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Retrato de um Rapaz Cego
- Julius Oldach
CAPÍTULO I
Tarde da noite nasceu a criança numa rica família do
Sudoeste.A mãe estava deitada e sonolenta; mas quando o
primeiro grito do recém-nascido ressoou no quarto — um
vagido doce e lamentoso —, ela, com os olhos fechados, começou a agitar-se no
leito. Os lábios murmuraram qualquer coisa e no seu rosto pálido, de traços
quase infantis, esboçou-se um esgar de sofrimento impaciente, como um bebé
mimado quando experimenta um desgosto inesperado. A
parteira inclinou o ouvido para os lábios balbuciantes da jovem mãe.
— Porquê?... Porque está ele assim? — perguntou
a doente com voz mal perceptível.A parteira não compreendeu a pergunta. A criança gritou
de novo. O reflexo duma viva dor percorreu a face da parturiente e uma grossa
lágrima deslizou dos seus olhos fechados.
— Porquê? Porquê? — murmuravam-lhe os lábios muito docemente.
Desta vez a parteira percebeu a pergunta e respondeu
serenamente:— Quer saber porque chora o menino?
É sempre assim, tranquilize-se.Mas a mãe não se podia acalmar. Estremecia a cada nova
queixa da criança e não cessava de repetir, num tom de inquietação irritada:
— Porque grita ele duma forma tão dilacerante?
A parteira não distinguia nada de extraordinário nos
lamentos do recém-nascido; e dando conta de que a mãe falava como num sonho, ou
simplesmente delirava, não prestou mais atenção e ocupou-se unicamente do
pequenito.A senhora calou-se. Somente de tempos a tempos, num
ímpeto de aflição mais dolorosa, que não se podia exprimir, nem por gestos nem
por palavras, corriam-lhe dos olhos lágrimas espessas, que se filtravam através
das pestanas sombrias e rolavam, suavemente, pela sua face lívida como o
mármore.O coração da mãe pressentia, sem dúvida, que, juntamente
com a criança, acabava de nascer um destino votado a uma infelicidade obscura e
inexorável — suspenso por sobre o berço — para
escoltar aquela nova vida até à sepultura.
Talvez fosse pura imaginação. De qualquer maneira, porém,
a criança nasceu cega.Ao princípio, ninguém notou. O pequenito olhava as
pessoas com um olhar vago e indefinido, natural em todos os recém-nascidos até
uma certa idade. Passaram-se dias, e a vida do novo homem contava já semanas.
Os seus olhos clarearam, a névoa opalina que os cobria tinha desaparecido e já
se via nitidamente a pupila.Mas a criança não voltava a cabeça quando um raio de luz
claro e vivo penetrava no quarto, juntamente com o alegre gorjeio dos pássaros
e o murmúrio das faias verdes, que se balançavam, pertinho da janela, no jardim
cerrado.A mãe, que se tinha restabelecido, notou ao princípio,
com inquietação, a expressão estranha daquela figurinha sempre imóvel, e cuja
seriedade não era natural na sua idade; e então ela olhava as pessoas, como uma
pomba assustada, e perguntava:— Digam-me: porque é ele assim?
— Como? — retorquiam-lhe, indiferentes,
os estranhos. — Nada o distingue das outras crianças da mesma idade...
— Mas reparem no ar esquisito que ele toma para pegar em
qualquer coisa. — O menino não sabe coordenar o movimento das mãos com as
impressões visuais — respondeu-lhe o médico.
— Então, porque olha ele sempre na mesma direcção? Ele... ele é cego?
E, subitamente, a verdade terrível brotou no peito da
mãe, que ninguém mais conseguiu acalmar.
O médico pegou na criança, virou-a vivamente para a
claridade e fixou-lhe os olhos. Perturbou-se ligeiramente e, depois de proferir
algumas frases insignificantes, partiu, com a promessa de voltar dentro de dois
ou três dias.A mãe chorava e gemia como uma ave ferida de morte.
Apertava o filho contra o coração, enquanto os olhos do pequenito olhavam
com o mesmo olhar imóvel e triste.
Conforme prometera, o médico voltou alguns dias depois
com um oftalmoscópio. Acendeu uma vela, e ora a aproximava ora a afastava dos
olhos da criança. Olhava-a no fundo das pupilas. Por fim, com ar embaraçado,
confessou:— Minha senhora... infelizmente não se enganou. Na
verdade, o seu filho é cego, e sem nenhuma esperança.
A mãe ouviu o diagnóstico com uma tristeza serena.
— Já o sabia há muito tempo — disse ela docemente.
A família onde nasceu a criança não era numerosa. À parte
as pessoas mencionadas, compreendia ainda o pai e o «tio Máximo», como lhe
chamavam, sem excepção, as pessoas da casa e mesmo os estranhos.
O pai assemelhava-se a milhares de outros grandes
proprietários do Sudoeste: bonacheirão, mesmo bom, vigiava os seus
trabalhadores e gostava de construir e reconstruir moinhos. Estas ocupações
preenchiam-lhe quase todo o tempo, e era por isso que a sua voz se não ouvia na
casa senão as horas fixas do almoço e do jantar ou de qualquer outro acontecimento
do mesmo género.Nessas ocasiões pronunciava sempre a mesma frase
inalterável: «Estás boa, minha pombinha?», após o que se sentava à mesa e quase
não falava.De tempos a tempos, muito raramente, contava histórias
sobre cilindros de carvalho e empenas de paredes. Evidentemente que este homem
de espírito pacífico e simples não se impressionava, ou impressionava-se muito
pouco, com o estado do filho.Ao contrário, o tio Máximo era um homem completamente
diferente. Uma dúzia de anos antes dos factos relatados o tio Máximo era
considerado o espadachim mais perigoso, não só na região onde estava situado o
seu domínio, mas mesmo em Kieff, nessa época designada por Contracts [1]. Ninguém
conseguia compreender como a Sr.a Popelska — em
solteira, Jatzenko —, pertencendo a uma família tão distinta, tinha um irmão
tão terrível. Ninguém sabia a forma de se comportar com ele, de o satisfazer.
As primeiras investidas amabilíssimas dos nobres respondia ele com grosserias,
ao passo que consentia da parte dos mujiques espantosas afrontas, que teriam
forçado o homem mais cordato do mundo a replicar com bofetadas.
Enfim, para grande ventura das pessoas sensatas, o tio
Máximo começou a odiar os Austríacos — não se sabia ao
certo porquê — e partiu para a Itália, onde se reuniu a um homem tão
conflituoso e tão herege como ele — Garibaldi —, que, no dizer dos
proprietários locais, tinha pacto com o Demónio e desprezava o papa. Bem
entendido que, procedendo assim, Máximo tinha perdido, já havia muito, a sua
alma ardente de cismático. Mas, por outro lado, nos
Contracts havia bem menos escândalos, e mais de uma mãe de família deixou de se
inquietar pela sorte do seu filho.
Evidentemente que os Austríacos estavam muitíssimo
zangados com o tio Máximo. De vez em quando, o Petit Courrier, jornal preferido
dos proprietários da região, mencionava o seu nome como o mais encarniçado
sequaz de Garibaldi.Mas uma bela manhã, o mesmo Petit Courrier fez saber a
toda a gente que Máximo tinha morrido, juntamente com o seu cavalo, no campo da
honra. Furiosos, os Austríacos — que, havia muito
tempo, votavam um rancor venenoso a este russo, único sustentáculo verdadeiro
de Garibaldi (tal era, pelo menos, a opinião dos compatriotas do tio Máximo) — picaram-no como se fosse uma couve.
— Acabou bem mal, o nosso Máximo! — resmungaram
os proprietários seus vizinhos; e amortalharam-no na sua recordação.
Mas, na realidade, os sabres austríacos não conseguiram
prender a alma tenaz de Máximo. Ela conservou-se fiel ao corpo, apesar de ter ficado em muito mau estado.
Os Garibaldinos transportaram o seu heróico camarada do
campo de batalha para um hospital. Alguns anos depois, Máximo fez a sua
aparição, absolutamente inesperada, na casa da irmã, onde se instalou
definitivamente.Nessa altura já não pensava em brigas. A perna direita
tinha sido cortada rente, o que o obrigava a usar uma muleta. Por outro lado, o
braço esquerdo estava de tal forma avariado que não servia para outra coisa
senão para se apoiar o melhor possível à bengala. De uma maneira geral,
tornou-se mais grave, acalmou; e somente de tempos a tempos a sua língua
virulenta se manifestava tão afiada como tinha sido outrora a sua espada.
Deixou de ir aos Contracts, aparecia raramente na sociedade e conservava-se a
maior parte do tempo na biblioteca, no meio de livros, acerca dos quais nada se
sabia, e só se supunha que eram anti-religiosos, ou, pelo menos, ímpios.
Chegava mesmo a escrever; mas como as suas produções não apareciam no Petit
Courrier, ninguém se inquietava com isso.
Na época em que um recém-nascido apareceu na casinha da
aldeia e aí começou a dominar, já entre os cabelos aparados curtos do tio
Máximo começava a brilhar um ou outro fio de prata. À força de se servir
constantemente de muletas, principiava a ganhar corcunda e todo o seu corpo
parecia ter-se feito num quadrado. O seu aspecto esquisito, as suas
sobrancelhas franzinas e severas, o ruído das muletas e o turbilhão de fumo em
que estava sempre envolvido — fumava incessantemente
cachimbo —, tudo isto espantava as visitas; e só gente da casa sabia que um
coração nobre e quente batia naquele corpo mutilado e que um espírito buliçoso
fervia naquela enorme testa rectangular, coberta de cabelos espessos e
eriçados.Mas mesmo os mais chegados não conheciam o problema que
então absorvia aquele espírito impenitente. Viam apenas o tio Máximo envolto em
fumo azulado, sentado horas inteiras, imóvel, o olhar ausente, as sobrancelhas
mais carregadas e ele mais sorumbático do que
nunca. O guerreiro mutilado reflectia que a vida era uma luta sem tréguas nem
misericórdia, onde não há lugar para os inválidos. Acudia-lhe cada vez mais ao
pensamento que estava para sempre expulso das fileiras avançadas e que era em
vão que continuava a atravancar o mundo — ele, cavaleiro que já para nada prestava, cuspido do cavalo e lançado no pó. E por isto valia a pena agitar-se, como um verme esmagado no chão? Era digno de si suspender-se no estribo da vida, que
prosseguia a sua marcha triunfante, e pedir-lhe algumas graças, as últimas?
Mas enquanto o tio Máximo, cheio de bravura fria e
concentrada, meditava neste problema palpitante e confrontava metodicamente
todos os prós e os contras, um novo ser, inválido desde o dia da sua entrada no
mundo, começou a ocupar progressivamente o seu cérebro.
Ao princípio não prestou atenção à criança cega; mas, em
seguida, interessou-se pela semelhança estranha que apresentava a sua sorte e a
do pequenito.— Hum... Hum... — cogitou um
dia, olhando o menino de través e pensativamente. — Este
pobre garotinho é também um inválido. Se nós nos pudéssemos soldar,
talvez se conseguisse um homem que valesse qualquer coisa.
Depois disso, o seu olhar começou a reparar cada vez mais
na criança cega.O pequeno nasceu cego. De quem era a culpa? De ninguém! A
origem, a causa mesmo, da infelicidade ocultava-se em qualquer parte, na
profundeza dos processos misteriosos e complexos da vida. Dando conta disto, o
coração da mãe apertava-se numa dor lancinante todas as vezes que olhava o
ceguinho. Evidentemente que, como mãe, sofria com a enfermidade do filho e com
o lúgubre pressentimento do futuro desgraçado que esperava fatalmente o pequeno
ser. Mas, à parte estes sentimentos, a pobre senhora atormentava-se
interiormente com os remorsos da sua consciência, que lhe sugeria que a causa
do mal talvez residisse naqueles que tinham dado a vida à criança. Isto bastava
para que o serzinho, de olhos lindos, mas cegos, se tornasse o centro da família,
um déspota inconsciente, cujo menor capricho pesava sobre toda a casa.
Em que se teria tornado a criança, que a doença impelia
para a mais cruel perversidade e em que as pessoas que a rodeavam se ligavam
para lhe desenvolver os sentimentos egoístas, se a sorte caprichosa e os sabres
austríacos não tivessem forçado o tio Máximo a refugiar-se na casa da irmã, no
campo?A presença do menino cego na casa tinha, pouco a pouco e
quase imperceptivelmente, imprimido uma outra direcção
ao pensamento do soldado mutilado. Como antes, ficava imóvel
horas inteiras, ocupado a fumar o seu cachimbo; mas, em lugar duma dor
profunda e amarga, surpreendia-se nos seus olhos a expressão recolhida dum observador interessado. E quanto
mais o tio Máximo examinava, mais a fronte se lhe enrugava e mais ele chupava o
cachimbo.Enfim, um dia chegou em que se arriscou a intervir.
— Este pequeno — disse ele,
lançando baforadas umas atrás das outras — será ainda mais infeliz do que eu.
Mais valia que não tivesse vindo ao mundo.
A mãe baixou a cabeça e uma lágrima caiu-lhe no trabalho.
— É duro dizeres-me isso, Max! — queixou-se ela, baixinho. — De que serve isso? Não compreendo.
— Mas só te digo a verdade, e nada mais que a verdade!
— respondeu Máximo. — A mim falta-me um braço e uma perna, mas
tenho olhos. Ele não tem olhos, nem terá pernas nem braços, nem sequer vontade.
— Porquê?
— Procura compreender-me, Ana! — disse
Máximo com um tom mais terno. — Nunca te diria estas coisas cruéis só pelo
prazer de tas dizer. Esta criança é dotada dum sistema nervoso muito delicado.
Tem ainda muito tempo e muitíssimas maneiras de desenvolver as suas
capacidades, de forma a poder remediar em parte a cegueira. Mas precisa, para
isso, de exercícios. Estes são provocados pela necessidade. Os cuidados
estúpidos que afastam do pequeno todo o esforço, por mínimo que seja, matam
nele todas as possibilidades duma vida risonha.
Inteligente, a mãe conseguiu vencer em si o impulso
espontâneo e primitivo que a precipitava apaixonadamente para o filho mal
ouvia os seus gritos aflitivos.Alguns meses depois desta conversa, o rapazinho entrava
ousada e livremente através do quarto, aplicando o ouvido a cada som e
tacteando todos os objectos que encontrava à mão com uma vivacidade
desconhecida noutras crianças.Aprendeu cedo a reconhecer a mãe pelos passos, pelo ruído
surdo do vestido e por outros sinais imperceptíveis a um estranho. Fosse qual
fosse o número de pessoas que se encontrasse na sala e os seus diferentes
lugares, encaminhava-se sempre, sem se enganar, na direcção onde ela se
encontrava. Quando ela o tomava subitamente nos braços, reconhecia
imediatamente o abraço da mãe. Mas quando alguém o apertava ao peito começava a
passear rapidamente as mãozinhas pela cara que se lhe oferecia.
Foi desta maneira que, por fim, aprendeu igualmente a
conhecer a ama, o pai, o tio Máximo. Quando estranhos pegavam nele, procedia ao
exame mais devagar. Com um ar prudente e atento,
começava a fazer deslizar os dedinhos pela face desconhecida, e então os seus
traços acusavam uma tensão interior extraordinária, como se «olhasse» com a
ponta dos dedos.Era de natureza viva e travessa; mas os meses sucediam-se
e a cegueira impunha cada vez mais o seu jugo esmagador sobre o temperamento da criança, que principiava a definir-se.
A vivacidade dos seus movimentos diminuía progressivamente. Começou a
refugiar-se nos cantos mais distantes e mais sossegados, e aí passava
tranquilamente horas e horas, as feições contraídas, como se escutasse alguma
coisa infinitamente grave e doce. Nestes momentos de silêncio absoluto, em que
o cortejo dos ruídos diversos não perturbava a sua atenção, a criança parecia
mergulhar num sonho, em meditação, enquanto uma expressão de espanto e de
incompreensão se espalhava no seu rosto demasiadamente sério.
O tio Máximo acertou. O sistema nervoso da criança,
extremamente delicado e rico, arrebatava-a, e dir-se-ia que ele se esforçava
por restabelecer, numa certa medida, pela receptividade chocante do ouvido e do
tacto, a plenitude das suas sensações.
Toda a gente se admirava, sobretudo, da subtileza do seu
tacto. Dava mesmo, por vezes, a impressão de distinguir as cores. Quando as
suas mãos se apossavam de bocados de pano de cores brilhantes, o seu rosto
reflectia perfeitamente a expressão duma atenção assinalada. Entretanto, com o
andar dos tempos, tornou-se dia a dia mais evidente que a sua
impressionabilidade se desenvolvia cada vez mais nos domínios do ouvido.
Pouco tempo depois, ele conhecia à maravilha todas as
dependências da casa pelo seu barulho próprio. Distinguia também o andar dos
pais e dos criados, como o estalido da cadeira do tio inválido, o ruído seco e
regular do fio nas mãos de sua mãe e o tiquetaque uniforme do relógio. Por
vezes, deslizando ao longo da parede, aplicava o ouvido e apreendia um som
ligeiro, imperceptível dos outros, e a sua mãozinha, no ar, estendia-se em
direcção a uma mosca a passear pela parede. Quando o insecto, assustado,
esvoaçava, as feições do cego traduziam sempre o mesmo ar de incompreensão.
Não dava conta do desaparecimento misterioso da mosca;
mas, em seguida, o rosto conservava, nestes casos, a marca duma atenção
reflectida. Voltava a cabeça na direcção tomada pelo insecto — o seu ouvido, duma acuidade excessiva, apreendia no ar o zumbido leve das asas.
O universo brilhante, movimentado e ruidoso em volta dele
penetrava na sua cabecinha em grande parte sob a forma de sons; e era
justamente segundo esta forma que se moldavam as suas sensações. A sua atenção
muito particular aos sons modelava-lhe as feições: o maxilar inferior avançava
um pouco sobre o pescoço magro e alto, as sobrancelhas adquiriam uma mobilidade
extraordinária e os seus belos olhos mortos imprimiam a toda a sua figura uma
máscara bondosa e comovente.Terminava o segundo Inverno da sua vida. No pátio, a neve
começava a fundir-se, murmuravam os riachos primaveris; e, entretanto, a
criança, que tinha passado no quarto todo o Inverno um pouco adoentada, ia
muito melhor.Ergueram-se as vidraças das janelas e a Primavera
irrompeu violentamente no quarto. Um sol moço mirava-se, a rir, nos
vidros inundados de luz. Os ramos ainda nus das faias agitavam-se cheios de
confiança. Os campos divisavam-se escuros, ao longe, cobertos, aqui e ali, de
manchas brancas, provocadas pela neve, em vias de se derreter. Em certos
sítios, a erva fresca aflorava já, mas timidamente. Em toda a parte a Primavera
provocava um poderoso fluxo de forças vitais renovadas.
Quanto ao menino cego, a Primavera não se revelava para
ele senão por ruídos precipitados. Ouvia correr as torrentes, que, à porfia,
inundavam as pedras e desapareciam no seio da terra. As hastes das faias
cochichavam, bisbilhoteiras, por detrás das janelas, e, entrelaçando-se, vinham
afagar ligeiramente as vidraças, que estremeciam ternamente em resposta.
A liquefacção rápida das camadas de gelo espesso,
suspensas do telhado e aquecidas rapidamente pelo sol, tecia uma sinfonia
composta de milhares de sons crepitantes, que caíam no
aposento como pedras minúsculas e produziam como que um rufo precipitado de
tambor. De tempos a tempos, quebrando a trama de ruídos e de sons, os gritos
agudos dos grous estalavam alto no céu e agonizavam longamente, como se se
fundissem suavemente no ar. A renovação da natureza fazia-se acompanhar duma
tensão dolorosa, que invadia todo o organismo do pequeno. Apertava fortemente
as sobrancelhas, estendia o pescoço, prestava atenção, e depois, inquieto — parecia com este sussurro incompreensível de sons,
estendia repentinamente as mãos, procurava a mãe, lançava-se para ela e chegava-se
muito, a tremer, contra o seu peito.
— Mas o que foi? — perguntava a mãe, interrogando-se e interrogando os outros.
O tio Máximo examinava com atenção o esforço do rapazinho
e não conseguia explicar este alarme inesperado.
— Não pode compreender... — adivinhava a mãe, surpreendendo
no rosto do filho sempre a mesma expressão doentia dum espanto sem limites.
Com efeito, a criança andava
inquieta: tão depressa aprendia novos sons como se admirava de não distinguir
os antigos, aos quais já se começava a habituar, e que se calavam de repente, e
se perdiam em qualquer parte num abismo sem fundo.
O caos do tumulto primaveril extinguiu-se por fim. Sob os
raios quentes e até mesmo ardentes do Sol, o trabalho da natureza entrava
progressivamente, normalmente, no ritmo habitual. A vida parecia que se
espalhava cada vez mais precipitadamente, como a marcha dum comboio que se
acelera. As ervas tenras verdejavam já nos relvados e o ar estava saturado do
aroma dos rebentos das árvores.Decidiram ir passear com o menino para os campos
marginais do ribeiro mais próximo.
A mãe levava-o pela mão. Ao lado, o tio Máximo coxeava,
de muletas. O pequeno grupo tomou o caminho duma colina
vizinha onde a terra tinha sido seca pelo sol e pelo vento. Coberta duma erva
macia e espessa, oferecia uma vista esplêndida sobre espaços infinitos.
O dia brilhante feria os olhos da mãe e do tio Máximo. Os
raios brincalhões do Sol aqueciam-lhes a face, mas o vento primaveril, de asas
invisíveis, neutralizava o calor, substituindo-o por uma frescura deliciosa.
Qualquer coisa de embriagador até à voluptuosidade, até à languidez, flutuava
no ar.A mãe sentiu a mãozinha da criança apertar a sua. Mas o
sopro perturbador da estação tornava-a menos sensível a esta espécie de
inquietação infantil. Ela respirava a plenos pulmões e avançava sem se voltar.
Todavia, se tivesse feito o menor movimento de cabeça, teria visto uma
expressão insólita no rosto do pequeno. Ele virava para o sol os grandes olhos
abertos, cheios duma perplexidade muda. Os seus lábios entreabertos aspiravam o
ar aos borbotões, como um peixe acabado de retirar da água. A manifestação dum
êxtase delicioso aparecia-lhe, por vezes, na face desconcertada, adquiria
tiques nervosos, iluminava-lhe as feições por um instante e cedia lugar
imediatamente à surpresa, denunciando susto e incompreensão. Somente os olhos
conservavam o aspecto igual e imóvel.
