|
Nídia cega - baixo-relevo de Francesco Jerace, 1871
Puxado por dois magníficos cavalos de puro sangue e guiado
por um rapaz de harmoniosos traços, figura prodigiosamente
reproduzida pelos escultores atenienses, o carro estacou.
Facilmente poder-se-ia descobrir a nobre origem do condutor pelos
belos cabelos dourados que lhe tocavam os ombros.
— Não te esqueças da ceia de hoje à noite — recomendou,
debruçando-se para Cláudio.
— Como iria esquecer um convite de Glauco?
— Para onde vais agora?
— Vou aos banhos, mas tenho ainda uma hora disponível.
— Nesse caso, acompanho-te no passeio — disse Glauco.
Assim falando, desceu do carro, acariciou um dos cavalos que
relinchava de orelhas empinadas e perguntou:
— Que achas de Filas? Não é um lindo animal?
— Digno de Febo! Digno de Glauco! — respondeu o patrício.
Caminhando a passos lentos e conversando sobre mil
futilidades, os dois jovens atravessaram a apinhada rua, parando
aqui e ali diante de um estabelecimento para apreciar os suntuosos
murais que decoravam seus interiores. Mas parecendo estátuas
vivas, escravas passavam sustentando na cabeça ou nos ombros
ânforas de bronze. A rua desembocava numa pequena praça, onde
se viam ainda, àquela hora, camponeses acocorados junto dos
cestos cheios de frutas maduras ou de flores de vivo colorido. De
repente, diante de um fino e gracioso templo, os jovens tiveram a
atenção atraída pelo canto de uma meninota que se fazia
acompanhar por um instrumento de três cordas. Quando terminou a
estranha e semisselvagem canção, circulou oferecendo flores do
seu cestinho aqueles que a haviam escutado. E ouviu-se o barulho
dos sestércios caindo no fundo do cesto. Não a recompensavam
apenas pelo prazer da melodia, mas principalmente por compaixão
—a cantora era cega.
— Eis aqui a pequena tessaliana! — exclamou Glauco,
reconhecendo a infeliz. — Desde que regressei a Pompeia não a
tinha visto ainda.
— E, acotovelando-se entre os que se comprimiam em volta
dela, aproximou-se, atirou umas moedas no cesto e disse-lhe: — Tua
voz está cada dia mais bela. Dá-me um raminho de violetas.
Perturbada ao ouvir a voz do ateniense, a jovem ruborizou-se,
mas, contendo a emoção, entregou-lhe o ramo de flores,
balbuciando:
— Muito obrigada. — E, num tom mais baixo ainda, continuou:
—Então voltaste, Glauco?
— Sim, minha querida. Estou de volta a Pompeia e meu jardim
ressente-se da tua falta. Não permitirei que outras mãos toquem nas
minhas flores. Espero-te amanhã, Nídia.
A ceguinha abriu o semblante num sorriso de júbilo, deixando à
mostra os dentes alvíssimos e nada respondeu. Glauco prendeu o
raminho de violetas no peito e afastou-se do grupo
despreocupadamente.
— É tua protegida essa menina? — indagou Cláudio.
— Sim, tenho muita pena dela. Somos da mesma terra, perto de
Olimpo.
— De Tessália? A terra das feiticeiras?
— Por acaso não são feiticeiras todas as mulheres? O ar de
Pompeia parece um filtro de amor, pois todas as carinhas femininas
me deixam louco!
***
Na porta de uma espelunca situada num afastado bairro de
Pompeia, frequentado por vagabundos e miseráveis, estava um
grupo de homens de pescoço taurino, músculos salientes,
verdadeiras estátuas de bronze. Eram gladiadores. Uma pintura
mural, representando lutadores bebendo, e uma prateleira repleta
de jarros de vinho, esclareciam o ramo de comércio do
estabelecimento. No seu interior, em volta de mesas pequenas,
fregueses bebiam e jogavam dados.
Stratonícia não parava, de um lado para o outro, numa
incansável atividade, servindo o vinho das ânforas para que os
fregueses não parassem de beber.
— Faz muito tempo que não vejo tua escrava, aquela ceguinha.
Que fim levou? — perguntou Tetraídes.
— A pobre é muito fraquinha para vos servir — respondeu a
taverneira. — Prefiro mandá-la à cidade vender flores e cantar
melodias tessalianas. Rende-nos muito mais do que trabalhando
aqui...—
Onde foste descobrir escrava tão formosa? — interrogou
Lidon. — Com tal beleza, bem poderia ser aia de qualquer rica
matrona!
— Concordo e aliás espero que seus atributos me proporcionem
uma boa fortuna, quando a vender mais tarde. Foi uma sorte
encontrá-la! Tinha ido ao mercado em busca de uma escrava que
substituísse a falecida Stáfila, que fazia todo o serviço pesado, mas
já resolvera desistir da compra, pois os preços eram elevadíssimos.
Foi quando um mercador, percebendo a minha intenção, puxou-me
pela túnica e disse: “Espera, patroa, tenho um negócio magnífico
para propor-te. Uma escrava linda e nada cara, quer ver? É
pequenina, mas esperta e de boa raça. Além disso, canta
maravilhosamente, a tessaliana.” Acompanhei o mercador e
agradou-me o aspecto da pequena com seu arzinho tímido. Assim
que paguei, o tratante sumiu — me vendera uma cega. Fiquei furiosa
e fui me queixar ao magistrado, mas o espertalhão tinha
desaparecido de Pompeia. Afinal me resignei, pois se Nídia de nada
serve para o serviço da casa, pode perfeitamente guiar-se pelas
ruas com o auxílio de um bastão e nos traz diariamente um punhado
de sestércios vendendo flores que colhe no jardim. Os moços ricos
gostam das grinaldas que ela tece à moda de Tessália e pagam-lhe
mais que às outras floristas. Tudo o que ganha traz religiosamente
para casa. Acho que a pequena foi roubada de pais ricos, a julgar
pela educação que tem. Canta e faz-se acompanhar muito bem pela
citara. E esta não é a única habilidade que possui. Ainda
recentemente... bem... isto é segredo!
— Segredo? desembucha duma vez, esfinge! — exclamou
Lidon.—
Chega de conversa! — interrompeu Sporus. — E melhor que
sirvas logo a comida...
Stratonícia correu e em seguida voltava trazendo uma travessa
com enormes pedaços de carne crua, alimento ideal para manter os
gladiadores em forma. Como lobos famintos, os lutadores
devoraram tudo regado com o generoso vinho.
***
Profissão honrosa, mas nada lucrativa, o sacerdócio era
privilégio dos nobres patrícios na antiga Roma. Só muito mais tarde
é que foi permitido o exercício dessa atividade a todas as classes
sociais. Eis porque Caleno, neto dum liberto, era sacerdote de Ísis.
Seu único parente vivo em Pompeia era Burbo, ao qual, mais do
que os laços de sangue, unia-o suspeita amizade. Frequentemente
Caleno evadia-se do templo de Ísis e, disfarçado como convinha a
um ministro da deusa, entrava sorrateiramente na taverna de Burbo
pela porta traseira. De natureza viciosa e brutal, divertia-se
arrancando a máscara da hipocrisia que a profissão o obrigava a
ostentar.
Nesse momento ouviu-se um ligeiro ruído na porta e Caleno,
sobressaltado, enfiou o capuz na cabeça.
— Não te assustes — tranquilizou-o Burbo. — É a ceguinha.
Nídia abriu a porta e entrou.
— Que aconteceu, menina? Estás tão pálida! Terminou muito
tarde o banquete de ontem? Precisas descansar!
A jovem não respondeu, mas deixou-se cair num banco,
demonstrando grande desânimo; de repente, sua fisionomia mudou
de expressão e, com voz decidida, exclamou:
— Mata-me de fome, senhor, espanca-me, mas não tornarei
àquela infame casa!
— Tens a ousadia de desobedecer-me, Nídia? — disse Burbo
com um olhar feroz.
— Repito que não irei mais àquele lugar — insistiu a infeliz,
cruzando os braços.
— Muito bem, delicada vestal, neste caso irás à força!
— A cidade inteira ouvirá meus gritos — ameaçou a menina.
— Serei forçado a amordaçar-te — retrucou Burbo, sorrindo com
maldade.
— Os deuses não me abandonarão! Queixar-me-ei às
autoridades.
— Lembra-te do juramento que fizeste! — interveio Caleno, que
se mantivera calado até ali.
— Oh, como sou desgraçada!
Stratonícia entrava no quarto e, estranhando a atitude de Nídia,
inquiriu violentamente o marido:
— Que está acontecendo aqui? Que fizeste à pequena?
— Calma, mulher! Se gostas de belas túnicas e cintos novos,
trata de educar melhor tuas escravas...
— Que significa tudo isto?
Nídia caiu aos pés da taverneira abraçando-a pelos joelhos e,
erguendo os olhos como se a estivesse vendo, suplicou soluçando:
— Minha boa ama! És mulher e foste jovem como eu!
Compadece-te de mim, não posso mais comparecer a esses
horríveis festins!
—Tolices, menina! — disse a taverneira, repelindo a mão de
Nídia. — Escravas não têm dengos!
— Escuta este som, mulher — disse Burbo, fazendo tilintar as
moedas. — Por Pólux, se não dominares essa criatura, nunca mais
ouvirás este doce ruído.
— A cega está esgotada agora — falou Stratonícia, voltando-se
para Caleno. — Quando vieres outra vez, estará mais dócil.
— Quem está aqui? Quem está aqui? — perguntou assustada
Nídia, lançando penosos e inúteis olhares em redor.
— É incrível que esta menina não enxergue com olhos tão
claros! — exclamou Caleno, observando-a.
— Quem está aqui? — repetiu Nídia aflita. — Pelos deuses, falai!
Quero saber quem está aqui!
— Leva-a daqui — ordenou Burbo, impaciente. — Detesto
lágrimas...
Stratonícia empurrou a infeliz pelos ombros, mas Nídia
escapuliu e, alcançando o centro do quarto, exclamou com altivez:
— Tenho-vos servido fielmente. Oh, se minha mãe visse a
desgraça que se abateu sobre sua pobre filha! Mandai-me fazer o
que vos apetecer que eu obedecerei, mas não me obrigueis a voltar
àquele lugar ímpio! Juro que se tentardes me forçar, buscarei a
proteção do pretor. Por todos os deuses, juro que me queixarei!
A ameaça enraiveceu Stratonícia: agarrou a cega pelos cabelos
para arrancá-los, mas antes que sua mão obedecesse aos furiosos
instintos, teve um rasgo de lucidez e percebeu a asneira que seria
destruir coisa de tal valor. Arrastou-a para um canto e, tomando de
uma corda que pendia da parede, açoitou a escrava, cujos gemidos
encheram a casa toda.
Enquanto isso, lá fora, curvando-se ligeiramente para transpor a
porta, Lépido tinha entrado na taverna, seguido de Cláudio e de
Glauco. Respeitosamente os gladiadores se levantaram para saudar
os três nobres patrícios.
— Salve, amigos! — exclamou Lépido. — Vejamos quem
merecerá nossas apostas nos próximos combates.
— Belos animais! — disse Cláudio, virando-se para Glauco. —
São dignos de sua profissão.
— Preferia que fossem guerreiros — discordou o ateniense.
Lépido avançou e começou a apalpar os músculos daqueles
gigantes, admirando com entusiasmo.
— Quem enfrentarás? — perguntou a Níger.
— Sporus desafiou-me. Lutaremos até que um morra.
— Assim espero — respondeu Sporus, piscando o olho.
