Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual


Nídia, a Rapariga Cega de Pompéia

Edward Bulwer-Lytton

Nídia cega - Francesco Jerace, 1871
Nídia cega - baixo-relevo de Francesco Jerace, 1871
 

Puxado por dois magníficos cavalos de puro sangue e guiado por um rapaz de harmoniosos traços, figura prodigiosamente reproduzida pelos escultores atenienses, o carro estacou.

Facilmente poder-se-ia descobrir a nobre origem do condutor pelos belos cabelos dourados que lhe tocavam os ombros.

— Não te esqueças da ceia de hoje à noite — recomendou, debruçando-se para Cláudio.

— Como iria esquecer um convite de Glauco?

— Para onde vais agora?

— Vou aos banhos, mas tenho ainda uma hora disponível.

— Nesse caso, acompanho-te no passeio — disse Glauco.

Assim falando, desceu do carro, acariciou um dos cavalos que relinchava de orelhas empinadas e perguntou:

— Que achas de Filas? Não é um lindo animal?

— Digno de Febo! Digno de Glauco! — respondeu o patrício.

Caminhando a passos lentos e conversando sobre mil futilidades, os dois jovens atravessaram a apinhada rua, parando aqui e ali diante de um estabelecimento para apreciar os suntuosos murais que decoravam seus interiores. Mas parecendo estátuas vivas, escravas passavam sustentando na cabeça ou nos ombros ânforas de bronze. A rua desembocava numa pequena praça, onde se viam ainda, àquela hora, camponeses acocorados junto dos cestos cheios de frutas maduras ou de flores de vivo colorido. De repente, diante de um fino e gracioso templo, os jovens tiveram a atenção atraída pelo canto de uma meninota que se fazia acompanhar por um instrumento de três cordas. Quando terminou a estranha e semisselvagem canção, circulou oferecendo flores do seu cestinho aqueles que a haviam escutado. E ouviu-se o barulho dos sestércios caindo no fundo do cesto. Não a recompensavam apenas pelo prazer da melodia, mas principalmente por compaixão —a cantora era cega.

— Eis aqui a pequena tessaliana! — exclamou Glauco, reconhecendo a infeliz. — Desde que regressei a Pompeia não a tinha visto ainda.

— E, acotovelando-se entre os que se comprimiam em volta dela, aproximou-se, atirou umas moedas no cesto e disse-lhe: — Tua voz está cada dia mais bela. Dá-me um raminho de violetas.

Perturbada ao ouvir a voz do ateniense, a jovem ruborizou-se, mas, contendo a emoção, entregou-lhe o ramo de flores, balbuciando:

— Muito obrigada. — E, num tom mais baixo ainda, continuou:

—Então voltaste, Glauco?

— Sim, minha querida. Estou de volta a Pompeia e meu jardim ressente-se da tua falta. Não permitirei que outras mãos toquem nas minhas flores. Espero-te amanhã, Nídia.

A ceguinha abriu o semblante num sorriso de júbilo, deixando à mostra os dentes alvíssimos e nada respondeu. Glauco prendeu o raminho de violetas no peito e afastou-se do grupo despreocupadamente.

— É tua protegida essa menina? — indagou Cláudio.

— Sim, tenho muita pena dela. Somos da mesma terra, perto de Olimpo.

— De Tessália? A terra das feiticeiras?

— Por acaso não são feiticeiras todas as mulheres? O ar de Pompeia parece um filtro de amor, pois todas as carinhas femininas me deixam louco!


***

Na porta de uma espelunca situada num afastado bairro de Pompeia, frequentado por vagabundos e miseráveis, estava um grupo de homens de pescoço taurino, músculos salientes, verdadeiras estátuas de bronze. Eram gladiadores. Uma pintura mural, representando lutadores bebendo, e uma prateleira repleta de jarros de vinho, esclareciam o ramo de comércio do estabelecimento. No seu interior, em volta de mesas pequenas, fregueses bebiam e jogavam dados.

Stratonícia não parava, de um lado para o outro, numa incansável atividade, servindo o vinho das ânforas para que os fregueses não parassem de beber.

— Faz muito tempo que não vejo tua escrava, aquela ceguinha. Que fim levou? — perguntou Tetraídes.

— A pobre é muito fraquinha para vos servir — respondeu a taverneira. — Prefiro mandá-la à cidade vender flores e cantar melodias tessalianas. Rende-nos muito mais do que trabalhando aqui...— Onde foste descobrir escrava tão formosa? — interrogou Lidon. — Com tal beleza, bem poderia ser aia de qualquer rica matrona!

— Concordo e aliás espero que seus atributos me proporcionem uma boa fortuna, quando a vender mais tarde. Foi uma sorte encontrá-la! Tinha ido ao mercado em busca de uma escrava que substituísse a falecida Stáfila, que fazia todo o serviço pesado, mas já resolvera desistir da compra, pois os preços eram elevadíssimos.

Foi quando um mercador, percebendo a minha intenção, puxou-me pela túnica e disse: “Espera, patroa, tenho um negócio magnífico para propor-te. Uma escrava linda e nada cara, quer ver? É pequenina, mas esperta e de boa raça. Além disso, canta maravilhosamente, a tessaliana.” Acompanhei o mercador e agradou-me o aspecto da pequena com seu arzinho tímido. Assim que paguei, o tratante sumiu — me vendera uma cega. Fiquei furiosa e fui me queixar ao magistrado, mas o espertalhão tinha desaparecido de Pompeia. Afinal me resignei, pois se Nídia de nada serve para o serviço da casa, pode perfeitamente guiar-se pelas ruas com o auxílio de um bastão e nos traz diariamente um punhado de sestércios vendendo flores que colhe no jardim. Os moços ricos gostam das grinaldas que ela tece à moda de Tessália e pagam-lhe mais que às outras floristas. Tudo o que ganha traz religiosamente para casa. Acho que a pequena foi roubada de pais ricos, a julgar pela educação que tem. Canta e faz-se acompanhar muito bem pela citara. E esta não é a única habilidade que possui. Ainda recentemente... bem... isto é segredo!

— Segredo? desembucha duma vez, esfinge! — exclamou Lidon.— Chega de conversa! — interrompeu Sporus. — E melhor que sirvas logo a comida...

Stratonícia correu e em seguida voltava trazendo uma travessa com enormes pedaços de carne crua, alimento ideal para manter os gladiadores em forma. Como lobos famintos, os lutadores devoraram tudo regado com o generoso vinho.


***

Profissão honrosa, mas nada lucrativa, o sacerdócio era privilégio dos nobres patrícios na antiga Roma. Só muito mais tarde é que foi permitido o exercício dessa atividade a todas as classes sociais. Eis porque Caleno, neto dum liberto, era sacerdote de Ísis.

Seu único parente vivo em Pompeia era Burbo, ao qual, mais do que os laços de sangue, unia-o suspeita amizade. Frequentemente Caleno evadia-se do templo de Ísis e, disfarçado como convinha a um ministro da deusa, entrava sorrateiramente na taverna de Burbo pela porta traseira. De natureza viciosa e brutal, divertia-se arrancando a máscara da hipocrisia que a profissão o obrigava a ostentar.

Nesse momento ouviu-se um ligeiro ruído na porta e Caleno, sobressaltado, enfiou o capuz na cabeça.

— Não te assustes — tranquilizou-o Burbo. — É a ceguinha.

Nídia abriu a porta e entrou.

— Que aconteceu, menina? Estás tão pálida! Terminou muito tarde o banquete de ontem? Precisas descansar!

A jovem não respondeu, mas deixou-se cair num banco, demonstrando grande desânimo; de repente, sua fisionomia mudou de expressão e, com voz decidida, exclamou:

— Mata-me de fome, senhor, espanca-me, mas não tornarei àquela infame casa!

— Tens a ousadia de desobedecer-me, Nídia? — disse Burbo com um olhar feroz.

— Repito que não irei mais àquele lugar — insistiu a infeliz, cruzando os braços.

— Muito bem, delicada vestal, neste caso irás à força!

— A cidade inteira ouvirá meus gritos — ameaçou a menina.

— Serei forçado a amordaçar-te — retrucou Burbo, sorrindo com maldade.

— Os deuses não me abandonarão! Queixar-me-ei às autoridades.

— Lembra-te do juramento que fizeste! — interveio Caleno, que se mantivera calado até ali.

— Oh, como sou desgraçada!

Stratonícia entrava no quarto e, estranhando a atitude de Nídia, inquiriu violentamente o marido:

— Que está acontecendo aqui? Que fizeste à pequena?

— Calma, mulher! Se gostas de belas túnicas e cintos novos, trata de educar melhor tuas escravas...

— Que significa tudo isto?

Nídia caiu aos pés da taverneira abraçando-a pelos joelhos e, erguendo os olhos como se a estivesse vendo, suplicou soluçando:

— Minha boa ama! És mulher e foste jovem como eu!

Compadece-te de mim, não posso mais comparecer a esses horríveis festins!

—Tolices, menina! — disse a taverneira, repelindo a mão de Nídia. — Escravas não têm dengos!

— Escuta este som, mulher — disse Burbo, fazendo tilintar as moedas. — Por Pólux, se não dominares essa criatura, nunca mais ouvirás este doce ruído.

— A cega está esgotada agora — falou Stratonícia, voltando-se para Caleno. — Quando vieres outra vez, estará mais dócil.

— Quem está aqui? Quem está aqui? — perguntou assustada Nídia, lançando penosos e inúteis olhares em redor.

— É incrível que esta menina não enxergue com olhos tão claros! — exclamou Caleno, observando-a.

— Quem está aqui? — repetiu Nídia aflita. — Pelos deuses, falai! Quero saber quem está aqui!

— Leva-a daqui — ordenou Burbo, impaciente. — Detesto lágrimas...

Stratonícia empurrou a infeliz pelos ombros, mas Nídia escapuliu e, alcançando o centro do quarto, exclamou com altivez:

— Tenho-vos servido fielmente. Oh, se minha mãe visse a desgraça que se abateu sobre sua pobre filha! Mandai-me fazer o que vos apetecer que eu obedecerei, mas não me obrigueis a voltar àquele lugar ímpio! Juro que se tentardes me forçar, buscarei a proteção do pretor. Por todos os deuses, juro que me queixarei!

A ameaça enraiveceu Stratonícia: agarrou a cega pelos cabelos para arrancá-los, mas antes que sua mão obedecesse aos furiosos instintos, teve um rasgo de lucidez e percebeu a asneira que seria destruir coisa de tal valor. Arrastou-a para um canto e, tomando de uma corda que pendia da parede, açoitou a escrava, cujos gemidos encheram a casa toda.

Enquanto isso, lá fora, curvando-se ligeiramente para transpor a porta, Lépido tinha entrado na taverna, seguido de Cláudio e de Glauco. Respeitosamente os gladiadores se levantaram para saudar os três nobres patrícios.

— Salve, amigos! — exclamou Lépido. — Vejamos quem merecerá nossas apostas nos próximos combates.

— Belos animais! — disse Cláudio, virando-se para Glauco. — São dignos de sua profissão.

— Preferia que fossem guerreiros — discordou o ateniense.

Lépido avançou e começou a apalpar os músculos daqueles gigantes, admirando com entusiasmo.

— Quem enfrentarás? — perguntou a Níger.

— Sporus desafiou-me. Lutaremos até que um morra.

— Assim espero — respondeu Sporus, piscando o olho.

