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-excerto-

Antoine Coypel, Study of the Blind (Louvre Museum)
Nelson acordou, abriu os olhos e viu tudo preto à sua volta. Sacudiu sua mulher,
que dormia:
“Elza, estou cego!”
Tinham seis meses de casamento. Nos últimos dias Nelson sentira dores de cabeça
e nos olhos, mas aquilo não o preocupara nem a ponto de pingar um colírio.
Mandou-a acender a luz, abrir a janela. Ao descobrir que não via nada, fechou de
novo os olhos e tapou-os com as mãos, esperando que fosse um pesadelo. Quando os
abrisse, enxergaria de novo. Mas nada. Nelson não chorou, não se desesperou.
Apenas suspirou. Elza o acudiu, mas não sabia o que fazer. Durante uma hora
Nelson ficou de olhos fechados, com medo de abri-los. Finalmente mandou-a ligar
para o doutor Paulo Filho, oftalmologista e jornalista, antigo companheiro de
seu pai no “Correio da Manhã”. Paulo Filho disse que fossem logo ao seu
consultório, no Centro. Aos poucos, o breu parecia dissipar-se. Quando saíram de
casa, Nelson já conseguia distinguir algumas luzes.
Nelson foi guiado por Elza pelas ruas, a caminho do médico, entre sombras fora
de foco. A vida era cruel e injusta. Descera aos infernos com a tuberculose e,
justamente quando esta parecia tê-lo deixado em paz, de repente, sem explicação,
a cegueira. Mas havia uma explicação. Nelson tivera uma cório-retinite ou uma
uveíte aguda, como seqüela da tuberculose. O resultado podia ser a formação de
um granuloma atrás do olho, mas, como os dois olhos tinham sido afetados, o mais
provável é que tivesse havido uma hemorragia intra-ocular. De qualquer modo, era
uma infecção. Isto num planeta que, em 1940, ainda não ouvira falar em
antibióticos.
O doutor Paulo Filho deu-lhe esperança, receitou-lhe anti-inflamatórios e
passou-lhe uma dieta estrita: não podia comer camarão, frutos do mar e carne de
porco, nem tomar uma gota de álcool. Não beber era fácil — Nelson tinha horror a
bebida. Mas gostava de camarão e de tudo que viesse do mar. Seguiu a dieta à
risca, embora ela tivesse tanta influência na sua melhora quanto se o médico o
obrigasse a tomar o “Sal de frutas Picot” ou freqüentar os “Barbadinhos”. Os
antiinflamatórios cumpriram seu papel: fizeram a infecção regredir e a visão
foi-lhe voltando aos poucos. Mas trinta por cento dela estava perdida para
sempre, e nos dois olhos.
Nos primeiros tempos Elza tinha de ajudar Nelson a fazer a barba, amarrar os
cadarços e dar sinal para o bonde — qualquer coisa que exigisse enxergar a mais
de um palmo de distância. Aos poucos, essa deficiência visual se estabilizou e
Nelson habituou-se a conviver com ela, a fazer as coisas sozinho. Óculos, nem
pensar. Não queria ser chamado de “caixa d’óculos” pelos moleques. Voltou a
trabalhar e, com a visão que lhe restava, acreditou que nada iria se alterar.
Enganou-se e teve a prova disto no primeiro jogo de futebol a que foi com Elza:
um Fluminense x Bangu, em Álvaro Chaves.
Aos quinze minutos do primeiro tempo, vendo Nelson torcer por uma arrancada do
Bangu na direção do arco tricolor, Elza perguntou:
“Bebeu, Nelson? Torcendo contra o Fluminense?”
O Fluminense estava de branco e o Bangu com o seu uniforme listrado de vermelho
e branco, dos “Mulatinhos rosados”. Nelson confundiu-o com a camisa de listras
tricolores e, sem saber, estava torcendo pelo inimigo. Nunca mais iria assistir
a uma partida direito. Via vultos correndo pelo campo e só fazia uma idéia do
que estava acontecendo porque as torcidas têm um código coletivo, de uhs e ohs,
além dos gritos de gol. Impressionante é que isso nunca o tenha impedido de ir
ao futebol e, durante muitos anos, escrever e falar sobre ele. (Mas sempre
tomando a precaução de ter alguém ao seu lado para “irradiar-lhe” o jogo.)
FIM

A vida de Nelson Rodrigues (1912-1980) foi mais espantosa do que qualquer uma de
suas histórias. Mas foi de sua vida, e da vida de sua trágica família, que
Nelson Rodrigues extraiu a obsessão pelo sexo e pela morte. Reconstrução
monumental e brilhante da vida do polémico jornalista, escritor e dramaturgo.
Ruy Castro procura responder a perguntas recorrentes sobre Nelson Rodrigues:
"génio ou louco?", "tarado ou santo?", "reacionário ou revolucionário?"
Companhia das Letras
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excerto de:
O ANJO PORNOGRÁFICO
-A VIDA DE NELSON RODRIGUES-
por
RUY CASTRO
COMPANHIA DAS LETRAS
10.Jul.2017
Publicado por
MJA
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