzindo a união. Abraço de tragados
dentro do abismo. Nada era mais íntimo, mais desesperado, mais agradável.
Gwynplaine tinha um pensamento: “O que seria de mim sem ela?”.
Dea tinha um pensamento:
“O que seria de mim sem ele?”.
Esses dois exílios formavam uma pátria; essas duas fatalidades
incuráveis, a mutilação de Gwynplaine, a cegueira de Dea, realizavam sua
união no contentamento. Os dois se bastavam; não imaginavam nada além
deles mesmos; conversar era um prazer, ficar juntos era uma felicidade; de
tanta intuição recíproca haviam chegado a um devaneio comum; tinham
ambos os mesmos pensamentos. Quando Gwynplaine andava, Dea acreditava
ouvir passos de apoteose. Estreitavam-se um contra o outro em uma espécie
de claro-escuro sideral, cheio de perfumes, de luzes, de músicas, de
luminosas arquiteturas, de sonhos; pertenciam-se. Sabiam-se juntos para
sempre na mesma alegria e no mesmo êxtase; e nada era mais estranho do
que essa construção de um éden por dois condenados.
Eram indescritivelmente felizes.
De seu inferno haviam feito um céu. Este é teu poder, amor!
Dea ouvia Gwynplaine rir. E Gwynplaine via Dea sorrir.
Dessa forma, a satisfação ideal era encontrada, a perfeita alegria da vida
era realizada, o misterioso problema da felicidade era resolvido. E por quem?
Por dois miseráveis.
Para Gwynplaine, Dea era o esplendor. Para Dea, Gwynplaine era a
presença.
Presença: profundo mistério que diviniza o invisível e do qual resulta
este outro mistério, a confiança. Nas religiões, essa é a única coisa
irredutível.
Um irredutível que basta. Não vemos o imenso ser necessário, nós o
sentimos.
Gwynplaine era a religião de Dea.
Às vezes, louca de amor, ela se punha de joelhos diante dele, como uma
espécie de bela sacerdotisa adorando o ídolo risonho de um templo.
Imaginem o abismo e, no meio do abismo, um oásis de claridade, e
dentro desse oásis essas duas criaturas fora da vida, deslumbrando-se.
Nenhuma pureza era comparável a esse amor. Dea ignorava o que era
um beijo, embora talvez o desejasse, pois a cegueira, principalmente de uma
mulher, encerra sonhos, e, ainda que hesitante diante das abordagens do
desconhecido, nem todas rejeita. No tocante a Gwynplaine, a agitação da
juventude o deixava pensativo; quanto mais se sentia inebriado, mais se
intimidava. Poderia ter ousado tudo com essa companheira de infância, com
essa ignorante do pecado como da luz, com essa cega que só via uma coisa:
que ela o adorava. Mas receava roubar o que ela mesma lhe teria dado;
resignava-se, com uma melancolia satisfeita, a amar angelicamente, e o
sentimento de sua deformidade se reduzia a um augusto pudor.
Esses dois bem-aventurados habitavam o ideal. Ali eram esposos que se
mantinham a distância, como os astros. Nesse azul, trocavam o profundo
eflúvio que é, no infinito, a atração, e, na terra, o sexo. Trocavam beijos de
alma.
Sempre tinham vivido em comum; não se conheciam de outro modo,
apenas juntos. A infância de Dea coincidira com a adolescência de
Gwynplaine. Haviam crescido lado a lado. [...]
A CEGUEIRA DÁ LIÇÕES DE CLARIVIDÊNCIA
Às vezes, Gwynplaine se censurava. Fazia de sua felicidade um caso de
consciência. Acreditava que deixar-se amar por aquela mulher que não podia
enxergá-lo era enganá-la. O que ela diria se seus olhos se abrissem de
repente? Como lhe causaria repulsa aquilo que a atraía! Como recuaria diante
de seu medonho amado! Como gritaria! Como suas mãos tapariam seus
olhos! Como fugiria! Um penoso escrúpulo o atormentava. Dizia-se que,
monstro, não tinha direito ao amor. Hidra idolatrada pelo astro, era seu dever
esclarecer essa estrela cega.
Certa vez disse a Dea:
— Sabe que eu sou muito feio?
— Sei que você é sublime — respondeu ela.
Ele continuou:
— Quando você ouve todo mundo rir, é de mim que estão rindo, porque
sou horrível.
— Amo você — disse-lhe Dea.