Cláudio bateu no ombro de Níger, prometendo:

— Encheremos tua bolsa de sestércios. Nada temas, pois serás o vencedor. Vamos, Glauco, aposto em Níger!

— Não disse que seria eu o preferido? — rosnou o gigante. — Estás condenado à morte, pobre Sporus!

— Mas onde está Burbo? — lembrou-se Cláudio. — E a encantadora Stratonícia?

— Estão lá dentro — respondeu Níger, apontando para a porta dos fundos.

Foi nessa altura da conversa que se ouviram os gritos de Nídia:

— Não me maltrates! Já não basta minha desventura? Sou uma cega indefesa!

— Esta voz é de minha linda jardineira — disse Glauco, correndo em direção à porta e abrindo-a. — Miserável! — gritou, avançando e arrancando a corda ensanguentada da mulher que torturava Nídia. — Como tens coragem de bater nessa criança? Nídia, minha querida!

— Oh, Glauco! — exclamou a infeliz, soluçando e abraçando-o.

— Não podes impedir que uma mulher livre castigue a escrava que lhe pertence! — bradou a megera. — A despeito da túnica e dos horríveis perfumes que usas, vê-se que és um estrangeiro. Nenhum cidadão romano seria tão insolente!

— Cala-te! — replicou Cláudio, entrando no quarto, acompanhado de Lépido. — Glauco é o meu melhor amigo e exijo que o respeites.

— Quero a minha escrava — berrou a taverneira, avançando para Glauco e segurando-o pelo ombro.

— Afasta-te! — ordenou Glauco. — Nem que todas as Fúrias tuas irmãs viessem em teu auxílio eu a entregaria. Acalma-te, Nídia, um ateniense jamais abandona os oprimidos.

Pretendendo apaziguar, Burbo ergueu-se e disse:

— Ora, para que tanta bulha por causa de uma escrava?

Mulher, desculpa o patrício e perdoa por esta vez as impertinências desta menina — e tentou arrastar Stratonícia.

— Parece que havia mais alguém aqui — observou Glauco.

Com efeito, prudentemente Caleno havia se retirado, evitando ser visto pelos visitantes. Com ar indiferente, Burbo respondeu:

— Ah, era um conhecido meu, inimigo de desavenças. Foi embora... Vamos, Nídia, não te pendures assim na túnica desse nobre senhor. Já estás perdoada, podes retirar-te.

A ceguinha, porém, agarrava-se firmemente suplicando com voz ardente:

— Não me abandones, Glauco!

Enternecido com o apelo da escrava, Glauco puxou-a e sentoua sobre os joelhos. Com a expressão dum pai que procura suavizar o sofrimento do filho, enxugou com os compridos cabelos da jovem o sangue que lhe escorria, dirigindo-lhe palavras carinhosas. Era tão espontânea e nobre a sua atitude que a própria Stratonícia se comoveu:

— Quem haveria de dizer que Nídia teria semelhante honra!

Glauco dirigiu-se ao taverneiro:

— Queres vender-me a tua escrava? Aprecio sinceramente suas habilidades. Canta e tece grinaldas como ninguém.

Nídia teve um estremecimento de felicidade e voltou o rosto para todos os lados como se pudesse ver.

—Vender a nossa escrava? Nunca! — gritou Stratonícia.

A ceguinha suspirou novamente e encostou a cabeça no peito do salvador como se implorasse proteção. Foi então que Cláudio interveio decididamente:

— Ou vendem Nídia ou fecho esta espelunca! Basta uma palavra minha ao edil Pansa, que é meu primo e de quem dependes, Burbo!

— A menina vale o seu peso em ouro — murmurou o taverneiro, coçando a cabeça.

— Pagarei o que pedir — prometeu Glauco.

— Bem, me custou seis sestércios, mas hoje vale muito mais...

—insinuou Stratonícia.

—Dou vinte sestércios — interrompeu o ateniense. — Vamos já fechar o negócio com o magistrado.

— Então irei para tua casa? — sussurrou Nídia, com jubiloso sorriso.

— Sim, minha querida tessaliana, e teu trabalho de agora em diante será cantar hinos da Grécia à mais adorável das mulheres de Pompeia.

Uma sombra de tristeza cobriu o delicado rostinho de Nídia e, pegando a mão do seu protetor, suspirou fundo e perguntou:

— Pensei que fosse para tua casa...

— Irás... por enquanto.


***

Os primeiros raios do Sol brilhavam sobre o jardim de Glauco e o ateniense estava estendido na fresca relva, protegido por um dossel de flores, quando Nídia chegou, pisando cautelosamente no piso de mármore. Vestida com uma diáfana túnica, sobraçava um regador. Adivinhando ou reconhecendo pelo perfume, detinha-se diante das flores, apalpava-as delicadamente e regava-as com gestos juvenis, mas compenetrados. Era comovente o espetáculo da cegueira tateando de flor em flor, semelhante a uma ninfa.

— Vem cá, Nídia!

O som da voz adorada fez a jovem parar, ruborizada; pousou o regador no chão e aproximou-se de Glauco: era incrível como descobria o caminho sem magoar, nem de leve, uma flor. Vendo-a assim, ninguém diria que fosse cega.

— Nídia querida — começou o ateniense com doçura, alisando os macios cabelos da jovem — os deuses do meu lar sorriram-te desde que aqui chegaste há três dias. Estás feliz?

— Oh, certamente!

— Deves esquecer os sofrimentos de tua vida passada. E agora que já estás refeita das emoções, quero pedir-te um favor.

— Que felicidade poder ser-te útil! — respondeu a jovem, unindo as mãos.

— Apesar de tua pouca idade, serás minha confidente. Já ouviste falar de Ione?

Nídia ficou pálida como as estátuas que a rodeavam; após um penoso silêncio, retrucou:

— Sim. Ouvi dizer que é napolitana e extraordinariamente bela.

— Tem razão. É mais bela que o dia. Sua origem é grega, pois só a Grécia propicia semelhante formosura. Nídia, quero que saibas: estou apaixonado!

— Já o suspeitava — murmurou a ceguinha com estranha serenidade.

— Amo-a com toda a minha alma e desejo que vás à casa dela transmitir-lhe meu sentimento. Terás a ventura de penetrar na sua alcova, de inebriar-te com a sua voz e de respirar a atmosfera em que ela vive.

— Vou separar-me de ti?

— Ficarás com Ione — respondeu Glauco, com uma inflexão que parecia dizer: “Que mais desejas?” A ceguinha não se conteve e caiu em prantos. Glauco atraiu-a para junto do peito e afagou-a fraternalmente.

— Minha querida, o que é isso? Ione é bondosa e a fará feliz.

Apreciará tuas qualidades e compreenderá o encanto da tua simplicidade, tão semelhante à dela. Será tua companheira, tua irmã. Vamos, continuas chorando? Está bem, não vou obrigar-te a fazer uma coisa contra tua vontade. Se não queres me dar este prazer...

— Estou aqui para obedecer a tuas ordens. Pronto, já passou.

— Agora reconheço a minha Nídia — disse Glauco, beijando sua mãozinha. — Vai, pois, à casa de Ione e se eu estiver enganado quanto à sua bondade, se não te sentires feliz junto dela, voltarás para cá. Além disso, não te dou a Ione, apenas cedo-te a ela, até o dia, que espero não esteja longe, em que a casa de Ione e a minha sejam a mesma. Vai, minha querida, e, aconteça o que acontecer, terás sempre refúgio aqui.

Nídia sentiu o coração oprimido e as palpitações dificultavamlhe a respiração; vencendo, porém, a agonia, resignou-se.

— Colhe no jardim as flores mais belas para levá-las a Ione, junto com uma carta em que tento exprimir meu amor. Observa atentamente as modulações de sua voz para informar-me depois se minha declaração foi recebida com agrado. Algo misterioso me afasta daquela casa e a dúvida me tortura. És hábil e inteligente e saberás adivinhar o motivo de tal crueldade. Quando estiveres junto dela, procura pronunciar meu nome com frequência e insinuar minha paixão, mas faze com cuidado para que ela não perceba a missão de que te encarreguei. Penetra o sentido de suas palavras, oh, Nídia, sê minha leal amiga, advoga minha causa e eu me sentirei recompensado pelo pouco que fiz por ti. Não sei se me compreendeste... disse alguma coisa que não pudesses entender?

— Não.

— Posso contar com a tua ajuda?

— Sim, de coração.

— Então apressa-te. Colhe as flores e depois vem encontrar-me de novo. Passou a tristeza?

— Sou tua escrava, Glauco. Não tenho o direito de mostrar alegria ou tristeza.

— Que os deuses abençoem teu nobre coração! — exclamou Glauco emocionado, beijando-a afetuosamente, sem suspeitar do imenso amor que inspirara à ceguinha. — Não pretendo ser teu senhor. És livre...

— Não tornes a falar em liberdade, Glauco. Ser tua escrava é para mim uma felicidade. Não me darás a ninguém, como prometeste?

— Cumprirei a promessa.

Depois de receber a carta e as últimas instruções, Nídia beijou a mão de Glauco e, cobrindo o rosto com o véu, preparou-se para sair. Quando transpunha a porta, ergueu os braços e exclamou:

— Três dias de inexprimível felicidade gozei sob este abençoado teto! Que a paz reine em tua casa, Glauco, e que os deuses te protejam! Meu coração se despedaça ao separar-me de ti e suas pulsações só me falam de morte!...

Quando a escrava de Ione lhe anunciou a mensageira de Glauco, a napolitana vacilou, mas ao saber que se tratava de uma cega e que insistia em transmitir pessoalmente a mensagem, concordou em recebe-la. “Que pretenderá ele?”, pensava com o coração ansioso, ouvindo os passos de Nídia.

Guiada por uma das escravas, a ceguinha apareceu e falou com voz tímida:

— Nobre Ione, fala alguma coisa para que eu possa saber onde estás. Depositarei aos teus pés o presente de que sou portadora.

— Encantadora jovem — respondeu Ione — não te arrisques a caminhar neste chão escorregadio. Minha escrava trará o que tens para entregar-me.

Nídia, porém, já se adiantava, orientando-se pelo som da voz e, ajoelhando-se diante de Ione, estendeu-lhe as flores:

— Prometi entregar-te pessoalmente.

Ione pegou as flores e colocou-as sobre a mesa; depois, delicadamente ajudando a ceguinha a se levantar, convidou-a a sentar-se. Modestamente Nídia recusou e, tirando a carta que trazia presa ao cinto, explicou:

— Trago-te também esta carta do meu senhor.

Sentiu Nídia que a mão de Ione tremia ao receber a missiva. E de pé, cabeça baixa, braços cruzados sobre o peito, permaneceu diante da altiva e majestosa Ione enquanto está lia as seguintes palavras:

Glauco escreve a Ione o que seus lábios não ousariam dizerlhe.

Ione não está doente, porque as escravas assim o afirmam e isso já é um grande conforto. Terá Glauco ofendido a Ione? Eis uma indagação que não se atreve a fazer às escravas. Há cinco dias que não te vejo e se lhe perguntassem se o Sol brilhou durante esse tempo não saberia dizê-lo, porque o meu Sol é Ione. Ofendi-te?