Chegados à colina, sentaram-se todos três. Quando a mãe
quis levantar o filho do solo, para o colocar mais comodamente, ele agarrou-se-lhe
convulsivamente ao vestido, como se sentisse o chão fugir-lhe e como se
receasse cair. Ainda desta vez, a mãe não percebeu o movimento inquieto do cego, tendo os olhos e
a atenção completamente absorvidos pelo quadro majestoso que a Primavera lhe
apresentava.Era meio-dia. O Sol rolava docemente no céu azul. Da
colina onde estavam sentados viam estender-se o ribeiro em curvas desordenadas.
Estava já desembaraçado dos blocos de gelo que tinha carreado, e não era senão de
longe a longe que flutuavam alguns à superfície e se fundiam como pássaros de
asas brancas. Nos prados inundados, a água espalhava-se como grandes toalhas. A
abóbada celeste reflectia-se ali, e pequenas nuvens brancas pareciam boiar
lentamente na imensidade do céu. Desapareciam pouco a pouco, como se se
derretessem à maneira do gelo. De tempos a tempos, brilhando, debaixo do sol,
ondulações ligeiras, provocadas pelo vento, corriam ao longo do riacho. Mais
longe, por detrás deste, os vales estavam envoltos num vapor sombrio e baço.
Este véu de gaze imóvel, reverberante, dissimulava tão bem os pardieiros
distantes cobertos de colmo que a linha azul do bosque mal se divisava. A terra
parecia suspirar e arremessar para o céu qualquer coisa de semelhante às volutas
do incenso purificador.A natureza estendia-se em volta, como uma grande catedral
em véspera de festa. Mas para o cego era sempre a noite imensa que se agitava
duma maneira extraordinária, que se movia sem cessar, murmurava, retinia,
vibrava, estendia-se em direcção a ele, tocava a sua alma por todos os lados,
por meio de sensações desconhecidas, insólitas, novas, sob cuja pressão o seu
coração infantil batia dolorosamente até o fazer gemer.
Desde os primeiros passos, desde que os raios quentes lhe
caíram sobre o rosto e lhe aqueceram a epiderme delicada, voltou
instintivamente os olhos mortos para o Sol, como se sentisse que era ele o
centro em volta do qual gravitava tudo que o rodeava. Não havia para a criança
nem longes transparentes, nem abóbada azul, nem horizonte mais vasto hoje do
que ontem. Sentia somente que qualquer coisa de material, de doce e de quente
lhe acariciava a face num contacto terno e tépido. E, depois, alguma coisa de
fresco e leve, ainda que menos leve que o calor dos raios solares, começou a
afastar-lhe do rosto a languidez que se apoderava dele e a fazer correr ao
longo do seu corpo pequenas ondas um pouco frias. Em casa, o pequenito estava
habituado a mexer-se livremente e a sentir o vácuo à roda de si. Mas aqui era
assaltado por uma espécie de vagas inconstantes e bizarras, uma vez
maravilhosamente meigas, outras vezes excitantes e embriagadoras. Os beijos
ardentes do sol eram rapidamente arrebatados pela brisa que passava e uma
corrente de ar, sussurrando-lhe aos ouvidos, envolvendo-lhe o corpo, as fontes,
a cabeça até à nuca, girava em volta de si, como a esforçar-se para o levantar,
para o transportar a qualquer parte do espaço, que ele não via, afagando-lhe a
consciência, embalando-o e mergulhando-o num lânguido esquecimento. Foi então
que a mão do rapazinho apertou mais fortemente a da mãe e que o seu coração
começou a desfalecer, como se fosse parar.
Logo que se sentou, pareceu acalmar. Agora, apesar da
estranha sensação que o invadia todo, pôs-se a distinguir alguns
ruídos isolados. Ondas negras e doces cresciam como anteriormente, com uma
força irresistível, e ele tinha a impressão de que lhe penetravam no interior
do corpo, pois que as pulsações do seu sangue agitado subiam e desciam ao ritmo
dessas ondas. Mas nessa ocasião elas traziam-lhe, ou o gorjeio distinto duma
calhandra, ou o murmúrio abafado duma bétula em flor, ou a garrulice, que mal
se distinguia, do riacho. Uma andorinha fazia assobiar o ar com o seu voo,
descrevendo cada vez mais perto círculos caprichosos. Os grilos cantavam,
infatigáveis, e a cobrir todos estes sons diferentes elevava-se por vezes a
exclamação arrastada e triste dum trabalhador no vale, excitando os bois no
sulco dum baldio.Mas a criança não conseguia dominar todos os ruídos,
todas as vozes; não chegava a uni-los, a coordená-los. Dir-se-ia que, ao
penetrarem na sua cabecita torturada, caíam no fundo,
um a um, tão depressa mansos e vagos como ruidosos e atordoadores. Algumas
vezes amalgamavam-se todos simultaneamente e misturavam-se, resultando daí uma
dissonância, tão desagradável como incompreensível.
Entretanto, o vento que vinha do campo fustigava-o,
sibilando sempre aos seus ouvidos; e ele tinha a impressão de que as ondas já
corriam mais depressa e os seus ruídos extinguiam todos os outros sons, que
pareciam agora vir de algum sítio mais longe, como se fossem saudades da
véspera.E à medida que os ruídos se tornavam mais surdos, no
peito do cego entrava uma sensação de langor excitante. O rosto
cobria-se-lhe de convulsões rítmicas; os olhos, tanto se lhe fechavam como se
reabriam. As sobrancelhas moviam-se, inquietas, e todos os traços traduziam
perguntas, esforços dolorosos do seu pensamento e da sua imaginação. Fraco
ainda e cheio de sensações novas, a consciência começava a transbordar-lhe.
Tinha sido inútil lutar contra as impressões que de toda a parte o assaltavam,
resistir a esta avalancha de ideias, coordená-las e dominá-las... A tarefa era
forte de mais para ele; era desmedida para o seu cérebro infantil, que não
possuía noções visuais, exigidas para esse trabalho.
E os sons registavam-se, um após outro,
excessivamente variados, demasiadamente barulhentos. As ondas que se
apoderavam do pequenito cresciam de intensidade, perfurando as trevas sonoras,
para se perderem em seguida na mesma noite, dando lugar a novas ondas, a sons
novos. Essas ondas erguiam-se cada vez mais rápidas, a cada momento mais altas,
com um impulso que fazia mal. A nota triste dum longínquo grito humano
atravessou uma vez mais o rumor que agonizava; e, depois, tudo se calou de
repente.A criança soltou um gemido doce e deitou-se sobre a erva.
A mãe voltou-se para ele e deu também um grito: ele estava estendido, pálido,
perdido num desmaio profundo.O tio Máximo inquietou-se muito com este incidente.
Passado tempo, principiou a dedicar-se a leituras de psicologia e pedagogia e
entregou-se, com a habitual energia, a tudo aquilo que a ciência ensina sobre o
crescimento misterioso e o desenvolvimento da alma infantil.
Este trabalho apaixonava-o cada vez mais; e era por isso
que as ideias lúgubres acerca da sua invalidez, da sua incapacidade de lutar na
vida, «o verme rojando-se na poeira», etc., se desfariam, pouco a pouco e
insensivelmente, na sua cabeça quadrada de velho veterano. No lugar delas agitavam-se
outros pensamentos: e tinham uma tal influência sobre o velho companheiro de
Garibaldi que, de tempos a tempos, faziam germinar sonhos cor-de-rosa no seu
coração envelhecido. O tio Máximo estava persuadido de que a natureza, que
tinha recusado a vista à criança, não tinha sido injusta para os outros
sentidos. Era preciso um ser para agir sobre todas as impressões exteriores
acessíveis ao pequenito, de maneira a assegurar-lhe uma plenitude e uma força
muito especial. E o tio Máximo principiava a crer que tinha sido designado para
desenvolver os dons naturais do menino; para contrabalançar, pelos esforços do
seu espírito e da sua influência, a maldade do destino; para se fazer
substituir nas fileiras dos que combatem pelas nobres causas por este recruta,
com o qual ninguém contava, se ele, o pobre mutilado, não interviesse.
«Quem sabe?», pensava o velho garibaldino. «Pode-se
perfeitamente lutar sem ser com a ajuda do sabre e da lança. E muito
possível que esta criatura, injustamente ferida pelo destino, levante um dia a
arma que será destinada a proteger os desgraçados, igualmente ultrajados pela
vida; e então eu, velho soldado mutilado, não terei sido de mais neste
mundo...»Mesmo os mais avançados livre-pensadores desta época
estavam em parte influenciados pela superstição, que pretendia que o universo
era regido segundo «intenções misteriosas» da natureza.
Também o tio Máximo, que seguia de perto a evolução da
criança, que cada dia, e progressivamente, manifestava capacidades
extraordinárias, se aferrou definitivamente à convicção de que a cegueira do
pequeno era uma dessas intenções misteriosas.
«Um ferido para todos os feridos» — era a divisa que o tio Máximo tinha aplicado em boa hora ao seu pupilo.
Após o primeiro passeio da Primavera, a criança passou
alguns dias em delírio.
Tão depressa estava deitada, imóvel e silenciosa, no leito,
como se agitava, balbuciava palavras incompreensíveis e aplicava o ouvido a
qualquer ruído. Mas durante todo o tempo o seu rosto conservou a expressão
característica do espanto.— Palavra! Dir-se-ia que se esforça por compreender alguma
coisa sem o conseguir — dizia a mãe.
O tio Máximo, pensativo, abanava a cabeça. Tinha
compreendido imediatamente que a excitação anormal e o desfalecimento do menino
tinham explicação na abundância de impressões e sensações demasiadamente
violentas, que abalaram a sua consciência infantil; e foi por isso que tomou a
decisão de lhas proporcionar só em acesso progressivo junto do convalescente,
de não consentir que as impressões chegassem senão uma a uma. As portas da
janela do quarto onde dormia o doente estavam cuidadosamente fechadas. E, em
seguida, à proporção que ele melhorava, abriam-nas, passeavam-no através do
aposento, faziam-no descer, pela escadaria externa, para o pátio, para o
jardim. E todas as vezes que uma expressão inquieta ensombrava as faces do cego
a mãe explicava-lhe a natureza dos sons que o surpreendiam.
— É a corneta do pastor que ressoa por detrás da floresta
— dizia-lhe. — E aquilo é a voz dum passarinho que se
chama toutinegra... E agora é a cegonha que grita sobre a roda; vem de países
distantes e instala-se no seu antigo domicílio.
E a criança virava para ela o rosto resplandecente de
gratidão, agarrava-lhe na mão, mexia a cabeça, continuando a prestar atenção
com um ar pensativo e reflectido.Começou a documentar-se sobre as coisas que lhe
despertavam atenção, e a mãe, ou, a maior parte das vezes, o tio Máximo,
descreviam-lhe as diferentes coisas ou animais que
provocavam tal ou tal ruído. As explicações da mãe, mais vivas e mais
coloridas, produziam no pequeno uma forte impressão, por vezes dolorosíssima.
Emocionada, alterada, o rosto descomposto, os olhos cheios de lágrimas e de
sofrimento sem alternativa nem esperança, a pobre senhora procurava comunicar
ao filho a noção elementar das formas e das cores.
A criança fixava a sua atenção, franzia o sobrolho, e
ligeiras rugas sulcavam-lhe a face. Evidentemente que o seu pequeno cérebro
infantil estava empenhado numa tarefa excessivamente complicada para si. A
imaginação obscurecida debatia-se, esforçava-se o mais possível, para, com
dados abstractos, criar um novo conceito; mas não o conseguia. Nestas ocasiões,
o tio Máximo ficava carrancudo, e assim que os olhos da mãe se toldavam de
lágrimas e o rosto da criança empalidecia de cansaço o velho soldado intervinha
na conversa, afastava a irmã e encetava uma exposição, na qual, tanto quanto
possível, só fazia uso de noções de espaço e de som. Então o rosto do cego acalmava-se.
— Bem; como é ela? É grande? — perguntava
a criança a respeito da cegonha.Nesse momento abria os braços. Fazia assim sempre que
formulava tais perguntas; e o tio Máximo indicava-lhe o ponto exacto em que ele
devia parar. Então abria completamente os braços pequeninos, mas o professor
dizia-lhe:— Não, meu pequeno, ela é ainda maior. Se a
introduzíssemos no quarto e a puséssemos no chão, a cabeça chegaria acima do
espaldar da cadeira. Compreendes?— Então é muito grande — disse o
pequeno, pensativo. — E a toutinegra, é assim? — e afastava um bocadinho apenas as palmas das mãos, postas
uma contra a outra.— Sim, a toutinegra é assim, exactamente. Mas repara que
as aves grandes não cantam nunca tão bem como as pequenas. A toutinegra é uma
ave encantadora e o seu canto agrada a toda a gente. Quanto à cegonha, é uma
ave sisuda, que se sustém numa só pata dentro do ninho, olha sempre à volta de
si, como um patrão severo vigia os trabalhadores, e grasna mais alto, sem se
importar de que a sua voz rouca vá perturbar os estranhos...
O pequeno ria ouvindo estas descrições — e esquecia por momentos os esforços penosos que fazia para compreender as
narrações da mãe. Mas isto passava depressa — e antes
queria dirigir-se à mãe do que ao tio Máximo.
O cérebro confuso do pequeno enriquecia-se de novas
noções; e, graças ao ouvido extremamente apurado, penetrava cada vez mais na
natureza que o cercava. Por cima e em volta de si, sempre a mesma noite
profunda e impermeável. Estas trevas pesavam-lhe como uma nuvem negra sobre o
cérebro; e, embora ela o tivesse acompanhado desde o primeiro dia de vida e ele
devesse habituar-se à sua infelicidade, a natureza, submetida talvez a algum
instinto superior, procurava, sem cessar, libertar-se daquele véu escuro. Estes
impulsos instintivos para a luz, que não o abandonavam um segundo, davam-lhe ao
rosto a marca dum esforço doloroso.
No entanto, também ele conhecia instantes de alegria
clara, transportes infantis deliciosos; e isso sucedia-lhe sobretudo nos momentos
em que o mundo exterior lhe comunicava uma nova e forte sensação ou lhe fazia
conhecer novos fenómenos do universo invisível.
Imensa e vigorosa, a natureza não se lhe fechava
inteiramente. Assim, um dia em que o levaram a uma rocha escarpada, na
margem da ribeira, escutava, com uma atenção particularíssima, o murmúrio
abafado das pequeninas vagas a seus pés; e, com o coração transido, agarrava-se
ao vestido da mãe e seguia a queda dos calhaus que se desprendiam dos rochedos
e caíam sobre a água. Desde esse momento
representava-se-lhe a profundidade como uma espécie de borbotão amortecido de
água junto do rochedo, ou sob a forma de agitação furtiva de pedrinhas
escorregando ligeiras para o rio.A sensação de distância repercutia-se nos seus ouvidos
como uma canção que se extingue. Mas quando o trovão, em Maio, rolava com
fragor pelo céu, enchendo o espaço de estrondo, e se perdia por detrás das
nuvens — sempre como se estivesse zangado —, a criança
cega aplicava o ouvido a esta voz ensurdecedora com um terror religioso; e
então dilatava-se-lhe o peito e surgia-lhe no espírito a noção majestosa do
infinito e da atmosfera.Assim, o som era para ele a principal expressão, e a mais
directa, do mundo exterior; as outras só lhe serviam para suplemento às acções
do ouvido, que urdiam a trama geral das suas concepções.
Às vezes, nas tardes quentes, quando tudo se calava à
volta dele, quando a circulação parava e a natureza se enchia daquela espécie
particular de silêncio, em que só se percebe a subida incessante e muda das
forças vitais, o rosto do rapazinho transformava-se miraculosamente. Parecia
que, sob a influência do sossego exterior, os sons donde ele extraía
o ritmo e a vibração subiam do fundo da sua alma e ele os
escutava com uma atenção surpreendente. Dir-se-ia, olhando-o nestes momentos,
que uma noção mal definida brotava, principiava a retinir no seu coração, como
um vago estribilho de balada.Estava já nos 5 anos. Era magro e débil. Mas isso não o
impedia de andar e mesmo correr por toda a casa. Se um estranho o tivesse visto
passear com um passo seguro pelos quartos, voltar exactamente onde devia,
procurar e encontrar nos lugares respectivos todos os objectos de que tinha
necessidade, não acreditaria que estava em presença dum cego. Teria tomado o
rapazinho por uma criança caprichosamente concentrada, de olhar meditativo,
fixando uma distância indefinida.Mas já era com dificuldade que ele se deslocava no pátio.
Era-lhe necessário servir-se dum pau, com o qual tacteava ligeiramente o chão.
Quando o não tinha, preferia ir de gatas, examinando minuciosamente os objectos
que se encontravam na sua passagem.
CAPÍTULO IIO que se segue sucedeu numa noite calma de Verão. O tio
Máximo estava sentado no jardim. Segundo o seu costume, o pai andava entretido em qualquer parte dos campos.
Tudo era serenidade na casa e nos arredores. A aldeia adormecia... Na cozinha,
também o ruído dos trabalhadores e das criadas se apagava. Passada uma hora, o
menino estava deitado na cama.Apossou-se dele uma sonolência. Havia já algum tempo,
que, em si, uma reminiscência estranha se casava com a doçura desta hora
tardia. Bem entendido: ele não via o céu azul escurecer, nem o cimo negro das
árvores balançar-se, recortando-se no céu estrelado, nem os largos muros dos
edifícios que rodeavam a casa velarem-se de sombra, nem as trevas azuladas e
densas envolverem a terra ao mesmo tempo que a poalha de prata do luar. E já
havia alguns dias que adormecia alanceado por uma impressão estranha e
embriagadora ao mesmo tempo, de que ele não tomava conhecimento senão no dia
seguinte.No momento em que o sono vinha entorpecer-lhe a
consciência e o rumor vago das faias se aquietava completamente, a criança
deixava de distinguir os latidos distantes dos cães na aldeia, os trilos dos
rouxinóis, do outro lado do regato, e o badalar melancólico dos guizos das
mulas que passavam na estepe. Logo que todos estes sons isolados se apagavam,
se perdiam no infinito, ele começava a ter a impressão de que eles se fundiam
num acorde harmonioso, penetrando, como um enxame, pela janela, no seu quarto,
e volteavam longamente, lentamente, em roda do leito, mergulhando-o num sonho
delicioso, se bem que de natureza imprecisa.
E na manhã seguinte acordava muito terno e dirigia à mãe
uma pergunta palpitante.— Dize, mamã, o que foi aquilo... ontem? Dize, mamã, o que era?
A mãe não sabia do que se tratava e julgava que eram
sonhos que atormentavam o seu filho.
Deitava-o então na caminha e não se afastava senão quando
ele adormecia e nada se notava de singular. Mas na manhã seguinte o pequeno
repetia-lhe a mesma coisa e contava-lhe então o que lhe tinha agitado
deliciosamente a vigília.— Ai, querida mamã, era tão lindo, tão lindo... Mas o que
era?Uma noite tomou ela a decisão de ficar ao pé do leito do
filho mais tempo, para esclarecer este estranho enigma. Sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, a trabalhar quase automaticamente no seu tricot, escutando com
atenção a respiração igual do seu Pedrinho.
Parecia ele dormir tranquilamente, quando, de súbito, a
sua voz doce atravessou a escuridão:
— Mamã... estás aí?
— Sim, sim... filho...
— Vai-te embora, peço-te. Ele tem medo de ti e não veio
ainda. Já estava quase a dormir, mas ele ainda ali não está.
Espantada, a mãe ouviu, com um sentimento penoso, este
cochichar queixoso, meio a delirar. A criança falava-lhe dos seus sonhos com
uma lucidez chocante, como se se tratasse de uma coisa real. Contudo,
levantou-se, inclinou-se para o filho, abraçou-o e saiu docemente, com o
intento de se aproximar, sem ser notada, da janela aberta, que dava para o
jardim.Não teve mesmo tempo de fazer o exame: o mistério
esclareceu-se. De repente percebeu os gorjeios suaves e harmoniosos de
uma flauta, que vinham da cavalariça e se misturavam com os rumores indistintos
da noite meridional.Compreendeu imediatamente que eram justamente esses
simples harpejos que compunham uma melodia ingénua e que, ligando-se ao
mistério da hora, davam uma nota tão agradável às recordações nocturnas do
menino. Parou, ficou um minuto sem se mexer, a escutar o motivo adoptado pela
canção ucraniana, e depois retirou-se tranquila, indo encontrar numa álea
escura do jardim o tio Máximo, que a esperava.
«Como ele toca bem, o nosso Jokhime», pensou ela.
«Espera, é esquisito: tanta sensibilidade num mujique tão grosseiro!»

O Cego Rabequista - David Wilkie, 1806
Efectivamente, Jokhime tocava muito bem. Era mesmo
competente para dominar um violino rebelde; e contava-se que, noutros tempos,
ninguém tocava melhor que ele a «cossaca» ou a endiabrada cracoviana, ao
domingo, na estalagem. Quando, sentado a um canto sobre um escabelo, o queixo
rapado apoiado na tampa do violino o alto boné de pele arrogantemente inclinado
para a nuca, ele dava uma arcada nas cordas bem retesadas, não ficava ninguém
quieto na taberna. Mesmo o velho judeu zarolho que acompanhava Jokhime em
contrabaixo se animava com um entusiasmo louco; o seu instrumento, pesado e
desajeitado, parecia que rebentava sob os esforços que ele fazia para seguir, com
as notas baixas, os sons ligeiros, cantantes e saltitantes do violino de
Jokhime; e até o velho Iankel, cujos ombros saltavam a cada movimento, agitava
a cabeça calva, enfeitada com um ??, e balançava todo o corpo, ao ritmo
da melodia jovial e arrebatadora. E que dizer dos cristãos, cujas pernas estão,
desde o começo dos séculos, dispostas de tal forma que se bamboleiam e
saracoteiam, como sombras, ao primeiro som dum compasso de dança?
Mas desde o tempo em que se apaixonou por Maria, criada
dum nobre vizinho, Jokhime tinha tomado ódio — sem se
saber porquê — ao alegre violino. Em abono da verdade, deve dizer-se que o
instrumento não o ajudara nada a conquistar a rapariga, que preferiu a cabeça
caucasiana dum criado de quarto ao penteado cossaco do mujique.
Desde essa altura em diante, nunca mais se ouviu o
violino de Jokhime, nem na estalagem, nem nas festas da aldeia. Pendurou-o num
prego da cavalariça e nunca se importou de que as cordas do instrumento,
outrora tão amado, uma após outra se partissem. E, no entanto, ao quebrarem-se,
as cordas produziam sons plangentes e tão cheios de uma angústia mortal que os
próprios cavalos relinchavam, compadecidos, e, espantados, voltavam a cabeça
para aquele homem empedernido pela rapariga que o tinha escorraçado. Em substituição
do violino, Jokhime comprou uma flauta de madeira a um montanhês nómada dos
Carpatos. Esperava que as notas suaves e ternas se ligassem muito melhor com a
sua triste sorte e melhor pudessem traduzir
todas as penas dum coração desprezado.