Cláudio bateu no ombro de Níger, prometendo:
— Encheremos tua bolsa de sestércios. Nada temas, pois serás
o vencedor. Vamos, Glauco, aposto em Níger!
— Não disse que seria eu o preferido? — rosnou o gigante. —
Estás condenado à morte, pobre Sporus!
— Mas onde está Burbo? — lembrou-se Cláudio. — E a
encantadora Stratonícia?
— Estão lá dentro — respondeu Níger, apontando para a porta
dos fundos.
Foi nessa altura da conversa que se ouviram os gritos de Nídia:
— Não me maltrates! Já não basta minha desventura? Sou uma
cega indefesa!
— Esta voz é de minha linda jardineira — disse Glauco,
correndo em direção à porta e abrindo-a. — Miserável! — gritou,
avançando e arrancando a corda ensanguentada da mulher que
torturava Nídia. — Como tens coragem de bater nessa criança?
Nídia, minha querida!
— Oh, Glauco! — exclamou a infeliz, soluçando e abraçando-o.
— Não podes impedir que uma mulher livre castigue a escrava
que lhe pertence! — bradou a megera. — A despeito da túnica e dos
horríveis perfumes que usas, vê-se que és um estrangeiro. Nenhum
cidadão romano seria tão insolente!
— Cala-te! — replicou Cláudio, entrando no quarto,
acompanhado de Lépido. — Glauco é o meu melhor amigo e exijo
que o respeites.
— Quero a minha escrava — berrou a taverneira, avançando
para Glauco e segurando-o pelo ombro.
— Afasta-te! — ordenou Glauco. — Nem que todas as Fúrias
tuas irmãs viessem em teu auxílio eu a entregaria. Acalma-te, Nídia,
um ateniense jamais abandona os oprimidos.
Pretendendo apaziguar, Burbo ergueu-se e disse:
— Ora, para que tanta bulha por causa de uma escrava?
Mulher, desculpa o patrício e perdoa por esta vez as impertinências
desta menina — e tentou arrastar Stratonícia.
— Parece que havia mais alguém aqui — observou Glauco.
Com efeito, prudentemente Caleno havia se retirado, evitando
ser visto pelos visitantes. Com ar indiferente, Burbo respondeu:
— Ah, era um conhecido meu, inimigo de desavenças. Foi
embora... Vamos, Nídia, não te pendures assim na túnica desse
nobre senhor. Já estás perdoada, podes retirar-te.
A ceguinha, porém, agarrava-se firmemente suplicando com voz
ardente:
— Não me abandones, Glauco!
Enternecido com o apelo da escrava, Glauco puxou-a e sentoua
sobre os joelhos. Com a expressão dum pai que procura suavizar
o sofrimento do filho, enxugou com os compridos cabelos da jovem
o sangue que lhe escorria, dirigindo-lhe palavras carinhosas. Era tão
espontânea e nobre a sua atitude que a própria Stratonícia se
comoveu:
— Quem haveria de dizer que Nídia teria semelhante honra!
Glauco dirigiu-se ao taverneiro:
— Queres vender-me a tua escrava? Aprecio sinceramente
suas habilidades. Canta e tece grinaldas como ninguém.
Nídia teve um estremecimento de felicidade e voltou o rosto
para todos os lados como se pudesse ver.
—Vender a nossa escrava? Nunca! — gritou Stratonícia.
A ceguinha suspirou novamente e encostou a cabeça no peito
do salvador como se implorasse proteção. Foi então que Cláudio
interveio decididamente:
— Ou vendem Nídia ou fecho esta espelunca! Basta uma
palavra minha ao edil Pansa, que é meu primo e de quem
dependes, Burbo!
— A menina vale o seu peso em ouro — murmurou o taverneiro,
coçando a cabeça.
— Pagarei o que pedir — prometeu Glauco.
— Bem, me custou seis sestércios, mas hoje vale muito mais...
—insinuou Stratonícia.
—Dou vinte sestércios — interrompeu o ateniense. — Vamos já
fechar o negócio com o magistrado.
— Então irei para tua casa? — sussurrou Nídia, com jubiloso
sorriso.
— Sim, minha querida tessaliana, e teu trabalho de agora em
diante será cantar hinos da Grécia à mais adorável das mulheres de
Pompeia.
Uma sombra de tristeza cobriu o delicado rostinho de Nídia e,
pegando a mão do seu protetor, suspirou fundo e perguntou:
— Pensei que fosse para tua casa...
— Irás... por enquanto.
***
Os primeiros raios do Sol brilhavam sobre o jardim de Glauco e
o ateniense estava estendido na fresca relva, protegido por um
dossel de flores, quando Nídia chegou, pisando cautelosamente no
piso de mármore. Vestida com uma diáfana túnica, sobraçava um
regador. Adivinhando ou reconhecendo pelo perfume, detinha-se
diante das flores, apalpava-as delicadamente e regava-as com
gestos juvenis, mas compenetrados. Era comovente o espetáculo
da cegueira tateando de flor em flor, semelhante a uma ninfa.
— Vem cá, Nídia!
O som da voz adorada fez a jovem parar, ruborizada; pousou o
regador no chão e aproximou-se de Glauco: era incrível como
descobria o caminho sem magoar, nem de leve, uma flor. Vendo-a
assim, ninguém diria que fosse cega.
— Nídia querida — começou o ateniense com doçura, alisando
os macios cabelos da jovem — os deuses do meu lar sorriram-te
desde que aqui chegaste há três dias. Estás feliz?
— Oh, certamente!
— Deves esquecer os sofrimentos de tua vida passada. E agora
que já estás refeita das emoções, quero pedir-te um favor.
— Que felicidade poder ser-te útil! — respondeu a jovem, unindo
as mãos.
— Apesar de tua pouca idade, serás minha confidente. Já
ouviste falar de Ione?
Nídia ficou pálida como as estátuas que a rodeavam; após um
penoso silêncio, retrucou:
— Sim. Ouvi dizer que é napolitana e extraordinariamente bela.
— Tem razão. É mais bela que o dia. Sua origem é grega, pois
só a Grécia propicia semelhante formosura. Nídia, quero que saibas:
estou apaixonado!
— Já o suspeitava — murmurou a ceguinha com estranha
serenidade.
— Amo-a com toda a minha alma e desejo que vás à casa dela
transmitir-lhe meu sentimento. Terás a ventura de penetrar na sua
alcova, de inebriar-te com a sua voz e de respirar a atmosfera em
que ela vive.
— Vou separar-me de ti?
— Ficarás com Ione — respondeu Glauco, com uma inflexão
que parecia dizer: “Que mais desejas?”
A ceguinha não se conteve e caiu em prantos. Glauco atraiu-a
para junto do peito e afagou-a fraternalmente.
— Minha querida, o que é isso? Ione é bondosa e a fará feliz.
Apreciará tuas qualidades e compreenderá o encanto da tua
simplicidade, tão semelhante à dela. Será tua companheira, tua
irmã. Vamos, continuas chorando? Está bem, não vou obrigar-te a
fazer uma coisa contra tua vontade. Se não queres me dar este
prazer...
— Estou aqui para obedecer a tuas ordens. Pronto, já passou.
— Agora reconheço a minha Nídia — disse Glauco, beijando sua
mãozinha. — Vai, pois, à casa de Ione e se eu estiver enganado
quanto à sua bondade, se não te sentires feliz junto dela, voltarás
para cá. Além disso, não te dou a Ione, apenas cedo-te a ela, até o
dia, que espero não esteja longe, em que a casa de Ione e a minha
sejam a mesma. Vai, minha querida, e, aconteça o que acontecer,
terás sempre refúgio aqui.
Nídia sentiu o coração oprimido e as palpitações dificultavamlhe
a respiração; vencendo, porém, a agonia, resignou-se.
— Colhe no jardim as flores mais belas para levá-las a Ione,
junto com uma carta em que tento exprimir meu amor. Observa
atentamente as modulações de sua voz para informar-me depois se
minha declaração foi recebida com agrado. Algo misterioso me
afasta daquela casa e a dúvida me tortura. És hábil e inteligente e
saberás adivinhar o motivo de tal crueldade. Quando estiveres junto
dela, procura pronunciar meu nome com frequência e insinuar
minha paixão, mas faze com cuidado para que ela não perceba a
missão de que te encarreguei. Penetra o sentido de suas palavras,
oh, Nídia, sê minha leal amiga, advoga minha causa e eu me
sentirei recompensado pelo pouco que fiz por ti. Não sei se me
compreendeste... disse alguma coisa que não pudesses entender?
— Não.
— Posso contar com a tua ajuda?
— Sim, de coração.
— Então apressa-te. Colhe as flores e depois vem encontrar-me
de novo. Passou a tristeza?
— Sou tua escrava, Glauco. Não tenho o direito de mostrar
alegria ou tristeza.
— Que os deuses abençoem teu nobre coração! — exclamou
Glauco emocionado, beijando-a afetuosamente, sem suspeitar do
imenso amor que inspirara à ceguinha. — Não pretendo ser teu
senhor. És livre...
— Não tornes a falar em liberdade, Glauco. Ser tua escrava é
para mim uma felicidade. Não me darás a ninguém, como
prometeste?
— Cumprirei a promessa.
Depois de receber a carta e as últimas instruções, Nídia beijou a
mão de Glauco e, cobrindo o rosto com o véu, preparou-se para
sair. Quando transpunha a porta, ergueu os braços e exclamou:
— Três dias de inexprimível felicidade gozei sob este
abençoado teto! Que a paz reine em tua casa, Glauco, e que os
deuses te protejam! Meu coração se despedaça ao separar-me de ti
e suas pulsações só me falam de morte!...
Quando a escrava de Ione lhe anunciou a mensageira de
Glauco, a napolitana vacilou, mas ao saber que se tratava de uma
cega e que insistia em transmitir pessoalmente a mensagem,
concordou em recebe-la. “Que pretenderá ele?”, pensava com o
coração ansioso, ouvindo os passos de Nídia.
Guiada por uma das escravas, a ceguinha apareceu e falou
com voz tímida:
— Nobre Ione, fala alguma coisa para que eu possa saber onde
estás. Depositarei aos teus pés o presente de que sou portadora.
— Encantadora jovem — respondeu Ione — não te arrisques a
caminhar neste chão escorregadio. Minha escrava trará o que tens
para entregar-me.
Nídia, porém, já se adiantava, orientando-se pelo som da voz e,
ajoelhando-se diante de Ione, estendeu-lhe as flores:
— Prometi entregar-te pessoalmente.
Ione pegou as flores e colocou-as sobre a mesa; depois,
delicadamente ajudando a ceguinha a se levantar, convidou-a a
sentar-se. Modestamente Nídia recusou e, tirando a carta que trazia
presa ao cinto, explicou:
— Trago-te também esta carta do meu senhor.
Sentiu Nídia que a mão de Ione tremia ao receber a missiva. E
de pé, cabeça baixa, braços cruzados sobre o peito, permaneceu
diante da altiva e majestosa Ione enquanto está lia as seguintes
palavras:
Glauco escreve a Ione o que seus lábios não ousariam dizerlhe.
Ione não está doente, porque as escravas assim o afirmam e
isso já é um grande conforto. Terá Glauco ofendido a Ione? Eis uma
indagação que não se atreve a fazer às escravas. Há cinco dias que
não te vejo e se lhe perguntassem se o Sol brilhou durante esse
tempo não saberia dizê-lo, porque o meu Sol é Ione. Ofendi-te?