Receio ser demasiado atrevido enviando-te esta mensagem que meus lábios não conseguiriam exprimir. Longe de ti, privado da ventura de contemplar-te é que compreendo como me subjugaram teus encantos. Este afastamento enche-me de tristeza, mas dá-me coragem. Negas-te a ver-me e a todos os cortejadores que te cercavam. Pobre de mim! Como podes igualar-me a eles? Sabes que não sou feito do mesmo barro. Terei sido vítima de alguma calúnia? Como pudeste dar ouvidos a intrigas? Ainda que o próprio oráculo de Delfos me viesse dizer que eras indigna do meu amor eu o repeliria.

Ah. Ione! Como me persegue a recordação da última noite em que nos encontramos e do teu olhar ao ouvir o canto que te dediquei! Ainda que queiras, não poderás negar que o mesmo sentimento nos une, sentimento confessado pelos olhares que trocamos, embora de lábios cerrados. Permite que te veja e, se não lograr convencer-te com minhas palavras, resignar-me-ei. Se minha ardente juventude e meu sangue ateniense arrastaram-me aos prazeres profanos, antes de conhecer-te, pude em compensação melhor gozar a tranquilidade que encontrei no teu amor.

Conhecendo-te, escapei de um naufrágio, Ione. Como podes ser menos bondosa com um compatriota se és gentil com os estranhos?

Concede-me a ventura de falar-te. Envio-te estas flores, cuja fragrância é mais eloquente do que as palavras mais temas, pois simboliza o amor. A portadora é também uma estrangeira. Seus antepassados repousam sob o belo céu grego, mas a pobre é escrava e cega. Acolhe-a em tua casa com a compaixão que merece. É meiga, dócil, canta com extraordinária suavidade e cuida das flores com a habilidade duma Clóris. Mas se não gostares dela, poderás mandá-la de volta. Ouso fazer-te uma última pergunta, suplicando que perdoes a minha audácia: Por que dedicas tão alta estima ao taciturno egípcio? Arbaces não é homem de confiança, garanto-te. Suspeito que terá sido ele quem me intrigou junto a ti, pois desde que me surpreendeu contigo, nunca mais fui recebido em tua casa. Invejo esta carta que roça tuas mãos e recebe a maravilha do teu olhar. Salve, Ione!

À medida que lia, parecia a Ione que um nevoeiro se dissipava.

Censurava-se por ter acreditado em Arbaces, duvidando do amor de Glauco. Lágrimas de pesar rolaram-lhe pelas faces, molhando a carta. Depois, voltando-se para Nídia que permanecia de pé, falou:

— Como te chamas, menina?

— Nídia.

— Qual é a tua pátria?

— Sou de Tessália, perto do Olimpo.

— Pois ficarás comigo. Senta-te aqui que vou escrever a Glauco.

Eis a carta de Ione:

Espero-te amanhã, Glauco. Se fui injusta contigo, dir-te-ei agora o que me contaram a teu respeito. Não receies o egípcio nem ninguém. Apressadamente expresso nestas linhas o mesmo sentimento confessado na tua carta. Que os deuses te cumulem de venturas.

Sem reler o que havia escrito, voltou-se para perto de Nídia.

— Já terminaste? — perguntou a cega.

— Sim.

— Glauco ficará feliz com a resposta?

Ione não respondeu, nem Nídia pode ver o rubor que cobriu as suas faces.

— Se tua carta contém palavras frias, manda que a escrava que me trouxe aqui a leve — continuou Nídia. — Glauco ficará profundamente triste. Mas se são palavras de carinho, quero ser eu a mensageira. Retornarei esta tarde para junto de ti.

— Mas por que queres ser a portadora da carta?

— Oh, Ione! Compreendo que tua resposta o encherá de júbilo.

Nem poderia ser de outro modo. Quem ficaria insensível a Glauco?

— Quanto entusiasmo, Nídia! Glauco deve ser muito bom para ti!

— Bom? Glauco fez muito mais por mim do que os deuses e a Fortuna. Foi um amigo.

A melancólica dignidade com que a ceguinha fez esta declaração comoveu Ione, que beijou a escrava.

— Não precisas corar ao exprimir tua gratidão, Nídia. Leva-lhe a carta e volta para junto de mim. Serás a irmã que nunca tive.

Humildemente a tessaliana beijou a mão da rival e perguntou um tanto perturbada:

— Posso pedir-te um favor?

— O que quiseres, Nídia.

— Todos dizem que és belíssima, mas não posso contemplar-te.

Permite que eu toque teu rosto com as mãos. É à minha maneira de ver.

E, aproximando-se de Ione, delicadamente roçou a cútis da grega, cuja beleza apenas a mutilada estátua da Vênus de Milo poderia dar uma pálida ideia; depois, tateou os sedosos cabelos, a suave pele do pescoço, os braços bem torneados.

— Agora sei que és realmente bela! — exclamou ao terminar o exame. — Tua imagem ficará para sempre gravada nas trevas em que vivo.


***

Para os corações que se amam sem barreiras, os dias são uma sucessão de sonhos e poesia. Ione já não escondia de Glauco o imenso amor que lhe devotava e a conversa do casal de apaixonados era uma troca de ternas e castas confissões; viviam a alegria do presente confiantes na felicidade futura.

Corria o mês de agosto, a data do casamento fora fixada para os primeiros dias de setembro e a fachada da casa de Glauco já estava festivamente ornamentada com grinaldas de flores. Escravo da paixão, o ateniense abandonara completamente a jovial companhia dos amigos, passando todo o tempo com a amada, navegando deliciosamente em barcos alados ou caminhando na placidez do campo, entregue a pueris e entusiasmados projetos.

Preso ao leito, Arbaces não os perturbava, convalescendo lentamente do golpe. Nídia era a única e constante companheira dos amantes, mas estes nem de longe suspeitavam a tristeza que o amor de ambos causava à pobre cega. Contudo, intrigavam-nos as frequentes mudanças na atitude da jovem, ora meiga, ora irritadiça, revelando-se às vezes uma criança caprichosa, às vezes uma mulher reservada. Compadecidos por sua desventura, abstinham-se de exercer autoridade sobre ela, tolerando-a com o mesmo complacente carinho que as mães dispensam aos filhos doentios.

Quando ia à casa do protetor tratar das flores, Nídia constantemente aventurava-se até o quarto de Glauco procurando puxar conversa, mas logo se retirava com a alma dilacerada, por ver o grego desviar sistematicamente o diálogo para o objeto do seu amor. A paixão de Glauco por outra mulher despedaçava-lhe o coração e censurava-se por ter contribuído para salvar a rival das garras de Arbaces. No início, a surpresa provocou-lhe confusas sensações; depois, foi como se uma derrocada a abatesse, lançando-a num enorme vácuo e, após o cruel desencanto, acordou nela um incontrolável ciúme. Prematuramente amadurecida pelas misérias da infância e pelas degradantes cenas de devassidão a que assistira nos banquetes do egípcio, germinava nas suas entranhas a semente do mal, prestes a se desenvolver. Amava Glauco com todas as forças do seu ferido coração, mas hesitava entre o temor de ser descoberta e a revolta de que ele jamais houvesse suspeitado do seu afeto. Quanto a lone, estimava-a por ser amada por Glauco, mas a mesma razão fazia-a odiar, num angustiado conflito de sentimentos.

Essa violenta e permanente luta íntima acabou por abalar a saúde de Nídia. Já não refreava o pranto e suas faces tornaram-se pálidas.

Certa manhã, quando se achava entregue à tarefa de cuidar das flores, trabalho que constituía seu único consolo, o ateniense chamou-a. Estava ele escolhendo joias que o mercador lhe trouxera para presentear a noiva.

— Vem cá, Nídia — falou Glauco. — Esta corrente é para ti.

Chega para cá que quero colocá-la no teu lindo pescoço... Pronto!

Vê como lhe assenta bem, Servílio!

— Admiravelmente! — concordou o mercador. — E acrescentou com a lisonja peculiar dos joalheiros: — Quando estes brincos aqui ornarem as orelhas de lone, verás como as minhas joias conseguem realçar ainda mais sua beleza.

— Vamos ver — disse Glauco. — Busco para lone uma joia digna de sua formosura, mas ainda não a encontrei.

O tímido sorriso com que Nídia demonstrara sua gratidão desvaneceu-se instantaneamente e ruborizou-se. Com um gesto impulsivo, arrancou a corrente do pescoço e atirou-a no chão.

— Que é isso, Nídia? Não gostaste do presente? Estás zangada?

— Só me tratas como escrava ou como criança! soluçou Nídia, fugindo para ocultar as lágrimas.

Magoado, Glauco não tentou segui-la e continuou examinando as joias com o mercador, que acabou persuadindo-o a adquirir tudo.

Mais tarde, preparou-se e, tomando o carro, rumou para a casa da noiva, esquecido da ceguinha e da desagradável cena. Passou a manhã em companhia de Ione, depois foi aos banhos. Regressou após a ceia das três horas para mudar de traje e tão distraído ia que não viu a cega quando atravessou o átrio. Permanecia ela no mesmo lugar para onde se retirara a fim de desabafar sua raiva e esperava-o ansiosamente. Seu coração pulsou mais forte quando lhe ouviu os passos e seguiu-os mentalmente.

Estendido no leito do aposento preferido, Glauco repousava pensativo, quando alguém lhe tocou a roupa de leve. De joelhos diante dele estava Nídia com um raminho de flores na mão.

— Pela primeira vez ofendi-te, Glauco. Oh, não fiz por mal, creia-me. Prefiro morrer a causar-te um desgosto. Vê; estou usando a corrente novamente. Nunca mais a tirarei do pescoço... É um presente teu... compreendes?

— Querida Nídia, não penses mais nisso — respondeu Glauco, erguendo-se do leito e beijando-a na testa. — Mas o que houve?

Não compreendi por que te zangaste!

— Não me perguntes — retrucou Nídia, corando. — Sou uma criança, como sempre dizes, e uma criança comete tolices que não sabe explicar.

— Já estás bem crescidinha, Nídia, e deves dominar teus impulsos se queres ser tratada como mulher. Não estou te repreendendo, querida, apenas desejo o teu bem.

— Entendo — respondeu Nídia. — Devo aprender a controlarme, a ocultar meus sentimentos. Prometo que tentarei, Glauco, mas sei que isso é muito difícil. Por acaso serias capaz de dominar teu amor por Ione?

— Tratando-se de amor é diferente, Nídia.

— É o que penso — continuou a cega com um sorriso melancólico. — Aceitas estas flores que te trouxe? Podes fazer delas o que quiseres, inclusive oferecê-las a... Ione.

— Não, querida, não as darei a ninguém — replicou o ateniense percebendo na vacilação da jovem um ciúme infantil e suscetível. — Senta-te aqui ao meu lado e tece uma guirlanda para mim.

Radiante, Nídia sentou-se ao lado de Glauco e seus delicados e ágeis dedos começaram a trabalhar as flores.

— Como são sedosos os teus cabelos! — exclamou o grego, afagando-lhe meigamente a cabeça. — Tua mãe devia orgulhar-se de ti!

Nídia suspirou e nada disse. Nunca abrira a boca para falar da sua misteriosa origem. Pressentia que não nascera escrava, mas, nobre ou obscuro, evitava referir-se ao seu nascimento.


***

Nydia, the Blind Flower Girl of Pompeii - Escultura de Randolph Rogers, 1855
Nydia, a Florista cega de Pompéia - Escultura de Randolph Rogers, 1855

“Como Ione deve ser feliz! Sempre ao lado de Glauco, vendo-o e ouvindo sua voz!” Assim pensava a infeliz cega quando, à noitinha, regressava à casa da ama. De repente, uma voz feminina interrompeu seus pensamentos.