Mas a flauta da montanha iludiu-o nas suas esperanças.
Ensaiou trinta e seis maneiras, aparou-a, mergulhou-a na água e secou-a ao sol.
Depois suspendeu-a do tecto por um fio delgado, para que o vento lhe batesse e
a limpasse. Mas tudo em vão. A
flauta estranha não se submeteu. Assobiava justamente quando devia cantar,
produzia sons agudos nos momentos em que Jokhime lhe pedia vibrações langorosas e
comoventes. Numa palavra, a flauta recusava-se terminantemente a adoptar o
sentir do seu dono. Jokhime comprou umas dez. E, por fim, terrivelmente zangado
com todos os montanheses nómadas, a quem reconheceu completa incapacidade para
fazer uma boa flauta, decidiu ele mesmo fazer uma a seu gosto. Vagueou durante
alguns dias, a testa enrugada, o sobrolho franzido, pelos campos e pelos
charcos, aproximando-se de cada bosquezinho de salgueiros que via, examinando
todos os ramos e cortando alguns. Mas não encontrava o que procurava. De
sobrancelhas sempre carregadas, ia mais longe, continuando as pesquisas. Parou,
por fim, num cantinho, onde as águas meio adormecidas do riacho deslizavam
indolentemente. Nesta enseada, o ribeiro acariciava as cabeças brancas dos
nenúfares. O vento quase não chegava a este sítio, por causa das moitas
espessas dos salgueiros que, com ar calmo e recolhido, se inclinavam para a
profundidade das águas, negras e quietas.
Jokhime afastou os arbustos, aproximou-se do regato,
esteve imóvel durante uns momentos e capacitou-se de repente de que
encontrara ali o que procurava. A fronte desenrugou-se-lhe. Tirou da algibeira
uma navalha de mola ligada a uma correia curta e, depois de ter abrangido com
um olhar atento os salgueiros, que murmuravam com ar preocupado, dirigiu-se,
precipitadamente, com passos seguros, para uma arvorezinha esbelta e flexível
que se balançava por cima dum rego cavado pela duna.
Deu-lhe um piparote, viu-a, com prazer, estremecer com
uma flexibilidade prodigiosa, escutou o sussurro da folhagem e abanou a cabeça.
— Mas é exactamente o que eu preciso! disse
Jokhime encantado; e arremessou à água todas as varas que antes tinha cortado.
Arranjou uma flauta notável. Depois de seco o salgueiro,
queimou-lhe a medula com um fio de ferro incandescente, abriu-lhe seis buracos
redondos, acrescentou um transversal suplementar e, após ter tapado uma das
extremidades com um batoque de madeira, deixou-lhe uma fendazinha. Em seguida
ficou o instrumento a balançar durante uma semana inteira na extremidade de um
cordel, largamente exposto ao sol, que o aquecia, e ao vento, que o acariciava
por todos os lados.Depois, o músico amador aparou-o com a navalha, limpou-o
com um bocado de vidro e enxugou-o cuidadosamente com um trapo grosseiro. A
cabeça da flauta ficou redonda. Do centro partiam facetas de superfície igual,
bem polidas, que ele cobriu de chapas de metal, formando motivos complicados.
Depois de ter tentado fazê-la soltar quaisquer notas
rápidas, abanou a cabeça com um ar comovido e produziu um som
completamente extravagante; mas, evidentemente satisfeito, escondeu
apressadamente a flauta perto da cama. Ele não queria executar o primeiro
exercício musical na atmosfera agitada do dia. Quando a noite caiu e os ruídos
se apagaram, acentos ternos e modulados, cheios duma doçura rara e duma
fantasia embriagadora, irromperam da cavalariça.
Jokhime estava verdadeiramente satisfeito com o seu
trabalho. O instrumento parecia uma parte do seu criador. Dir-se-ia que os sons
escapavam do seu próprio coração ardente e enternecido, tanto a flauta
maravilhosa reflectia as menores nuances dos seus sentimentos, os menores
frémitos da sua tristeza. Soltavam-se, deslizavam mansamente, uns a seguir aos
outros, enchendo a noite que os escutava atenta.
Presentemente, Jokhime estava enamorado do instrumento e passava
na sua companhia a lua-de-mel. Durante o dia cumpria escrupulosamente os
deveres de criado de cavalariça, levava os cavalos ao bebedouro, atrelava-os,
passeava na carruagem a dona da casa ou o tio Máximo. Passando de tempos a
tempos pela aldeia vizinha, sentia a angústia invadir-lhe o coração; mas, ao
aproximar-se a noite, esquecia tudo e todos, e mesmo a imagem da rapariga de
soberbas pestanas negras se envolvia numa espécie de névoa. Esta recordação
perdia a sua realidade e apresentava-se-lhe num tom vago,
flutuante, ainda que bastante perceptível para dar um carácter sonhador e
triste às modulações da flauta milagrosa.
Naquela noite, como habitualmente, Jokhime estava meio
deitado na cavalariça e, cheio de um êxtase musical, dava livre curso a
melodias alegres. O músico conseguia, não somente esquecer a bela de coração
cruel, mas a própria existência e tudo que o rodeava, quando, subitamente,
estremeceu, erguendo-se no leito.No momento mais patético sentiu uma mãozinha passar os
dedos ligeiros pelo seu rosto, deslizar imediatamente ao longo das suas mãos e
pôr-se a tactear sofregamente a flauta. Ao mesmo tempo sentiu perto de si uma
respiração ofegante, alterada e breve.
— Mas que é isto? — gritou ele, temendo ser vítima dum malefício e pronto a
pronunciar palavras destinadas a conjurá-lo.
Desejoso de verificar se se tratava de sortilégio,
acrescentou imediatamente:— És o Diabo ou Deus?
Mas um raio de luar, que acabava de penetrar pelo portal
aberto da cavalariça, mostrou-lhe que se enganava. Pertinho da sua cama
achava-se Pedro, a estender para si os deditos.
Uma hora depois, a mãe, desejando deitar um olhar ao seu
filho adormecido, não o encontrou na cama. À primeira impressão, assustou-se
terrivelmente; mas o instinto maternal sugeriu-lhe imediatamente o lugar onde
devia ir procurá-lo.Jokhime ficou muito confuso quando, parando
inopinadamente para tomar fôlego, distinguiu a patroa no limiar da porta.
Certamente que ela já ali estava havia alguns momentos, escutando a música e
observando o filho, que, envolvido na curta pelica de Jokhime, estava sentado
na cama e continuava prestando atenção à canção interrompida.
A partir dessa noite, o menino foi regularmente à
cavalariça para junto de Jokhime.Nunca ele pensou em pedir ao mujique que tocasse de dia.
Tinha a impressão de que a agitação quotidiana e o rumor universal excluíam
toda a possibilidade de produzir aquelas doces melodias.
Mas logo que a noite caía sobre
a Terra, Pedro experimentava uma impaciência nervosa. O jantar só lhe servia de
sinal precursor da aproximação do momento venturoso; e se bem que a mãe,
instintivamente, não gostasse por aí além das sessões musicais, não podia
impedir o filho querido de ir visitar o músico aldeão nem de passar na
cavalariça duas horas antes de se deitar. Essas horas tornavam-se para a
criança cega a parte mais feliz do dia; e, cheia de ciúmes devoradores, a mãe
compreendia que as impressões nocturnas preocupavam o filho durante todo o dia
seguinte. Notara ela também que o pequeno já não correspondia com o mesmo
entusiasmo às suas carícias e que, sentado nos seus joelhos e abraçando-a,
recordava incessantemente a canção da véspera tocada por Jokhime.
Então lembrou-se de que, quando estudava no colégio de
meninas de Mme Radetzky, tinha aprendido música, que ela incluía entre as artes
agradáveis. Falando propriamente, as suas recordações não eram extremamente
gratas, considerando que elas se ligavam à imagem de M.lle Klaps, institutrice
alemã, rapariga esgrouviada, magra, prosaica e, sobretudo, terrivelmente
maldosa.Esta professora, repleta infalivelmente de fel, era muito
capaz de partir os dedos às alunas para conseguir uma agilidade inconcebível,
chegando assim a afugentar perfeitamente delas os menores traços de sentimento
musical. Esse sentimento, excessivamente tímido, não suportava sequer a simples
presença de M.lle Klaps, que tinha, além disso, uma noção bizarra dos métodos
pedagógicos.Foi por isso que, depois de terminar os estudos e
casar-se, Ana Mikhailowna não pensou mais em retomar os exercícios de música.
Presentemente, porém, à medida que escutava o tocador de
flauta ucraniana, sentia que, com o ciúme, uma paixão real por uma música viva
nascia cada vez mais no seu coração, e que, ao mesmo tempo, a imagem da
demoiselle alemã se desvanecia. Em consequência disso, a Sr.a Popelska pediu
com veemência ao marido que lhe mandasse vir da cidade um piano.
— Como quiseres! — respondeu-lhe
o marido, modelo dos maridos. Mas, se não me engano, tu não gostavas muito de
música!Nesse mesmo dia, a encomenda partiu, mas a compra e o
transporte do instrumento para o campo demandavam duas ou três
semanas, pelo menos.Entretanto, os apelos melodiosos escapavam-se todas as
noites da cavalariça e a criança cega precipitava-se para ali sem mesmo esperar
pela licença da mãe.O cheiro particular da cavalariça misturava-se ao perfume
das ervas secas e ao cheiro forte das correias. Os cavalos ruminavam docemente,
revolvendo os montes de feno, que puxavam da manjedoura. No momento em que o musico parava para tomar alento, o murmúrio das faias verdes
do jardim chegava distintamente à cavalariça. Sentado, o pequeno Pedro
conservava-se como num encantamento e escutava. Nunca interrompeu o tocador; e
era somente quando ele parava e dois ou três minutos se passavam que o
encantamento silencioso dava lugar a uma avidez singular. Inclinava-se para a
flauta, pegava-lhe com as mãos trementes e levava-a aos lábios.
Como nessa altura a emoção lhe cortava o sopro, os primeiros
sons que saíam eram habitualmente surdos e hesitantes.
Mas, em seguida, começou, pouco a pouco, a dominar o instrumento primitivo.
Jokhime colocava-lhe os dedos perto dos buracos e, se bem que a sua minúscula
mão não pudesse tapar os orifícios, o cego habituou-se rapidamente aos sons da
escala elementar. Cada nota tinha para ele um carácter próprio, uma fisionomia
particular. Sabia já em que buraco residia tal ou tal som, como era preciso produzi-lo; e, de tempos a tempos, seguindo as
modulações simplicíssimas de Jokhime, os dedos da criança começavam a mover-se
ao ritmo da canção. Exprimia claramente os tons
sucessivos, colocados no seu lugar ordinário, na ordem ascendente ou
descendente.Enfim, justamente três semanas depois, o piano chegou à
herdade. Pedro estava no pátio e escutava atentamente os trabalhadores
atarefados em transportar «a música» para casa. O instrumento era,
evidentemente, muito pesado, pois no momento em que começaram a levantá-lo o
carro rangeu e os que o transportavam gemiam e respiravam com dificuldade. Mas
quando avançavam com custo, pausadamente, a cada passo, qualquer coisa de
esquisito zumbia, fazia estrondo e vibrava por cima da sua cabeça. Logo que
colocaram o instrumento no soalho, ele respondeu com um eco surdo; como se,
arrebatado pelo furor, se zangasse com qualquer pessoa ou a ameaçasse.
Tudo isto produziu na criança uma impressão vincada de
receio e não o dispôs nada bem a respeito do novo hóspede irritado, apesar de
inanimado.Saiu para o jardim e não ouviu como se colocava o
instrumento sobre os seus pés, nem como o afinador, vindo expressamente da
cidade, o tinha afinado com a chave, tocava o teclado e tirava as cordas. Só
depois de tudo isto acabado é que a mãe deu ordem para levarem Pedro para a sala.
E então, com a ajuda dum piano, saído duma das melhores
oficinas vienenses, Ana Mikhallowna celebrou antecipadamente a sua vitória
sobre a singela flauta aldeã. Estava segura de que, doravante, o seu Pedro
esqueceria a cavalariça e o seu morador e que, a partir desse dia, ela seria
sozinha a garantir todas as alegrias e todos os prazeres do filho.
Olhou sorridente a criança, que entrava na sala,
timidamente, acompanhada pelo tio Máximo e por Jokhime, que pediu licença para
ouvir a música e parou à porta, de olhos baixos pela perturbação e a longa
madeixa de cabelo caída na testa. Quando o tio Máximo e Pedro se sentaram no
sofá, Ana Mikhallowna executou subitamente uma passagem no piano.
Tocava ela um trecho que aprendera na perfeição, sob a
superintendência de M.lle Klaps, no colégio de meninas de Mme Radetzky. Era
qualquer coisa de fortemente barulhento, de bastante complexo, que exigia uma
agilidade extraordinária de dedos.
Na altura do exame, Ana Mikhailowna tinha obtido,
executando este trecho, uma torrente de elogios, que iam, na sua maior parte,
para a professora.Ninguém sabia nada ao certo, mas muita gente supôs que o
silencioso M. Popelsky se cativou da menina Jatzenko justamente no momento em
que a rapariga encantava a assistência tocando este dificílimo fragmento.
Tocava-o agora de novo, esperando no seu foro íntimo uma
outra vitória; e empregava todos os esforços para seduzir o
coraçãozinho do filho, enfeitiçado por uma vulgar gaita ucraniana.
Mas desta vez foi iludida a sua esperança: o instrumento
vienense não era suficientemente forte para lutar com um pedaço de salgueiro
russo. É certo que o piano possuía meios formidáveis: madeira preciosa, cordas
extraordinárias, execução perfeitíssima dum artista de Viena e toda a riqueza
de um extenso registo. Mas, em contrapartida, a
modesta flauta também tinha os seus aliados: estava em sua casa, no seu país,
no quadro familiar da Ucrânia.Antes que Jokhime a tivesse cortado com a sua navalha e
lhe tivesse queimado o coração com um ferro em brasa, ela balançava-se ali
pertinho, por cima do ribeiro tão conhecido do cego. Tinha sido beijada pelo
sol ucraniano, que também a aquecera; tinha sido vergada e açoitada pelo vento
ucraniano, até ao momento em que o olhar perspicaz dum tocador de flauta a assinalou,
palpitante, por cima duma ladeira escarpada, desgastada pela chuva. Era por
isso que se tornava particularmente difícil ao hóspede estrangeiro lutar com a
flautazinha singela, que se tinha revelado à criança na hora suave do
entardecer, no meio do misterioso encantamento da noite, do sussurro das faias,
que adormeciam ao rumor familiar de toda a natureza ucraniana.
E, além disso, a Sra Popelska não podia de forma nenhuma
medir-se com Jokhime. Sim, decerto que os seus dedos delicados eram muito mais
vivos e ligeiros, a melodia que ela tocava era também mais rica e complexa e a
demoiselle Klaps tinha despendido todos os seus esforços para conseguir que a aluna se
tornasse mestra num instrumento tão difícil. Mas, por seu turno, Jokhime
possuía um sentido musical inato. Amava, aborrecia-se, e o seu amor e o seu
desgosto confiava-os ele aos elementos que conhecia
desde a mais tenra infância. Esses motivos, simples e tocantes, aprendeu-os ao
pé desta mesma natureza, junto dos ruídos da floresta, do doce murmúrio da erva
e da estepe e da canção velhinha do país natal, tão chegada e tão sonhadora,
que ele ouvira soar em volta do seu berço de criança.
Ah, sim, era bem difícil para o instrumento vienense
vencê-la. Ao fim de um minuto, o tio bateu com força no soalho com a muleta.
Ana Mikhailowna voltou-se vivamente na sua direcção e leu no rosto de Pedro a
mesma expressão, que ela conservava inesquecível, do primeiro passeio da
Primavera, em que ele se precipitara, desmaiado, sobre a erva.
Jokhime olhou compadecido para o pequeno, lançou um olhar
desdenhoso à «música alemã» e retirou-se do salão, arrastando as botas pesadas
de camponês.Este insucesso custou muitas lágrimas à pobre mãe. Todas
as vezes que se lembrava do olhar desprezível do palafreneiro Jokhime, depois
do seu concerto verdadeiramente desastroso, corava de vergonha, e começou a
odiar o infeliz ucraniano.E, contudo, todas as noites, logo que o filho se escapava
para a cavalariça, abria a janela, apoiava os cotovelos no parapeito e escutava
avidamente. Ao princípio fazia isso com um sentimento de desdém irritado,
esforçando-se sobretudo por descobrir os lados ridículos daquela «estúpida
chilreada»; mas, em seguida, sem mesmo dar conta de tal, «o chilreio»
principiou a apoderar-se da sua atenção e começou a seguir, com uma disposição
completamente diferente, os motivos deliciosos e tristes da flauta. Analisando-se, perguntava a si própria donde provinham o encanto e o mistério
inebriante daquelas canções. E, pouco a pouco, as noites azuis, as sombras
imprecisas e os acordes surpreendentes das melodias de Jokhime, com o quadro
que o rodeava, ajudaram-na a resolver o problema.
— Sim — disse ela, vencida e
cativada por sua vez —, desprende-se daquilo um sentimento singular e sincero,
uma poesia maravilhosa, que nenhuma anotação musical reproduziria.
E era verdade. O mistério desta poesia estava na ligação
subtil que existia entre o passado, morto há muito tempo, e a natureza eterna,
testemunha desse passado. Aquele mujique, de aspecto grosseiro, de botas
enceradas, trazia consigo esta harmonia divina, esta paixão viva da natureza.
Ana Mikhailowna reconhecia que dentro de si mesma a
altiva senhora se curvava diante do cocheiro. Esquecia o vestuário rude e o
cheiro a sebo de que Jokhime estava impregnado; e através dos doces trinados da
flauta lembrava-se sobretudo do rosto bonacheirão do músico, da expressão terna e graciosa dos
seus olhos cinzentos e do sorriso tímido e confuso que se ocultava debaixo do
seu comprido bigode. Se de tempos a tempos o rubor ainda lhe subia às faces e à
fronte, era que na luta encarniçada travada com o fim de conquistar a atenção
do filho se encontrava na mesma arena e estava em pé de igualdade com esse
mujique; e que, no fim de contas, era justamente ele quem triunfava.
Durante este tempo, as árvores do jardim cochichavam por
cima da sua cabeça e resplandeciam cada vez mais as luzes no céu imenso, de um
sombrio tom azul. As trevas melancólicas invadiam a terra inteira e a tristeza
ardente das canções de Jokhime penetrava na sua alma de mulher. E ela
acalmava-se, pouco a pouco, como que vencida pelo mistério inocente desta
poesia, pura, simples e franca.Sim! O mujique Jokhime possuía esse sentimento sincero e
vivo! E ela? Era possível que nem um átomo tivesse? Então como explicar a
agitação do seu coração, a angústia de que o seu ser estava cheio e aquelas
lágrimas que, mau grado seu,
lhe inundavam os olhos? Não é um sentimento, um sentimento de amor ardente pelo
seu pobre filho, cego e deserdado, que a abandona para fugir para Jokhime?
Lembrava-se sempre da expressão dolorosa das feições da
criança quando ela tocava, e lágrimas amargas deslizavam-lhe,
irresistíveis, pela cara, sendo-lhe impossível reter os soluços prestes a
estalar que lhe apertavam a garganta.
Pobre mãe! A cegueira do filho tornara-se nela, por fim,
como uma doença crónica, uma enfermidade incurável, que se manifestava na
ternura exagerada e quase anormal que lhe dedicava, e, sobretudo, nessa
obsessão que a absorvia inteiramente e que acorrentava, por milhares de cordas
invisíveis, o seu coração ulcerado pela dor ao menor sinal de sofrimento do
filho. Era por isso que uma coisa extremamente simples, que poderia causar um
sentimento de despeito passageiro a qualquer de feitio mais tranquilo — essa concorrência singular com um tocador de flauta
ucraniano —, se tornava para si numa fonte inesgotável de sofrimentos,
incrivelmente dolorosos.Passavam os dias sem lhe trazerem consolação, mas não sem
utilidade: ela começava a sentir o fluxo esquisito dessas sensações vibrantes
de poesia musical que tanto a fascinavam no tocar de
Jokhime. Então renasceu-lhe a esperança. Impelida por um súbito impulso, por
uma nova segurança, aproximou-se várias vezes do piano e abriu-o, desejosa de
abafar com os acordes sonoros dos seus toques a tímida flauta do palafreneiro;
mas um movimento de hesitação e de pudor retinha-a. Lembrava-se do rosto
alterado do filho e do olhar desprezador do mujique, e as faces acendiam-se-lhe
de vergonha na noite. Com uma rapidez medrosa,
contentava-se em passar a mão pelo teclado.
Apesar disso, a profunda consciência da sua força
aumentava de dia para dia, e, aproveitando os momentos em que à tarde o
filho brincava numa álea distante ou passeava em qualquer parte, sentava-se ao
piano. Os primeiros ensaios não a satisfizeram. As mãos não se submetiam às
concepções interiores; e, ao princípio, os sons do instrumento pareciam-lhe
estranhos ao estado de alma que a avassalava. Mas, pouco a pouco, e
progressivamente, a expressão dos seus sentimentos transmitiu-se ao seu toque,
com uma plenitude e uma facilidade que cresciam gradualmente. As lições do
mujique tinham-lhe aproveitado; e, por outro lado, o seu amor maternal sem limites
e a noção excessivamente delicada do que lhe faltava para conquistar o coração
subtil do filho asseguravam-lhe a inteira possibilidade de lucrar com as suas
lições. Doravante abandonava para sempre os trechos agudos e complexos
doutrora; e eram canções tristes, delicadas doumkas ucranianas, que soavam,
gementes, na sala escura e comoviam até as lágrimas o coração da pobre mulher.
Chegou, enfim, o dia em que se sentiu suficientemente
forte para travar uma luta aberta e franca.
Então, uma espécie de despique original principiou entre
a casa dos patrões e a cavalariça de Jokhime. Da cocheira sombria, de tecto de
colmo inclinado, saíam gorjeios ondeantes de flauta;
e, indo ao seu encontro, das grandes janelas abertas da casa senhorial, que
reflectiam por entre os ramos das faias o luar brilhante, brotavam os sons
cantantes e cheios do piano.Ao princípio, nem o pequeno nem Jokhime quiseram tomar em
consideração «a música dos senhores», a respeito da qual
experimentavam um preconceito invencível. O rapaz chegava mesmo a franzir as
sobrancelhas e instigava Jokhime quando ele, de tempos a tempos, parava.