Receio ser demasiado atrevido enviando-te esta mensagem que
meus lábios não conseguiriam exprimir. Longe de ti, privado da
ventura de contemplar-te é que compreendo como me subjugaram
teus encantos. Este afastamento enche-me de tristeza, mas dá-me
coragem. Negas-te a ver-me e a todos os cortejadores que te
cercavam. Pobre de mim! Como podes igualar-me a eles? Sabes
que não sou feito do mesmo barro. Terei sido vítima de alguma
calúnia? Como pudeste dar ouvidos a intrigas? Ainda que o próprio
oráculo de Delfos me viesse dizer que eras indigna do meu amor eu
o repeliria.
Ah. Ione! Como me persegue a recordação da última noite em
que nos encontramos e do teu olhar ao ouvir o canto que te
dediquei! Ainda que queiras, não poderás negar que o mesmo
sentimento nos une, sentimento confessado pelos olhares que
trocamos, embora de lábios cerrados. Permite que te veja e, se não
lograr convencer-te com minhas palavras, resignar-me-ei. Se minha
ardente juventude e meu sangue ateniense arrastaram-me aos
prazeres profanos, antes de conhecer-te, pude em compensação
melhor gozar a tranquilidade que encontrei no teu amor.
Conhecendo-te, escapei de um naufrágio, Ione. Como podes ser
menos bondosa com um compatriota se és gentil com os estranhos?
Concede-me a ventura de falar-te. Envio-te estas flores, cuja
fragrância é mais eloquente do que as palavras mais temas, pois
simboliza o amor. A portadora é também uma estrangeira. Seus
antepassados repousam sob o belo céu grego, mas a pobre é
escrava e cega. Acolhe-a em tua casa com a compaixão que
merece. É meiga, dócil, canta com extraordinária suavidade e cuida
das flores com a habilidade duma Clóris. Mas se não gostares dela,
poderás mandá-la de volta. Ouso fazer-te uma última pergunta,
suplicando que perdoes a minha audácia: Por que dedicas tão alta
estima ao taciturno egípcio? Arbaces não é homem de confiança,
garanto-te. Suspeito que terá sido ele quem me intrigou junto a ti,
pois desde que me surpreendeu contigo, nunca mais fui recebido
em tua casa. Invejo esta carta que roça tuas mãos e recebe a
maravilha do teu olhar. Salve, Ione!
À medida que lia, parecia a Ione que um nevoeiro se dissipava.
Censurava-se por ter acreditado em Arbaces, duvidando do amor de
Glauco. Lágrimas de pesar rolaram-lhe pelas faces, molhando a
carta. Depois, voltando-se para Nídia que permanecia de pé, falou:
— Como te chamas, menina?
— Nídia.
— Qual é a tua pátria?
— Sou de Tessália, perto do Olimpo.
— Pois ficarás comigo. Senta-te aqui que vou escrever a
Glauco.
Eis a carta de Ione:
Espero-te amanhã, Glauco. Se fui injusta contigo, dir-te-ei agora
o que me contaram a teu respeito. Não receies o egípcio nem
ninguém. Apressadamente expresso nestas linhas o mesmo
sentimento confessado na tua carta. Que os deuses te cumulem de
venturas.
Sem reler o que havia escrito, voltou-se para perto de Nídia.
— Já terminaste? — perguntou a cega.
— Sim.
— Glauco ficará feliz com a resposta?
Ione não respondeu, nem Nídia pode ver o rubor que cobriu as
suas faces.
— Se tua carta contém palavras frias, manda que a escrava que
me trouxe aqui a leve — continuou Nídia. — Glauco ficará
profundamente triste. Mas se são palavras de carinho, quero ser eu
a mensageira. Retornarei esta tarde para junto de ti.
— Mas por que queres ser a portadora da carta?
— Oh, Ione! Compreendo que tua resposta o encherá de júbilo.
Nem poderia ser de outro modo. Quem ficaria insensível a Glauco?
— Quanto entusiasmo, Nídia! Glauco deve ser muito bom para
ti!
— Bom? Glauco fez muito mais por mim do que os deuses e a
Fortuna. Foi um amigo.
A melancólica dignidade com que a ceguinha fez esta
declaração comoveu Ione, que beijou a escrava.
— Não precisas corar ao exprimir tua gratidão, Nídia. Leva-lhe a
carta e volta para junto de mim. Serás a irmã que nunca tive.
Humildemente a tessaliana beijou a mão da rival e perguntou
um tanto perturbada:
— Posso pedir-te um favor?
— O que quiseres, Nídia.
— Todos dizem que és belíssima, mas não posso contemplar-te.
Permite que eu toque teu rosto com as mãos. É à minha maneira
de ver.
E, aproximando-se de Ione, delicadamente roçou a cútis da
grega, cuja beleza apenas a mutilada estátua da Vênus de Milo
poderia dar uma pálida ideia; depois, tateou os sedosos cabelos, a
suave pele do pescoço, os braços bem torneados.
— Agora sei que és realmente bela! — exclamou ao terminar o
exame. — Tua imagem ficará para sempre gravada nas trevas em
que vivo.
***
Para os corações que se amam sem barreiras, os dias são uma
sucessão de sonhos e poesia. Ione já não escondia de Glauco o
imenso amor que lhe devotava e a conversa do casal de
apaixonados era uma troca de ternas e castas confissões; viviam a
alegria do presente confiantes na felicidade futura.
Corria o mês de agosto, a data do casamento fora fixada para
os primeiros dias de setembro e a fachada da casa de Glauco já
estava festivamente ornamentada com grinaldas de flores. Escravo
da paixão, o ateniense abandonara completamente a jovial
companhia dos amigos, passando todo o tempo com a amada,
navegando deliciosamente em barcos alados ou caminhando na
placidez do campo, entregue a pueris e entusiasmados projetos.
Preso ao leito, Arbaces não os perturbava, convalescendo
lentamente do golpe. Nídia era a única e constante companheira
dos amantes, mas estes nem de longe suspeitavam a tristeza que o
amor de ambos causava à pobre cega. Contudo, intrigavam-nos as
frequentes mudanças na atitude da jovem, ora meiga, ora irritadiça,
revelando-se às vezes uma criança caprichosa, às vezes uma
mulher reservada. Compadecidos por sua desventura, abstinham-se
de exercer autoridade sobre ela, tolerando-a com o mesmo
complacente carinho que as mães dispensam aos filhos doentios.
Quando ia à casa do protetor tratar das flores, Nídia
constantemente aventurava-se até o quarto de Glauco procurando
puxar conversa, mas logo se retirava com a alma dilacerada, por ver
o grego desviar sistematicamente o diálogo para o objeto do seu
amor. A paixão de Glauco por outra mulher despedaçava-lhe o
coração e censurava-se por ter contribuído para salvar a rival das
garras de Arbaces. No início, a surpresa provocou-lhe confusas
sensações; depois, foi como se uma derrocada a abatesse,
lançando-a num enorme vácuo e, após o cruel desencanto, acordou
nela um incontrolável ciúme. Prematuramente amadurecida pelas
misérias da infância e pelas degradantes cenas de devassidão a
que assistira nos banquetes do egípcio, germinava nas suas
entranhas a semente do mal, prestes a se desenvolver. Amava
Glauco com todas as forças do seu ferido coração, mas hesitava
entre o temor de ser descoberta e a revolta de que ele jamais
houvesse suspeitado do seu afeto. Quanto a lone, estimava-a por
ser amada por Glauco, mas a mesma razão fazia-a odiar, num
angustiado conflito de sentimentos.
Essa violenta e permanente luta íntima acabou por abalar a
saúde de Nídia. Já não refreava o pranto e suas faces tornaram-se
pálidas.
Certa manhã, quando se achava entregue à tarefa de cuidar
das flores, trabalho que constituía seu único consolo, o ateniense
chamou-a. Estava ele escolhendo joias que o mercador lhe trouxera
para presentear a noiva.
— Vem cá, Nídia — falou Glauco. — Esta corrente é para ti.
Chega para cá que quero colocá-la no teu lindo pescoço... Pronto!
Vê como lhe assenta bem, Servílio!
— Admiravelmente! — concordou o mercador. — E acrescentou
com a lisonja peculiar dos joalheiros: — Quando estes brincos aqui
ornarem as orelhas de lone, verás como as minhas joias conseguem
realçar ainda mais sua beleza.
— Vamos ver — disse Glauco. — Busco para lone uma joia digna
de sua formosura, mas ainda não a encontrei.
O tímido sorriso com que Nídia demonstrara sua gratidão
desvaneceu-se instantaneamente e ruborizou-se. Com um gesto
impulsivo, arrancou a corrente do pescoço e atirou-a no chão.
— Que é isso, Nídia? Não gostaste do presente? Estás
zangada?
— Só me tratas como escrava ou como criança! soluçou Nídia,
fugindo para ocultar as lágrimas.
Magoado, Glauco não tentou segui-la e continuou examinando
as joias com o mercador, que acabou persuadindo-o a adquirir tudo.
Mais tarde, preparou-se e, tomando o carro, rumou para a casa da
noiva, esquecido da ceguinha e da desagradável cena. Passou a
manhã em companhia de Ione, depois foi aos banhos. Regressou
após a ceia das três horas para mudar de traje e tão distraído ia que
não viu a cega quando atravessou o átrio. Permanecia ela no
mesmo lugar para onde se retirara a fim de desabafar sua raiva e
esperava-o ansiosamente. Seu coração pulsou mais forte quando
lhe ouviu os passos e seguiu-os mentalmente.
Estendido no leito do aposento preferido, Glauco repousava
pensativo, quando alguém lhe tocou a roupa de leve. De joelhos
diante dele estava Nídia com um raminho de flores na mão.
— Pela primeira vez ofendi-te, Glauco. Oh, não fiz por mal,
creia-me. Prefiro morrer a causar-te um desgosto. Vê; estou usando
a corrente novamente. Nunca mais a tirarei do pescoço... É um
presente teu... compreendes?
— Querida Nídia, não penses mais nisso — respondeu Glauco,
erguendo-se do leito e beijando-a na testa. — Mas o que houve?
Não compreendi por que te zangaste!
— Não me perguntes — retrucou Nídia, corando. — Sou uma
criança, como sempre dizes, e uma criança comete tolices que não
sabe explicar.
— Já estás bem crescidinha, Nídia, e deves dominar teus
impulsos se queres ser tratada como mulher. Não estou te
repreendendo, querida, apenas desejo o teu bem.
— Entendo — respondeu Nídia. — Devo aprender a controlarme,
a ocultar meus sentimentos. Prometo que tentarei, Glauco, mas
sei que isso é muito difícil. Por acaso serias capaz de dominar teu
amor por Ione?
— Tratando-se de amor é diferente, Nídia.
— É o que penso — continuou a cega com um sorriso
melancólico. — Aceitas estas flores que te trouxe? Podes fazer delas
o que quiseres, inclusive oferecê-las a... Ione.
— Não, querida, não as darei a ninguém — replicou o ateniense
percebendo na vacilação da jovem um ciúme infantil e suscetível. —
Senta-te aqui ao meu lado e tece uma guirlanda para mim.
Radiante, Nídia sentou-se ao lado de Glauco e seus delicados e
ágeis dedos começaram a trabalhar as flores.
— Como são sedosos os teus cabelos! — exclamou o grego,
afagando-lhe meigamente a cabeça. — Tua mãe devia orgulhar-se
de ti!
Nídia suspirou e nada disse. Nunca abrira a boca para falar da
sua misteriosa origem. Pressentia que não nascera escrava, mas,
nobre ou obscuro, evitava referir-se ao seu nascimento.
***
“Como Ione deve ser feliz! Sempre ao lado de Glauco, vendo-o
e ouvindo sua voz!” Assim pensava a infeliz cega quando, à
noitinha, regressava à casa da ama. De repente, uma voz feminina
interrompeu seus pensamentos.