— Aonde vais, florista, sem teu cestinho. Vendeste todas as flores?

Era Júlia, a filha de Diomedes que, de véu levantado, passava acompanhada do pai e de um escravo. Suas feições e o desembaraço de suas atitudes davam-lhe mais a aparência de uma mulher feita do que a de uma jovem donzela.

— Não vendo mais flores, nobre Júlia — respondeu Nídia, reconhecendo a voz.

— Então é verdade que foste comprada por Glauco?

— Estou a serviço de Ione, a napolitana — retrucou a ceguinha.

— Vamos andando! ordenou Diomedes, puxando a capa para proteger o queixo. — A noite está fria. Se quiseres tagarelar com essa escrava, traze-a para casa.

— Vem conosco, Nídia — falou Júlia, com o tom da pessoa que está habituada a dar ordens. — Tenho muitas coisas para te perguntar...

— Hoje não posso, nobre Júlia. Bem sabes que não sou livre.

— Ora, então a meiga Ione seria capaz de castigar-te? Não me digas que é uma segunda rainha Talestris, de rosto suave e coração duro... Bem, nesse caso, fica para amanhã. Mas não deixes de vir, sim? Lembra-te que sempre fui tua amiga!

— Irei sem falta, Júlia.

Novamente Diomedes apressou a filha e esta seguiu-o, lamentando a impaciência paterna que a impedia de interrogar imediatamente a cega sobre um assunto que a interessava vivamente.

No dia seguinte, em seu andar hesitante, procurando com o bordão o desconhecido caminho, Nídia chegou à porta da casa de Diomedes.

— Posso entrar? A nobre Júlia está em casa? indagou timidamente.

O escravo Medon ergueu os olhos e, reconhecendo a ceguinha, guiou-a até a escadaria que conduzia ao átrio, entregando-a a outra escrava. Acabara ele de ter uma conversa com o filho, o gladiador Lidon, tentando inutilmente convencê-lo a mudar de profissão. O jovem decidira comprar a liberdade do pai e só nos sangrentos combates via possibilidades de obter os recursos necessários.

Júlia estava sentada em frente a uma penteadeira repleta de cosméticos, essências, ganchos de ouro, fitas e um pequeno espelho de aço polido, cercada de escravas que, sob as ordens da mais idosa, entregavam-se ao arranjo do complicado penteado.

— Ai! — gritou Júlia. — Estás me arrancando os cabelos! Põe este gancho mais para a direita, estúpida!

— Bruta! — ajuntou a matrona. — Não vês que tua senhora é delicada, fina e aristocrática? Pensas que estás penteando a crina de Fúlvia? Prende essa fita aí... assim! Mira-te agora, nobre Júlia, estás mais bela do que nunca!

Depois do penteado, chegou a vez do rosto. Um pó suave, de tonalidade escura, foi aplicado nas pálpebras e nas sobrancelhas, emprestando aos olhos uma expressão languida e apaixonada; os alvos dentes tornaram-se mais claros ainda, por meio de mágicos artifícios e um pequeno sinal no canto do lábio fez realçar as provocantes covinhas do rosto; em seguida, a escrava encarregada das joias colocou-lhe brincos nas orelhas, ornou seus braços com preciosas pulseiras das quais pendiam talismãs de cristal e, à guisa de presilha, foi colocado na túnica um rico camafeu; o cinto que cingia sua cintura, marcando-lhe o desenho do corpo, era de pedraria em forma de serpentes entrelaçadas e, finalmente, todos os dedos, exceto o médio, receberam anéis de diferentes feitios.

— Salve, Júlia! — disse Nídia no limiar da porta. — Aqui estou cumprindo tuas ordens.

— Entra e senta-te junto de mim.

Uma das escravas ajudou Nídia a sentar-se num escabelo e durante alguns momentos Júlia deteve-se contemplando a menina com indisfarçável constrangimento; depois fez sinal às criadas que se retirassem e ficou só com a ceguinha.

— Quer dizer, então, que trabalhas para Ione?

— Sim, no momento estou em casa dela.

— E realmente bela como dizem? — perguntou, esquecendo-se de que Nídia era cega.

— Como posso saber, Júlia?

— Tens razão. Como sou distraída! Nunca me lembro que não vês. Mas podes ouvir e deves saber o que dizem as outras escravas...

— Minhas companheiras afirmam que Ione é formosíssima.

— Ah!...E é alta?

— Deve ser da tua altura.

— Morena?

— Sim.

— Glauco visita-a com frequência?

— Diariamente.

— Não me digas! Deve achá-la bonita...

— Oh, sem dúvida... Tanto que vai desposá-la.

— O quê? — exclamou Júlia, empalidecendo sob a camada de cosméticos. Dominou-se, porém, e reencetou a conversa: — É verdade que nasceste em Tessália?

— Sim, nasci na terra de Olimpo.

— Dizem que Tessália é a terra da magia, dos talismãs, dos filtros amorosos...

— Minha terra sempre foi famosa por isso — concordou Nídia com timidez.

— Deves conhecer talvez algum filtro que faça com que os homens se apaixonem...

— Eu? — retrucou a cega, confusa. — Como haveria de conhecer?

— Que pena! Se soubesses de algum, eu te daria tanto ouro que poderias comprar tua liberdade.

— Não entendo para que a nobre Júlia quereria um filtro amoroso. É jovem, rica e bela! Creio que tais qualidades são mais eficazes que qualquer filtro.

— Sim, menos para alguém...

— Alguém? — repetiu Nídia ansiosa. — A quem te referes?

— Ora, menina! Não penses que estou falando de Glauco.

Nídia respirou aliviada e Júlia continuou:

— Acudiu-me o nome de Glauco porque te referiste à bela napolitana e lembrei-me de que talvez tenha se utilizado de filtros amorosos para prender o coração dele. E eu me encontro numa situação humilhante: amo e não sou amada. Oh, como deixei escapar de meus lábios tal confissão? Meu orgulho está ferido e daria tudo para esmagar sob meus pés esse ingrato que me despreza! Cuidei que poderia contar com a tua ajuda... se tivesses sido iniciada nas magias da tua terra...

— Oxalá os deuses me tivessem concedido esse dom! — exclamou Nídia com ardor.

— Sou grata por demonstrares desejos de me servir — disse Júlia, sem suspeitar do sofrimento de Nídia. — Mas quem sabe se as outras escravas não recorrem à nigromancia para seus vis amores?

Nunca as ouviste falar de algum mago da índia ou do Egito que se dedique nesta cidade as artes que ignoras?

— Do Egito? Ah... conheço, sim — e um tremor percorreu o corpo da cega. — Quem não conhece Arbaces, em Pompeia?

— Arbaces? É mesmo! Não deve ser um charlatão, como tantos que vivem de explorar a ignorância alheia. Dizem que conhece a fundo o oráculo dos astros e os segredos da antiga magia.

— É um homem muito perigoso — declarou Nídia, instintivamente levando a mão ao talismã. — Seu poder é maior que o de qualquer mago!

— Provavelmente é bastante rico para que eu lhe ofereça dinheiro — disse Júlia. — Mas nada impede que lhe faça uma visita, não achas?

— Sua casa é indigna de ser pisada por mulheres jovens e bonitas — replicou Nídia.

— Indigna por quê?

— Suas orgias noturnas... Pelo que ouço dizer...

— Fala logo! Estás me deixando curiosa! Vou falar com ele hoje mesmo, quero inteirar-me sobre sua ciência. Se os festins de sua casa são orgias amorosas, é ele a pessoa que me convém...

Já então ansiosa também por certificar-se se o egípcio possuía de fato os famosos filtros, Nídia animou-a.

— Se flores de dia, creio que não há o que recear, pois além do mais dizem que está bem doente.

— Quem se atreveria a desrespeitar a filha de Diomedes? — exclamou Júlia com ar de superior. — Irei agora mesmo.

— Quando saberei o resultado da tua entrevista? — Indagou Nídia.— Esta noite ceamos fora, mas poderás vir amanhã a esta mesma hora. Peço que aceites este bracelete como prova do meu reconhecimento. Deste-me uma boa ideia...Não te esqueças que sou grata e generosa com aqueles que me servem. Até amanhã!

— Não posso aceitar, embora me sejas muito simpática — excusou-se Nídia — Sou criança ainda, mas sinto uma grande ternura por aqueles que amam, sobretudo os que amam sem esperança.

— Falas como uma criança livre e não como uma escrava, Nídia. Breve ganharás a liberdade, pois bem mereces...Adeus!


***

Refletindo que melhor seria não confiar em ninguém, nem mesmo numa cega, puxou Júlia à parte e disse-lhe:

— Precisamos ter cautela, Júlia, não convém que estranhos participem de nosso segredo e a bruxa não gosta de receber muita gente. Não há por que temê-la... Aliás, de que te servirá uma cega?

A jovem que, como já vimos, era bastante destemida, acedeu e pediu a Nídia que a esperasse. Esta não desejava outra coisa — a presença e a ameaça de Arbaces renovaram-lhe os antigos temores; foi, pois, com alívio que se afastou e regressou à casa de banhos. Uma hora mais tarde Júlia estava de volta.

— Graças aos deuses imortais! — exclamou. — Finalmente saí daquela lúgubre caverna. — E prosseguiu descrevendo, já instalada na liteira: — Que cenas horripilantes! A bruxa é uma verdadeira megera! E que serpente! Bem, esqueçamos tudo, o importante é que obtive o filtro e seu efeito é infalível! Minha rival será desprezada, Nídia, e eu, apenas eu, serei o ídolo de Glauco!

— Glauco? Disseste Glauco?

— Sim — respondeu Júlia. — Agora não preciso mais encobrir a verdade. É ele, o formoso ateniense que eu adoro!

A revelação soou como uma terrível tempestade no coração de Nídia. O ar lhe faltava, sentia-se sufocada na atmosfera da perfumada liteira. Felizmente, graças à penumbra, Júlia não percebeu a perturbação da ceguinha e continuou a falar da feiticeira, do egípcio e das suas visões do triunfo. Estava radiante!

Pouco a pouco, Nídia foi se acalmando e um pensamento salvador acabou por restituir-lhe a serenidade — haveria de apoderar-se do filtro.

Chegaram, por fim, à casa de Diomedes, onde as aguardava uma ceia servida nos próprios aposentos de Júlia.

— Bebe, Nídia! Deves estar gelada como eu — disse, enchendo a taça da ceguinha.

— Tens o filtro contigo? — perguntou Nídia. — Gostaria de tocálo com as mãos... Oh, mas que frasco pequenino! De que cor é o líquido?

— Cristalino como a água — retrucou Júlia. — E parece que não tem gosto. O frasco é pequeno, mas a quantidade que contém é suficiente para acorrentar o mais rebelde coração... Precisa, porém, ser adicionado a outra bebida qualquer para não ser percebido por quem o ingere.

— E o efeito é imediato?

— Em geral, sim. Há casos, contudo, em que leva algumas horas para se produzir.

Nídia apalpou a mesa e pegou um frasquinho de perfume; suspendeu a tampa e aspirou:

— Que perfume adorável!

— Agrada-te, Nídia? — interrogou Júlia. — Pois guarda-o para ti.