— Continua! Toca, toca!
Passados dias, estas paragens começaram a ser cada vez
mais prolongadas e frequentes. Jokhime abandonava de momento a momento a flauta
e prestava atenção, com um interesse crescente; e o pequeno, por seu lado,
esquecia-se de espicaçar o amigo e escutava também, tomado por um sentimento
completamente novo. Por fim, sem poder mais, o mujique disse, uma noite:
— Vamos lá, que está bem... bem de verdade... É
efectivamente extraordinário!E depois, com aquele ar distraído e meditativo ao mesmo
tempo, próprio de todo o homem que escuta com atenção, pegou no rapaz ao colo e
atravessou o jardim na direcção duma das janelas abertas da casa.
Julgava que a patroa tocava para as suas recordações, sem
lhe prestar a menor atenção. Mas, durante as pausas, Ana Mikhailowna tinha
reparado perfeitamente que o seu rival — a flauta se
calara, e, verificando esta vitória heroicamente ganha, o coração batia-lhe
numa alegria indescritível...Ao mesmo tempo, a sua irritação contra Jokhime
desaparecia por si e definitivamente. Era feliz e sabia que só a ele devia essa
ventura. Fora ele que lhe ensinara a arte de resgatar o filho; e se o pequeno
querido recebia doravante o tesouro inesgotável de impressões
inéditas, os dois, mãe e filho, sabiam que fora isso graças ao mujique, mestre
dum e doutro.O gelo rompeu-se. No dia seguinte a criança entrou com ar
tímido no salão, onde não ia desde a chegada do hóspede excêntrico vindo da
cidade, e que lhe parecera terrivelmente importuno e barulhento. Os cantos
deste visitante deliciavam agora o ouvido do menino e transformaram, como por
encanto, a sua disposição de espírito. Conservando ainda os últimos traços de
timidez, aproximou-se do sítio onde o piano se encontrava, parou a alguma
distância, e o seu aspecto denunciou uma certa expectativa. Não estava ninguém
na sala. A mãe encontrava-se num quarto vizinho, sentada num sofá, ocupada num
trabalho de senhoras. Viu imediatamente o filho e, retendo a respiração, pôs-se
a observá-lo, admirando a mobilidade da sua fisionomia impressionante e
seguindo todas as alterações da sua expressão.
Estendendo as mãos, Pedro tocou a superfície envernizada
do instrumento e, ao mesmo tempo, fez um movimento receoso para trás. Repetindo
duas vezes seguidas a mesma experiência, aproximou-se do piano e pôs-se a
examiná-lo, curvando-se até ao soalho, para lhe tocar nos pés e andar à roda
dele. A sua mão caiu, por fim, nas teclas polidas.
Um som doce, escapando-se duma corda em movimento, tremeu
fugazmente no ar. A criança escutou longamente as vibrações,
que já não eram perceptíveis para a mãe, e com um ar de atenção suspensa tocou
outra tecla, deslizando em seguida os dedos por todo o teclado. Na passagem
encontrou uma nota de registo superior. Dava tempo a cada tecla de revelar toda
a sua musicalidade, e os sons, um após outro, vibravam, tremiam e morriam no
ar. Simultaneamente a uma extrema atenção, a fisionomia do cego exprimia
prazer. Admirava, evidentemente, cada som isolado, e só à mãe esta atenção
dócil a respeito dos sons elementares e das partes integrantes da melodia
revelava dons indiscutíveis de artista. Mas, por outro lado, o ceguinho dava a
impressão de atribuir a cada som propriedades particulares: logo que uma nota
alegre e clara do registo superior tilintava sob os seus dedos, ele levantava a
face animada e sorria, como se o sorriso acompanhasse a vibração alada. Pelo contrário,
a cada som grave, surdo, mal perceptível, inclinava o ouvido. Parecia-lhe que
essa nota pesada se devia arrastar apenas e irresistivelmente pelo solo,
dispersar-se ao nível do soalho e perder-se em recantos escuros.
O tio Máximo mostrava-se indulgente relativamente a todas
estas experiências musicais. Coisa estranha, aquelas faculdades que se
manifestaram no pequenito em tão boa hora inspiravam ao inválido sentimentos
contraditórios. Por um lado, esta paixão maravilhosa pela música revelava um talento seguro e
definia, dessa forma, o possível futuro do rapaz. Por outro lado, coexistia no
coração do velho soldado uma vaga pontinha de decepção.
«Seguramente», dizia o tio Máximo, «que a arte musical é
uma força prodigiosa, considerável, que faculta o meio de conquistar as massas.
É possível que esta criança cega faça acorrer centenas de damas e de snobs
elegantes... Que lhes toque valsas e nocturnos e os obrigue a chorar de emoção.
Mas, que diabo! Não foi isso que ambicionei para ele. No entanto, que fazer?
Que quereis que faça um pobre cego como ele?... Não lhe resta senão sujeitar-se
à sua sorte e fazer o que puder...»
Passado tempo, o tio Máximo principiou a enervar-se.
— Eh! Jokhime — disse ele uma
noite, entrando, a seguir ao pequeno, na cocheira. Deixa o assobio por uma vez.
Isso serve ainda para os garotos da rua ou para o pastor nos campos; mas para
ti, que já és um mujique, um adulto, embora essa estúpida Maria te tenha
transformado num autêntico vitelo... Pff! Até se tem vergonha, palavra, de
olhar para ti. Uma rapariga qualquer despediu-te e ficaste um molanqueirão.
Apitas toda a noite, como uma codorniz, que é capaz de cantar toda a vida.
Escutando esta longa tirada do mutilado, que o olhava com
ar enfadado, Jokhime sorria no escuro da cavalariça; e somente a alusão aos
rapazes da rua e ao assobio do pegureiro o irritou um pouco.
— Não diga isso, senhor — replicou ele. Uma flauta como a minha não a encontrará em parte nenhuma da
Ucrânia ou mesmo entre os pastores. Tem razão, toda essa gente para aí mal sabe
assobiar; mas eu... Além disso, basta-lhe só esperar
um pouco.Tapou com os dedos todos os buracos do instrumento e
percorreu a oitava inteira duas vezes seguidas, admirando ele próprio o som
cheio e modulado. O tio Máximo escarrou.
— Mas escuta... Palavra que és estúpido por uma vez...
Perdeste a cabeça e vais cada vez pior, meu velho. Para que falas tu da tua
flauta? Tudo isso nada vale, nada... as flautas e as mulheres, incluindo a tua
Maria. Farias melhor em nos cantar uma canção, se é que sabes, bem entendido,
uma canção antiga. Eh!O tio Máximo, ele próprio ucraniano, homem simples e
franco, colocava-se em pé de igualdade com os mujiques e os criados. Chegava
muitas vezes mesmo a gritar e a injuriar, mas de uma maneira tão bonacheirona
que ninguém lhe queria mal e toda a gente o tratava com o maior respeito, ainda
que sem cerimónia.— Para quê? — respondeu Jokhime
à sugestão do tio Máximo. — No meu tempo cantava, e menos mal.
Mas pode muito bem acontecer que as nossas canções de mujique nada falem do
vosso gosto do senhor, nem — notou ele, troçando
ligeiramente do seu interlocutor.— Não digas asneiras! — retorquiu
o tio Máximo. — Não há comparação entre uma canção e uma flauta, com a
condição, é claro, de se cantar bem. Queres, meu menino — disse, dirigindo-se a Pedro —, que ouçamos a cantiga de Jokhime? O que eu
não sei, é claro, é se tu a compreenderás.
— E será uma canção de escravos? — perguntou o pequeno. — Eu conheço a língua.
Máximo suspirou. Romântico puro,
sonhava sempre com a liberdade de todo o mundo.
— Não, menino. Não são cantigas de escravos. Pelo
contrário, são canções de um povo forte, vigoroso e livre. Teus avós pelo lado
materno cantavam-nas nas estepes que limitam o Dnieper, o Danúbio, o mar Negro.
Pois bem: um dia virá em que hás-de compreender. Mas, por agora — acrescentou, sonhador —, por agora, receio outra coisa...
Na verdade, o tio Máximo temia uma outra espécie de
incompreensão. Acreditava que, para falar directamente ao coração, as fortes
imagens das canções, evocando a epopeia gloriosa do seu país, deviam ser
infalivelmente apoiadas em impressões visuais. Receava ainda que o cérebro
obscurecido da criança não fosse capaz de apreender a linguagem cheia de cor da
poesia popular.Tinha esquecido completamente nesta ocorrência que os
velhos poetas populares, os cantores ucranianos e os tocadores de bandurra eram
outrora, na sua maior parte, cegos. Efectivamente, muitas vezes, a desgraça ou
a invalidez obrigavam as pessoas a lançar mão de uma lira ou de uma bandurra e
a pedir esmola. Mas não eram os mendigos e os profissionais de voz nasalada que
consagravam a vida inteira a esta arte. A cegueira envolve todo o universo num
véu impermeável, que pesa certamente sobre o cérebro, que oprime e entrava o trabalho.
Apesar de tudo, graças às impressões hereditárias e às reacções obtidas por
outros meios, a imaginação dum cego cria o seu mundo próprio, um mundo triste,
sombrio, povoado de angústia, mas que não é, todavia, destituído de uma poesia
imprecisa, muito particular...O tio Máximo e Pedro sentaram-se sobre um monte de feno.
Jokhime encostou-se sobre o cotovelo, na cama (esta posição era a que mais
convinha ao seu temperamento artístico), e, a seguir à pausa dum instante,
principiou a cantar.Teria sido difícil dizer se a sua escolha foi ocasional
ou instintiva; mas o que é certo é que ela foi muito feliz. Decidiu-se por uma
recordação histórica:
-
Oh! Além, na montanha,
Os ceifeiros fazem a colheita...
Todos aqueles que ouviram uma execução
conveniente desta estranha canção popular, sem dúvida que nunca mais
esquecerão o motivo delicado, pungente, contínuo, lânguido, que parecia
envolvido pela melancolia das reminiscências históricas. Não era narração de
acontecimentos célebres, de batalhas sangrentas, nem de ilustres façanhas, nem
ainda de algum cossaco despedindo-se da bem-amada, nem de incursão ousada, ou
de expedição sobre «gaivotas» descendo o mar azul em direcção ao Danúbio.
Não; era somente uma visão rápida, aparecendo como um relâmpago, das saudades
dum ucraniano — um sonho vago, lembrando um episódio
dum passado que se perde imperceptivelmente numa nebulosa distância. No meio
dum trabalho sombrio, cheio de inquietações quotidianas mesquinhas, o quadro surge
subitamente na imaginação — quadro esfumado, envolto
numa fina gaze, reflectindo aquela tristeza que afasta o velho tempo, tão
querido e tão desesperadamente desaparecido. Desaparecido, sim, mas não sem
deixar vestígios. Não nos falam desse passado os altos
túmulos onde repousam os ossos dos cossacos e donde saem gemidos aflitivos e
dilacerantes?Não é de outrora que nos fala a legenda da canção
popular, cada vez mais esquecida:
-
No alto da colina verde
Fazem a colheita os ceifeiros.
Em
baixo, ao pé da colina verde,
Os cossacos vão, vão...
O tio Máximo esqueceu-se, a escutar a canção impregnada
de tristeza. A imagem sugerida pelo maravilhoso motivo, e correspondente, duma
maneira extraordinária, ao motivo da ária, apareceu no seu espírito, como
iluminada pelos reflexos melancólicos do poente. Nos campos tranquilos da
colina verde desenham-se os corpos dos segadores, inclinados silenciosamente
para os sulcos do arado. E em baixo, sem o menor ruído, passam, um após outro,
destacamentos de guerreiros, desaparecendo nas sombras da
noite que banham o vale.As notas fracas da canção de outrora hesitam, vibram e
calam-se, agonizantes, no ar, para ressoar um instante ainda e para arrancar à
penumbra novidades, figuras sempre inéditas.
A criança escutava com um ar triste, que se tornava
taciturno. Quando a cantiga de Jokhime evocava a colina onde trabalhavam os
ceifeiros, a imaginação forte de Pedro transportava-o imediatamente ao cimo do
rochedo escarpado, que já lhe era familiar. Reconhecia-o ao marulho doce, que
mal se percebia, da vaga que brincava aos pés do enorme pedregulho. Sabia já
também o que eram segadores: ele ouvia claramente o tinir das foices e o ruído
das espigas a cair.Logo que a cantiga evocava o que se desenrolava no fundo
da colina, a mesma imaginação vigorosa do ouvinte cego afastava-o do alto, para
o descer prontamente ao vale.O tilintar das foices cala-se, mas a criança sabe que os
segadores estão sempre lá, na colina, que permanecem onde estavam ainda havia
pouco e que se ele os não ouve é porque estão lá em cima, muito alto, tão alto
como os pinheiros, cujo murmúrio precipitado ele ouvia quando estava de pé, em
baixo, junto ao rochedo. Lá, para além do ribeiro, retine o matraquear igual e
serrado dos cascos dos cavalos. Um rumor impreciso ecoa lá em baixo, nas trevas, de roda
da colina. São «os cossacos que vão, vão...».
Ele sabe também o que é um cossaco. O velho Fedko, que
vem, de tempos a tempos, de visita ao domínio, é conhecido por toda a gente como
o «velho cossaco». É mesmo assim que lhe chamam. Ele toma muitas vezes — oh! muitas vezes! Pedro nos
joelhos, acaricia-lhe os cabelos com a mão trémula. Um
dia o rapaz, segundo o hábito, pôs-se a tactear-lhe o rosto e, com os dedos
sensíveis, descobriu rugas profundas, longos bigodes caídos e lágrimas senis
deslizando pelas faces.É assim que, escutando a canção arrastada, a criança
figura os cossacos lá em baixo, ao pé da colina. Estão a cavalo; têm também
grandes bigodes e são também curvados, também velhos como Fedko. Avançam, como
sombras vagas na noite; e, à maneira de Fedko, choram, não se sabe porquê; e é
talvez por isso que, ao cimo da colina, assim como sobre todo o vale, flutuam
gemidos tristes, aqueles gemidos magoados da canção de Jokhime...
Basta um olhar ao tio Máximo para notar que, apesar da
sua cegueira, na natureza sensível do pequenito são bem capazes de ecoar as
imagens poéticas da canção.
CAPÍTULO III
Graças ao regime estabelecido pelo plano do tio Máximo, o
ceguinho era, tanto quanto possível, confiado aos seus próprios esforços, o que
não tinha tardado a produzir os mais felizes resultados. Em casa não tinha
impressão nenhuma de ser vigiado; passeava por toda a parte com passo seguro,
arrumava ele mesmo o seu quarto e guardava as suas coisas.
De resto, o tio Máximo ocupava-se dos exercícios físicos
da criança, que dispunha dum grande sortido de aparelhos de ginástica. Quando
Pedro fez 6 anos, o tio Máximo presenteou-o com um cavalinho muito manso. Ao
princípio, a mãe não concebia o seu filho cego montado a cavalo e considerava
uma rematada loucura a ideia fantástica do irmão. Mas o inválido pôs em jogo
toda a sua influência, e, ao fim de dois ou três meses, Pedro galopava
alegremente ao lado de Jokhime, que só o orientava nas voltas.
A cegueira não lhe impedia de forma nenhuma um
desenvolvimento físico normal; e, assim, a sua repercussão no moral era
consideravelmente enfraquecida. Para a sua idade,
Pedro estava crescido e bem proporcionado; o seu rosto era um pouco pálido, os traços
finos e fortemente expressivos. Os cabelos, negros, sublinhavam ainda mais a
palidez da sua pele, e os olhos, grandes, pretos, pouco móveis, comunicavam-lhe
ao rosto uma expressão singular, que chamava imediatamente a atenção. Um
pequeno vinco por cima das sobrancelhas, o hábito de avançar ligeiramente a
cabeça, sombras de tristeza deslizando de vez em quando, como nuvens, na sua
face bela, era tudo o que exteriormente denunciava a cegueira. Se bem que
manifestasse uma grande segurança nos sítios familiares, via-se nitidamente que
a sua vivacidade natural se encontrava oprimida; o que se revelava, de tempos a
tempos, por bruscos movimentos nervosos.
Presentemente, as impressões auditivas desempenhavam um
papel preponderante na vida do cego e as formas sonoras tornaram-se as formas
principais do seu pensamento, o centro do seu trabalho intelectual. Retinha
duma maneira espantosa as cantigas que lhe cantavam, entregava-se de corpo e
alma aos assuntos que o apaixonavam e, segundo o seu carácter, pintava-os de
tristeza, de alegria ou de sonho. Prestava atenção crescente a todas as vozes
da natureza, que lhe chegavam aos ouvidos, e, misturando impressões vagas,
vindas de toda a parte. Com assuntos conhecidos e familiares,
acontecia, por momentos, amalgamá-los numa espécie de improviso livre, em que
era dificílimo determinar onde acabava o motivo popular conhecido e onde
começava a criação individual. Ele próprio não conseguia, a maior parte das
vezes, isolar nas suas canções estes dois elementos. (Para que se veja a que
ponto eles estavam ligados no seu foro íntimo.) Aprendia rapidamente o que a
mãe lhe ensinava. Ela dava-lhe lições de piano; mas ele continuava a gostar
como dantes da flauta de Jokhime. O piano era, evidentemente, mais rico, mais
sonoro e mais cheio; mas estava preso na sala, enquanto a flauta podia levar-se
para o campo, onde os seus gorjeios se confundiam tão completamente com o suave
murmúrio da estepe que muitas vezes sucedia o pequeno Pedro não dar conta se
era o vento que lhe inspirava de longe ideias vagas e etéreas ou se era ele que
as fazia sair da sua flauta.Esta paixão pela música tornou-se o eixo do seu
desenvolvimento intelectual: completava-lhe e amenizava-lhe a existência. O tio
Máximo aproveitava-a para lhe ensinar a história do país, que perpassava,
diante da imaginação do cego, toda urdida de sons. Interessando-se por uma
canção, travava conhecimento com os seus heróis, com o seu destino, com o
destino da pátria. Daí nasceu o interesse que ele tomou pela literatura. O tio
Máximo começou as primeiras lições quando Pedro completou 9 anos. Os processos
inteligentes do inválido, que se dedicara a aprender especialmente os métodos
próprios ao ensino dos cegos, agradaram imenso ao rapazinho. Introduziram um novo elemento na sua vida,
uma nota definida e clara, que equilibrava as impressões vagas da música.
Assim, o dia de Pedro estava completamente preenchido, e
ele não podia queixar-se da pobreza de impressões. Parecia que, considerando a
sua idade, gozava duma vida plena. Parecia igualmente que não dava pela sua
cegueira.Todavia, uma tristeza funda, nada infantil, marcava-lhe o
carácter. O tio Máximo explicava-a pela falta de camaradas e de todo o coração
procurou preencher esta lacuna.Os rapazes da aldeia, quando eram convidados para a casa
dos patrões, sentiam-se constrangidos e não davam toda a medida da sua alegria
natural.Ainda além do quadro a que não estavam habituados, a
cegueira de Pedro embaraçava-os. Olhavam-no timidamente e, juntando-se em
grupo, calavam-se ou cochichavam entre si, desconcertados. Quando os deixavam
brincar sós, no jardim ou nos campos, tornavam-se mais livres e mais atrevidos;
mas verificava-se, ao mesmo tempo, que o pobre cego ficava sempre de lado e com
um ar triste, a escutar o recreio animado dos companheiros.
Por vezes, Jokhime rodeava-se de garotos e contava-lhes
fábulas e contos divertidíssimos. Os aldeõezinhos, que viviam em intimidade com
o estúpido Diabo ucraniano e com as bruxas malignas, completavam as narrações
com reservas próprias bem fornecidas; e em geral as palestras eram muito
animadas. O cego seguia as narrativas atentamente, manifestava por elas um
interesse considerável, mas raramente se ria. Podia-se concluir que a graça da conversa animada lhe ficava inacessível, na sua maior parte; e não havia nisso nada de espantar: era-lhe impossível observar o brilho folgazão que perpassava nos
olhos do narrador, as rugas risonhas, o tremer dos compridos bigodes caídos.
Tempos depois mudaram de caseiro numa propriedade
vizinha. Para o lugar do antigo rendeiro, homem excessivamente irrequieto e
difícil, que estava mesmo decidido a intentar uma acção contra o pacífico pai
de Pedro, veio o velho Sr. laskoulsky com sua mulher. Se bem que os dois
esposos não tivessem, juntos, menos de 100 anos,
estavam casados havia relativamente pouco tempo. O Sr. laskoulsky tinha conseguido juntar, com muita dificuldade, dinheiro suficiente para tomar de
arrendamento uma herdade e tinha sido obrigado a trabalhar como administrador
em casa de pessoas mais ricas do que ele. Quanto à futura Mme laskouslky,
tinha sido forçada também a trabalhar — enquanto
esperava o feliz momento — na qualidade de dama de companhia da condessa
Potoczka.E quando, enfim, chegou o dia do casamento e os recém-casados
entraram de braço dado na igreja, uma boa metade do bigode e do cabelo do noivo
estavam grisalhos e a face pudicamente corada da noiva estava enquadrada em
bandós prateados. Mas isso não constituiu, de forma nenhuma, obstáculo à felicidade
do casal; e o fruto deste amor um pouco serôdio foi uma filha, que era quase da
mesma idade do rapazinho cego. Instalando-se numa idade relativamente avançada
no seu próprio lar, e onde — se bem que
provisoriamente — se podiam considerar em sua casa, a família laskoulsky
principiou a viver uma vida tranquila e modesta, como se desejasse compensar,
pela calma e pelo isolamento, os anos laboriosos e cheios de aborrecimentos
passados sob tectos estranhos.Não tendo sido muito vantajoso o seu primeiro arrendamento,
foram forçados a reduzir um pouco as despesas. Mas logo que chegaram ao novo
domicílio instalaram-se imediatamente segundo os seus gostos e hábitos. No
canto do quarto, ocupado por numerosas imagens, engrinaldadas de hera, guardava
Mme laskoulsky sacos cheios de ervas e raízes, com as quais tratava o marido e
os camponeses e camponesas que a vinham consultar. Essas ervas, as mais
variadas, enchiam o ar dum perfume particular, que penetrava as recordações
encantadoras, trazidas por todos os visitantes daquela casinha asseada, do seu
silêncio, da sua ordem impecável e dos dois velhos, que ali levavam uma
existência calma, pacata e extraordinária para os tempos que corriam.