— Aonde vais, florista, sem teu cestinho. Vendeste todas as
flores?
Era Júlia, a filha de Diomedes que, de véu levantado, passava
acompanhada do pai e de um escravo. Suas feições e o
desembaraço de suas atitudes davam-lhe mais a aparência de uma
mulher feita do que a de uma jovem donzela.
— Não vendo mais flores, nobre Júlia — respondeu Nídia,
reconhecendo a voz.
— Então é verdade que foste comprada por Glauco?
— Estou a serviço de Ione, a napolitana — retrucou a ceguinha.
— Vamos andando! ordenou Diomedes, puxando a capa para
proteger o queixo. — A noite está fria. Se quiseres tagarelar com
essa escrava, traze-a para casa.
— Vem conosco, Nídia — falou Júlia, com o tom da pessoa que
está habituada a dar ordens. — Tenho muitas coisas para te
perguntar...
— Hoje não posso, nobre Júlia. Bem sabes que não sou livre.
— Ora, então a meiga Ione seria capaz de castigar-te? Não me
digas que é uma segunda rainha Talestris, de rosto suave e coração
duro... Bem, nesse caso, fica para amanhã. Mas não deixes de vir,
sim? Lembra-te que sempre fui tua amiga!
— Irei sem falta, Júlia.
Novamente Diomedes apressou a filha e esta seguiu-o,
lamentando a impaciência paterna que a impedia de interrogar
imediatamente a cega sobre um assunto que a interessava
vivamente.
No dia seguinte, em seu andar hesitante, procurando com o
bordão o desconhecido caminho, Nídia chegou à porta da casa de
Diomedes.
— Posso entrar? A nobre Júlia está em casa? indagou
timidamente.
O escravo Medon ergueu os olhos e, reconhecendo a ceguinha,
guiou-a até a escadaria que conduzia ao átrio, entregando-a a outra
escrava. Acabara ele de ter uma conversa com o filho, o gladiador
Lidon, tentando inutilmente convencê-lo a mudar de profissão. O
jovem decidira comprar a liberdade do pai e só nos sangrentos
combates via possibilidades de obter os recursos necessários.
Júlia estava sentada em frente a uma penteadeira repleta de
cosméticos, essências, ganchos de ouro, fitas e um pequeno
espelho de aço polido, cercada de escravas que, sob as ordens da
mais idosa, entregavam-se ao arranjo do complicado penteado.
— Ai! — gritou Júlia. — Estás me arrancando os cabelos! Põe
este gancho mais para a direita, estúpida!
— Bruta! — ajuntou a matrona. — Não vês que tua senhora é
delicada, fina e aristocrática? Pensas que estás penteando a crina
de Fúlvia? Prende essa fita aí... assim! Mira-te agora, nobre Júlia,
estás mais bela do que nunca!
Depois do penteado, chegou a vez do rosto. Um pó suave, de
tonalidade escura, foi aplicado nas pálpebras e nas sobrancelhas,
emprestando aos olhos uma expressão languida e apaixonada; os
alvos dentes tornaram-se mais claros ainda, por meio de mágicos
artifícios e um pequeno sinal no canto do lábio fez realçar as
provocantes covinhas do rosto; em seguida, a escrava encarregada
das joias colocou-lhe brincos nas orelhas, ornou seus braços com
preciosas pulseiras das quais pendiam talismãs de cristal e, à guisa
de presilha, foi colocado na túnica um rico camafeu; o cinto que
cingia sua cintura, marcando-lhe o desenho do corpo, era de
pedraria em forma de serpentes entrelaçadas e, finalmente, todos
os dedos, exceto o médio, receberam anéis de diferentes feitios.
— Salve, Júlia! — disse Nídia no limiar da porta. — Aqui estou
cumprindo tuas ordens.
— Entra e senta-te junto de mim.
Uma das escravas ajudou Nídia a sentar-se num escabelo e
durante alguns momentos Júlia deteve-se contemplando a menina
com indisfarçável constrangimento; depois fez sinal às criadas que
se retirassem e ficou só com a ceguinha.
— Quer dizer, então, que trabalhas para Ione?
— Sim, no momento estou em casa dela.
— E realmente bela como dizem? — perguntou, esquecendo-se
de que Nídia era cega.
— Como posso saber, Júlia?
— Tens razão. Como sou distraída! Nunca me lembro que não
vês. Mas podes ouvir e deves saber o que dizem as outras
escravas...
— Minhas companheiras afirmam que Ione é formosíssima.
— Ah!...E é alta?
— Deve ser da tua altura.
— Morena?
— Sim.
— Glauco visita-a com frequência?
— Diariamente.
— Não me digas! Deve achá-la bonita...
— Oh, sem dúvida... Tanto que vai desposá-la.
— O quê? — exclamou Júlia, empalidecendo sob a camada de
cosméticos. Dominou-se, porém, e reencetou a conversa: — É
verdade que nasceste em Tessália?
— Sim, nasci na terra de Olimpo.
— Dizem que Tessália é a terra da magia, dos talismãs, dos
filtros amorosos...
— Minha terra sempre foi famosa por isso — concordou Nídia
com timidez.
— Deves conhecer talvez algum filtro que faça com que os
homens se apaixonem...
— Eu? — retrucou a cega, confusa. — Como haveria de
conhecer?
— Que pena! Se soubesses de algum, eu te daria tanto ouro
que poderias comprar tua liberdade.
— Não entendo para que a nobre Júlia quereria um filtro
amoroso. É jovem, rica e bela! Creio que tais qualidades são mais
eficazes que qualquer filtro.
— Sim, menos para alguém...
— Alguém? — repetiu Nídia ansiosa. — A quem te referes?
— Ora, menina! Não penses que estou falando de Glauco.
Nídia respirou aliviada e Júlia continuou:
— Acudiu-me o nome de Glauco porque te referiste à bela
napolitana e lembrei-me de que talvez tenha se utilizado de filtros
amorosos para prender o coração dele. E eu me encontro numa
situação humilhante: amo e não sou amada. Oh, como deixei
escapar de meus lábios tal confissão? Meu orgulho está ferido e
daria tudo para esmagar sob meus pés esse ingrato que me
despreza! Cuidei que poderia contar com a tua ajuda... se tivesses
sido iniciada nas magias da tua terra...
— Oxalá os deuses me tivessem concedido esse dom! —
exclamou Nídia com ardor.
— Sou grata por demonstrares desejos de me servir — disse
Júlia, sem suspeitar do sofrimento de Nídia. — Mas quem sabe se as
outras escravas não recorrem à nigromancia para seus vis amores?
Nunca as ouviste falar de algum mago da índia ou do Egito que se
dedique nesta cidade as artes que ignoras?
— Do Egito? Ah... conheço, sim — e um tremor percorreu o
corpo da cega. — Quem não conhece Arbaces, em Pompeia?
— Arbaces? É mesmo! Não deve ser um charlatão, como tantos
que vivem de explorar a ignorância alheia. Dizem que conhece a
fundo o oráculo dos astros e os segredos da antiga magia.
— É um homem muito perigoso — declarou Nídia,
instintivamente levando a mão ao talismã. — Seu poder é maior que
o de qualquer mago!
— Provavelmente é bastante rico para que eu lhe ofereça
dinheiro — disse Júlia. — Mas nada impede que lhe faça uma visita,
não achas?
— Sua casa é indigna de ser pisada por mulheres jovens e
bonitas — replicou Nídia.
— Indigna por quê?
— Suas orgias noturnas... Pelo que ouço dizer...
— Fala logo! Estás me deixando curiosa! Vou falar com ele hoje
mesmo, quero inteirar-me sobre sua ciência. Se os festins de sua
casa são orgias amorosas, é ele a pessoa que me convém...
Já então ansiosa também por certificar-se se o egípcio possuía
de fato os famosos filtros, Nídia animou-a.
— Se flores de dia, creio que não há o que recear, pois além do
mais dizem que está bem doente.
— Quem se atreveria a desrespeitar a filha de Diomedes? —
exclamou Júlia com ar de superior. — Irei agora mesmo.
— Quando saberei o resultado da tua entrevista? — Indagou
Nídia.— Esta noite ceamos fora, mas poderás vir amanhã a esta
mesma hora. Peço que aceites este bracelete como prova do meu
reconhecimento. Deste-me uma boa ideia...Não te esqueças que
sou grata e generosa com aqueles que me servem. Até amanhã!
— Não posso aceitar, embora me sejas muito simpática —
excusou-se Nídia — Sou criança ainda, mas sinto uma grande
ternura por aqueles que amam, sobretudo os que amam sem
esperança.
— Falas como uma criança livre e não como uma escrava,
Nídia. Breve ganharás a liberdade, pois bem mereces...Adeus!
***
Refletindo que melhor seria não confiar em ninguém,
nem mesmo numa cega, puxou Júlia à parte e disse-lhe:
— Precisamos ter cautela, Júlia, não convém que estranhos
participem de nosso segredo e a bruxa não gosta de receber muita
gente. Não há por que temê-la... Aliás, de que te servirá uma cega?
A jovem que, como já vimos, era bastante destemida, acedeu e
pediu a Nídia que a esperasse. Esta não desejava outra coisa — a
presença e a ameaça de Arbaces renovaram-lhe os antigos
temores; foi, pois, com alívio que se afastou e regressou à casa de
banhos. Uma hora mais tarde Júlia estava de volta.
— Graças aos deuses imortais! — exclamou. — Finalmente saí
daquela lúgubre caverna. — E prosseguiu descrevendo, já instalada
na liteira: — Que cenas horripilantes! A bruxa é uma verdadeira
megera! E que serpente! Bem, esqueçamos tudo, o importante é
que obtive o filtro e seu efeito é infalível! Minha rival será
desprezada, Nídia, e eu, apenas eu, serei o ídolo de Glauco!
— Glauco? Disseste Glauco?
— Sim — respondeu Júlia. — Agora não preciso mais encobrir a
verdade. É ele, o formoso ateniense que eu adoro!
A revelação soou como uma terrível tempestade no coração de
Nídia. O ar lhe faltava, sentia-se sufocada na atmosfera da
perfumada liteira. Felizmente, graças à penumbra, Júlia não
percebeu a perturbação da ceguinha e continuou a falar da feiticeira,
do egípcio e das suas visões do triunfo. Estava radiante!
Pouco a pouco, Nídia foi se acalmando e um pensamento
salvador acabou por restituir-lhe a serenidade — haveria de
apoderar-se do filtro.
Chegaram, por fim, à casa de Diomedes, onde as aguardava
uma ceia servida nos próprios aposentos de Júlia.
— Bebe, Nídia! Deves estar gelada como eu — disse, enchendo
a taça da ceguinha.
— Tens o filtro contigo? — perguntou Nídia. — Gostaria de tocálo
com as mãos... Oh, mas que frasco pequenino! De que cor é o
líquido?
— Cristalino como a água — retrucou Júlia. — E parece que não
tem gosto. O frasco é pequeno, mas a quantidade que contém é
suficiente para acorrentar o mais rebelde coração... Precisa, porém,
ser adicionado a outra bebida qualquer para não ser percebido por
quem o ingere.
— E o efeito é imediato?
— Em geral, sim. Há casos, contudo, em que leva algumas
horas para se produzir.
Nídia apalpou a mesa e pegou um frasquinho de perfume;
suspendeu a tampa e aspirou:
— Que perfume adorável!
— Agrada-te, Nídia? — interrogou Júlia. — Pois guarda-o para ti.
Ontem recusaste o bracelete, mas hoje vais aceitar este perfume
que, além de delicioso, está num frasco incrustado de pedras
preciosas.