Ontem recusaste o bracelete, mas hoje vais aceitar este perfume que, além de delicioso, está num frasco incrustado de pedras preciosas.

— Oh, Júlia, deve ser muito valioso...

—Tolice, minha amiga, possuo uma quantidade de frascos como este. Podes ficar com ele.

A ceguinha guardou-o no seio, curvando a cabeça em sinal de agradecimento e indagou:

— A eficiência da poção independe da pessoa que a ministre?

— Sem dúvida. Se uma velha de rosto repulsivo a der de beber a Glauco, parecerá formosíssima aos olhos dele...

Fosse pelo efeito do vinho, fosse pela esperança de ver realizado seu desejo, Júlia mostrava uma jubilosa disposição: ria sem parar e falava loquazmente. Quando ficou a sós com Nídia, já preparada para se deitar, colocou o filtro sob o travesseiro e disse:

— Não me separarei dele até a hora de ser servido. Há de inspirar-me sonhos divinos!

Nídia foi buscar uma ânfora cheia d’água e pousou-a junto do seu leito, ao lado do de Júlia.

— Bebe vinho, Nídia!

— Não, nobre Júlia. Sinto-me um pouco febril e se tiver sede durante a noite beberei água para me refrescar. Desde já recebe meus agradecimentos e minhas felicitações. Provavelmente quando acordares amanhã já terei partido.

— Obrigada, boa amiga. Espero que quando nos encontrarmos novamente, já verás Glauco a meus pés...

Deitaram-se ambas e Júlia imediatamente adormeceu, vencida pelas emoções de tantas aventuras. Nídia, ao contrário, não conseguia conciliar o sono, torturada por mil pensamentos.

— Ajudai-me, oh Vênus! — murmurou ao reparar que Júlia dormia profundamente.

Ergueu-se do leito e, tomando o frasco de perfume que Júlia lhe dera, derramou o conteúdo sobre o piso de mármore; depois, utilizando-se da água da ânfora, lavou-o bem para fazer desaparecer os vestígios da essência. As apalpadelas, encaminhouse para o leito de Júlia e cautelosamente deslizou a trêmula mão por debaixo do travesseiro. Transferiu o filtro para o recipiente que contivera o perfume, sem deixar escapar uma gota. Em seguida, encheu de água o frasco vazio e tornou a enfiá-lo sob o travesseiro em que repousava a cabeça de Júlia. Esta nada percebeu e a ceguinha aguardou, com o coração ansioso, que o dia nascesse.

Quando desceu a escadaria de mármore que dava para a rua, o porteiro Medon saudou-a amigavelmente. De nada valeu a fresca brisa matutina acariciar lhe a fronte, pois seu coração ardia em chamas. Apertando contra o peito o frasquinho, murmurou:

— Oh, Glauco, nenhum filtro, por mais poderoso, fará que ames tanto como te amo! Não importa, querido! O meu destino reside no teu sorriso e o teu... oh o teu, Glauco, está agora nas minhas mãos!


***

Ao chegar em casa, Glauco deu com Nídia sob o pórtico do jardim. Convencida de que ele regressaria ao amanhecer, aguardava-o resolvida a aproveitar a primeira oportunidade para pôr à prova a eficácia do filtro.

— Ainda estás aqui, Nídia? Esperavas por mim?

— Não, Glauco, vim regar as flores e descansava um pouco antes de partir.

— Está um calor sufocante e o vinha de Diomedes deu-me sede. Chama um criado, por favor, e manda trazer-me uma bebida fresca.

A ocasião surgia inesperadamente; Nídia estremeceu e, erguendo-se pressurosamente, falou:

— Eu mesma vou preparar-te a bebida predileta de Ione: vinho misturado com mel e neve.

— Se é a bebida preferida de Ione, deve ser excelente. Sei que vou apreciá-la, ainda que se trate de veneno...

Nídia sorriu e desapareceu, surpreendida com a estranha coincidência das palavras que Glauco acabava de proferir. Pouco depois voltava com uma taça que estendeu ao ateniense e esperou, de olhos fixos no chão, mãos unidas, lábios entreabertos, terrivelmente perturbada. Glauco |á bebera alguns goles quando percebeu a angústia da ceguinha:

— Nídia, minha querida, que tens? Estás te sentindo mal?

Pobre pequena, como tua fisionomia está alterada, que palidez!

Correu para ampará-la, quando sentiu uma dor fina transpassarlhe o coração e o sangue gelar-lhe nas veias; uma espécie de vertigem acompanhada de sensações confusas oprimiram-lhe o cérebro e o chão pareceram fugir-lhe sob os pés. Simultaneamente uma irresistível alegria empolgou-o: pôs-se a rir nervosamente agitando os braços e batendo as mãos, numa louca excitação.

A ruidosa hilaridade de Glauco despertou Nídia da perturbação que a abatera. Apesar de não poder ver a transformação das feições do infeliz, nem o passo cambaleante, feriu-lhe os ouvidos a agitação que se apossara dele, deixando-a em pânico. Glauco dizia palavras desconexas e insensatas. Teria perdido o juízo? Tateando, procurou aproximar-se e, abraçando-o pelos joelhos, suplicou:

— Glauco! Glauco! Dize-me que não me odeias? Responde-me!

Mas Glauco continuou proferindo frases desordenadas, inclusive confundindo-a com Ione:

— Por que não me amas, querida Ione — dizia, acariciando-a.

—O egípcio caluniou-me, mas não eleves acreditar! Passei noites rondando tua casa, esperando ver o Sol da minha vida... Não me abandones... Morro se me desprezas! Deixa que te contemple até o derradeiro suspiro! Oh, maldita visão que vens fazer aqui? A morte está impressa na tua fronte... Conheço-te, monstro! Não te interponhas entre mim e a bela Ione! Foge para longe...

— Glauco! Glauco! — murmurava Nídia.

— Quem me chama? — continuou o desventurado, enquanto Nídia, vencida pelo remorso, caía sem sentidos no chão.


***

Após três dias de prolongados debates, findou o julgamento de Glauco e de Olinto com a condenação de ambos. Horas mais tarde, reunidos em torno da farta mesa de Lépido, alguns jovens da sociedade comentavam a sentença do Senado.

— Então Glauco negou o crime até o fim? — perguntou Cláudio.

— Com toda a veemência. Mas o testemunho de Arbaces era definitivo. Ele assistiu ao assassínio. Realmente não compreendo...

— Como não compreendes? — retrucou um circunstante. — Creio que podemos explicar perfeitamente. É bem provável que Apoecides levado por sua austeridade e obstinação, tenha censurado a devassidão de Glauco concluindo por negar-lhe a mão da irmã. O resto é fácil de adivinhar. Sob a forte influência de Baco, Glauco deve ter ferido o sacerdote em estado de inconsciência. Os efeitos do vinho somados ao remorso e ao desespero conduziramno à loucura dos últimos dias O pobre rapaz perdeu a memória por completo, não se recorda de nada a ponto de se julgar realmente inocente. Aliás, essa foi a tese sustentada por Arbaces, cujas declarações causaram forte impressão pela moderação e indulgência.

— Tem razão, o egípcio cresceu no conceito geral. Mas pobre Glauco, está irreconhecível! Contudo, mantém-se calmo e corajoso!

— Veremos se mostrará calma e coragem diante do leão!

Ouviram-se algumas gargalhadas.

— E que fim levou a noiva dele? — indagou um conviva — Ser viúva sem ter sido esposa... que ironia do destino!

— Está bem protegida sob o teto de Arbaces — respondeu Cláudio.

— Por Vênus! Como o ateniense tinha sorte com as mulheres!

Dizem que até a rica Júlia estava apaixonada por ele.

— Mexericos... — protestou Cláudio. — Se alguma vez o coração da filha de Diomedes abrigou tal sentimento, gabo-me de tê-lo inspirado.

— Ignorais que Cláudio breve se casará com Júlia? — falou o edil Pansa.

— Cláudio casado? — exclamou alguém, provocando um coro de risadas.

Ao mesmo que se processava esta divertida reunião em casa de Lépido, uma cena bem diversa se passava no cárcere de Glauco.

Após a sentença, fora conduzido para o sombrio cárcere do Forum, escoltado por soldados que o empurravam pela acanhada abertura, deixando-o a pão e água. A radical mudança, arrancando Glauco da faustosa vida para as trevas de uma imunda prisão, fora tão brusca que o ateniense acreditava estar sofrendo um terrível pesadelo.

A indômita coragem e o nobre orgulho com que surpreendeu a multidão no tribunal subitamente desapareceram quando se viu só com seu infortúnio Mesmo a certeza da inocência não lhe dava forças para manter o ânimo. Lastimava-se por ter abandonado a amada pátria para aventurar-se numa terra cujo povo era tão pouco hospitaleiro. Melancólico, relembrava o distante céu azul os olivais das suas verdejantes colinas e o murmúrio dos seus regatos encantados. Recordava-se dos rostos dos companheiros, convivas de alegres festins, da multidão que tantas vezes o aclamara quando conduzia seu carro pelas ruas da cidade e que agora o humilhava com vaias ameaçadoras. Tudo acabara! E Ione? O silêncio da jovem era o que mais o torturava. Por que não lhe mandara uma mensagem de conforto, uma palavra amiga? Seria crível que ela o julgasse culpado da morte do irmão? Vencido pelo abatimento, gemia, rangia os dentes, com o coração invadido pelas dúvidas.

Teria realmente matado Apoecides e, em seguida, perdido a memória? Imediatamente repelia esse pensamento porque guardava ainda uma vaga lembrança do momento em que chegara ao enluarado bosque de Cibele e da súbita aparição do desfigurado rosto do morto voltado para ele. Sim, recordava-se também de haver recebido um golpe violento que o derrubara sobre o cadáver...

Fora o que acontecera, tinha certeza! Ele era inocente, mas como provar abandonado por todos e tão próximo da morte? Lembrou-se de Arbaces, o monstro, que amava Ione, e os ciúmes começaram a inquietá-lo mais do que a expectativa da morte ultrajante. Seus profundos gemidos ressoavam tristemente, quando a eles veio se juntar uma voz nas trevas do calabouço:

— Quem é o meu companheiro nesta hora de agonia? Será Glauco?

— Este era o meu nome quando a sorte me sorria. Não sei como me chamam hoje — respondeu. — E tu, quem és?

— Sou Olinto, o cristão, teu companheiro de desgraça.

— O ateu, como te chama o povo? Foi a injustiça dos homens que te levou a negar os deuses?

— Pobre de ti! — exclamou Olinto. — Ateu és tu que renegas o verdadeiro Deus, a quem teus antepassados erigiram um altar em Atenas... Neste momento, não me sinto abandonado neste cárcere porque tenho o conforto da presença de Deus, enchendo-me o coração de esperança. Minha alma vai deixar a Terra para entrar na vida eterna!

— Tenho a impressão de ter ouvido teu nome juntamente com o de Apoecides, durante o processo. Dize-me, tu também crês na minha culpa? — perguntou Glauco.

— Só Deus pode responder à tua pergunta. Contudo, confesso que não suspeito de ti.

— Ah, obrigado! E de quem suspeitas, então?

— Do teu acusador!

— Arbaces? Mas por quê?

— Porque conheço a perversidade desse homem e sei que tinha motivos para temer o infeliz Apoecides.