Rodeado pelos dois velhos, crescia o seu único tesouro,
uma menina de compridas tranças louras e olhos azuis, que impressionava as
visitas pelo ar sério e enérgico que se desprendia de todo o seu ser. Dir-se-ia
que a natureza tranquila do amor tardio dos pais se reflectia no carácter da filha, na sua gravidade de
pessoa crescida, na calma uniforme dos seus movimentos e no ar sonhador e
profundo dos seus olhos azuis. Nunca estava acanhada diante de estranhos,
buscava a companhia de crianças da sua idade e tomava parte espontânea nas suas
brincadeiras. Mas entregava-se a isso com um ar indulgente, como se
pessoalmente não experimentasse a menor necessidade de o fazer. Com efeito, contentava-se absolutamente com a sua própria
sociedade, passeava, colhia flores, conversava com a boneca e mostrava a maior
parte do tempo tanta seriedade e circunspecção que parecia encontrarmo-nos em
presença de uma mulherzinha, não de uma criança.
Pedro estava um dia, sozinho, sentado numa colina
sobranceira ao ribeiro. Punha-se o Sol. Um silêncio absoluto reinava no ar, e
somente de tempos a tempos — abafados pela distância
os mugidos do rebanho, que regressava à aldeia, perturbavam a calma deliciosa
da paisagem. O rapaz acabava de tocar e, deitado na erva, entregava-se
indolentemente ao encanto embriagador daquela tarde de Verão. Ainda havia pouco
que ali estava quando passos ligeiros o arrancaram àquela sonolência.
Descontente, ergueu-se, apoiou-se no cotovelo e prestou atenção. Os passos
pararam junto da colina.Aquele andar era-lhe completamente desconhecido.
— Eh!, rapaz — exclamou de
repente uma voz infantil —, não sabes quem estava aqui a tocar, há pouco?
O cego não gostava que o incomodassem no seu isolamento.
Foi por isso que respondeu, aborrecido:
— Era eu.
Uma exclamação breve, cheia de espanto, foi a resposta a
esta declaração; e, pouco depois, a voz duma rapariguinha ajuntou, num tom de
aprovação simples:— Que bem que tocava! Pedro não replicou ao elogio.
— Mas porque se não vai embora? — perguntou
ele, percebendo que a intrusa permanecia no mesmo sítio.
— Porque me mandas embora? — inquiriu,
admirada, a menina, com voz clara e ingénua.
O som daquela voz doce, de criança, cativou o cego; no
entanto, respondeu no mesmo tom:— Não gosto que me venham ver. A pequenita riu-se.
— Essa agora! Tem graça! Julgas que toda a terra é tua e
que podes proibir toda a gente de passear por ela?
— A minha mamã deu ordem para que ninguém aqui viesse.
— A tua mamã deu essa ordem? — perguntou
novamente a rapariguinha, com um ar pensativo.
— Mas a minha deu-me licença para passear ao longo da
ribeira.O pequeno, bastante mimado pela indulgência geral, não
estava habituado a estas réplicas.
Uma crise de cólera transtornou-lhe o rosto. Levantou-se
e pôs-se a falar precipitadamente, num tom excitado:
— Vá-se embora! Vá-se embora! Vá-se embora!
Seria difícil prever o desenlace desta cena bastante
violenta. Felizmente, nesse momento patético a voz de Jokhime ressoou, na casa
dos senhores, a chamar o pequeno para tomar chá. Pedro deixou rapidamente a
colina.— Ah!, que rapaz tão ruim! — ouviu ele dizer por trás de si, numa exclamação cheia de
indignação sincera.No dia seguinte, sentado no mesmo lugar, o cego
lembrava-se do encontro da véspera. Nesta recordação não havia já nenhum traço
de despeito. Pelo contrário, teria gostado que ela voltasse, aquela menina de
voz tão calma e agradável. Nunca tinha ouvido outra semelhante. As crianças que
conhecia gritavam desabaladamente, riam às gargalhadas, espancavam-se,
choravam, mas nem uma só falava com tanta simpatia. Lamentava-se de ter
ofendido a desconhecida, que certamente não voltaria mais.
Na realidade, passaram alguns dias e a rapariguinha não
vinha. Mas, um dia, Pedro pressentiu os seus passos em baixo, na margem do
regato. Caminhava de mansinho; as pedras pequenas do caminho sussurravam
levemente sob os seus pés, e ela cantarolava uma cançoneta polaca.
— Ouça! — disse o rapazinho
quando ela passou na sua frente. — É você?
A pequena não respondeu.
As pedrinhas faziam ruído sempre sob os seus pés. Na
negligência artificial da sua voz, trauteando a melodia, o rapazinho sentia,
ainda viva, a ofensa que lhe tinha causado dias antes.
Todavia, depois de ter dado alguns passos, a desconhecida
parou. Dois ou três minutos decorreram silenciosamente. Ela brincava com um
raminho de flores campestres que tinha na mão, enquanto Pedro esperava a
resposta. Surpreendeu ele uma variante de desdém premeditado nesta paragem e no
silêncio que se seguiu.— Então não vê que sou eu? — interrogou
ela por fim, com muita dignidade, cessando de brincar com o ramo.
Esta pergunta, tão simples na verdade, acordou um eco
doloroso na alma do cego. Não disse uma palavra; somente as suas mãos,
firmando-se no chão, se agarraram convulsivamente à erva. Mas, duma maneira ou
doutra, a conversa começou, e a pequena, mantendo-se ainda no mesmo lugar e
pondo-se outra vez a brincar com o ramo, perguntou:
— Quem te ensinou a tocar tão bem flauta?
— Foi Jokhime.
— Muito bem. E porque te zangaste tanto?
— Não me zanguei consigo.
— Ah! Então, bem. Nesse caso, também não estou arreliada.
Queres brincar comigo?— Não saberia brincar consigo — respondeu Pedro, baixando a cabeça.
— Não sabes brincar? Ora essa! Porquê?
— É assim...
— Mas não... mas não... Dize-me porquê.
— É assim! — retorquiu ele com
voz mal perceptível e baixando cada vez mais a cabeça.
Nunca lhe tinha acontecido ainda falar da sua cegueira a
alguém; e o tom simples da pequena, insistindo ingenuamente na pergunta,
torturava-lhe o coração.A desconhecida subiu a colina.
— Mas que engraçado tu és!— pôs-se
ela a dizer, com a voz cheia dum sentimento indulgente, e sentando-se ao lado
de Pedro. — É que ainda não me conheces. Quando me conheceres, deixarás de ter
receio de mim. Eu não tenho medo de ninguém... nunca.
Conversava com um à-vontade tranquilo, sem a menor
preocupação, e o rapaz percebeu que ela lançava para o avental um punhado de
flores.— Onde colheu essas flores? — perguntou ele.
— Ali! — disse ela, apontando
com a cabeça na direcção de qualquer sítio atrás de si.
— No prado?
— Não, ali, ali!
— Então, no bosquezinho? Mas que flores são essas?
— Não as conheces? Ouve, tu és um rapaz bem esquisito...
Palavra! Muito esquisito...O pequeno pegou numa flor. Os seus dedos passaram
rapidamente pelas folhas e pela corola.
— É acónito — disse ele. — E
isto é uma violeta.Em seguida quis travar conhecimento da mesma maneira com
a sua interlocutora: agarrou com a mão esquerda o ombro da menina, enquanto a direita lhe deslizava pelos
cabelos e pelas sobrancelhas. Pôs-se depois a percorrer-lhe o rosto com os
dedos, e parava, às vezes, a estudar atentamente os traços desconhecidos.
Mas tudo isto foi feito tão depressa e inesperadamente
que a rapariguinha, ferida pela surpresa, nem teve tempo de pronunciar uma
única palavra. Encarava-o apenas com os seus olhos desmesuradamente abertos,
nos quais se reflectia uma estupefacção que quase tocava o terror. De súbito
percebeu qualquer coisa extraordinária no rosto daquele rapaz. As suas feições
finas e pálidas estavam presas numa expressão tensa, que se não harmonizava com
o olhar imóvel. Os seus olhos fixavam qualquer ponto, sem tomar o menor
interesse pelo que ele fazia, e o reflexo do poente nas suas pupilas era
qualquer coisa de estranho.Desembaraçando o ombro da mão do pequeno, ela deu então
um salto brusco e começou a chorar.
— Para que me fazes medo, grande mau? bradou
com voz irritada através das lágrimas.
— Que foi que eu te fiz?.
Porquê?Ele conservava-se no mesmo sítio, consternado, de cabeça
baixa; e um sentimento esquisito, misto de respeito e de humilhação, enchia
todo o seu ser duma dor que o queimava. Pela primeira vez na sua vida ele
experimentava a humilhação de ser um enfermo. Pela primeira vez compreendeu que
a sua enfermidade era capaz de inspirar, não só compaixão, mas também terror. É
certo que ele não podia perceber completamente a causa desse sentimento; mas,
ainda que vaga e imprecisa, nem por isso esta sensação
era menos dolorosa.A consciência da sua dor aflitiva e do seu desespero
apertou-lhe a garganta. Atirou-se para cima da erva e pôs-se a chorar. Os soluços
aumentavam cada vez mais e convulsões penosas contraíam-lhe
o corpo, tanto mais porque uma altivez inata o obrigava a dominar essa crise de
nervos.A pequena descia, a correr, a colina: mas, ao ouvir
soluçar, voltou-se, impressionada. Notando que o seu amiguinho colara a cara
contra a erva e chorava lágrimas ardentes, comoveu-se muito e, compadecida,
tornou a subir vagarosamente e parou junto dele.
— Bem — disse ela baixinho —,
porque choras? Julgas que me vou queixar de ti? Não chores! Eu não direi nada a
ninguém.As palavras meigas e o tom acariciante da pequena
provocaram uma crise de soluços ainda mais forte. Então ela acocorou-se junto
dele e, passado um minuto, tocou-lhe ao de leve nos cabelos, afagou-lhe a
cabeça e, com a persistência terna de uma mãe acalmando o filho castigado,
levantou a cabeça do cego e começou a limpar-lhe com o lenço os olhos cheios de
lágrimas.— Vamos... basta de chorar — disse ela num tom grave de mulher. Já há muito que não estou
zangada... Bem vejo que estás arrependido de me teres
feito medo... Então?— Eu não quis fazer-lhe medo — respondeu ele com um suspiro profundo, desejoso de abafar, enfim, a sua crise.
— Bem, bem. Não estou zangada. Não tornas a fazer isso,
pois não?E ergueu-o do chão, esforçando-se por sentá-lo ao seu
lado.Ele submeteu-se. Estava agora na posição anterior, com a
cabeça virada para o ocidente; e quando a pequenita encarou de novo o seu rosto
iluminado pelos raios avermelhados do Sol ainda lhe pareceu mais estranho. Os
olhos, sempre cheios de lágrimas, permaneciam imóveis. As feições continuavam
nervosamente contraídas e um pesar profundo, esmagador, que nada tinha de
infantil e que o penetrava todo, impressionou-a vivamente.
— És muito esquisito, apesar de tudo...— disse por sua vez, compadecida e distraída.
— Não... não... não sou esquisito, não — respondeu ele com um trejeito choroso. Digo-lhe que não sou esquisito... Eu...
eu... sou cego.-Cé...é...go! — gritou ela com voz
vibrante e lenta, que tremia, como se aquela palavra triste, pronunciada tão
docemente por Pedro, fosse um golpe irresistível para o seu coraçãozinho de
mulher. — Cé...é...go! — repetiu ela. E a sua voz
tremia ainda mais, como se procurasse defender-se do sentimento de piedade que crescia
em si; e abraçando de repente o pescoço do rapaz, encostou a sua cara à dele.
Impressionada por aquela inesperada e terrível
descoberta, não conseguiu forças para ficar calma; e, transformada bruscamente
numa criança entristecida e abandonada na sua desventura, começou, por sua vez,
a chorar lágrimas ardentes...Decorreram alguns minutos de silêncio. A menina deixou de
chorar e só suspirava profundamente ou soluçava de tempos a tempos. Com os olhos húmidos, contemplava o Sol, que lhe dava a impressão
de rolar na atmosfera incandescente do poente e de se enterrar com saudade na
barra escura do horizonte. Uma vez ainda, brilhou a tira dourada do círculo de
fogo, depois brotaram duas ou três centelhas ardentes, e, subitamente, os
contornos sombrios da floresta distante destacaram-se numa linha azul e
contínua. Uma vibração fresca subia do ribeiro; e a paz branda da tarde que caía reflectia-se no rosto do cego, que estava sentado, de
cabeça vergada, e parecia espantado deste testemunho de compaixão calorosa.
— Que pena... — disse por fim a pequenita, continuando a
soluçar.Dir-se-ia que queria assim explicar a sua fraqueza.
Em seguida refreou-se um pouco e tentou mudar de
conversa, encontrar um assunto neutro, que pudessem tratar com indiferença.
— O solzinho foi-se embora — murmurou ela com ar pensativo.
— Não sei como ele é! —respondeu ele cheio de tristeza — Sinto-o somente.
— Não conheces o solzinho?
— Não...
— E a tua mãe... também a não conheces?
— Sim, conheço a mamã. Conheço os seus passos sempre,
mesmo de longe.— Sim, sim, é certo. Eu reconheço a minha de olhos
fechados.A conversa tornou-se mais calma...
— Sabe — e o cego começou a
falar com certa animação —, sabe que sinto o sol e sei muito bem quando ele se
esconde?— Como sabes isso?
— Porque... tu compreendes... Eu mesmo, não sei porquê,
nem como...— Ah!... — disse a menina, muito
satisfeita, evidentemente, com esta resposta; e ambos se calaram.
— Sei ler — disse primeiro Pedro
— e, dentro em pouco, vou aprender a escrever com uma pena.
— Mas como é que...? — começou ela, e calou-se logo, confusa, não desejando
continuar este interrogatório delicado. Mas ele compreendeu bem.
— Leio no meu livro — explicou —, com a ajuda dos dedos.
— Com a ajuda dos dedos?
Calcula! Eu, por exemplo, nunca saberia ler com os dedos. Mesmo com os olhos,
leio mal. Meu pai diz que as mulheres só muito pouco compreendem as ciências.
— Sei ler mesmo francês... sim...
— Mesmo francês! E sempre com os dedos? Então tu és muito
inteligente! — exclamou ela num tom de admiração
sincera. — Mas ouve, eu tenho medo de que arrefeças. Olá!,
que nevoeiro por cima da ribeira!— E tu?
— Eu? Não tenho receio por mim. Que me poderia acontecer?
— Pois bem!... Também eu não tenho medo. É possível que
um homem se resfrie mais facilmente do que uma mulher? O tio Máximo diz que um
homem não deve temer nada, nem frio, nem fome, nem trovoada, nem escuridão, nem
nada!— Máximo? É aquele homem que anda de muletas? Já o vi. É
medonho!— Não é, não! Não é medonho. Pelo contrário, é muito bom.
— Não, é medonho — insistiu,
convencida, a pequenita. — Não sabes porque não vês.
— Mas como é que eu não havia de o conhecer? É ele que me
ensina tudo!— Bate-te?
— Ele? Nunca me bateu, nem grita
nunca comigo. Nunca...— Está bem. Seria possível bater num rapaz cego? Era um
grande pecado.— Mas é que ele não bate em ninguém disse Pedro um pouco
distraído, porque o seu ouvido apurado acabava de perceber os passos de Jokhime.
Com efeito, o robusto arcabouço
do ucraniano desenhou-se, ao fim dum instante, na pequena cadeia de colmas que
separavam a herdade do riacho, e a sua voz desdobrou-se no silêncio do
entardecer:— Eh... h... h... Pedro... o... o...
— Estão a chamar-te — disse a
rapariguinha, levantando-se.— É verdade... mas não me queria ir daqui embora.
— Vai... Amanhã virei ver-te. Estão à tua espera, e de mim também, com
certeza.A pequenita cumpriu a palavra, e talvez mais cedo do que
Pedro esperava.Na manhã seguinte, quando, como de costume, ele fazia no
quarto os seus exercícios em presença do tio Máximo, levantou de repente a
cabeça, escutou um momento e disse, alegre:
— Deixe-me ir lá fora um minuto apenas. A menina veio,
está lá.— A menina? Qual menina? — disse, admirado, o tio
Máximo, que seguiu o pequeno até à porta da saída.
Na verdade, a pequena com quem Pedro na véspera tinha
travado conhecimento vinha a entrar pelo portão do pátio. Logo que viu Ana
Mikhailowna, dirigiu-se para ela com ar decidido.
— Que queres, minha querida? — perguntou a mãe de Pedro, julgando que ela tivesse vindo
fazer um recado.Muito séria, a mulherzinha estendeu-lhe a mão e
perguntou, por seu turno:— É aqui que mora um rapaz cego? É aqui?
— Sim, pequenina, é aqui — respondeu a senhora, admirando os olhos claros e o ar desembaraçado da visita.
— É que, minha senhora... a minha mãe deu-me licença para
o vir visitar. Posso vê-lo?Justamente neste momento, Pedro correu para ela, enquanto
o tio Máximo aparecia na escadaria.
— É a menina de que te falei — disse o rapaz ao saudar a nova amiga. — Mas eu estava a fazer os meus
exercícios neste momento...— Por esta vez, o tio Máximo dá-te licença. Eu peço-lhe.
Entretanto, a pequena, que estava ali como na sua casa,
dirigiu-se ao tio Máximo, que, a coxear nas muletas, vinha ao seu encontro.
Ela estendeu-lhe a mão e disse, num tom de aprovação
indulgente:— É muito bonito da sua parte não "bater num rapaz
cego. Ele disse-mo.— É possível, querida senhora! — exclamou,
com importância cómica, o tio Máximo; e recebeu na larga manápula a mãozinha da
menina. Estou infinitamente reconhecido ao meu aluno por dispor bem a meu favor
uma pessoa assim tão encantadora, minha querida menina.
E riu-se, acariciando a pequenina mão feminina que ele
retinha na sua. Entretanto, a rapariga continuava a encará-lo com o seu olhar
franco, o que a levou a vencer dum golpe o coração misógino do velho inválido.
— Repara! — disse ele,
dirigindo-se à irmã; e um sorriso estranho esboçou-se-lhe no rosto.
— O nosso rapaz começa a criar relações próprias. E deves
reconhecer, Aninhas, que, apesar de cego, fez uma escolha que não é má de todo,
não achas?— Que queres dizer com isso? — perguntou, severa, a senhora, corando um pouco.
— São tolices, e mais nada! — respondeu
o irmão, percebendo que acabava de tocar num ponto sensível e de descobrir o
pensamento secreto que se agitava no coração previdente da mãe.
Ana Mikhailowna corou ainda mais e, inclinando-se
vivamente, beijou a pequenita com um transporte de ternura apaixonada.
A criança aceitou esta meiguice tão violenta como inesperada, conservando
sempre a mesma expressão franca, se bem que um pouco admirada.
A partir deste dia estabeleceram-se as mais estreitas
relações entre a casa do rendeiro e o castelo Popelsky. A rapariguinha, que se
chamava Evelina, vinha todos os dias e, passado tempo, tornou-se aluna do tio
Máximo.Ao princípio esse plano de «escola mista» não agradou
muito ao Sr. laskoulsky. Primeiro, achava suficiente para uma mulher saber dar
a roupa ao rol e ter em ordem o caderno das despesas. Segundo, como católico
fervoroso, estava absolutamente convencido de que o tio Máximo tinha procedido
muito mal guerreando os Austríacos, contra a vontade bem expressa do papa.
Enfim, a sua mais firme convicção era de que o bom Deus existia e que, sem
dúvida, havia de punir lá em cima o tio Máximo.
No entanto, depois de se ter aproximado um pouco deste,
foi levado a reconhecer que esse homem herético e conflituoso era uma pessoa
muito agradável e um espírito dos mais nobres, o que acalmou um pouco a sua
animosidade contra ele.Contudo, havia ainda uma certa inquietação no fundo da
alma do velho nobre polaco; e foi por isso que, levando a filhinha para a
primeira lição, achou bem dirigir-lhe uma
alocução solene e um pouco empolada, que, aliás, visava mais o honrado
professor do que Evelina.— Ouve, minha filha, ouve o que te vou dizer — começou ele, agarrando a pequenita pelo ombro e olhando o
seu futuro professor. — Não te esqueças nunca de que temos o nosso Deus no Céu
e que o Santo Padre, o papa, que habita em Roma, é o seu representante na
Terra. Sou eu, Valentim laskoulsky, que to digo; e tu deves acreditar-me,
porque sou teu pai. Et primo.Aqui lançou outro olhar bem expressivo na direcção do tio
Máximo, que não se mexia.Ele sublinhava o seu latim, desejoso, evidentemente, de
fazer compreender que não lhe eram estranhas as altas ciências e que, chegada a
ocasião, seria bem difícil enganá-lo.
— Secundo, sou um pobre polaco, cujas armas, além de uma
mó e de uma pega, ostentam uma cruz sobre um fundo azul; o que quer dizer
muito. Os laskoulsky, cavaleiros respeitados, trocaram, por mais de uma vez, as
espadas pelos missais e interpretaram sempre, e não muito mal, os negócios do
Céu. Eis uma outra razão, portanto, para ter toda a confiança em mim. Pois bem! Quanto ao
resto, quer dizer, quanto à orbis terrarum, obedece a
tudo o que te disser o Sr. Máximo latzenko e aprende bem a ciência.
— Não tenha medo, Sr. Valentim — respondeu sorridente o tio Máximo a esta introdução de boa fé. — Não recruto
meninas para o exército de Garibaldi. Nada receie.
O ensino em comum aproveitava muito às duas crianças.
Pedro ocupava sempre o primeiro lugar, mas isso não excluía uma certa
concorrência. Além disso, o rapaz ajudava por vezes a sua camaradinha a fazer
os exercícios, enquanto ela, por sua vez, encontrava muitas vezes maneiras
felizes de lhe explicar o que, para ele, era quase incompreensível; sem falar
em que a presença de Evelina comunicava aos seus estudos qualquer coisa de
singular e dava ao seu trabalho intelectual uma agradável excitação.
Em suma, esta amizade era um verdadeiro dom do destino
benfazejo. Agora o rapaz não procurava o isolamento; tinha encontrado uma
concordância que não podia alcançar na amizade das pessoas crescidas; e mesmo
nos momentos da mais completa serenidade moral gostava do seu convívio. Iam
sempre juntos para a pequena colina ou para o ribeiro.
Quando ele tocava, ela escutava, a transbordar de admiração
ingénua. Quando ele punha a flauta de lado, ela transmitia-lhe as suas
impressões de criança, extremamente vivas, acerca da natureza que os rodeava.