Após um momento de silêncio, ela acrescentou:
— Eu estava morrendo; você me devolveu à vida. Com você aqui, o céu
está ao meu alcance. Dê-me sua mão, quero tocar em Deus!
Suas mãos se procuraram e se estreitaram; não disseram uma só palavra,
silenciados pela plenitude de se amar.
Ursus, mal-humorado, ouvira. No dia seguinte, estando os três juntos,
disse:
— Aliás, Dea também é feia.
Suas palavras não surtiram efeito. Dea e Gwynplaine não ouviam.
Absorvidos um pelo outro, raramente davam ouvidos aos epifonemas de
Ursus. Ursus era profundo em vão.
Dessa vez, no entanto, a precaução de Ursus dizendo “Dea também é
feia” indicava haver nesse douto homem um certo conhecimento da mulher.
É certo que Gwynplaine havia cometido, lealmente, uma imprudência. Dizer
a qualquer outra mulher cega que não fosse Dea: “Sou feio”, poderia ser
perigoso. Ser cego e apaixonado é ser duas vezes cego. Nessa situação,
criamos sonhos; a ilusão é o alimento dos sonhos; tirar do amor a ilusão é
tirar seu pão. Todos os entusiasmos entram de maneira proveitosa em sua
formação, a admiração física tanto quanto a admiração moral. Além disso,
nunca se deve dizer a uma mulher palavras de difícil compreensão, pois com
isso ela imagina coisas, e muitas vezes imagina errado. Um enigma em um
devaneio causa estragos. O choque de uma palavra que deixamos escapar
desagrega o que se unia. Às vezes acontece, sem que se saiba exatamente
como, de um coração se esvaziar insensivelmente por ter recebido o obscuro
choque de uma palavra solta no ar. O ser que ama dá-se conta de que sua
felicidade diminui. Nada é tão temível quanto esse lento vazamento de jarro
trincado.
Felizmente, Dea não era feita desse barro. A massa de moldar todas as
mulheres não servira para ela, que era de uma rara natureza. O corpo era
frágil, o coração não. O que estava no fundo do seu ser era uma divina
perseverança de amor.
Todo o tormento que nela causaram as palavras de Gwynplaine levou-a
um dia a dizer o seguinte:
— O que é ser feio? É fazer o mal. Gwynplaine só faz o bem. Ele é
bonito.
Em seguida, sempre usando essa forma de interrogação que é familiar às
crianças e aos cegos, disse:
— Ver? O que vocês entendem por ver? Eu não vejo, eu sei. Parece que
ver esconde.
— O que você quer dizer? — perguntou Gwynplaine.
— Que ver é uma coisa que esconde a verdade — respondeu Dea.
FIM
montagem de cenas de Gwynplaine e Dea retiradas
do filme "O Homem que Ri" de Paul Leni (1928)
SINOPSE | Gwynplaine é o homem cujo rosto carrega ao mesmo tempo as dimensões trágicas e cómicas da existência.
Gwynplaine é submetido, ainda criança, a uma cirurgia que desfigura o seu rosto, deixando nele uma cicatriz que denota um sorriso constante. Abandonado, encontra no seu caminho Dea, uma menina cega que acabara de perder a mãe, vítima do rigoroso inverno. As duas crianças cruzam o caminho de Ursus, um artista saltimbanco de coração generoso que decide abrigá-los. Juntos tornam-se numa família e passam a apresentar-se em espectáculos populares para ganhar a vida, facto que acaba por desencadear uma série de conflitos e dramas.
[in
Comunidade Cultura e Arte]
⁂
DEA por
M.ª Amália Vaz de Carvalho
Um dia Vítor Hugo pediu ás neblinas matinais dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que elas coroam a crista das montanhas e... fez
Déa!Que doce, vaporosa e lendária visão!
Não há nela coisa alguma que seja realidade!
Toca na terra ao de leve; não tanto que pareça filha
dela, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguém votado ás dores sem consolo.
É cega!
Amada por um monstro sabe verter-lhe na alma as
alegrias de um Deus!
Não vê o homem que a ama, vê o amor de que ele a veste! Abençoada cegueira que faz dois felizes!
As Filhas de Vítor Hugo in «Contos e Fantasias»
O Homem Que Ri
[excerto]
Victor Hugo,
1802-1885
título original: L'Homme Qui Rit, 1868
tradução de Regina Célia de Oliveira
editora Martin Claret, Lda (2020) | livro eletrónico