Olinto revelou ao ateniense os planos que o jovem sacerdote tinha em mente para desmascarar as imposturas do egípcio. E concluiu:

— Tudo isto me leva à convicção de que, aproveitando-se da solidão em que se encontraram, Arbaces não hesitou em assassinar aquele que ameaçava desmoralizá-lo.

— Tens razão! — exclamou Glauco vivamente. — Ah, como estou aliviado, como me fazes feliz!

— Feliz? De que te serve, desventurado jovem, a certeza que tens agora, se tua sorte está selada?

— Que me importa? O fato de saber que não sou criminoso darme- á coragem para enfrentar a fera na arena. Já não me atormentarão as cruéis dúvidas. Agora, rogo-te que me dês uma explicação: tu, que pertences a uma seita estranha, acreditas que as forças superiores, ou outro nome que tenham, possam eleger-nos para responder pelos erros dos nossos antepassados ou pelos deslizes praticados na mocidade?

— Deus é justo e jamais castigaria a fragilidade que caracteriza a natureza humana. Ele é piedoso e somente abandona o pecador que não se arrepende...

— A estranha loucura que me acometeu não pode ter sido provocada por mãos humanas. Apenas a cólera divina seria capaz de suscitá-la...

— A Terra está repleta de espíritos diabólicos! — replicou o nazareno. — Esta é uma afirmação que faço com a mesma certeza de que no Céu está Deus e seu Filho. O demônio se apossou de ti porque não reconheces esta verdade.

Houve um silêncio comovedor; ao cabo de alguns instantes, disse o ateniense com voz suave e um pouco hesitante:

— Cristão, segundo a doutrina que professas, acreditas que aqueles que se amaram na Terra reunir-se-ão depois da morte?

— Se acredito? Que seria da minha agonia se não me amparasse a visão radiosa da libertação que sobrevirá à minha morte? — e prosseguiu apaixonadamente: — Oh, Cilena, adorada esposa tão prematuramente levada do meu convívio, vou rever-te!

Louvada seja a morte que me conduzirá para o Céu onde me esperas, Cilena!

A sincera expansão empolgou Glauco, despertando no ateniense um irresistível sentimento de simpatia pelo companheiro.

Aproximou-se de Olinto e estreitou-lhe fraternalmente as mãos.

— A imortalidade da alma — acrescentou o nazareno com fervor —a ressurreição, a reunião dos mortos, são os principais preceitos da nossa fé. E foi para comprovar essa sublime verdade que um deus se sacrificou.

—Quisera conhecer melhor os fundamentos da tua crença! — exclamou Glauco com entusiasmo.

E aconteceu uma cena que tantas vezes se repetiu nos primórdios do cristianismo: nas trevas de um calabouço, na expectativa da morte iminente, as luzes do Evangelho espalharam seus doces e poderosos raios.


***

Enquanto Salustio tomava aquelas providências, na escura e úmida cela em que os criminosos aguardavam a ordem de entrar para o último e terrível combate, Glauco e Olinto podiam distinguirse mutuamente, graças ao hábito de viver nas trevas adquirido na prisão. A religião de um e o orgulho do outro, a certeza da inocência e a estreita amizade que os unia, transformava-os em heróis.

— Estás ouvindo a gritaria? — perguntou Olinto. — Exultam vendo derramar-se o sangue humano!

— Sim — respondeu Glauco. — Oprime-se meu coração, mas os deuses me amparam!

— Ao menos nesta hora, jovem insensato, reconhece o verdadeiro Deus. Já esqueceste minhas palavras no cárcere?

— Meu bom amigo — replicou Glauco solenemente — sou infinitamente grato pelo conforto que me proporcionaste com teus ensinamentos. Se me fosse dado viver, talvez viesse a abraçar as tuas crenças, após profundas meditações, mas entregar-me à tua fé nesta hora, pelo temor único dos infernos, seria uma baixeza, uma covardia. Continuemos amigos até o derradeiro instante. Releva a minha cegueira como eu admiro a tua sinceridade! Escuta este rumor... arrastam um cadáver pelo corredor. Daqui a pouco nossos corpos inanimados terão o mesmo destino.

— Oh Cristo! Não me assalta o temor e minha alma está cheia de júbilo à espera que se abram as portas desta prisão!

Glauco curvou a cabeça e refletiu sobre as diferentes maneiras de encarar a morte: pagão, não a temia ele, mas o companheiro regozijava-se.

A porta rangeu e uma onda de luz inundou o cárcere. Lanças brilharam junto às paredes.

— É a tua vez, Glauco! — exclamou uma clara voz. — O leão te aguarda!

— Estou pronto — respondeu, sem o mais leve estremecimento.

E, voltando-se para Olinto, disse: — Meu querido irmão e companheiro de infortúnio, abraça-me pela última vez e abençoame.

Olinto estreitou-o comovido, molhando de lágrimas o rosto do grego.— Se eu tivesse tido a ventura de converter-te, não derramaria agora estas lágrimas! Ah, quem me dera poder despedir-me, dizendo: “Esta noite nos encontraremos no Céu!” — Quem sabe? — retrucou Glauco. — Mas nesta terra que me foi tão cara, despeço-me de ti para sempre. Adeus! Vamos, carcereiro!

Glauco estava visivelmente comovido. Pesava-lhe separar-se do amigo. Quando se viu em plena luz, a atmosfera pesada e uma espécie de vertigem tontearam-no. Provavelmente eram ainda os efeitos do venenoso filtro. Dois guardas o seguraram e um deles disse:— Coragem, rapaz! Es jovem e forte. Dar-te-ão um estilete...

Quem sabe não vencerás o leão?

Glauco não respondeu; envergonhava-se por esse momento de fraqueza e, dominando os nervos, pôs-se a caminhar com passo firme. Desnudaram e untaram-lhe o corpo, entregaram-lhe o estilete e conduziram-no à arena.

Súbita reação o transfigurou ao ver cravados em si milhares de pupilas cintilantes. As faces avermelharam-se e ele se empertigou com uma expressão de orgulho e nobreza. A beleza do porte, a flexibilidade dos membros, e altivez da atitude, a serenidade desdenhosa de sua fisionomia, o magnetismo do seu olhar, tudo se impunha como viva encarnação da beleza e da coragem gregas, fazendo dele um herói e um deus perante a multidão. A hostilidade da assistência pela lembrança do crime que sua presença provocou instantaneamente se extinguiu para dar lugar a uma espontânea e geral indulgência. Assim são as multidões! De alto a baixo, patrícios, escravos e libertos, todos admiravam a escultural beleza de Glauco com respeitosa comiseração.

De repente ouviu-se um murmúrio — a jaula do leão estava sendo arrastada para a arena.

— Que calor terrível! — exclamou alguém. — Ainda bem que o Sol não apareceu, do contrário não sei o que seria sem o toldo que esses desajeitados não conseguiram unir completamente.

Sem comer há vinte e quatro horas, o leão mantivera-se durante toda a manhã numa estranha agitação, o que era atribuído à agonia da fome; contudo, seu aspecto revelava mais inquietação do que ferocidade. De cabeça baixa, respirando com dificuldade através as barras de ferro, ora deitava-se, ora levantava-se, soltando roucos rugidos. Finalmente, estendeu-se no fundo da jaula.

A assistência começou a se impacientar e o edil, hesitando um momento, deu afinal o sinal fatídico. Com excessiva cautela o guarda abriu a jaula e o leão saiu, lançando um forte rugido com que exprimia seu contentamento por se ver em liberdade. Rapidamente o guarda desapareceu e a fera se viu diante da vítima.

Pronto para feri-lo, com a vaga esperança de que poderia atingilo em cheio na cabeça no primeiro golpe, Glauco firmara-se nas pernas e esperava a acometida do leão de arma em punho. Para decepção de todos, porém, o animal pareceu nem sequer notar a presença de Glauco e, sentando-se no centro da arena, farejou o ar; depois, sacudindo a farta juba, correu em volta da arena olhando ansiosamente para os lados, como se quisesse fugir e por duas vezes tentou saltar a barreira. Não dava o menor sinal de cólera e sempre que seu olhar pousava no ateniense, desviava-o imediatamente. Finalmente, extenuado de procurar um meio de escapar, soltou um lamentoso rugido e voltou a entrar na jaula.

Os espectadores vaiaram a covardia da fera.

— Aguilhoa-o para que saia e depois fecha a jaula — ordenou o edil Pansa.

Um tanto atemorizado, o guarda já se dispunha a obedecer, quando um grito ressoou perto de uma das entradas da arena, seguindo-se uma enorme confusão. Parecia o início de uma briga entre os assistentes, mas eis que a figura de Salustio surgiu, descabelado, com o rosto coberto de suor e a respiração ofegante, ao lado do pretor.

— Dá ordem de retirar Glauco! — exclamou em voz alta. — Ele está inocente! O criminoso é Arbaces!

— Que loucura é essa, Salustio? — disse o pretor, erguendo-se.

— Retira Glauco, repito! Se não suspenderes a execução, responderás perante o imperador pela vida de um inocente! Abri passagem, deixai passar uma testemunha do crime do egípcio!

Povo de Pompeia, aqui está o sacerdote Caleno que assistiu ao assassínio de Apoecides!

Libertado da fome e da morte por um milagre, Caleno apareceu mais pálido do que um cadáver; suas desfiguradas feições demonstravam as torturas sofridas, parecia um fantasma! Amparado pelos braços, foi levado até junto de Arbaces.

— Caleno, o que tens a declarar? — disse o pretor.

— Arbaces é o assassino de Apoecides!... — Respondeu o sacerdote. — Vi com meus próprios olhos quando desferiu os golpes.

Os deuses libertaram-me do calabouço onde fui enterrado para não denunciar o crime desse monstro! Tirai o ateniense da arena que ele é inocente!

— Foi por isso que o leão o poupou! — exclamou Pansa. — Milagre! Milagre!

— Milagre! — repetiu o povo. — Salvai o inocente! Atirai Arbaces ao leão!

— Retirai o ateniense — ordenou o pretor — mas que seja mantido sob vigilância. — E, virando-se para Caleno, perguntou: — Acusas Arbaces do assassínio de Apoecides?

— Acuso, senhor.

— Viste o crime?

— Vi.

— Arbaces do Egito, o que tens a dizer? — falou o pretor.

A despeito do poderoso autodomínio, não pode Arbaces evitar que seu bronzeado rosto se tornasse lívido ao ver Caleno. Contudo, lançou um arrogante olhar em volta e num tom calmo e imponente respondeu:

— A acusação é tão ridícula que não sei se merece que a repila. Repara, pretor, quem são os meus acusadores: o nobre Salustio, amigo íntimo de Glauco, e o sacerdote Caleno, pessoa indigna de usar as vestes religiosas da Ordem que tanto reverencio.

Ninguém ignora seu caráter! É um ambicioso que venera mais o ouro do que os deuses! Nada mais fácil, portanto, do que comprar o testemunho de tal energúmeno! Sou inocente, pretor!

— Onde encontraste Caleno? — perguntou o magistrado a Salustio.

— Encarcerado nos subterrâneos do palácio de Arbaces.

— Por que motivo, Arbaces, prendeste um sacerdote de Ísis?

Sob a aparência tranquila, o egípcio ocultava uma profunda agitação ao responder:

— Este homem ameaçou denunciar-me se não lhe comprasse o silêncio com metade da minha fortuna. Revoltei-me com a chantagem, mas foi inútil. Embora inocente, sou um estrangeiro e temi que as declarações de um sacerdote pudessem arruinar-me.