É certo que ela não sabia traduzir essas impressões
plenamente, visto não dispor para isso do vocabulário necessário; mas, em
compensação, Pedro apreendia nas suas descrições espontâneas, e, sobretudo, no
seu tom, o colorido individual do fenómeno que ela lhe pintava.
Assim, por exemplo, quando ela lhe falava do crepúsculo,
cobrindo a Terra, com uma noite negra e húmida, ele parecia
compreender as trevas a subir, no acento da sua voz que perdia pouco a pouco a
força. E quando, por outro lado, ela lhe dizia: «Ai que cerração aí vem, que
nevoeiro tão escuro!», ele sentia, de repente, uma espécie de sopro frio e
percebia na sua voz como que um ruído medonho dum monstro, a rastejar, nas
esferas distantes do Céu.
CAPÍTULO IV
Há seres que se diria predestinados para as doces
vitórias dum amor, ligado estreitamente aos desgostos e inquietações contínuas;
seres para quem as angústias nascidas das penas dos que vivem perto de si
constituem a sua atmosfera própria, a sua necessidade orgânica. A natureza
dotou-os antecipadamente de calma, sem a qual a vitória quotidiana é
impossível. Previamente, tornou-os sensatos; e com o cálculo dos seus
entusiasmos pessoais, das ambições da sua vida individual, submete-os ao traço
predominante do seu carácter. Por vezes, estes seres dão a impressão de serem
demasiadamente razoáveis, destituídos de sentimento.
Tornam-se surdos aos afectos apaixonados da vida pecadora
e seguem pelo austero caminho do dever, com o mesmo ar calmo que manifestariam
na senda da mais venturosa felicidade pessoal. Parecem frios e majestosos, como
os cumes nevados das montanhas.A trivialidade mundana anda de rastos aos pés; os
mexericos e as intrigas caíam-lhes dos vestidos brancos de neve,
tal como os salpicos de lama suja das asas dum cisne...
A companheira de Pedro apresentava justamente todas as
características deste tipo que a vida e a instrução nos dão muitíssimo
raramente. Como o talento, como o génio, é um apanágio de seres preferidos
entre os eleitos, e revela-se muito cedo.
A mãe da criança cega notava perfeitamente a felicidade
com que o destino presenteara o filho. O tio Máximo compreendia-o também e
pensava que o seu aluno dispunha agora de tudo aquilo que até à data lhe tinha
faltado e que para o futuro o desenvolvimento espiritual de Pedro avançaria num
passo suave e igual, que nada poderia deter.
Foi um erro fatal...
Dada a tenra idade de Pedro, o tio Máximo pensava que era
ele sozinho a dirigir o desenvolvimento moral do pequeno e que, mesmo que este
desenvolvimento não se produzisse sob a sua influência pessoal directa, não era
menos certo que toda a transformação, toda a conquista neste domínio, não se
podiam dar sem a sua intervenção.E foi só neste momento da vida da criança, transitório
entre a infância e a adolescência, que o velho garibaldino verificou toda a
instabilidade das suas respeitáveis fantasias pedagógicas.
Quase cada semana trazia qualquer coisa de novo, por
vezes absolutamente inesperada num cego; e quando o tio Máximo se esforçava por
encontrar as origens de tal ou tal nova ideia ou concepção, manifestada
subitamente pela criança, só encontrava confusão.
Uma força desconhecida, incompreensível, se manifestava
livremente no mais íntimo da alma infantil e fazia brotar as expressões
inesperadas dum desenvolvimento espiritual absolutamente independente.
E com um sentimento de veneração a apossar-se dele, o tio
Máximo só tinha de se inclinar diante dos processos misteriosos da natureza,
que interferia assim com o seu trabalho pedagógico. Estas impressões
espontâneas, estas descobertas inesperadas, pareciam proporcionar ao pequeno
conhecimentos que a experiência pessoal não teria podido dar-lhe: e Máximo
pressentia nisto o laço indissolúvel dos métodos vitais, que, dispersando-se em
milhares de etapas, abraçam, um após outro, os períodos sucessivos de vidas
humanas separadas.Ao princípio, a comprovação deste facto desconcertou o
tio Máximo. Notando que não era sozinho a governar o espírito da criança e que
esse espírito era influenciado por qualquer coisa independente dele,
inquietou-se pela sorte do seu pupilo, consciente de que um grande número de
questões, dada a cegueira de Pedro, lhe podiam causar sofrimentos constantes,
que nada conseguiria acalmar. E esforçava-se por encontrar a origem dessas
fontes, que mandavam, sabia Deus donde, a fim de as calafetar para sempre, a
bem do rapaz. A mãe também reparara
nestes fenómenos inesperados. Uma manhã, Pedro correu para ela muito agitado.
— Mamã, mamã —gritou —, vi um
sonho!— E então que viste tu, meu querido? — perguntou
ela com voz trémula e cheia de tristes conjecturas.
— Vi no meu sonho que te tinha visto... a ti e ao tio
Máximo e também... que tinha visto tudo, tudo...
todos... Como era lindo, mamã querida!... Como era lindo!...
— E então que viste mais? Dize, meu menino.
— Não me lembro.
— Mas lembras-te de mim?
— Não — respondeu o rapaz,
pensativo —, não... Esqueci-me de tudo. E, todavia, eu vi. Palavra... eu vi — acrescentou depois de um curto silêncio. E, de repente, o
rosto alterou-se-lhe e uma grande lágrima correu dos seus olhos mortos.
Repetiu-se isto muitas vezes; e sempre a seguir a
semelhantes sonhos Pedro tornava-se mais triste a agitado.
Um dia, quando atravessava o pátio, o tio Máximo ouviu
uns estranhos exercícios musicais que vinham do salão, onde geralmente Pedro
recebia lição de música. Compunham-se de duas notas. Ao princípio, na saraivada
de pancadas que feriam as teclas, rápidas, contínuas, quase fundidas umas nas outras,
vibrava a nota mais alta do registo superior, que era substituída, bruscamente,
pelo surdo rufar do registo inferior.
Curioso de conhecer estes estudos, o tio Máximo meteu-se
a coxear através do jardim e, passado um minuto, entrou no salão.
Mas, lá, ficou pregado à soleira da porta, impressionado
por um espectáculo absolutamente imprevisto.
O rapaz, que já tinha 10 anos, estava sentado numa
cadeirinha ao pé da mãe. Ao lado, esticando o pescoço e agitando o bico
comprido, estava uma cegonha novinha domesticada, com que Jokhime tinha
presenteado recentemente o seu «pequeno senhor». Pedro dava de comer à ave
todas as manhãs com as suas próprias mãos e a cegonha acompanhava para toda a
parte o seu novo patrão e companheiro. Exprimindo uma atenção intensa, Pedro,
com um braço, segurava a sua amiga, enquanto lhe passava carinhosamente a outra
mão ao longo do corpo. Com o rosto ardente e
sobreexcitado e os olhos mais tristes do que nunca, a mãe tocava rapidamente
com o dedo numa tecla, extraindo do instrumento um som alto, que vibrava
longamente no ar. E, curvando-se um pouco no banco, seguia ao mesmo tempo, com
um interesse doentio, a expressão que se reflectia no rosto do filho.
No momento em que a mão de Pedro, ao acariciar as penas
brancas e brilhantes da cegonha, tocava no sítio onde o branco de neve cedia o
lugar, repentinamente, às penas negras da cauda, Ana Mikhaiilowna passava
vivamente, sem transição, a mão para uma tecla diametralmente oposta, e uma nota baixa,
espessa, rolava surdamente no aposento.
Os dois, tanto a mãe como o filho, estavam de tal maneira
absorvidos que não deram pela entrada do tio Máximo; até que este, refazendo-se
um pouco do espanto, interrompeu a sessão com a seguinte pergunta:
— Anica, que significa isto?
A senhora, furtando-se ao olhar perscrutador do irmão,
envergonhou-se, como se tivesse sido apanhada em flagrante delito por um
professor severo.— É que... — começou, confusa — é que... compreendes, Pedro disse-me que percebia uma certa diferença nas cores
das penas da cegonha, mas que não a alcançava completamente. Dou-te a minha
palavra que foi ele o primeiro a falar nisso, e eu entendi que ele tinha razão.
— E então?
— E então... então, nada. Queria somente facilitar um
pouco, explicar-lhe esta diferença de cores, por meio de sons. Não te zangues,
Max. Palavra que me pareceu que era bom para todos.
Esta ideia original chocou a tal ponto o tio Máximo que
no primeiro momento não soube que responder à irmã. Propôs-lhe que repetisse a
experiência e, seguindo atentamente a expressão aplicada do cego, abanou a
cabeça.— Escuta, Ana — disse ele
particularmente à irmã-, não deves provocar nele perguntas a que nunca, nunca,
poderias dar respostas satisfatórias.
— Mas foi ele que fez a primeira pergunta interrompeu Ana
Mikhailowna.— Não quer dizer nada. O rapaz tem de se habituar à
cegueira. Quanto a nós, devemos fazer-lhe esquecer tudo o que se relaciona com
a vista. Pelo meu lado, trato de evitar toda a espécie de apelos exteriores,
capazes de o excitarem e de lhe fazerem pôr questões inúteis, estéreis mesmo.
Se nós chegarmos a desviar estes apelos, a criança não sentirá a lacuna dos
seus sentidos. Por exemplo, nós, que possuímos os cinco sentidos, não sofremos
absolutamente nada por não termos o sexto... Portanto...
— Não, Max, sofremos! — respondeu baixo a senhora.
— Ana!
— Sim, sim! — declarou num tom
obstinado.— Sofremos muitas vezes por não possuirmos coisas que se
não podem alcançar.De resto, segundo o seu hábito, a irmã aceitou as razões
do irmão. Mas desta vez o tio Máximo não teve razão; quando forcejava por
expulsar certos apelos exteriores esquecia completamente os impulsos vigorosos
que a própria natureza introduz no temperamento infantil.
Alguém disse: «Os olhos são o espelho da alma!»
Talvez fosse mais justo compará-los às janelas, pelas
quais as impressões dum universo luminoso, brilhante e multicolor, penetram na
alma. Quem saberia descrever ou definir a parte do nosso moral que se relaciona
directamente com as sensações estritamente visuais? Todo o homem é um anel na
cadeia infinita das vidas que por ele passam, desde as profundezas do passado
até às do futuro. E eis que um acidente fatal tinha querido fechar essas
janelas dos elos a uma criança cega, cuja vida inteira devia ficar mergulhada
numa escuridão completa. Mas resultava daí, por isso, que estavam partidas
todas as fibras pelas quais a alma reage às impressões luminosas? Não, a
sensibilidade interior à luz devia persistir e, apesar das trevas em que se
debatia, esta existência era chamada a ser transmitida às gerações ulteriores.
A criança cega possuía uma alma humana, completa e normal, rica de todas as
suas particulares características; e como toda a particularidade traz em si
mesma o desejo da mais plena realização, a alma sombria do pequenito era
habitada por uma aspiração insaciável de claridade.
Sob a forma vaga de «possibilidades», forças hereditárias
dormitavam, latentes, em qualquer parte, no mistério do seu foro íntimo, e
estavam prontas a correr ao encontro do primeiro raio luminoso que lhe saltasse
aos olhos. Mas as janelas continuavam fechadas, o destino da criança estava
marcado.Jamais ele veria esse raio claro! E toda a sua vida se
passaria na noite!Essa noite estava povoada de fantasmas. Se a existência
do pequeno decorresse no meio de privações e dissabores, talvez que o seu
espírito fosse atraído pelas causas exteriores dos seus desgostos.
Mas as pessoas que o rodeavam afastavam tudo aquilo que o
pudesse entristecer. Asseguravam-lhe o sossego, uma paz ideal, e, então, aquele
mesmo silêncio que no seu coração reinava permitia distinguir-se ainda mais
claramente a sua irritação interior. Na tranquilidade e na noite que o invadiam
erguia-se a consciência, inquieta e incessante, duma necessidade que procurava
realizar-se; e atormentava-o um desejo doloroso, que exigia a acção das forças
sonolentas que nele existiam em potencial, sem encontrar saída.
Daí o número de pressentimentos imprecisos e de impulsos
parecidos com esses desejos de ascensão que todo o homem experimenta na
infância e se manifesta nessa idade por fantasias maravilhosas.
Daí, enfim, esforços instintivos do pensamento infantil, que
se reflectiam nas feições por uma expressão ansiosa e doentia. Estas
«possibilidades» hereditárias, de que não podia tirar utilidade para a sua
vida, das representações visuais surgiam fantasmagóricas na sua pobre cabecinha
e aí circulavam, destituídas de forma, vagas e obscuras, fragmentárias,
provocando-lhe sempre esforços penosos, sem resultados definidos.
A natureza revoltava-se contra o «caso individual» que
violava a lei comum da vida.Ora, se o tio Máximo tinha conseguido desviar todos os
«apelos exteriores», não conseguira nunca refrear o brotar interno duma
necessidade insatisfeita. O mais que podia
fazer, graças à sua previdência, era não despertar prematuramente essa
necessidade, não aumentar o sofrimento do cego. Para mais, o destino trágico da
criança tinha de cumprir-se, com todas as
consequências que o escoltavam.O destino aproximava-se como uma nuvem sombria. A
vivacidade natural da criança diminuía com a idade, à maneira duma vaga que
decresce, cada vez mais, enquanto a disposição do seu espírito melancólico se
desenvolvia, influenciando o temperamento. O riso que espontaneamente rebentava
na sua meninice, a cada impressão nova, mais ou menos surpreendente, só se
ouvia agora muito raras vezes. Tudo que era risonho, alegre e marcado ou
sublinhado pela graça dificilmente o compreendia. Em redor de si, tudo que era
vago, triste, sem causa precisa e melancólico, em meia tinta, finalmente, tudo
aquilo que repercute no ar do Meio-Dia e se reflecte na canção popular,
apreendia-o com uma perfeição admirável. Subiam-lhe sempre lágrimas aos olhos
quando ouvia como «o túmulo nos campos falava ao vento» e gostava imenso de ir
para a campina escutar esta canção pouco banal.
Manifestava-se nele cada vez mais uma inclinação para o
isolamento; e quando, ao aproveitar as horas livres, ia passear sozinho, os
seus parentes procuravam dar uma direcção diferente aos seus passos para não
lhe perturbarem a solidão.Sentado sobre um cabeço na estepe, ou numa colina à
margem do rio, ou, enfim, no rochedo escarpado tão seu conhecido, ouvia o
sussurro da folhagem, o murmúrio das
ervas ou os suspiros longínquos do vento das estepes.
Tudo isto se harmonizava duma maneira singular com o
fundo do seu carácter. Na medida em que lhe era possível compreender a natureza,
era essa justamente que ele compreendia por completo, até ao mais íntimo. Ela
não o atormentava com perguntas precisas e insolúveis ao mesmo tempo. O vento atravessava-o até
ao coração e a erva parecia segredar-lhe
palavras ternas de dó. E quando a sua alma de adolescente, ligando-se à doce
harmonia que o rodeava, se enternecia com as carícias quentes da natureza,
qualquer coisa lhe assaltava o peito e,
ampliando-se, apossava-se progressivamente de todo o seu ser. Comprimia-se então contra a erva fresca e húmida e chorava
docemente, mas sem que nas suas lágrimas houvesse qualquer azedume. Pegava às
vezes na flauta e, esquecendo-se de tudo, improvisava melodias correspondentes
à sua disposição de espírito e à placidez da estepe.
Qualquer rumor humano que passasse bruscamente nesta
atmosfera delicada produzia em Pedro o efeito duma dissonância grosseira e
anormal. Nesses momentos só podia comunicar com uma alma compreensiva, que
fosse verdadeiramente querida; tinha uma: a rapariga loura da sua idade, que
morava na herdade vizinha.Esta amizade fortalecia-se dia a dia e era retribuída com
o maior entusiasmo.Se Evelina lhe insuflava a sua calma delicada, a sua
alegria suave, e lhe fazia conhecer todas as cambiantes do ambiente, Pedro, por
seu lado, dava-lhe... a sua dor. Julgar-se-ia que o primeiro encontro tinha dilacerado
profundamente o coração extremamente sensível da rapariguinha. Retirar o punhal
da ferida seria condenar Evelina a morrer da perda do seu sangue. Logo que o
conheceu na pequena colina da estepe experimentou um sentimento agudo de
compaixão, e, por fim, a presença de Pedro tornou-se-lhe uma necessidade que
não podia dispensar. Tinha a impressão nítida de que, longe dele, a cicatriz
abria, a dor aumentava; e corria então para o cego, para o seu camarada
querido, a fim de apaziguar os próprios sofrimentos com uma comiseração
permanente.Numa noite de Outono estavam sentadas as duas famílias
num banco em frente do castelo, admirando o céu constelado de estrelas, o azul
denso e profundo e a claridade que resplandecia aqui e ali. Como de costume, o
cego estava ao lado da sua amiguinha, perto da mãe.
Havia já um instante em que todos permaneciam
silenciosos. Em torno reinava uma calma absoluta; e só as folhas, animando-se
de tempos a tempos, murmuravam, em segredo, qualquer coisa de inarticulado e
calavam-se em seguida.De súbito, um meteoro resplandecente surgiu de qualquer
parte do céu profundo, traçou um sulco brilhante no azul e deixou atrás de si
um rasto fosforescente, que morria lentamente e quase imperceptivelmente à
vista.Todos levantaram os olhos. Ana Mikhaflovma, que tinha a
mão de Pedro na sua, sentiu-o agitar-se e estremecer.
— Que foi? — exclamou
ele, voltando para a mãe a face alterada.
— Foi uma estrela que caiu, meu querido.
— Ah, sim... uma estrela!... — repetiu,
pensativo. — Eu sei.— Mas, meu filho, como sabes tu?
— perguntou a mãe, denunciando na voz uma dúvida cheia
de tristeza. — Como?— Sim, sim — disse Evelina,
metendo-se na conversa. — É verdade o que ele diz.
Conhece muitas coisas... como isso...
Esta sensibilidade, que se evidenciava mais rica todos os dias,
demonstrava que Pedro se aproximava fatalmente daquela idade crítica que separa
a adolescência da juventude. Não obstante, o seu crescimento produzia-se em
condições bastante favoráveis. Tinha-se mesmo a impressão de que já se tinha
habituado ao seu destino infeliz e que esse estado de alma, estranhamente
equilibrado, em que a tristeza — o fundo normal da sua
existência — se manifestava sem rodeios nem sobressaltos, também, sem
arrebatamentos dolorosos, se adoçara um pouco. Mas era um período de
apaziguamento temporário, e nada mais. Dir-se-ia que a natureza concede de
propósito essas tréguas curtas para que um organismo novo se recolha e se
reconforte, para afrontar uma outra borrasca que se aproxima já impetuosa. É
justamente nos períodos de calma que nascem e surgem problemas novos. Um
pequeno choque é suficiente para que todo o equilíbrio exterior se abale
completamente, tal como o mar sob o golpe súbito de uma violenta rajada.
CAPÍTULO V
Passaram alguns anos.
Nada tinha mudado no castelo: as faias murmuravam como
dantes no jardim, mas a sua folhagem tornara-se mais escura, mais densa. Como
outrora, resplandecia a brancura acolhedora dos muros da casa, mas davam a
impressão de estarem um pouco curvados e mais baixos. Os tectos de palha das
dependências encarquilhavam-se cada vez mais; e a flauta de Jokhime ouvia-se às
mesmas horas, mas com a diferença de que, agora, Jokhime, sempre solteirão e
sempre cocheiro, preferia ouvir o patrão novo tocá-la ou tocar piano.
O tio Máximo estava ainda mais grisalho. Não tendo os
Popelsky outro filho, mantinha-se o cego, como nos primeiros dias da sua
existência, o centro em volta do qual se movia toda a vida do castelo. Este
tinha-se encerrado num círculo muito estreito, contentando-se com a sua própria
vida pacata, que tocava de perto a existência da herdade vizinha, também
tranquila.Desta forma, transformou-se Pedro pouco a pouco em
adolescente; desenvolveu-se como uma flor de estufa, bem abrigada das diversas
e bruscas influências da vida, que seguia a sua rota tumultuosa longe deste
círculo.Como antigamente, o cego permanecia no centro dum
universo obscuro e formidável. Por cima e em volta de si, a noite estendia-se
sem fim... Todo o seu ser fino e sensível em excesso retesava-se, como uma
corda rígida, a cada impressão, e estava pronto a vibrar a todo o momento, tal
como um eco responde infalivelmente ao som que o faz nascer. Esta expectativa
subtil tinha uma grande repercussão no temperamento do cego. Muitas vezes ele
tinha a impressão de que a noite ia estender para si mãos invisíveis e tocar
qualquer coisa que dormitava dolorosamente na sua alma.
Mas a noite bem conhecida do castelo, essa noite doce e
monótona, só lhe fazia ouvir o murmúrio acariciante do velho jardim e só lhe
inspirava pensamentos vagos e calmos. Quanto ao universo, que se manifestava,
estranho, ao longe, o cego somente o compreendia por intermédio dos livros e
das canções. A surdina embaladora do jardim envelhecido, no decorrer contínuo
dos dias sempre iguais e tranquilos do castelo, as narrações dos seus parentes,
só lhe traziam um eco enfraquecido dos rumores e das tormentas da vida
longínqua. E tudo isto se lhe apresentava através duma neblina mágica, como um
conto de fadas, como um sonho...Dir-se-ia que tudo se passava no melhor dos mundos... A
mãe via que a alma do filho, encerrada desta maneira, dormitava
num delírio enfeitiçado, mentiroso, mas tranquilo, e temia violar esta paz,
adquirida pelo preço de tantos desgostos.
Evelina, que se tornara uma senhora quase sem se dar por
tal, contemplava esta calma encantada, com os seus olhos claros, onde se lia,
por momentos, uma espécie de incompreensão ou de incerteza relativamente ao
futuro, mas que nunca eram ensombrados pela mais leve expressão de impaciência.
O pai Popelsky dirigia na perfeição a sua herdade, mas
não se preocupava de forma nenhuma com qualquer coisa que dissesse respeito à
carreira do filho. Gostava dele, mas já estava habituado a que as coisas se
arranjassem por si. Só o tio Máximo, um temperamento completamente diferente,
suportava com custo esta tranquilidade, que ele aceitava somente como um estado
de coisas provisório, que fazia, volens nolens, parte dos seus planos. Achava
bem, mesmo necessário, dar repouso a Pedro, torná-lo forte, para que pudesse
prevenir-se contra os bruscos repelões da vida. Entretanto, para lá deste
ambiente de magia, a vida agitava-se, ardente, em turbilhões.