— Oh, Júlia, deve ser muito valioso...
—Tolice, minha amiga, possuo uma quantidade de frascos
como este. Podes ficar com ele.
A ceguinha guardou-o no seio, curvando a cabeça em sinal de
agradecimento e indagou:
— A eficiência da poção independe da pessoa que a ministre?
— Sem dúvida. Se uma velha de rosto repulsivo a der de beber
a Glauco, parecerá formosíssima aos olhos dele...
Fosse pelo efeito do vinho, fosse pela esperança de ver
realizado seu desejo, Júlia mostrava uma jubilosa disposição: ria
sem parar e falava loquazmente. Quando ficou a sós com Nídia, já
preparada para se deitar, colocou o filtro sob o travesseiro e disse:
— Não me separarei dele até a hora de ser servido. Há de
inspirar-me sonhos divinos!
Nídia foi buscar uma ânfora cheia d’água e pousou-a junto do
seu leito, ao lado do de Júlia.
— Bebe vinho, Nídia!
— Não, nobre Júlia. Sinto-me um pouco febril e se tiver sede
durante a noite beberei água para me refrescar. Desde já recebe
meus agradecimentos e minhas felicitações. Provavelmente quando
acordares amanhã já terei partido.
— Obrigada, boa amiga. Espero que quando nos encontrarmos
novamente, já verás Glauco a meus pés...
Deitaram-se ambas e Júlia imediatamente adormeceu, vencida
pelas emoções de tantas aventuras. Nídia, ao contrário, não
conseguia conciliar o sono, torturada por mil pensamentos.
— Ajudai-me, oh Vênus! — murmurou ao reparar que Júlia
dormia profundamente.
Ergueu-se do leito e, tomando o frasco de perfume que Júlia lhe
dera, derramou o conteúdo sobre o piso de mármore; depois,
utilizando-se da água da ânfora, lavou-o bem para fazer
desaparecer os vestígios da essência. As apalpadelas, encaminhouse
para o leito de Júlia e cautelosamente deslizou a trêmula mão por
debaixo do travesseiro. Transferiu o filtro para o recipiente que
contivera o perfume, sem deixar escapar uma gota. Em seguida,
encheu de água o frasco vazio e tornou a enfiá-lo sob o travesseiro
em que repousava a cabeça de Júlia. Esta nada percebeu e a
ceguinha aguardou, com o coração ansioso, que o dia nascesse.
Quando desceu a escadaria de mármore que dava para a rua, o
porteiro Medon saudou-a amigavelmente. De nada valeu a fresca
brisa matutina acariciar lhe a fronte, pois seu coração ardia em
chamas. Apertando contra o peito o frasquinho, murmurou:
— Oh, Glauco, nenhum filtro, por mais poderoso, fará que ames
tanto como te amo! Não importa, querido! O meu destino reside no
teu sorriso e o teu... oh o teu, Glauco, está agora nas minhas mãos!
***
Ao chegar em casa, Glauco deu com Nídia sob o pórtico do
jardim. Convencida de que ele regressaria ao amanhecer,
aguardava-o resolvida a aproveitar a primeira oportunidade para pôr
à prova a eficácia do filtro.
— Ainda estás aqui, Nídia? Esperavas por mim?
— Não, Glauco, vim regar as flores e descansava um pouco
antes de partir.
— Está um calor sufocante e o vinha de Diomedes deu-me
sede. Chama um criado, por favor, e manda trazer-me uma bebida
fresca.
A ocasião surgia inesperadamente; Nídia estremeceu e,
erguendo-se pressurosamente, falou:
— Eu mesma vou preparar-te a bebida predileta de Ione: vinho
misturado com mel e neve.
— Se é a bebida preferida de Ione, deve ser excelente. Sei que
vou apreciá-la, ainda que se trate de veneno...
Nídia sorriu e desapareceu, surpreendida com a estranha
coincidência das palavras que Glauco acabava de proferir. Pouco
depois voltava com uma taça que estendeu ao ateniense e esperou,
de olhos fixos no chão, mãos unidas, lábios entreabertos,
terrivelmente perturbada. Glauco |á bebera alguns goles quando
percebeu a angústia da ceguinha:
— Nídia, minha querida, que tens? Estás te sentindo mal?
Pobre pequena, como tua fisionomia está alterada, que palidez!
Correu para ampará-la, quando sentiu uma dor fina transpassarlhe
o coração e o sangue gelar-lhe nas veias; uma espécie de
vertigem acompanhada de sensações confusas oprimiram-lhe o
cérebro e o chão pareceram fugir-lhe sob os pés. Simultaneamente
uma irresistível alegria empolgou-o: pôs-se a rir nervosamente
agitando os braços e batendo as mãos, numa louca excitação.
A ruidosa hilaridade de Glauco despertou Nídia da perturbação
que a abatera. Apesar de não poder ver a transformação das
feições do infeliz, nem o passo cambaleante, feriu-lhe os ouvidos a
agitação que se apossara dele, deixando-a em pânico. Glauco dizia
palavras desconexas e insensatas. Teria perdido o juízo? Tateando,
procurou aproximar-se e, abraçando-o pelos joelhos, suplicou:
— Glauco! Glauco! Dize-me que não me odeias? Responde-me!
Mas Glauco continuou proferindo frases desordenadas,
inclusive confundindo-a com Ione:
— Por que não me amas, querida Ione — dizia, acariciando-a.
—O egípcio caluniou-me, mas não eleves acreditar! Passei noites
rondando tua casa, esperando ver o Sol da minha vida... Não me
abandones... Morro se me desprezas! Deixa que te contemple até o
derradeiro suspiro! Oh, maldita visão que vens fazer aqui? A morte
está impressa na tua fronte... Conheço-te, monstro! Não te
interponhas entre mim e a bela Ione! Foge para longe...
— Glauco! Glauco! — murmurava Nídia.
— Quem me chama? — continuou o desventurado, enquanto
Nídia, vencida pelo remorso, caía sem sentidos no chão.
***
Após três dias de prolongados debates, findou o julgamento de
Glauco e de Olinto com a condenação de ambos. Horas mais tarde,
reunidos em torno da farta mesa de Lépido, alguns jovens da
sociedade comentavam a sentença do Senado.
— Então Glauco negou o crime até o fim? — perguntou Cláudio.
— Com toda a veemência. Mas o testemunho de Arbaces era
definitivo. Ele assistiu ao assassínio. Realmente não compreendo...
— Como não compreendes? — retrucou um circunstante. —
Creio que podemos explicar perfeitamente. É bem provável que
Apoecides levado por sua austeridade e obstinação, tenha
censurado a devassidão de Glauco concluindo por negar-lhe a mão
da irmã. O resto é fácil de adivinhar. Sob a forte influência de Baco,
Glauco deve ter ferido o sacerdote em estado de inconsciência. Os
efeitos do vinho somados ao remorso e ao desespero conduziramno
à loucura dos últimos dias O pobre rapaz perdeu a memória por
completo, não se recorda de nada a ponto de se julgar realmente
inocente. Aliás, essa foi a tese sustentada por Arbaces, cujas
declarações causaram forte impressão pela moderação e
indulgência.
— Tem razão, o egípcio cresceu no conceito geral. Mas pobre
Glauco, está irreconhecível! Contudo, mantém-se calmo e corajoso!
— Veremos se mostrará calma e coragem diante do leão!
Ouviram-se algumas gargalhadas.
— E que fim levou a noiva dele? — indagou um conviva — Ser
viúva sem ter sido esposa... que ironia do destino!
— Está bem protegida sob o teto de Arbaces — respondeu
Cláudio.
— Por Vênus! Como o ateniense tinha sorte com as mulheres!
Dizem que até a rica Júlia estava apaixonada por ele.
— Mexericos... — protestou Cláudio. — Se alguma vez o coração
da filha de Diomedes abrigou tal sentimento, gabo-me de tê-lo
inspirado.
— Ignorais que Cláudio breve se casará com Júlia? — falou o
edil Pansa.
— Cláudio casado? — exclamou alguém, provocando um coro
de risadas.
Ao mesmo que se processava esta divertida reunião em casa
de Lépido, uma cena bem diversa se passava no cárcere de Glauco.
Após a sentença, fora conduzido para o sombrio cárcere do
Forum, escoltado por soldados que o empurravam pela acanhada
abertura, deixando-o a pão e água. A radical mudança, arrancando
Glauco da faustosa vida para as trevas de uma imunda prisão, fora
tão brusca que o ateniense acreditava estar sofrendo um terrível
pesadelo.
A indômita coragem e o nobre orgulho com que surpreendeu a
multidão no tribunal subitamente desapareceram quando se viu só
com seu infortúnio Mesmo a certeza da inocência não lhe dava
forças para manter o ânimo. Lastimava-se por ter abandonado a
amada pátria para aventurar-se numa terra cujo povo era tão pouco
hospitaleiro. Melancólico, relembrava o distante céu azul os olivais
das suas verdejantes colinas e o murmúrio dos seus regatos
encantados. Recordava-se dos rostos dos companheiros, convivas
de alegres festins, da multidão que tantas vezes o aclamara quando
conduzia seu carro pelas ruas da cidade e que agora o humilhava
com vaias ameaçadoras. Tudo acabara! E Ione? O silêncio da jovem
era o que mais o torturava. Por que não lhe mandara uma
mensagem de conforto, uma palavra amiga? Seria crível que ela o
julgasse culpado da morte do irmão? Vencido pelo abatimento,
gemia, rangia os dentes, com o coração invadido pelas dúvidas.
Teria realmente matado Apoecides e, em seguida, perdido a
memória? Imediatamente repelia esse pensamento porque
guardava ainda uma vaga lembrança do momento em que chegara
ao enluarado bosque de Cibele e da súbita aparição do desfigurado
rosto do morto voltado para ele. Sim, recordava-se também de
haver recebido um golpe violento que o derrubara sobre o cadáver...
Fora o que acontecera, tinha certeza! Ele era inocente, mas como
provar abandonado por todos e tão próximo da morte? Lembrou-se
de Arbaces, o monstro, que amava Ione, e os ciúmes começaram a
inquietá-lo mais do que a expectativa da morte ultrajante. Seus
profundos gemidos ressoavam tristemente, quando a eles veio se
juntar uma voz nas trevas do calabouço:
— Quem é o meu companheiro nesta hora de agonia? Será
Glauco?
— Este era o meu nome quando a sorte me sorria. Não sei
como me chamam hoje — respondeu. — E tu, quem és?
— Sou Olinto, o cristão, teu companheiro de desgraça.
— O ateu, como te chama o povo? Foi a injustiça dos homens
que te levou a negar os deuses?
— Pobre de ti! — exclamou Olinto. — Ateu és tu que renegas o
verdadeiro Deus, a quem teus antepassados erigiram um altar em
Atenas... Neste momento, não me sinto abandonado neste cárcere
porque tenho o conforto da presença de Deus, enchendo-me o
coração de esperança. Minha alma vai deixar a Terra para entrar na
vida eterna!
— Tenho a impressão de ter ouvido teu nome juntamente com o
de Apoecides, durante o processo. Dize-me, tu também crês na
minha culpa? — perguntou Glauco.
— Só Deus pode responder à tua pergunta. Contudo, confesso
que não suspeito de ti.
— Ah, obrigado! E de quem suspeitas, então?
— Do teu acusador!
— Arbaces? Mas por quê?
— Porque conheço a perversidade desse homem e sei que
tinha motivos para temer o infeliz Apoecides.