Não sabendo o que fazer, decidi-me a encerrá-lo no meu palácio até que se consumasse a execução do criminoso. Talvez julguem que procedi mal, mas quem dentre vós não reconhece meu direito de defesa? Por que Caleno não falou durante o processo, se estava em liberdade? Responde-me, pretor, por quê? Seja como for, reclamo a proteção das leis. Estou pronto a enfrentar o tribunal, mas o anfiteatro não é lugar para discussões.

— Tens direito ao que pedes. Guardas, detenham Arbaces e Caleno... Quanto a ti, Salustio, responderás pela acusação.

Prossigam com os jogos!

— Como! — exclamou Caleno, dirigindo-se à multidão. — A deusa Ísis foi ultrajada com o assassínio do seu sacerdote e exige vingança imediata! Façamos justiça agora! Ao leão, o egípcio!

— Ao leão, o egípcio! — repetiu em coro a assistência.

Centenas de pessoas se ergueram da arquibancada e precipitaram-se em direção a Arbaces, enquanto Caleno, rendido pela fraqueza, rolou por terra, contorcendo-se em convulsões.

Ninguém ouvia as ordens de Pansa e a voz do pretor tentando inutilmente restabelecer a calma. A exaltação tomara conta de todos, oferecendo um espetáculo tão frequente nas selvagens multidões daquela época, meio livres, meio escravas. Perante a turba enfurecida, desaparecia o poder das autoridades.

Aterrorizado, vendo o círculo se apertar à sua volta, Arbaces ergueu os olhos para o alto e pela abertura do toldo viu um fenômeno que fez renascer lhe a coragem. Levantando-se com a imponência de um gigante, aprumou a cabeça e com suprema expressão dominou a clamorosa multidão exclamando:

— Olhai como os deuses protegem um inocente! Os fogos vingadores do inferno protestam contra o falso testemunho do vil acusador!

Seguindo o gesto indicativo de Arbaces, todos ergueram os olhos e com indizível terror viram a espessa coluna de fumaça que saía pela boca do Vesúvio, assumindo a forma dum colossal pinheiro de tronco negro e ramos abrasados. Estarrecida, a multidão ficou imóvel e silenciosa.

Inesperadamente o silêncio foi quebrado por um rugido do leão que o tigre logo respondeu; o instinto dos animais já pressentira a cólera que se aproximava. Depois, das bancadas superiores, partiram gritos das mulheres e os homens entreolharam-se amedrontados. Um estranho ruído ouviu-se sob a terra, os muros do anfiteatro oscilaram e as casas começaram a desabar. Era o terremoto! A grande nuvem que a montanha vomitava transformouse numa torrente de fogo, brotando com violência e lançando uma chuva de cinzas e pedras ardentes, estendendo-se sobre as vinhas, as ruas, o anfiteatro e até mesmo o mar.

Foi terrível! Ninguém mais pensou nos jogos, na Justiça, nem em Arbaces! Num egoísmo brutal, cada qual só tratava de escapar, correndo desesperadamente, empurrando, tropeçando e pisando os que tinham a infelicidade de cair. Os feridos gemiam pedindo socorro, mas o povo precipitava-se para as saídas, na ânsia de fugir, temendo que o tremor de terra se repetisse. Mas fugir para onde, se nas ruas reinava a mesma confusão?

As sinistras nuvens de fumaça se sucediam, cada vez mais negras, mais extensas, mais ameaçadoras, obscurecendo o céu. E fez-se, então, a terrível noite à hora em que habitualmente brilhava o Sol.


***

iNydia, the Blind Girl of Pompeii - Herbert Gustav Schmalz, 1908
Nydia: Blind Girl of Pompeii - Herbert Gustav Schmalz, 1908

 

Perplexo com a cena que deu origem à suspensão de sua execução, Glauco foi levado de volta para a cela, onde sua nudez foi coberta com uma ampla toga e, em meio à algazarra, ouviu uma voz conhecida que pedia aflita:

— Deixai-me passar, por favor, quero vê-lo!

Era Nídia que, conduzida por mão solícita, caminhava em sua direção. Caiu aos pés do grego e exclamou:

— Fui eu quem te salvou, querido Glauco! Agora posso morrer em paz!

— Nídia, minha querida criança!

— Dá-me tua mão! Deixa que respire teu hálito! Ah, felizmente chegamos a tempo! Que terrível foi, pensei que não conseguíssemos arrombar aquela porta infernal! E como gemia o pobre Caleno! Foi um custo reanimá-lo! Oh, mas que importa tudo isso se estás salvo e graças a mim?

Foi a meio deste diálogo que teve início a erupção do vulcão.

Compreendendo o perigo, Glauco imediatamente pensou em Olinto e, arrastando Nídia pela mão, correu à cela do nazareno que, ajoelhado, rezava compungidamente.

— Levanta-te, amigo! A Natureza liberta-te do tigre e da morte!

Vem comigo — e puxando-o para fora, mostrou-lhe a coluna de fumaça que saía do Vesúvio.

— Cristo seja louvado! — exclamou Olinto.

— Apressa-te! — disse Glauco. — Procura teus irmãos e foge, salva-te!

O cristão parecia indiferente a tudo. Longe de apavorar-se diante do cataclisma, absorvia-se extasiado com a misericórdia divina. Finalmente, saindo do alheamento, começou a caminhar pelos corredores onde jaziam os cadáveres nus dos gladiadores. De repente, deteve-se ao ouvir uma voz abafada pronunciar o nome de Cristo, vindo de uma sombria cela. Entrou e perguntou:

— Quem invoca o nome de Cristo?

Não obteve resposta, mas viu aos seus pés um velho de cabelos brancos, chorando e sustentando entre as mãos à cabeça de um dos mortos.

— Medon — disse, reconhecendo-o. — Foge daqui antes que o fogo te consuma. Qual Gomorra, Pompeia está condenada e não escapará ao seu destino fatal!

— Não, Olinto, ficarei com meu filho — respondeu soluçando. — Ele não pode estar morto! Ouve as pulsações do seu coração!

Como podes querer separar um pai do filho que se sacrificou por ele?

— A morte já vos separou — retrucou Olinto. — Vem comigo, não temos um minuto a perder!

Um sorriso de serenidade iluminou o semblante do ancião; depois, deixando pender a cabeça, entreabriu os pálidos lábios e balbuciou:

— Não... a morte é mais generosa do que imaginas!

Olinto se aproximou e pegou-lhe a mão: o pulso já não batia.

Sim, a morte era generosa, reunira-o ao filho!

Nesse ínterim, procurando caminho pelos escombros, Glauco e Nídia corriam para a casa de Arbaces, a fim de libertar Ione. Os escravos que haviam ficado no palácio e que não puderam opor resistência aos homens de Salustio, apavorados com os primeiros sinais da erupção, abandonaram seus postos e trataram de se refugiar em qualquer canto. Glauco pode, assim, entrar no palácio sem dificuldade, enquanto Nídia aguardava-o do lado de fora, roída de ciúmes.

A terrível fúria do vulcão, vieram juntar-se relâmpagos e trovões.

Glauco tateava na total escuridão, sentindo que as paredes vacilavam; subiu ofegante a escada que conduzia ao andar superior, berrando o nome de Ione e, finalmente, do fundo de uma galeria, uma voz respondeu. Correu, derrubou a porta com um violento tranco e tomou Ione nos braços. Quando chegava ao lugar onde deixara Nídia, ouviu ressoarem passos. Era Arbaces que voltava com seu séquito para buscar Ione e apanhar os tesouros, imaginando que teria tempo de salvar-se.

A fumaça era tão densa que os dois rivais roçaram-se sem se ver, apenas a alvura da túnica do egípcio vagamente distinguia-se na escuridão da noite.

Glauco, Ione e Nídia afastaram-se rapidamente da mansão do egípcio, enquanto sobre suas cabeças caíam as cinzas como fina chuva e formidáveis detonações produziam ecos distantes.

Caleno também se vira livre no momento da catástrofe. Sem saber para onde fugir, rumou para o templo de Ísis, onde encontrou o taverneiro Burbo.

— Que calamidade! — exclamou o ex gladiador. — Mas não percamos tempo! Eis a oportunidade de fazermos nossa fortuna! O templo está repleto de ouro e de objetos valiosos. Apanhemos tudo e fujamos.

Vários sacerdotes orando prostrados aos pés da estátua da deusa não perceberam a presença dos dois profanadores. A avidez de Caleno deu-lhe forças para agir com rapidez e, apossando-se do que pode, fugiu deixando para trás seu cúmplice, sem se preocupar com a sorte do parente.

A fantástica nuvem de fumaça que cobria de trevas Pompeia e as cercanias condensou-se numa massa opaca, dir-se-ia intransponível, cortada de quando em quando pelos fogos terríveis que a montanha vomitava e, do interior da terra, sinistros e misteriosos ruídos soavam como longínquos trovões. As cinzas acumuladas no solo já alcançavam a altura dos joelhos e os sufocantes gases obrigavam a alucinada população a correr desesperadamente como animais perseguidos. Fragmentos de pedras tombavam sobre as casas, destruindo os telhados e transformando as ruas em cemitérios, em ruínas. Horrivelmente mutilados, corpos contorciam-se nos escombros, enquanto grupos de fugitivos, empunhando archotes, que o vento apagava com sua fúria, rumavam em direção à costa, chocando-se com outros que voltavam da praia, de onde o mar fugira como que aterrado, coberto também pelas negras trevas. As tormentosas vagas do oceano serviam de leito às cinzas e às pedras candentes, tornando a água mais perigosa ainda do que a terra.

Próximo da porta de Herculanum, Cláudio procurava caminho ao lado de Júlia, quando uma voz agoniada chegou-lhe aos ouvidos:

— Socorro! Estou me afogando nesta lama imunda! Sou o rico Diomedes, meus escravos me abandonaram! Mil sestércios a quem me ajudar!

Cláudio sentiu uma mão agarrar-lhe a perna.

— Levanta-te, Diomedes — disse Cláudio, estendendo-lhe a mão.— És tu, Cláudio?

— Ergue-te, homem! Vamos para Herculanum!

— Louvados sejam os deuses! Minha casa de campo fica a meio do caminho. Os subterrâneos estão cheios de provisões e poderemos esperar ali que passe esta horrível desgraça!

No meio dessa espantosa confusão, Glauco e Ione continuavam a caminhar, guiados por Nídia, para quem as trevas nada tinham de anormal. Súbito, porém, a valente ceguinha foi empurrada pela multidão que se dirigia para o mar. Em vão Glauco e Ione a procuraram, tateando e gritando-a pelo nome, mas a frágil guia havia desaparecido na torrente humana. Privados da melhor amiga, sobretudo de uma criatura cuja cegueira lhe ensinara todos os caminhos daquela cidade, que lhes restava fazer no inexpugnável labirinto? Feridos já pelas queimaduras, dominados pelo desespero e pelo terror, pisavam as pedras inflamadas que cobriam o solo.

— Não aguento mais! — gemeu Ione, vencida pelo sofrimento.

—Foge, meu querido, salva a tua vida!