Mas chegou, enfim, o dia em que o velho professor decidiu
romper o círculo vicioso e abrir a porta da estufa, para deixar entrar uma
corrente de ar fresco.Para principiar, convidou um velho camarada que vivia à
distância de setenta verstas do castelo dos Popelsky. O tio Máximo ia vê-lo uma
vez por outra, mas sabia que agora muita gente nova estava de visita em casa de
Stawroushmko e escreveu-lhe uma carta convidando-os todos.
Aceitaram com o maior prazer. Os velhos estavam desde há
muito unidos por laços de amizade; quanto aos novos, lembravam-se ainda do
nome, outrora célebre, de Máximo lastzenko, portador de certas tradições
liberais. Um dos filhos de Stawroushmko era estudante da Universidade de Kieff,
onde aprendia ciências fisiológicas, muito em moda naquela época.
O outro era aluno do Conservatório de Petersburgo.
Levaram com eles um camarada mais novo, filho dum grande proprietário vizinho.
Stawroushmko era um velhote robusto, de cabelos grisalhos
e longos bigodes cossacos, vestido com umas calças largas, igualmente cossacas.
Trazia presos na cintura um
cachimbo e uma bolsa de tabaco e só falava ucraniano. Rodeado pelos dois
filhos, que vestiam uns curtos sobretudos brancos, sem mangas, e camisas bordadas
ucranianas, parecia-se muito com Tarass Boulba, de Gogol.
Todavia, era absolutamente destituído dos traços
românticos que caracterizam o célebre herói de Gogol. Ao contrário, era um
proprietário técnico de primeira ordem que tinha sabido acomodar-se
perfeitamente ao regime da escravidão e que, suprimida esta,
soubera arranjar-se igualmente pelo melhor nas novas condições.
Conhecia o povo como todos os proprietários, isto é,
conhecia todos os mujiques do seu domínio; todos juntos e cada um de per si.
Conhecia também todas as vacas que cada camponês possuía e quase todos os
rublos da bolsa de cada um.Se não imitava Tarass Boulba a respeito do pugilato entre
pai e filhos, o certo é que havia entre eles querelas constantes e violentas.
Por toda a parte, em casa e em visitas, por um pretexto fútil, discussões
intermináveis estalavam entre o velho e os rapazes. Começavam geralmente por
uma impertinência de Stawroushinko, que troçava dos filhos «idealistas». Estes
inflamavam-se, o pai seguia-os no seu arrebatamento, e era então que se
produzia uma discussão veemente, donde só se retiravam os adversários depois de
muita pancada.Era uma consequência da famosa e clássica oposição entre
os «pais e os filhos», com a diferença de que os fenómenos se manifestavam nos
Stawroushinkos sob uma forma atenuada.
A mocidade, que ia para a escola de tenra idade, só via o
campo durante as férias, aliás bastante curtas; e por isso não possuía
conhecimento concreto e completo do povo que distinguia «os pais». Quando a famosa
vaga do amor pelo povo se apossou subitamente da intelligenzia russa, atingiu
a juventude nas classes mais adiantadas dos colégios. Essa mocidade dedicou-se
logo ao estudo do povo, mas só nos livros. O segundo passo levou-os ao estudo
directo das expressões do génio popular nas suas criações. As visitas dos jovens senhores — vestidos
de elegantes switka brancas e de camisas da mesma cor, para ir a casa dos
camponeses — eram nessa época um facto corrente em todo o Sudoeste. Não se
prestava a menor atenção ao estudo das condições estritamente económicas. Os
rapazes tomavam nota das palavras e da música das canções populares,
ocupavam-se particularmente das lendas locais, comparavam os factos históricos
nos seus reflexos na memória do povo e, em geral, olhavam o mujique através do
prisma poético do romantismo nacional. Os pais também gostariam de proceder
desta forma; mas, apesar de toda a sua boa vontade, não conseguiam entender-se
com os filhos.— Ouve lá, queres ouvi-lo um bocado? — dizia
Stawroushinko ao tio Máximo, com ar astucioso e tocando-lhe no cotovelo, quando o seu filho falava, de face afogueada e o olhar brilhante.
— Como o achas? Repara neste
filho de cão, que fala como se tivesse lido qualquer coisa. Oh! é uma inteligência, apesar de tudo. Mas escuta, homem sábio,
não nos queres contar como o nosso Netchipore te enganou? Vá lá, meu velho, vá!
Os velhos riam à gargalhada, fazendo estremecer os
bigodes, com uma disposição genuinamente ucraniana. Os rapazes coravam, mas não
cediam lugar. Se não conheciam Fedko ou Netchipore de tal ou tal ideia,
distinguiam, em compensação, sinais característicos de todo o povo, que eles
tinham num conceito elevado, humanitário, o único que admite conclusões e
generalizações verdadeiramente largas. Eles abrangem perspectivas longínquas de
horizontes infinitos, enquanto os velhos práticos,
atolados na rotina até ao pescoço, enxergam perfeitamente as árvores, mas não
distinguem a floresta.Não era, porém, nada desagradável ao velho escutar estas
tagarelices.— Vê-se bem que não perdem o tempo na escola — dizia ele, olhando com satisfação o auditório. — Mas, em
suma, eis o que eu quero dizer: o meu Fedko, ainda que simples mujique,
leva-vos e levar-vos-á para onde quiser; e vós segui-lo-eis como os mais estúpidos
bezerros do mundo. Pronto! — E acrescentou: — Quanto a mim, dobrava em quatro
esse valdevinos do Fedko, metia-o na minha bolsa do tabaco e guardava tudo na
algibeira, sem lhe dar tempo sequer de perceber o que se passava. Quer isto
dizer: para mim não passais de uns totozinhos diante de um canzarrão.
Acabava assim neste momento uma das muitas discussões
daquela natureza. Os velhos entraram em casa e, de vez em quando, ouvia-se,
pelas janelas abertas, Stawroushinko contar histórias cómicas que faziam estourar
de riso os ouvintes.Os novos ficaram no jardim. O estudante de Kieff,
estendendo a jaleca ucraniana e baixando para a nuca o boné de peles, deitou-se
na erva, com um à-vontade um pouco livre. O irmão mais velho estava sentado com
Evelina sobre o talude. Vestido de ponto em branco, o mais novo estava ao lado;
e, um pouco desviado, a cabeça baixa e apoiado no parapeito da janela,
sentara-se o cego, que meditava nos assuntos há pouco debatidos.
— Em que pensa, menina Evelina? — perguntou
o Stawroushinko mais novo. — Se não me engano, não lhe escapou nem uma palavra
da nossa discussão. Não é verdade?
— Tudo que disse a seu pai está muito bem, mas...
— Mas... quê?
A rapariga hesitou em responder. Colocou
o trabalho nos joelhos, desembaraçou-o das mãos e, com a cabeça ligeiramente
inclinada, pôs-se a olhar para ele, pensativa. Era difícil distinguir se
meditava na resposta ou se reflectia na escolha do algodão para o bordado.
Entretanto, os rapazes esperavam com impaciência a
réplica. O estudante ergueu-se um pouco sobre o cotovelo e voltou para Evelina
o rosto animado por uma ardente curiosidade. O que estava ao pé dela, fixava-a com um olhar ao mesmo tempo calmo e perscrutador.
O cego mudou de posição, endireitou-se, ergueu a cabeça e voltou as costas aos
assistentes.— Mas... — disse ela baixinho, continuando a acomodar o
trabalho. — Acho que cada um deve tomar o seu caminho na vida...
— Oh, meu Deus! — exclamou
bruscamente o estudante. — Que ponderação! Quer dizer-me quantos anos tem?
— Dezassete — respondeu ela com
simplicidade, ajuntando imediatamente, com uma curiosidade tocante, misturada
de triunfo: — Ora diga, julgava-me mais velha, não é verdade?
Os rapazes riram-se.
— Se alguém me perguntasse a opinião sobre a sua idade,
palavra que ficaria na dúvida entre treze e vinte e três anos. Sim,
sim, é verdade. Às vezes dá-me a impressão duma menina pequena; mas outras
vezes raciocina como uma senhora de idade, com muita experiência.
— Ouça, Gavrilo Petrowitch, trata-se de coisas sérias e
devemos discorrer atinadamente — retorquiu a mulherzinha, retomando o seu
trabalho.Durante um instante toda a gente se conservou calada. A
agulha de Evelina recomeçou a marcha regular no trabalho, enquanto eles
contemplavam curiosamente a rapariga cheia de sensatez.
Evidentemente que Evelina tinha crescido e se tinha
desenvolvido, desde o encontro com Pedro; mas a opinião do estudante a respeito
do aspecto da rapariga era pura verdade. Lançado o primeiro olhar para esta
criaturinha pequena e delgada, tinha-se a impressão de que era uma garota; mas
bem depressa os seus movimentos, lentos e seguros, acusavam o equilíbrio duma
mulher feita. Acontecia a mesma coisa com as feições, que, segundo parece, só
se encontram nas mulheres eslavas. Os traços, finos e regulares, eram
desenhados em linha contínua e firme. Os olhos, azuis, fixavam-nos direitos,
com calma; raramente a cor lhe subia às faces, mas não tinha aquela palidez
ordinária, capaz de desaparecer sob a chama ardente das paixões. Era antes o
branco frio da neve.Os cabelos louros de Evelina, penteados lisos, eram mais
escuros nas têmporas, de mármore, e caíam numa trança pesada, que
parecia atirar-lhe a cabeça para trás quando ela andava.
Também o cego cresceu e atingiu idade viril. Alguém que o
olhasse nesse momento, em que ele estava sentado longe do grupo — pálido, comovido e belo —, ficaria impressionado com esse rosto original, que reflectia tão nitidamente todo o movimento da alma.
Cabelos negros, delicadamente ondulados, caíam-lhe na fronte abaulada, coberta de rugas prematuras.
Tão depressa lhe subiam cores vivas às faces como logo davam lugar a uma
lividez mate. O lábio inferior, um tudo nada pendente,
tremia de vez em quando duma forma estranha; e então as sobrancelhas
estendiam-se, moviam-se, inquietas, e os seus olhos belos
e grandes olhavam o mundo com um ar indiferente e imóvel, comunicando ao rosto daquele
homem ainda novo uma sombra de melancolia singular.
— Então — disse ironicamente o
estudante depois dum curto silêncio — a Evelina julga que tudo que há pouco
dissemos deve ser estranho ao espírito feminino e que o
ambiente das mulheres se limita à esfera estreita compreendida entre o quarto
dos filhos e a cozinha?Uma ironia provocante e bem calculada transparecia nas
palavras do rapaz. Reinou o silêncio em volta durante algum tempo e,
enervada, a rapariga corou.— Vai um pouco apressado nas suas conclusões — murmurou ela. — Compreendo tudo em que falaram e que o
espírito feminino é bem capaz de o apreender. Não me referia há pouco senão a
mim pessoalmente.Calou-se e inclinou-se para o trabalho, tão atenta para a
sua arte feminina que o estudante não ousou continuar o interrogatório.
— Extraordinária, apesar de tudo — balbuciou ele. — Dir-se-ia que elaborou o seu plano de vida, desde o princípio
até à morte.— Nada disso é de espantar, Gavrilo Petrowitch! — ripostou, tranquila, Evelina. — Penso que Ilya Ivanowitch (o
nome do mais novo) tem já traçado o seu plano de vida, e eu sou mais velha do
que ele.— É verdade — respondeu este,
contente com a alusão. — Li, não há muito tempo, a vida do célebre general N.
N.... Ele prosseguiu toda a sua vida segundo o plano firme que elaborou na
juventude: casou-se aos vinte anos, e aos trinta e cinco comandava já um corpo
de exército.O estudante riu, trocista. A rapariga corou de novo.
— Aí está! Você vê bem — disse
ela, passado um minuto, com voz fria e severa. — Cada um no seu caminho.
Ninguém a contradisse. Um silêncio pesado pairou sobre eles,
um silêncio carregado, contudo, duma impressão delicada: todos compreendiam
vagamente que a conversação tocara em qualquer coisa de individual e que,
debaixo daquelas palavras simples e inofensivas aparentemente, uma corda
subtil, extremamente tensa, tinha ressoado em qualquer parte...
E rompendo, de tempos a tempos, este silêncio recolhido,
ouvia-se o murmúrio do velho jardim, que se tornava cada vez mais sombrio e que
parecia mal humorado e hostil.Todas estas conversas e discussões, este fluxo de
problemas novos, palpitantes de esperanças, de expectativas, de opiniões, tudo
isto se precipitava bruscamente, inopinadamente, sobre o cego. Ao princípio,
ele escutava-os com uma expressão de admiração entusiasta; mas, passado algum
tempo, não pôde deixar de perceber que essa onda viva rolava a seu lado sem lhe
tocar.Ninguém lhe fazia perguntas, não interessavam as suas
opiniões; e compreendeu igualmente que era preciso manter-se afastado, numa espécie de isolamento,
tanto mais triste quanto a vida do castelo se animara agora como nunca.
Apesar disso, continuou a prestar atenção àquilo que para
ele era novidade; e as suas sobrancelhas fortemente franzidas e o rosto muito
pálido denunciavam o violento esforço da sua atenção.
Mas era uma atenção melancólica, que ocultava um trabalho
de espírito tão penoso como amargo.
Com os olhos cheios de lágrimas,
a mãe observava o filho. O olhar de Evelina exprimia compaixão e desassossego.
Somente Máximo fingia não compreender o efeito produzido sobre o cego por esta
sociedade turbulenta e convidava os hóspedes, sempre com o mesmo olhar
acolhedor, a voltar ao castelo todas as vezes que pudessem.
Os visitantes prometeram tornar o mais brevemente
possível e partiram. Despedindo-se, os rapazes apertaram amigavelmente a mão de
Pedro. Este respondeu com um entusiasmo espontâneo e ficou atento ao barulho
da carruagem. Em seguida virou-se bruscamente e foi para o jardim.
Após a partida dos hóspedes, tudo se apaziguou no
castelo; mas este silêncio pareceu ao cego impregnado dum tom singular,
desacostumado. Parecia que o próprio ar insinuava que alguma coisa de muito
importante se passava. Nas aldeias, de novo silenciosas e povoadas somente pelo
sussurro tímido das faias e dos lilases, o cego julgava distinguir os ecos das
conversações recentes.Pela janela aberta ouvia também a mãe, Evelina e o tio
Máximo, que discutiam no salão. Na voz da mãe descobria-se sofrimento e
súplica, na de Evelina indignação; e quanto ao tio Máximo, Pedro tinha a
impressão de que ele aparava com tanto ardor como firmeza o ataque das
mulheres. À aproximação do cego a altercação cessou de repente.
Com mão segura e impiedosa, o
tio Máximo abrira a primeira brecha na muralha que cercava o sobrinho. A
primeira torrente, sonora e violenta, tinha sido já arremessada pela abertura,
e o equilíbrio moral do adolescente foi abalado pelo choque formidável.
Agora sentia-se constrangido no seu círculo vicioso. A
repousada calma do castelo era-lhe insuportável; o murmúrio preguiçoso, o
segredar contínuo do velho jardim e a monotonia do letargo do seu espírito moço
cada vez o importunavam mais.A noite começava a falar-lhe com uma voz desconhecida e
feiticeira e povoava-se de súbito de imagens flutuantes, que se juntavam, se
apertavam, se agitavam, cheias,
sempre cheias, duma animação que fascinava.
A noite chamava-o, encantava-o, despertava-lhe os
instintos que dormitavam na sua alma; estes primeiros apelos traduziam-se pela
palidez do seu rosto e por uma dor surda e imprecisa no coração.
Estes sinistros presságios não escapavam aos olhos das
mulheres. Nós, os que vemos, vigiamos os reflexos das emoções sobre as
fisionomias dos nossos vizinhos, e é por isso que aprendemos a dissimular as
nossas próprias emoções. Ao contrário, os cegos estão absolutamente desprovidos
de recursos, por este lado. E lia-se na face pálida de Pedro como num jornal
íntimo deixado aberto num salão...
Uma angústia perturbadora lá estava gravada. As mulheres
notaram que o tio Máximo tinha percebido, mas parecia — julgavam elas que isso entrava nos seus planos; e ambas o consideravam um acto
de violência, ardendo a mãe por defender o filho do seu próprio corpo.
«Uma estufa? Muito bem! E já que ao filho lhe agradava a
estufa, melhor seria que esta situação, por precária que fosse, durasse ainda e
se mantivesse o maior tempo possível, sempre... Havia tanta tranquilidade,
tanta doçura, tanta serenidade...»
Com certeza que Evelina não
exprimia tudo o que lhe ia no coração, mas, passado tempo, mudou a sua atitude
para com o tio Máximo e começou a opor-se, com uma força desusada, a certos
projectos sem grande importância.O inválido observava-a de través, com olhar investigador,
que se chocava por momentos com o de Evelina, irritado e brilhante. Depois meneava
a cabeça, balbuciava algumas palavras, envolvia-se em espirais de fumo mais
densas que o costume, o que acusava o trabalho intenso do seu pensamento; mas
ficava na mesma posição, e, sem propriamente dirigir a fala a ninguém,
disparava sentenças desdenhosas acerca do amor feminino insensato...
Sonhava com a plenitude desejada da existência para
Pedro, e não com uma vã tranquilidade. Sabe-se que todo o professor pretende
fazer do seu aluno seu emulo. O tio Máximo aspirava
para Pedro ao que ele próprio experimentara e tinha deixado — ai dele! — tão cedo, às crises violentas e à luta. Sob que formas?
Não o sabia, mas isso não o impedia de alargar, tanto
quanto lhe fosse possível, os limites das impressões exteriores acessíveis ao
cego, arriscando-se a expô-lo a emoções e mesmo a choques
tremendos... Sentia bem que as duas mulheres queriam outra coisa.
— Galinha choca! — dizia ele
para a irmã à guisa de censura e batendo no chão com as muletas indignadamente.
— Galinha choca!Mas zangava-se raramente, opondo a maior parte das vezes
às razões da irmã um pesar sereno e mais indulgente do que outra coisa. De
resto, mal ficava sozinha com o irmão, Ana Mikhallowna cedia invariavelmente, o
que não queria dizer que a discussão não recomeçasse no primeiro momento oportuno.
Mas as coisas tomavam um rumo muito diferente quando
Evelina estava presente: nesse caso o tio Máximo preferia fazer-se surdo-mudo.
Parecia que uma espécie de luta se travava entre ele e a rapariga e que cada um
deles, em suma, se contentava com estudar o adversário, surpreendendo-lhe o
jogo com muita habilidade. Quando, passados uns quinze dias, os rapazes, acompanhados de Stawroushinko,
voltaram ao castelo, Evelina fez-lhes um acolhimento bastante reservado, se não
frio. No entanto era-lhe difícil opor-se à animação entusiasta da mocidade.
Durante dias inteiros os rapazes vagabundearam pela
aldeia, caçaram nos arredores, escreveram a música das canções dos ceifeiros e
das ceifeiras nos campos; e quando a noite caía toda a
gente se reunia no jardim, num banco, junto da casa dos senhores.
Uma noite, sem que Evelina tivesse tido tempo de reparar, a conversa abordou de novo o tema delicado. Como aconteceu isto? Quem falou primeiro? Nem ela nem ninguém o
poderia saber. Aconteceu, por assim dizer, tão insensivelmente como o pôr do Sol se extinguiu, as sombras da noite se apossaram de todo o jardim e o rouxinol começou a cantar nos arbustos a sua serenata nocturna.
O estudante falava com veemência, com aquela paixão própria da
juventude que se lança ao encontro do futuro desconhecido,
sem calcular nem reflectir.Havia nesta crença do futuro carregado de milagres uma
força particularmente sedutora, a roçar quase irresistível dum desafio
supremo...A rapariga excitou-se, compreendendo que este repto,
talvez sem intenção prévia, era dirigido a ela, e só a ela.
Escutava inclinada para o trabalho. Os olhos
brilhavam-lhe, as faces queimavam-na, cobertas de vermelho vivo, e o coração
batia-lhe apressado. Depois o fulgor dos olhos desapareceu, contraíram-se-lhe
os lábios, o coração principiou a palpitar mais doidamente ainda, e uma
expressão de terror surgiu no seu rosto empalidecido.
Se ela estava amedrontada, era porque uma espécie de véu
escuro se tinha afastado diante dos seus olhos, e por essa clareira se
precipitaram em turbilhão perspectivas longínquas, que se abriam para um mundo
imenso, activo, em efervescência.Sim, este mundo há muito que a atraía.
Ela o sentia duma maneira completa, mas ficava imóvel durante horas e horas,
nas sombras do jardim, num banco isolado, abandonando-se a sonhos
extraordinários. A imaginação dócil apresentava-lhe imagens resplandecentes,
que se perdiam ao longe, onde não havia o mais pequeno lugar para o cego.
Agora este universo aproximava-se de si. Presentemente
não se contentava em a seduzir, mas reclamava-lhe qualquer coisa, exigia
simplesmente que o declarasse legítimo.
Lançou um olhar rápido na direcção de Pedro o coração
apertou-se-lhe. Ele estava sentado, imóvel e pensativo. Todo o seu
corpo parecia entorpecido e não era mais que uma mancha escura nas recordações
de Evelina.«Ele compreendeu tudo... tudo!...» Este pensamento, vivo
como um relâmpago, acudiu-lhe ao espírito e um arrepio de frio percorreu-a toda.
O sangue precipitou-se-lhe no coração e ela sentiu mesmo uma palidez subtil
cobrir-lhe o rosto. Imaginou-se, por um instante, já muito além, nesse
universo longínquo, enquanto Pedro ficava sempre aqui sozinho, de cabeça caída.
Ou não... Ele está além, na pequena colina sobranceira ao rio, ele,
a criança cega, que a tinha feito chorar tanto, naquela tarde...
Então teve medo. E teve a impressão também de que alguém
queria retirar o punhal da sua ferida antiga.
Recordou-se dos longos olhares do tio Máximo. Pronto! Aí
está o que significavam esses olhares silenciosos! Melhor do
que ela própria, conhecia ele a sua disposição de espírito; adivinhava que uma
luta encarniçada era ainda possível no seu coração. Uma luta e uma escolha
também, porque ela não estava nada segura de si.
Mas então, não. Enganava-se o velho tio Máximo! Ela estava segura do primeiro passo a dar, e depois ver-se-ia o que ela
podia ainda tirar da vida...Respirou penosamente, com um esforço visível, como se
retomasse alento depois de um trabalho esgotante, e passeou o olhar em volta.
Não saberia dizer se o silêncio durava há muito, se o
estudante se calara logo ou depois dalgum tempo, ou se continuava a falar...
Olhou para onde Pedro estava sentado havia um minuto...