Olinto revelou ao ateniense os planos que o jovem sacerdote
tinha em mente para desmascarar as imposturas do egípcio. E
concluiu:
— Tudo isto me leva à convicção de que, aproveitando-se da
solidão em que se encontraram, Arbaces não hesitou em assassinar
aquele que ameaçava desmoralizá-lo.
— Tens razão! — exclamou Glauco vivamente. — Ah, como
estou aliviado, como me fazes feliz!
— Feliz? De que te serve, desventurado jovem, a certeza que
tens agora, se tua sorte está selada?
— Que me importa? O fato de saber que não sou criminoso darme-
á coragem para enfrentar a fera na arena. Já não me
atormentarão as cruéis dúvidas. Agora, rogo-te que me dês uma
explicação: tu, que pertences a uma seita estranha, acreditas que as
forças superiores, ou outro nome que tenham, possam eleger-nos
para responder pelos erros dos nossos antepassados ou pelos
deslizes praticados na mocidade?
— Deus é justo e jamais castigaria a fragilidade que caracteriza
a natureza humana. Ele é piedoso e somente abandona o pecador
que não se arrepende...
— A estranha loucura que me acometeu não pode ter sido
provocada por mãos humanas. Apenas a cólera divina seria capaz
de suscitá-la...
— A Terra está repleta de espíritos diabólicos! — replicou o
nazareno. — Esta é uma afirmação que faço com a mesma certeza
de que no Céu está Deus e seu Filho. O demônio se apossou de ti
porque não reconheces esta verdade.
Houve um silêncio comovedor; ao cabo de alguns instantes,
disse o ateniense com voz suave e um pouco hesitante:
— Cristão, segundo a doutrina que professas, acreditas que
aqueles que se amaram na Terra reunir-se-ão depois da morte?
— Se acredito? Que seria da minha agonia se não me
amparasse a visão radiosa da libertação que sobrevirá à minha
morte? — e prosseguiu apaixonadamente: — Oh, Cilena, adorada
esposa tão prematuramente levada do meu convívio, vou rever-te!
Louvada seja a morte que me conduzirá para o Céu onde me
esperas, Cilena!
A sincera expansão empolgou Glauco, despertando no
ateniense um irresistível sentimento de simpatia pelo companheiro.
Aproximou-se de Olinto e estreitou-lhe fraternalmente as mãos.
— A imortalidade da alma — acrescentou o nazareno com fervor
—a ressurreição, a reunião dos mortos, são os principais preceitos
da nossa fé. E foi para comprovar essa sublime verdade que um
deus se sacrificou.
—Quisera conhecer melhor os fundamentos da tua crença! —
exclamou Glauco com entusiasmo.
E aconteceu uma cena que tantas vezes se repetiu nos
primórdios do cristianismo: nas trevas de um calabouço, na
expectativa da morte iminente, as luzes do Evangelho espalharam
seus doces e poderosos raios.
***
Enquanto Salustio tomava aquelas providências, na escura e
úmida cela em que os criminosos aguardavam a ordem de entrar
para o último e terrível combate, Glauco e Olinto podiam distinguirse
mutuamente, graças ao hábito de viver nas trevas adquirido na
prisão. A religião de um e o orgulho do outro, a certeza da inocência
e a estreita amizade que os unia, transformava-os em heróis.
— Estás ouvindo a gritaria? — perguntou Olinto. — Exultam
vendo derramar-se o sangue humano!
— Sim — respondeu Glauco. — Oprime-se meu coração, mas os
deuses me amparam!
— Ao menos nesta hora, jovem insensato, reconhece o
verdadeiro Deus. Já esqueceste minhas palavras no cárcere?
— Meu bom amigo — replicou Glauco solenemente — sou
infinitamente grato pelo conforto que me proporcionaste com teus
ensinamentos. Se me fosse dado viver, talvez viesse a abraçar as
tuas crenças, após profundas meditações, mas entregar-me à tua fé
nesta hora, pelo temor único dos infernos, seria uma baixeza, uma
covardia. Continuemos amigos até o derradeiro instante. Releva a
minha cegueira como eu admiro a tua sinceridade! Escuta este
rumor... arrastam um cadáver pelo corredor. Daqui a pouco nossos
corpos inanimados terão o mesmo destino.
— Oh Cristo! Não me assalta o temor e minha alma está cheia
de júbilo à espera que se abram as portas desta prisão!
Glauco curvou a cabeça e refletiu sobre as diferentes maneiras
de encarar a morte: pagão, não a temia ele, mas o companheiro
regozijava-se.
A porta rangeu e uma onda de luz inundou o cárcere. Lanças
brilharam junto às paredes.
— É a tua vez, Glauco! — exclamou uma clara voz. — O leão te
aguarda!
— Estou pronto — respondeu, sem o mais leve estremecimento.
E, voltando-se para Olinto, disse: — Meu querido irmão e
companheiro de infortúnio, abraça-me pela última vez e abençoame.
Olinto estreitou-o comovido, molhando de lágrimas o rosto do
grego.—
Se eu tivesse tido a ventura de converter-te, não derramaria
agora estas lágrimas! Ah, quem me dera poder despedir-me,
dizendo: “Esta noite nos encontraremos no Céu!”
— Quem sabe? — retrucou Glauco. — Mas nesta terra que me
foi tão cara, despeço-me de ti para sempre. Adeus! Vamos,
carcereiro!
Glauco estava visivelmente comovido. Pesava-lhe separar-se
do amigo. Quando se viu em plena luz, a atmosfera pesada e uma
espécie de vertigem tontearam-no. Provavelmente eram ainda os
efeitos do venenoso filtro. Dois guardas o seguraram e um deles
disse:—
Coragem, rapaz! Es jovem e forte. Dar-te-ão um estilete...
Quem sabe não vencerás o leão?
Glauco não respondeu; envergonhava-se por esse momento de
fraqueza e, dominando os nervos, pôs-se a caminhar com passo
firme. Desnudaram e untaram-lhe o corpo, entregaram-lhe o estilete
e conduziram-no à arena.
Súbita reação o transfigurou ao ver cravados em si milhares de
pupilas cintilantes. As faces avermelharam-se e ele se empertigou
com uma expressão de orgulho e nobreza. A beleza do porte, a
flexibilidade dos membros, e altivez da atitude, a serenidade
desdenhosa de sua fisionomia, o magnetismo do seu olhar, tudo se
impunha como viva encarnação da beleza e da coragem gregas,
fazendo dele um herói e um deus perante a multidão. A hostilidade
da assistência pela lembrança do crime que sua presença provocou
instantaneamente se extinguiu para dar lugar a uma espontânea e
geral indulgência. Assim são as multidões! De alto a baixo, patrícios,
escravos e libertos, todos admiravam a escultural beleza de Glauco
com respeitosa comiseração.
De repente ouviu-se um murmúrio — a jaula do leão estava
sendo arrastada para a arena.
— Que calor terrível! — exclamou alguém. — Ainda bem que o
Sol não apareceu, do contrário não sei o que seria sem o toldo que
esses desajeitados não conseguiram unir completamente.
Sem comer há vinte e quatro horas, o leão mantivera-se durante
toda a manhã numa estranha agitação, o que era atribuído à agonia
da fome; contudo, seu aspecto revelava mais inquietação do que
ferocidade. De cabeça baixa, respirando com dificuldade através as
barras de ferro, ora deitava-se, ora levantava-se, soltando roucos
rugidos. Finalmente, estendeu-se no fundo da jaula.
A assistência começou a se impacientar e o edil, hesitando um
momento, deu afinal o sinal fatídico. Com excessiva cautela o
guarda abriu a jaula e o leão saiu, lançando um forte rugido com que
exprimia seu contentamento por se ver em liberdade. Rapidamente
o guarda desapareceu e a fera se viu diante da vítima.
Pronto para feri-lo, com a vaga esperança de que poderia atingilo
em cheio na cabeça no primeiro golpe, Glauco firmara-se nas
pernas e esperava a acometida do leão de arma em punho. Para
decepção de todos, porém, o animal pareceu nem sequer notar a
presença de Glauco e, sentando-se no centro da arena, farejou o ar;
depois, sacudindo a farta juba, correu em volta da arena olhando
ansiosamente para os lados, como se quisesse fugir e por duas
vezes tentou saltar a barreira. Não dava o menor sinal de cólera e
sempre que seu olhar pousava no ateniense, desviava-o
imediatamente. Finalmente, extenuado de procurar um meio de
escapar, soltou um lamentoso rugido e voltou a entrar na jaula.
Os espectadores vaiaram a covardia da fera.
— Aguilhoa-o para que saia e depois fecha a jaula — ordenou o
edil Pansa.
Um tanto atemorizado, o guarda já se dispunha a obedecer,
quando um grito ressoou perto de uma das entradas da arena,
seguindo-se uma enorme confusão. Parecia o início de uma briga
entre os assistentes, mas eis que a figura de Salustio surgiu,
descabelado, com o rosto coberto de suor e a respiração ofegante,
ao lado do pretor.
— Dá ordem de retirar Glauco! — exclamou em voz alta. — Ele
está inocente! O criminoso é Arbaces!
— Que loucura é essa, Salustio? — disse o pretor, erguendo-se.
— Retira Glauco, repito! Se não suspenderes a execução,
responderás perante o imperador pela vida de um inocente! Abri
passagem, deixai passar uma testemunha do crime do egípcio!
Povo de Pompeia, aqui está o sacerdote Caleno que assistiu ao
assassínio de Apoecides!
Libertado da fome e da morte por um milagre, Caleno apareceu
mais pálido do que um cadáver; suas desfiguradas feições
demonstravam as torturas sofridas, parecia um fantasma! Amparado
pelos braços, foi levado até junto de Arbaces.
— Caleno, o que tens a declarar? — disse o pretor.
— Arbaces é o assassino de Apoecides!... — Respondeu o
sacerdote. — Vi com meus próprios olhos quando desferiu os golpes.
Os deuses libertaram-me do calabouço onde fui enterrado para não
denunciar o crime desse monstro! Tirai o ateniense da arena que ele
é inocente!
— Foi por isso que o leão o poupou! — exclamou Pansa. —
Milagre! Milagre!
— Milagre! — repetiu o povo. — Salvai o inocente! Atirai Arbaces
ao leão!
— Retirai o ateniense — ordenou o pretor — mas que seja
mantido sob vigilância. — E, virando-se para Caleno, perguntou: —
Acusas Arbaces do assassínio de Apoecides?
— Acuso, senhor.
— Viste o crime?
— Vi.
— Arbaces do Egito, o que tens a dizer? — falou o pretor.
A despeito do poderoso autodomínio, não pode Arbaces evitar
que seu bronzeado rosto se tornasse lívido ao ver Caleno. Contudo,
lançou um arrogante olhar em volta e num tom calmo e imponente
respondeu:
— A acusação é tão ridícula que não sei se merece que a
repila. Repara, pretor, quem são os meus acusadores: o nobre
Salustio, amigo íntimo de Glauco, e o sacerdote Caleno, pessoa
indigna de usar as vestes religiosas da Ordem que tanto reverencio.
Ninguém ignora seu caráter! É um ambicioso que venera mais o
ouro do que os deuses! Nada mais fácil, portanto, do que comprar o
testemunho de tal energúmeno! Sou inocente, pretor!
— Onde encontraste Caleno? — perguntou o magistrado a
Salustio.
— Encarcerado nos subterrâneos do palácio de Arbaces.
— Por que motivo, Arbaces, prendeste um sacerdote de Ísis?
Sob a aparência tranquila, o egípcio ocultava uma profunda
agitação ao responder:
— Este homem ameaçou denunciar-me se não lhe comprasse o
silêncio com metade da minha fortuna. Revoltei-me com a
chantagem, mas foi inútil. Embora inocente, sou um estrangeiro e
temi que as declarações de um sacerdote pudessem arruinar-me.