— Animo, minha adorada! Como posso salvar-me abandonando-te ao perigo? Prefiro morrer a viver sem ti! Oh, mas onde estamos? Creio que demos volta e retornamos ao mesmo lugar! E, tomando Ione nos braços, continuou a caminhar; de repente, a luz de um relâmpago mostrou-lhe que se achava próximo do templo da Fortuna. Buscou um recanto mais abrigado sob o pórtico e ali depositou o precioso fardo, protegendo-o com o corpo contra a chuva de cinzas. No local, centenas de pessoas se comprimiam, gemendo e implorando socorro, mas os clamores eram dominados pelos da montanha fatal, claros e ameaçadores. Diante do templo passou um grupo de nazarenos empunhando archotes e celestial comoção se estampava nos semblantes desses crentes que acreditavam assistir ao fim do mundo.

Ali permaneceu o casal de apaixonados por um tempo que lhes pareceu interminável, ao cabo do qual produziu-se uma momentânea calma da erupção. Aproveitando-se da aparente tranquilidade, Glauco encorajou Ione e puseram-se a andar de novo, de mãos dadas, avançando com infinitas precauções como aqueles que caminham à beira dum abismo. O espetáculo que os rodeava era aterrador. Quando o vento soprava com mais impetuosidade, a poeira abrasadora impedia-os de respirar e o sangue parecia queimar nas suas veias.

— Meu amado Glauco, abraça-me pela última vez... sinto que vou morrer...

— Coragem, minha querida, em nome dos deuses! Tem confiança! Vê, ali vêm uns archotes! Oh, como enfrentam a rajada e resistem à tormenta! Parece que vão em direção à costa. Sigamolos!

—e correram a juntar-se ao grupo.

— Estamos perto do mar — disse um que ia na frente. — Aquele dentre vós que sobreviver a este dia será livre e rico, eu vos asseguro! Os deuses me prometeram salvação! Avante!

Trêmula e esgotada, Ione reconheceu a voz de Arbaces e a luz dos archotes devassou seus rostos ao egípcio.

— Por meus pais! — exclamou. — Nesta hora funesta o Destino sorri-me e oferece-me felicidade e amor! Afasta-te, grego! Entregame minha pupila!

— Assassino miserável! — retrucou Glauco, fulminando-o com o olhar. — Tenta tocar em Ione e eu te farei em pedaços!

Não terminara o ateniense de proferir a resoluta ameaça e uma intensa luminosidade cobriu a cidade. Verdadeira coluna de fogo jorrou da vulcânica montanha, parecendo que incendiava céus e terra, e torrentes de lava escorreram pelos vales como rios incandescentes, arrastando pesados blocos de pedra que flutuavam na superfície como temerosos destroços.

Os escravos soltaram gritos de pavor, cobrindo o rosto com as mãos e o próprio egípcio não pode dissimular o medo — imóvel ao lado do majestoso bronze de Augusto, cujo vulto parecia uma estátua de fogo sobre o pedestal de mármore, era um homem aniquilado ante a visão do sobrenatural.

Sustentando Ione com o braço esquerdo e empunhando com a mão direita o punhal que recebera para combater o leão, Glauco desafiava Arbaces; este desviou o olhar da montanha e fixou-o no grego, dizendo de si para si: “Por que hesitar? Não desapareceu já o perigo que me vaticinaram os astros? Enfrentarei a destruição dos mundos e a ira dos deuses imaginários”. E, depois de ordenar aos escravos que tomassem Ione, virou-se para Glauco e bradou:

—Não tentes resistir, do contrário teu sangue cairá sobre tua cabeça. Vem, Ione!

Avançou em direção ao ateniense, mas deu o último passo de sua vida. Um violento tremor agitou a terra e fez ruir os edifícios que ainda se mantinham de pé, causando um espantoso estrondo e reduzindo a cidade a um montão de ruínas. A estátua balançou e finalmente tombou com o pedestal sobre Arbaces.

Ao recuperar os sentidos, Glauco percebeu que persistia o tremor de terra e que Ione jazia ao seu lado desfalecida. Seu olhar foi atraído para o ponto em que Arbaces se contorcia ainda no desespero da agonia, mas logo viu suas feições se imobilizarem para sempre num ríctus de indescritível ferocidade. O grande Arbaces, o poderoso Hermes do Cinturão de Fogo, o derradeiro rei do Egito não existia mais!


***

Logo que se refez do impacto causado pelo brutal espetáculo, Glauco tomou Ione nos braços e pôs-se a andar para a frente, mas novamente a espessa fumaça fechou-lhe o caminho; diante desse obstáculo intransponível, deteve-se e lançou um desesperançado olhar para a montanha. Viu, então um dos paredões que cercavam a boca do vulcão desmoronar-se e precipitar-se com estrondo sobre as encostas como uma avalancha de fogo, produzindo depois uma poeira asfixiante que cobriu as ruas com infernal furor. Sentindo que o ar lhe faltava, julgou ser o fim de tudo. Refugiou-se sob os destroços de uma das arcadas do Forum e ali esperou que a morte chegasse, estreitando lone contra o peito.

Enquanto isso, Nídia inutilmente chamava pelos companheiros, mas seus gritos aflitos perdiam-se entre os clamores da multidão.

Voltou ao ponto onde se perdera de Glauco e de lone, indagando se os tinham visto, sendo repelida com crueldade pelos egoístas fugitivos. Extenuada, resolveu encaminhar-se para os lados do mar, refletindo que Glauco sem dúvida para lá teria se dirigido, buscando uma embarcação.

Com uma coragem sublime, a franzina criaturinha avançava empurrada pela multidão mais cega ainda do que ela. De repente ouviu uma voz que lhe era familiar:

— Por Baco! É a valente tessaliana! Não fiques aí, Nídia, vem depressa conosco para a praia!

— Salustio! — exclamou. — Louvados sejam os deuses! Viste Glauco?

— Tranquiliza-te, pequena. Os deuses não iam poupá-lo do leão para fazê-lo perecer nas garras do vulcão! — e arrastou a ceguinha, que não cessava de chamar pelo nome de Glauco.

No momento em que se aproximavam do porto, onde se aglomeravam milhares de pessoas, deu-se a fantástica explosão seguida do terremoto que causou a morte de Arbaces. Foi um correcorre desatinado, todo mundo desejando fugir sem saber para onde.

O mar recuara da costa, como dissemos, e oferecia um espetáculo que imobilizava de terror aquela gente desorientada; a agitação das águas e os gigantescos blocos de pedra lançados pelo vulcão amedrontavam de tal modo, que os que conseguiam se aproximar da praia recuavam preferindo os horrores da terra.

Os escravos de Arbaces, que haviam fugido carregando os tesouros inesperadamente herdados com a morte do amo, juntaramse à multidão. Um único archote ardia ainda — empunhava-o aquele que servira de carcereiro de Nídia.

— De que te adianta a liberdade agora? — perguntou ele, aproximando-se da ceguinha.

— Viste Glauco? — indagou Nídia, reconhecendo-lhe a voz.

— Vi-o há poucos momentos, estendido sob um arco do Forum.

Talvez já esteja morto.

Sem dizer uma palavra, Nídia afastou-se de Salustio e resolutamente voltou para a cidade. Chegando ao Forum, começou a gritar pelo ateniense.

— Nídia, minha querida amiga — respondeu Glauco, após alguns momentos. — Como temi que tivesses sofrido algum dano!

Estás bem?

As palavras de Glauco revelavam tão espontânea ternura que a ceguinha se comoveu profundamente.

Levando lone nos braços, Glauco seguiu a admirável guia que, prudentemente evitou os pontos de maior congestionamento, encaminhando-se para a beira-mar por outro caminho. Finalmente encontraram um grupo que preferia aventurar-se pelo mar a permanecer em terra testemunhando a espantosa desolação.

Embarcaram todos, em meio à mais completa escuridão e vagarosamente afastaram-se da costa, orientados pelos clarões avermelhados das torrentes de lava que as águas refletiam.

Completamente esgotada, lone dormia com a cabeça apoiada no peito de Glauco e, deitada aos pés do ateniense, Nídia meditava, enquanto as cinzas continuavam a cair, espalhando uma camada de pó esbranquiçado sobre a superfície do mar.

Afinal, brilhou a esplêndida aurora do novo dia. O vento amainara e as azuladas águas agitavam-se brandamente. Para os lados do leste, suaves e rosadas nuvens gradativamente tingiam-se de vivo carmesim. Novamente surgia a vivificadora luz sem a qual só existe desolação. Mas, as alvas e graciosas casas e as colunas de mármore que antes embelezavam aquele encantador litoral já não existiam e as outrora animadas praias pareciam cobertas de luto pelo desaparecimento das cidades de Pompeia e Herculanum.

A fadiga impediu os sobreviventes de saudar o novo dia com ruidosas exclamações, mas seus corações inundaram-se de comovida esperança; entreolharam-se com infantil alegria e sorriram —o mundo mantinha-se de pé e um Deus poderoso dirigia-o com misericórdia.

Várias embarcações começaram a surgir em outros pontos, transportando também fugitivos. Reinava um silêncio restaurador e pouco a pouco Glauco e os companheiros haviam adormecido.

Apenas Nídia velava.

Cautelosamente a ceguinha ergueu-se e, curvando-se sobre a cabeça de Glauco, beijou-o de leve na fronte; depois, tateando, procurou a mão do ateniense e, encontrando-a unida à de lone, suspirou tristemente. Enxugou com os próprios cabelos o orvalho noturno que umedecera o rosto amado e murmurou:

— Que os deuses te abençoem, Glauco adorado! Sê feliz com aquela que amas, mas, em nome dessa felicidade, suplico que não te esqueças de Nídia. Adeus! Já não precisas de mim!

Como uma gazela, deslizou pelo convés sem fazer o menor ruído e dirigiu-se para a extremidade da embarcação; ali debruçou-se sobre as vagas e a espuma roçou-lhe a testa escaldante. A fresca e perfumada brisa revolveu os sedosos fios de sua cabeleira; afastou-os da fronte e ergueu os claros olhos para o céu que ela jamais contemplara.

Estremunhado, um marinheiro entreabriu os olhos ao ouvir um baque na água e teve a impressão de ver flutuando sobre as águas um branco e indefinido vulto que logo desapareceu. Cerrou novamente as pálpebras e sonhou que estava em casa cercado pelos filhos.

Misteriosa e discretamente como sempre vivera, a infeliz tessaliana deixara o mundo dos vivos.

FIM

 
Os Últimos Dias de Pompeia - Livro - WOOK
Em Os Últimos Dias de Pompéia, do escritor britânico Bulwer-Lytton a grande erupção do Vesúvio, ocorrida no ano de 79 d.C. não é o tema central, mas é o pano de fundo e desfecho de uma obra que trata de pessoas e de seus relacionamentos, que ocorriam as vésperas da inesperada tragédia. A trama se desenvolve a partir do momento em que o centurião Glaucus retorna à sua cidade, Pompeia, para tentar solucionar uma série de crimes que vinham ocorrendo. Ao mesmo tempo, o soldado ganha uma crescente paixão por Ione que surge como a sua grande motivação.
Escrito no século XIX, no estilo romântico, Os Últimos Dias de Pompeia faz um grande resgate histórico, mostrando os hábitos alimentares, as vestimentas, os aspectos culturais mais complexos, como a diversidade de povos e costumes da cidade e os conflitos entre as crenças religiosas greco-romanas e o cristianismo primitivo.

 

ϟ


excerto(s) de
OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPÉIA
Edward Bulwer-Lytton
título original: The Last Days of Pompeii (1834)
LeBooks Editora, 1.ª edição

Δ

13.Ago.2021
Publicado por MJA