Não sabendo o que fazer, decidi-me a encerrá-lo no meu palácio até
que se consumasse a execução do criminoso. Talvez julguem que
procedi mal, mas quem dentre vós não reconhece meu direito de
defesa? Por que Caleno não falou durante o processo, se estava em
liberdade? Responde-me, pretor, por quê? Seja como for, reclamo a
proteção das leis. Estou pronto a enfrentar o tribunal, mas o
anfiteatro não é lugar para discussões.
— Tens direito ao que pedes. Guardas, detenham Arbaces e
Caleno... Quanto a ti, Salustio, responderás pela acusação.
Prossigam com os jogos!
— Como! — exclamou Caleno, dirigindo-se à multidão. — A
deusa Ísis foi ultrajada com o assassínio do seu sacerdote e exige
vingança imediata! Façamos justiça agora! Ao leão, o egípcio!
— Ao leão, o egípcio! — repetiu em coro a assistência.
Centenas de pessoas se ergueram da arquibancada e
precipitaram-se em direção a Arbaces, enquanto Caleno, rendido
pela fraqueza, rolou por terra, contorcendo-se em convulsões.
Ninguém ouvia as ordens de Pansa e a voz do pretor tentando
inutilmente restabelecer a calma. A exaltação tomara conta de
todos, oferecendo um espetáculo tão frequente nas selvagens
multidões daquela época, meio livres, meio escravas. Perante a
turba enfurecida, desaparecia o poder das autoridades.
Aterrorizado, vendo o círculo se apertar à sua volta, Arbaces
ergueu os olhos para o alto e pela abertura do toldo viu um
fenômeno que fez renascer lhe a coragem. Levantando-se com a
imponência de um gigante, aprumou a cabeça e com suprema
expressão dominou a clamorosa multidão exclamando:
— Olhai como os deuses protegem um inocente! Os fogos
vingadores do inferno protestam contra o falso testemunho do vil
acusador!
Seguindo o gesto indicativo de Arbaces, todos ergueram os
olhos e com indizível terror viram a espessa coluna de fumaça que
saía pela boca do Vesúvio, assumindo a forma dum colossal
pinheiro de tronco negro e ramos abrasados. Estarrecida, a multidão
ficou imóvel e silenciosa.
Inesperadamente o silêncio foi quebrado por um rugido do leão
que o tigre logo respondeu; o instinto dos animais já pressentira a
cólera que se aproximava. Depois, das bancadas superiores,
partiram gritos das mulheres e os homens entreolharam-se
amedrontados. Um estranho ruído ouviu-se sob a terra, os muros do
anfiteatro oscilaram e as casas começaram a desabar. Era o
terremoto! A grande nuvem que a montanha vomitava transformouse
numa torrente de fogo, brotando com violência e lançando uma
chuva de cinzas e pedras ardentes, estendendo-se sobre as vinhas,
as ruas, o anfiteatro e até mesmo o mar.
Foi terrível! Ninguém mais pensou nos jogos, na Justiça, nem
em Arbaces! Num egoísmo brutal, cada qual só tratava de escapar,
correndo desesperadamente, empurrando, tropeçando e pisando os
que tinham a infelicidade de cair. Os feridos gemiam pedindo
socorro, mas o povo precipitava-se para as saídas, na ânsia de
fugir, temendo que o tremor de terra se repetisse. Mas fugir para
onde, se nas ruas reinava a mesma confusão?
As sinistras nuvens de fumaça se sucediam, cada vez mais
negras, mais extensas, mais ameaçadoras, obscurecendo o céu. E
fez-se, então, a terrível noite à hora em que habitualmente brilhava
o Sol.
***
Perplexo com a cena que deu origem à suspensão de sua
execução, Glauco foi levado de volta para a cela, onde sua nudez
foi coberta com uma ampla toga e, em meio à algazarra, ouviu uma
voz conhecida que pedia aflita:
— Deixai-me passar, por favor, quero vê-lo!
Era Nídia que, conduzida por mão solícita, caminhava em sua
direção. Caiu aos pés do grego e exclamou:
— Fui eu quem te salvou, querido Glauco! Agora posso morrer
em paz!
— Nídia, minha querida criança!
— Dá-me tua mão! Deixa que respire teu hálito! Ah, felizmente
chegamos a tempo! Que terrível foi, pensei que não
conseguíssemos arrombar aquela porta infernal! E como gemia o
pobre Caleno! Foi um custo reanimá-lo! Oh, mas que importa tudo
isso se estás salvo e graças a mim?
Foi a meio deste diálogo que teve início a erupção do vulcão.
Compreendendo o perigo, Glauco imediatamente pensou em Olinto
e, arrastando Nídia pela mão, correu à cela do nazareno que,
ajoelhado, rezava compungidamente.
— Levanta-te, amigo! A Natureza liberta-te do tigre e da morte!
Vem comigo — e puxando-o para fora, mostrou-lhe a coluna de
fumaça que saía do Vesúvio.
— Cristo seja louvado! — exclamou Olinto.
— Apressa-te! — disse Glauco. — Procura teus irmãos e foge,
salva-te!
O cristão parecia indiferente a tudo. Longe de apavorar-se
diante do cataclisma, absorvia-se extasiado com a misericórdia
divina. Finalmente, saindo do alheamento, começou a caminhar
pelos corredores onde jaziam os cadáveres nus dos gladiadores. De
repente, deteve-se ao ouvir uma voz abafada pronunciar o nome de
Cristo, vindo de uma sombria cela. Entrou e perguntou:
— Quem invoca o nome de Cristo?
Não obteve resposta, mas viu aos seus pés um velho de
cabelos brancos, chorando e sustentando entre as mãos à cabeça
de um dos mortos.
— Medon — disse, reconhecendo-o. — Foge daqui antes que o
fogo te consuma. Qual Gomorra, Pompeia está condenada e não
escapará ao seu destino fatal!
— Não, Olinto, ficarei com meu filho — respondeu soluçando. —
Ele não pode estar morto! Ouve as pulsações do seu coração!
Como podes querer separar um pai do filho que se sacrificou por
ele?
— A morte já vos separou — retrucou Olinto. — Vem comigo,
não temos um minuto a perder!
Um sorriso de serenidade iluminou o semblante do ancião;
depois, deixando pender a cabeça, entreabriu os pálidos lábios e
balbuciou:
— Não... a morte é mais generosa do que imaginas!
Olinto se aproximou e pegou-lhe a mão: o pulso já não batia.
Sim, a morte era generosa, reunira-o ao filho!
Nesse ínterim, procurando caminho pelos escombros, Glauco e
Nídia corriam para a casa de Arbaces, a fim de libertar Ione. Os
escravos que haviam ficado no palácio e que não puderam opor
resistência aos homens de Salustio, apavorados com os primeiros
sinais da erupção, abandonaram seus postos e trataram de se
refugiar em qualquer canto. Glauco pode, assim, entrar no palácio
sem dificuldade, enquanto Nídia aguardava-o do lado de fora, roída
de ciúmes.
A terrível fúria do vulcão, vieram juntar-se relâmpagos e
trovões.
Glauco tateava na total escuridão, sentindo que as paredes
vacilavam; subiu ofegante a escada que conduzia ao andar superior,
berrando o nome de Ione e, finalmente, do fundo de uma galeria,
uma voz respondeu. Correu, derrubou a porta com um violento
tranco e tomou Ione nos braços. Quando chegava ao lugar onde
deixara Nídia, ouviu ressoarem passos. Era Arbaces que voltava
com seu séquito para buscar Ione e apanhar os tesouros,
imaginando que teria tempo de salvar-se.
A fumaça era tão densa que os dois rivais roçaram-se sem se
ver, apenas a alvura da túnica do egípcio vagamente distinguia-se
na escuridão da noite.
Glauco, Ione e Nídia afastaram-se rapidamente da mansão do
egípcio, enquanto sobre suas cabeças caíam as cinzas como fina
chuva e formidáveis detonações produziam ecos distantes.
Caleno também se vira livre no momento da catástrofe. Sem
saber para onde fugir, rumou para o templo de Ísis, onde encontrou
o taverneiro Burbo.
— Que calamidade! — exclamou o ex gladiador. — Mas não
percamos tempo! Eis a oportunidade de fazermos nossa fortuna! O
templo está repleto de ouro e de objetos valiosos. Apanhemos tudo
e fujamos.
Vários sacerdotes orando prostrados aos pés da estátua da
deusa não perceberam a presença dos dois profanadores. A avidez
de Caleno deu-lhe forças para agir com rapidez e, apossando-se do
que pode, fugiu deixando para trás seu cúmplice, sem se preocupar
com a sorte do parente.
A fantástica nuvem de fumaça que cobria de trevas Pompeia e
as cercanias condensou-se numa massa opaca, dir-se-ia
intransponível, cortada de quando em quando pelos fogos terríveis
que a montanha vomitava e, do interior da terra, sinistros e
misteriosos ruídos soavam como longínquos trovões. As cinzas
acumuladas no solo já alcançavam a altura dos joelhos e os
sufocantes gases obrigavam a alucinada população a correr
desesperadamente como animais perseguidos. Fragmentos de
pedras tombavam sobre as casas, destruindo os telhados e
transformando as ruas em cemitérios, em ruínas. Horrivelmente
mutilados, corpos contorciam-se nos escombros, enquanto grupos
de fugitivos, empunhando archotes, que o vento apagava com sua
fúria, rumavam em direção à costa, chocando-se com outros que
voltavam da praia, de onde o mar fugira como que aterrado, coberto
também pelas negras trevas. As tormentosas vagas do oceano
serviam de leito às cinzas e às pedras candentes, tornando a água
mais perigosa ainda do que a terra.
Próximo da porta de Herculanum, Cláudio procurava caminho
ao lado de Júlia, quando uma voz agoniada chegou-lhe aos ouvidos:
— Socorro! Estou me afogando nesta lama imunda! Sou o rico
Diomedes, meus escravos me abandonaram! Mil sestércios a quem
me ajudar!
Cláudio sentiu uma mão agarrar-lhe a perna.
— Levanta-te, Diomedes — disse Cláudio, estendendo-lhe a
mão.— És tu, Cláudio?
— Ergue-te, homem! Vamos para Herculanum!
— Louvados sejam os deuses! Minha casa de campo fica a
meio do caminho. Os subterrâneos estão cheios de provisões e
poderemos esperar ali que passe esta horrível desgraça!
No meio dessa espantosa confusão, Glauco e Ione continuavam
a caminhar, guiados por Nídia, para quem as trevas nada tinham de
anormal. Súbito, porém, a valente ceguinha foi empurrada pela
multidão que se dirigia para o mar. Em vão Glauco e Ione a
procuraram, tateando e gritando-a pelo nome, mas a frágil guia
havia desaparecido na torrente humana. Privados da melhor amiga,
sobretudo de uma criatura cuja cegueira lhe ensinara todos os
caminhos daquela cidade, que lhes restava fazer no inexpugnável
labirinto? Feridos já pelas queimaduras, dominados pelo desespero
e pelo terror, pisavam as pedras inflamadas que cobriam o solo.
— Não aguento mais! — gemeu Ione, vencida pelo sofrimento.
—Foge, meu querido, salva a tua vida!
— Animo, minha adorada! Como posso salvar-me
abandonando-te ao perigo? Prefiro morrer a viver sem ti! Oh, mas
onde estamos? Creio que demos volta e retornamos ao mesmo
lugar! E, tomando Ione nos braços, continuou a caminhar; de repente,
a luz de um relâmpago mostrou-lhe que se achava próximo do
templo da Fortuna. Buscou um recanto mais abrigado sob o pórtico
e ali depositou o precioso fardo, protegendo-o com o corpo contra a
chuva de cinzas. No local, centenas de pessoas se comprimiam,
gemendo e implorando socorro, mas os clamores eram dominados
pelos da montanha fatal, claros e ameaçadores. Diante do templo
passou um grupo de nazarenos empunhando archotes e celestial
comoção se estampava nos semblantes desses crentes que
acreditavam assistir ao fim do mundo.
Ali permaneceu o casal de apaixonados por um tempo que lhes
pareceu interminável, ao cabo do qual produziu-se uma
momentânea calma da erupção. Aproveitando-se da aparente
tranquilidade, Glauco encorajou Ione e puseram-se a andar de novo,
de mãos dadas, avançando com infinitas precauções como aqueles
que caminham à beira dum abismo. O espetáculo que os rodeava
era aterrador. Quando o vento soprava com mais impetuosidade, a
poeira abrasadora impedia-os de respirar e o sangue parecia
queimar nas suas veias.
— Meu amado Glauco, abraça-me pela última vez... sinto que
vou morrer...
— Coragem, minha querida, em nome dos deuses! Tem
confiança! Vê, ali vêm uns archotes! Oh, como enfrentam a rajada e
resistem à tormenta! Parece que vão em direção à costa. Sigamolos!
—e correram a juntar-se ao grupo.
— Estamos perto do mar — disse um que ia na frente. — Aquele
dentre vós que sobreviver a este dia será livre e rico, eu vos
asseguro! Os deuses me prometeram salvação! Avante!
Trêmula e esgotada, Ione reconheceu a voz de Arbaces e a luz
dos archotes devassou seus rostos ao egípcio.
— Por meus pais! — exclamou. — Nesta hora funesta o Destino
sorri-me e oferece-me felicidade e amor! Afasta-te, grego! Entregame
minha pupila!
— Assassino miserável! — retrucou Glauco, fulminando-o com o
olhar. — Tenta tocar em Ione e eu te farei em pedaços!
Não terminara o ateniense de proferir a resoluta ameaça e uma
intensa luminosidade cobriu a cidade. Verdadeira coluna de fogo
jorrou da vulcânica montanha, parecendo que incendiava céus e
terra, e torrentes de lava escorreram pelos vales como rios
incandescentes, arrastando pesados blocos de pedra que flutuavam
na superfície como temerosos destroços.
Os escravos soltaram gritos de pavor, cobrindo o rosto com as
mãos e o próprio egípcio não pode dissimular o medo — imóvel ao
lado do majestoso bronze de Augusto, cujo vulto parecia uma
estátua de fogo sobre o pedestal de mármore, era um homem
aniquilado ante a visão do sobrenatural.
Sustentando Ione com o braço esquerdo e empunhando com a
mão direita o punhal que recebera para combater o leão, Glauco
desafiava Arbaces; este desviou o olhar da montanha e fixou-o no
grego, dizendo de si para si: “Por que hesitar? Não desapareceu já
o perigo que me vaticinaram os astros? Enfrentarei a destruição dos
mundos e a ira dos deuses imaginários”. E, depois de ordenar aos
escravos que tomassem Ione, virou-se para Glauco e bradou:
—Não tentes resistir, do contrário teu sangue cairá sobre tua
cabeça. Vem, Ione!
Avançou em direção ao ateniense, mas deu o último passo de
sua vida. Um violento tremor agitou a terra e fez ruir os edifícios que
ainda se mantinham de pé, causando um espantoso estrondo e
reduzindo a cidade a um montão de ruínas. A estátua balançou e
finalmente tombou com o pedestal sobre Arbaces.
Ao recuperar os sentidos, Glauco percebeu que persistia o
tremor de terra e que Ione jazia ao seu lado desfalecida. Seu olhar
foi atraído para o ponto em que Arbaces se contorcia ainda no
desespero da agonia, mas logo viu suas feições se imobilizarem
para sempre num ríctus de indescritível ferocidade. O grande
Arbaces, o poderoso Hermes do Cinturão de Fogo, o derradeiro rei
do Egito não existia mais!
***
Logo que se refez do impacto causado pelo brutal espetáculo,
Glauco tomou Ione nos braços e pôs-se a andar para a frente, mas
novamente a espessa fumaça fechou-lhe o caminho; diante desse
obstáculo intransponível, deteve-se e lançou um desesperançado
olhar para a montanha. Viu, então um dos paredões que cercavam a
boca do vulcão desmoronar-se e precipitar-se com estrondo sobre
as encostas como uma avalancha de fogo, produzindo depois uma
poeira asfixiante que cobriu as ruas com infernal furor. Sentindo que
o ar lhe faltava, julgou ser o fim de tudo. Refugiou-se sob os
destroços de uma das arcadas do Forum e ali esperou que a morte
chegasse, estreitando lone contra o peito.
Enquanto isso, Nídia inutilmente chamava pelos companheiros,
mas seus gritos aflitos perdiam-se entre os clamores da multidão.
Voltou ao ponto onde se perdera de Glauco e de lone, indagando se
os tinham visto, sendo repelida com crueldade pelos egoístas
fugitivos. Extenuada, resolveu encaminhar-se para os lados do mar,
refletindo que Glauco sem dúvida para lá teria se dirigido, buscando
uma embarcação.
Com uma coragem sublime, a franzina criaturinha avançava
empurrada pela multidão mais cega ainda do que ela. De repente
ouviu uma voz que lhe era familiar:
— Por Baco! É a valente tessaliana! Não fiques aí, Nídia, vem
depressa conosco para a praia!
— Salustio! — exclamou. — Louvados sejam os deuses! Viste
Glauco?
— Tranquiliza-te, pequena. Os deuses não iam poupá-lo do leão
para fazê-lo perecer nas garras do vulcão! — e arrastou a ceguinha,
que não cessava de chamar pelo nome de Glauco.
No momento em que se aproximavam do porto, onde se
aglomeravam milhares de pessoas, deu-se a fantástica explosão
seguida do terremoto que causou a morte de Arbaces. Foi um correcorre
desatinado, todo mundo desejando fugir sem saber para onde.
O mar recuara da costa, como dissemos, e oferecia um espetáculo
que imobilizava de terror aquela gente desorientada; a agitação das
águas e os gigantescos blocos de pedra lançados pelo vulcão
amedrontavam de tal modo, que os que conseguiam se aproximar
da praia recuavam preferindo os horrores da terra.
Os escravos de Arbaces, que haviam fugido carregando os
tesouros inesperadamente herdados com a morte do amo, juntaramse
à multidão. Um único archote ardia ainda — empunhava-o aquele
que servira de carcereiro de Nídia.
— De que te adianta a liberdade agora? — perguntou ele,
aproximando-se da ceguinha.
— Viste Glauco? — indagou Nídia, reconhecendo-lhe a voz.
— Vi-o há poucos momentos, estendido sob um arco do Forum.
Talvez já esteja morto.
Sem dizer uma palavra, Nídia afastou-se de Salustio e
resolutamente voltou para a cidade. Chegando ao Forum, começou
a gritar pelo ateniense.
— Nídia, minha querida amiga — respondeu Glauco, após
alguns momentos. — Como temi que tivesses sofrido algum dano!
Estás bem?
As palavras de Glauco revelavam tão espontânea ternura que a
ceguinha se comoveu profundamente.
Levando lone nos braços, Glauco seguiu a admirável guia que,
prudentemente evitou os pontos de maior congestionamento,
encaminhando-se para a beira-mar por outro caminho. Finalmente
encontraram um grupo que preferia aventurar-se pelo mar a
permanecer em terra testemunhando a espantosa desolação.
Embarcaram todos, em meio à mais completa escuridão e
vagarosamente afastaram-se da costa, orientados pelos clarões
avermelhados das torrentes de lava que as águas refletiam.
Completamente esgotada, lone dormia com a cabeça apoiada
no peito de Glauco e, deitada aos pés do ateniense, Nídia meditava,
enquanto as cinzas continuavam a cair, espalhando uma camada de
pó esbranquiçado sobre a superfície do mar.
Afinal, brilhou a esplêndida aurora do novo dia. O vento
amainara e as azuladas águas agitavam-se brandamente. Para os
lados do leste, suaves e rosadas nuvens gradativamente tingiam-se
de vivo carmesim. Novamente surgia a vivificadora luz sem a qual
só existe desolação. Mas, as alvas e graciosas casas e as colunas
de mármore que antes embelezavam aquele encantador litoral já
não existiam e as outrora animadas praias pareciam cobertas de
luto pelo desaparecimento das cidades de Pompeia e Herculanum.
A fadiga impediu os sobreviventes de saudar o novo dia com
ruidosas exclamações, mas seus corações inundaram-se de
comovida esperança; entreolharam-se com infantil alegria e sorriram
—o mundo mantinha-se de pé e um Deus poderoso dirigia-o com
misericórdia.
Várias embarcações começaram a surgir em outros pontos,
transportando também fugitivos. Reinava um silêncio restaurador e
pouco a pouco Glauco e os companheiros haviam adormecido.
Apenas Nídia velava.
Cautelosamente a ceguinha ergueu-se e, curvando-se sobre a
cabeça de Glauco, beijou-o de leve na fronte; depois, tateando,
procurou a mão do ateniense e, encontrando-a unida à de lone,
suspirou tristemente. Enxugou com os próprios cabelos o orvalho
noturno que umedecera o rosto amado e murmurou:
— Que os deuses te abençoem, Glauco adorado! Sê feliz com
aquela que amas, mas, em nome dessa felicidade, suplico que não
te esqueças de Nídia. Adeus! Já não precisas de mim!
Como uma gazela, deslizou pelo convés sem fazer o menor
ruído e dirigiu-se para a extremidade da embarcação; ali debruçou-se
sobre as vagas e a espuma roçou-lhe a testa escaldante. A
fresca e perfumada brisa revolveu os sedosos fios de sua cabeleira;
afastou-os da fronte e ergueu os claros olhos para o céu que ela
jamais contemplara.
Estremunhado, um marinheiro entreabriu os olhos ao ouvir um
baque na água e teve a impressão de ver flutuando sobre as águas
um branco e indefinido vulto que logo desapareceu. Cerrou
novamente as pálpebras e sonhou que estava em casa cercado
pelos filhos.
Misteriosa e discretamente como sempre vivera, a infeliz
tessaliana deixara o mundo dos vivos.
FIM
Em
Os Últimos Dias de Pompéia, do escritor britânico
Bulwer-Lytton a grande
erupção do Vesúvio, ocorrida no ano de 79 d.C. não
é o tema central, mas é o pano de fundo e desfecho de uma obra
que trata de pessoas e de seus relacionamentos, que ocorriam as
vésperas da inesperada tragédia.
A trama se desenvolve a partir do momento em que o centurião
Glaucus retorna à sua cidade, Pompeia, para tentar solucionar uma
série de crimes que vinham ocorrendo. Ao mesmo tempo, o soldado
ganha uma crescente paixão por Ione que surge como a sua grande
motivação.
Escrito no século XIX, no estilo romântico, Os Últimos Dias de
Pompeia faz um grande resgate histórico, mostrando os hábitos
alimentares, as vestimentas, os aspectos culturais mais complexos,
como a diversidade de povos e costumes da cidade e os conflitos
entre as crenças religiosas greco-romanas e o cristianismo primitivo.
ϟ
excerto(s) de
OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPÉIA
Edward
Bulwer-Lytton
título original: The Last Days of Pompeii (1834)
LeBooks Editora, 1.ª edição
13.Ago.2021
Publicado por
MJA
|