O cego tinha desaparecido...
Então, dobrando tranquilamente o trabalho, levantou-se
por sua vez.— Peço-lhes desculpa, senhores — disse aos hóspedes —, mas preciso deixá-los sós um momento.
E foi-se ao longo de uma álea escura.
Esta noite estava cheia de inquietação, e não somente
para Evelina. Ao voltar para uma ruazinha onde estava um banco, a rapariga
distinguiu vozes agitadas. O tio Máximo conversava com a irmã.
— Sim, ela preocupa-me agora tanto como ele — disse o velho num tom severo, mesmo rude. Deves pensar que
é uma criança que desconhece absolutamente tudo na vida. Não quero crer que
pretendas explorar a sua ignorância.
Havia lágrimas na voz de Ana Mikhailowna quando respondeu
ao irmão:— Mas ouve, Max... E se... se ela... Que será então do
meu pobre filho?— Sabe-se lá! — declarou o velho
soldado, firme e austero. — Ver-se-á mais tarde; mas, em todo o caso, a
consciência de haver escangalhado a vida de outra pessoa não lhe deve pesar. E
a nós também não. Reflecte nisto, Ana!— ajuntou, um
pouco mais gentil.Pegou na mão da irmã e beijou-a ternamente. Ana
Mikhailowna curvou a cabeça.— Pobre rapaz... Meu pobre pequeno... Teria sido melhor
que nunca a tivesse encontrado...Este gemido caiu tão fracamente dos lábios da mãe que a rapariga
mais adivinhou as palavras do que as ouviu.
Subiu-lhe o rubor às faces e parou, contrariada, à
esquina da álea.Que fazer? Desde que se mostrasse, os dois, irmão e irmã,
compreenderiam que ela acabava de ouvir os seus pensamentos
secretos... Mas, logo depois, levantou altivamente a cabeça. Não
tinha tido intenção nenhuma de os espiar e, de toda a maneira, uma falsa
vergonha não a deteria nunca no seu
caminho. De resto, o velho exagerava... Ela saberia bem vencer as dificuldades da vida.
Desembocou da rua e passou diante deles, que há pouco
falavam dela, com a cabeça levantada e a maior calma. Com
uma precipitação quase involuntária, o tio Máximo afastou as muletas para lhe
desimpedir o caminho, enquanto Ana Mikhailowna lhe lançava um olhar cheio de
muda expressão de afecto e quase também de admiração e de temor.
Parecia que a mãe pressentia que esta orgulhosa rapariga,
que acabava de passar na frente deles com um semblante tão arrogante e
altaneiro, devia trazer ao seu filho ou a felicidade ou a desgraça.
No canto mais arredado do jardim encontrava-se um velho
moinho abandonado. As rodas havia muito que não giravam, o musgo crescia-lhe
nos cilindros e, através dos açudes velhos, a água filtrava-se em delgados
fiozinhos, que murmuravam sem interrupção nem fadiga.
Era o sítio preferido do cego. Ficava lá sentado horas
inteiras, apoiado contra o parapeito da represa, a escutar o pairar das águas,
que ele traduzia para o piano na perfeição. Mas agora não pensava nisso. Agora
caminhava a passos largos vivamente pelo pequeno atalho, com o coração cheio de
amargura, a face torcida pela dor íntima.
Ouvindo os passos da rapariga, parou. Evelina pôs-lhe a
mão no ombro e perguntou-lhe gravemente:
— Dize-me, Pedro, que tens tu? Porque é esse aspecto tão triste?
Voltando-se rapidamente, ele retomou o passeio na vereda.
A rapariga caminhava a seu lado.Ouvia-se uma canção que vinha do castelo:
-
Por detrás de uma montanha escarpada
Voavam águias...
Voavam, gritavam,
Procuravam a presa...
Atenuada pela distância, uma voz jovem e fresca
glorificava o amor, o bem-estar e o espaço infinito; e os seus acentos
vagueavam no silêncio da noite, cobrindo o sussurro lânguido do jardim.
Além havia criaturas felizes que falavam duma vida plena
e rica de sensações...Ela estava com elas, há minutos, embriagada pela ideia
duma vida onde não havia o mais pequeno lugar para ele. Não notara mesmo a sua
partida, e quem saberia dizer quão longos lhe tinham parecido esses momentos de
solidão angustiosa... Estas meditações perseguiam o espírito da rapariga
enquanto caminhava ao lado de Pedro ao longo da álea. Nunca até àquele momento
lhe tinha sido tão penoso e difícil falar com ele e ser a senhora da sua
disposição. Entretanto, ela sentia que, graças à sua presença, a melancolia se
lhe apaziguava pouco a pouco. Com efeito, o andar tornou-se-lhe menos precipitado, o rosto mais calmo. Ouvia a seu lado os passos de Evelina e,
gradualmente, o desespero abrandava, dando lugar a um outro sentimento.
Ele não tinha ainda dado por esse sentimento, mas era-lhe
familiar e submetia-se voluntariamente à sua influência favorável.
— Mas, vejamos, que tens tu? — repetiu
ela.— Nada de extraordinário — respondeu Pedro com amargura. — Parece-me somente que sou de mais no mundo.
A canção que partia da casa calou-se e uma outra ressoou
passado um minuto. Esta era apenas perceptível; agora o estudante cantava uma
douma antiga, imitando o canto terno dos tocadores de bandurra. Parecia que a
voz se abafava completamente, e então uma vaga fantasia apossava-se da
imaginação; mas ao fim dum instante a melodia oculta misturava-se de
novo com o murmúrio da folhagem.Pedro, involuntariamente, parou, prestando atenção.
— Sabes — começou ele com sua
voz triste —, parece-me que os velhos têm toda a razão quando dizem que a vida
é cada vez mais dura. Outrora era mais fácil, mesmo para os cegos. Em vez de
piano, eu tocaria só bandurra, percorreria as cidades e as aldeias. Gente em
bandos viria atrás de mim, para escutar as minhas canções, exaltando a vida e
os feitos heróicos de seus pais e avós. E eu teria então o meu lugar ao sol, o
meu valor. E agora?... Até esse rapazinho de voz tão penetrante — recordas-te? — disse que se
queria casar e comandar um corpo de exército... Ele ousa fantasiar... e eu não
o posso fazer...Os olhos azuis da rapariga dilataram-se de pavor e
cobriram-se de lágrimas.— Tudo isto por causa do Stawroushinko mais novo, que
tagarela sem cessar — disse ela, confusa,
esforçando-se por dar às suas palavras uma aparência de gracejo.
— Sim, talvez — disse Pedro num
ar sonhador; e acrescentou: — Tem uma voz agradável. Ele
é bonito?— Sim, é simpático — confirmou
Evelina com o mesmo ar sonhador. Mas corrigiu-se, dizendo bruscamente, quase
irritada: — Não, não gosto nada dele. É muito vaidoso e a voz também é aguda e
áspera.Pedro ouviu admirado esta
explosão imprevista.A rapariga bateu com o pé no chão e continuou:
— Oh! Tudo isto são tolices, e
nada mais. Sei perfeitamente que o causador de tudo isto é Máximo. Oh, como eu odeio esse Máximo!
— Mas que dizes, Velia? — perguntou
o cego, pasmado. — O que fez ele, na verdade?
— Odeio-o, odeio-o! — repetiu
Evelina, intransigente. — Todos os seus planos e os seus cálculos lhe mataram o
coração. Não me fales dele, não me fales dele, peço-te. Não sei ao certo donde
lhe vem o direito de dispor do destino e da vida dos outros.
Subitamente parou, apertou as mãos finas com tanta força
que os dedos estalaram, e pôs-se a chorar como uma criança.
O cego, com uma compaixão misturada de espanto, tomou-lhe
as mãos. Esta crise de nervos, por parte da sua amiga, habitualmente tranquila
e reservada em extremo, era tão extraordinária e inexplicável... Escutava ao
mesmo tempo os soluços de Evelina e o eco que lhe produzia o choro no coração.
Recordou-se dos anos passados: estava ele sentado numa pequena colina, tão
triste como agora, e ela chorava a seu lado como agora também...
De repente ela libertou o braço e o cego ficou novamente
surpreendido:A rapariga ria.
— Como eu sou tola, meu Deus! E porque é que eu choro?
Enxugou os olhos e disse em seguida, docemente e
comovida:— Não, meu pequeno; sejamos justos: os dois são gentis. E também o que ele
disse é gentil. Mas não para toda a gente.
— E para aqueles que se podem aproveitar disso — replicou o cego.
— Bagatelas! —respondeu ela com ar calmo, se bem que na
sua voz se percebesse ainda o riso e as lágrimas de há pouco. — Consideremos o
tio Máximo, por exemplo: enquanto pôde, lutou pelas suas ideias e agora vive
como a vida o obriga. Nós também...
— Não digas «nós». Contigo é diferente.
— Porquê? De forma nenhuma.
— Como?
— Porque... porque te casarás comigo, não é verdade? E
então viveremos a mesma vida os dois.
Pedro parou, abalado.
— Eu?... Casar-me-ei contigo? Então queres ser minha
mulher?— Mas decerto, decerto! Claro que quero! exclamou ela emocionada e precipitadamente. Mas como tu és
tolinho! Na verdade, nunca pensaste nisso? E, todavia, é tão simples: se não
fosse comigo, com quem te havias de casar?
— Sim, com certeza! — aquiesceu
ele dominado por uma espécie de estranho egoísmo; mas caiu em si imediatamente.
— Escuta, Velia — continuou,
agarrando as mãos dela. — Há pouco ouvimos dizer que as raparigas estudavam,
nas grandes cidades... Diante de ti também podia abrir-se um amplo caminho, mas
eu...— Que queres dizer? Dize.
— Sim... eu sou cego, eu... — concluiu
ele duma maneira absolutamente ilógica.
E lembrou-se de novo da sua infância, dos murmúrios
brandos do ribeiro, do primeiro encontro com Evelina, das suas lágrimas
acerbas, quando ele pronunciou a palavra «cego».
Notando instintivamente que lhe fazia mal como outrora,
abandonou a recordação. Reinou o silêncio durante alguns
instantes, e só a água gemia ligeira e ternamente na represa. Não se ouvia
Evelina, como se tivesse desaparecido. Um estremecimento contraiu-lhe o
rosto, mas ela conteve a emoção e, quando de novo falou, a sua voz ressoou,
descuidada e alegre.— Está bem! Sim, tu és cego. Mas não tem importância
nenhuma — declarou ela. — Desde que uma rapariga ama
um cego, deve forçosamente casar-se com ele. Pois se acontece isso todos os dias,
que queres que eu faça?— Se uma rapariga ama... —repetiu ele pensativamente,
franzindo as sobrancelhas. Parecia sopesar os novos sons da palavra familiar. — Se ela ama? — perguntou
ele outra vez, com uma animação que aumentava.
— Mas com certeza! Tu e eu amamo-nos! Ora repara. Dize
lá: ser-te-ia possível ficares aqui sozinho sem mim,
sozinho, sozinho?Ele fez-se branco de repente; os seus olhos mortos
estacaram, completamente abertos, mais imóveis que nunca. O silêncio reinava
sempre e só a água pairava e tilintava como dantes. Parecia às vezes que este murmúrio
abrandava, para se calar por um instante
completamente; mas aumentava logo e continuava de novo. As cerejeiras ramalhudas segredavam na sua
folhagem escura. Já se não ouvia a canção, mas, em troca, um rouxinol,
dissimulado no açude, principiou a trinar.
— Morreria! — disse Pedro
surdamente.Os lábios de Evelina tremeram, como no dia do primeiro
encontro, e ela balbuciou com esforço, numa voz fraca, infantil:
— E eu também... Sem ti, sozinha... mundo vasto e
distante.Ele estreitou na dele a sua mão pequenina e admirou-se de
que o fraco aperto de mão de Evelina se não assemelhasse em nada aos de outrora.
O suave movimento dos seus deditos reflectia-se agora mais forte que nunca no
íntimo do seu coração.Estranha à Evelina do passado, à sua amiga de infância,
sentia nela agora uma outra rapariga, completamente diferente daquela que tão
bem conhecia. De repente viu-se forte e vigoroso, enquanto ela lhe parecia
frágil e lacrimosa.E então, sob a pressão duma ternura que lhe saltava o
coração, atraiu-a com uma mão e com a outra pôs-se a acariciar-lhe os cabelos
sedosos. Afigurou-se-lhe que neste momento todo o desgosto desaparecia da sua
alma, que mais nenhum impulso ou desejo subsistia e que fora deste minuto nada
mais existia para ele no mundo.O rouxinol, que ensaiava a voz havia algum tempo,
assegurou-se de que estava perfeita e pôs-se a assobiar maravilhosamente e a
espalhar por todo o jardim silencioso os seus gorjeios arrebatadores.
A rapariga agitou-se e, com um gesto tímido, afastou a mão do cego. Este não
resistiu e, largando Evelina, respirou a plenos pulmões. Percebeu que ela
arranjava o penteado. O coração batia-lhe apressado, mas uniforme e
agradavelmente. Sentiu um sangue novo derramar-lhe pelo corpo uma força nova e
irreprimível... Quando, um minuto depois, Evelina lhe disse naturalmente: «Bem,
agora voltemos para junto dos nossos hóspedes», ele ouviu admirado
aquela voz adorada, onde perpassavam sons inéditos para ele.
Os donos da casa e os convidados já estavam sentados no
salão. Só faltavam Evelina e Pedro. O tio Máximo conversava com o velho
camarada, os rapazes mantinham-se silenciosos perto das janelas, largamente
abertas para o jardim. A pequena sociedade estava dum bom humor singular, que
não impedia de se pressentir um vago drama, bem visível para toda a gente.
A ausência de Pedro e Evelina era particularmente
eloquente. Enquanto falava, o tio Máximo não cessava de lançar olhares breves e
um pouco ansiosos na direcção da porta. Ana Mikhailowna, com o aspecto triste e
uma expressão que se diria de culpada, fazia esforços evidentes para ser uma
dona de casa amável e atenciosa, mas só o conseguia de uma forma incompleta.
Sozinho, o Sr. Popelsky, sempre bonacheirão e que começava a engordar
muitíssimo, cabeceava na cadeira à espera do jantar.
Quando, no terraço que ligava o jardim ao salão, soaram
passos, todos os olhares se voltaram atentos para esse lado. No rectângulo de
sombra da larga porta apareceu a silhueta de Evelina e por detrás dela o cego
subia lentamente a escada.A rapariga sentiu imediatamente todos aqueles olhares
fixos e interrogativos. Atravessou o aposento com o seu passo natural, sempre
igual, e quando encontrou o olhar fugidio do tio Máximo retorquiu-lhe com um
fino sorriso e os seus olhos brilhantes num desafio trocista. Ana Mikhailowna
examinava avidamente cada movimento do filho.
O rapaz seguia Evelina sem reparar para onde ela o
levava. Quando o seu rosto pálido e o corpo magro apareceram à entrada da
porta, parou repentinamente no limiar da sala iluminada. Depois avançou e
aproximou-se rapidamente do piano, com o mesmo ar meio distraído, meio
recolhido.Ainda que a música constituísse um elemento quotidiano na
existência pacata do castelo, não deixava, contudo, de ser muito íntima e, por
assim dizer, familiar. Nos dias em que a casa inteira se enchia do ruído e das
canções dos rapazes, Pedro não se aproximava nunca do piano, no qual tocava o
filho mais velho de Stawroushinko, um músico profissional. Resultava desta
espécie de abstenção que o cego ainda mais se apagava neste quadro animado, e a
mãe observava, com uma angústia mortal, a figura do filho a desvanecer-se no
fundo movimentado da alegria geral. Agora, pela primeira vez, ele dirigia-se,
com um passo resoluto, ainda que um pouco inconsciente, para o lugar habitual.
Parecia que tinha esquecido completamente a presença de estranhos em casa. De resto, logo que
os dois entraram no salão, fez-se um tal silêncio que o cego podia muito
facilmente julgar o aposento absolutamente vazio.
Levantando a tampa do instrumento, tocou ao de leve no
teclado e ensaiou alguns acordes rápidos e alados. Teve-se a impressão de que
pedia alguma coisa ao piano ou ao seu próprio estado. Depois, correndo as mãos
pelas teclas, mergulhou-se em meditação e o silêncio da sala tornou-se ainda
mais profundo.A noite olhava, sonhadora, pelas aberturas negras das
janelas. Aqui e ali, folhas verdes, iluminadas pela luz do candeeiro,
espreitavam, curiosas, do jardim para a sala. Toda a assistência, excitada pela
ressonância do piano, que acabava de se calar, e impressionada em parte pelo
sopro de inspiração pouco comum que se
apoderava das faces lívidas do cego, permanecia numa expectativa silenciosa.
Com os olhos mortos levantados
para o tecto, como se prestasse atenção a qualquer coisa, Pedro permanecia
sempre imóvel. Como vagas em movimento, revolviam-se-lhe na alma as mais diversas
sensações. A torrente duma vida, até essa altura desconhecida, abalava-o, como
o mar alto abala um barquito abandonado há muito na ribeira.
O seu rosto reflectia surpresa e interrogação e uma exaltação singular
percorria-o, como fantasma vivo. Os olhos do cego apareciam profundos e
escuros. Dir-se-ia, durante um minuto, que ele não encontrou na
sua alma o que escutava com tão sôfrega atenção. Mas em seguida, se bem que
conservasse o mesmo ar de admiração, e como se não tivesse sentido o que
adivinhava, estremeceu, roçou as teclas e, impelido pela onda nova do
sentimento que o arrebatava todo, abandonou-se inteiramente ao jogo dos acordes
mais correntes, mais sonoros, mais harmoniosos uns do que os outros.
Em geral, é extremamente difícil para um cego fazer uso
da música escrita. Os sinais são feitos em relevo; cada nota é marcada por
cifras particulares, que se dispõem como as linhas dum livro. Para indicar as
notas que compõem um acorde, coloca-se um ponto de exclamação nos intervalos. É
evidente que o cego é obrigado a aprendê-los de cor e para cada mão
separadamente. Donde resulta um trabalho extremamente difícil e muito complexo.
Mas Pedro era auxiliado pela sua paixão nas partes
integrantes deste processo. Depois de ter aprendido algumas passagens para cada
mão em separado, sentava-se ao piano e quando da junção destes hieróglifos em
relevo se compunham, quase inesperadamente para ele mesmo, consonâncias
harmónicas, sentia com isso tanto prazer e achava tão vivo interesse neste
trabalho, aparentemente ingrato, que mudava de aspecto e tornava-se quase
atraente.Todavia, numerosos processos intermediários surgiam,
forçosamente, entre o trecho apresentado no papel e a sua execução. Antes que um
sinal se possa transformar numa parte de melodia, deve passar pelas mãos,
fixar-se na memória e depois efectuar um caminho de retorno para as extremidades
dos dedos que tocam. Demais a mais, a imaginação musical, excepcionalmente
desenvolvida no cego, tomava parte no trabalho complexo do estudo e imprimia ao
fragmento características individuais bastante vincadas. As formas artísticas
que prenderam o sentido musical de Pedro eram justamente aquelas que lhe tinham
preparado o primeiro conhecimento da melodia. Eram igualmente as formas
recentes do tocar da mãe, ou, antes, as formas da música popular, que
repercutiam sempre na sua alma e por meio das quais lhe falava a natureza.
E agora, que o coração lhe batia e rejubilava, ele tocava
um bocado italiano qualquer, e a sua execução, desde os primeiros acordes,
revelou qualquer coisa de tão pessoal que o assombro invadiu os auditores; e,
minutos depois, a admiração apossou-se de toda a assistência sem distinção. Só
o filho mais velho de Stawroushinko, músico de profissão, estudava ainda
longamente a maneira de tocar do cego, forçando-se por interpretar aquele
trecho bem conhecido e analisar a maneira singular do pianista.
As cordas vibravam e retiniam, enchendo o salão e
escoando-se para o jardim tranquilo. Os olhos dos rapazes brilhavam de
curiosidade e de prazer. Com a cabeça inclinada, o pai Stawroushinko escutava a música silenciosamente; e depois, animando-se cada vez mais,
principiou a tocar no cotovelo do tio Máximo e cochichou:
— Eis o que se chama tocar bem! Bravo. Pois então! Achas
que não tenho razão?À medida que os sons tomavam amplidão, o velho altercador
recordava-se de qualquer coisa, talvez da sua juventude, pois os olhos
tornaram-se-lhe brilhantes, corou e todo o seu corpo se endireitou. Levantando
de repente a mão, pouco faltou que desse um murro formidável na mesa; mas
felizmente conteve-se e deixou cair o punho sem produzir o menor ruído. Lançou
um olhar furtivo para os seus rapazes, cofiou os bigodes e, inclinando-se para
o tio Máximo, disse:— Estes fedelhos querem-nos meter no sótão, convencidos
de que já não prestamos para nada... Que mentira! Outrora, nós também, meu
velho, nós também... Eh! Mesmo agora... Não é verdade o que digo?
O tio Máximo, ordinariamente um melómano um pouco frio,
sentia desta vez alguma coisa de novo na música do seu aluno. Envolvendo-se em
baforadas de fumo, escutava o toque de Pedro, abanava
a cabeça e passeava o olhar de Pedro para Evelina e inversamente. Uma vez mais,
o impulso formidável duma força vital directa introduzia-se no seu sistema duma
maneira inteiramente inesperada...
Também Ana Mikhaiilowna lançava à rapariga olhadelas
interrogativas, como se perguntasse donde vinha tudo aquilo. Era então a
felicidade que se manifestava, desvairada, no tocar de Pedro, ou, pelo
contrário, o desgosto?Evelina estava sentada na sombra projectada pelo
abat-jour e só os olhos, maiores e mais escuros que nunca, se distinguiam na
meia obscuridade. Talvez que só ela compreendesse o verdadeiro sentido dessa
música, onde se ouvia a água gemer na velha represa e o murmúrio das cerejeiras
nas áleas banhadas pelo crepúsculo da tarde.
Havia muito tempo que a melodia mudara. Abandonando o
trecho italiano, Pedro entregou-se de corpo e alma à sua imaginação. Havia ali
tudo o que o perseguia nas recordações de minutos antes, quando, sentado, de
cabeça curvada, escutava as impressões e as reminiscências do passado
ressuscitado. Havia ali as vozes da natureza, o ruído do vento, o sussurro da
floresta, os repuxos do rio e um murmúrio vago que morria nos longes
desconhecidos e imprecisos. Tudo isto se entrelaçava e ressoava sobre a trama
desta sensação profunda e perturbadora, que faz nascer no nosso íntimo a
linguagem misteriosa da natureza e que é tão estranhamente difícil de definir.
É aflição? Então porque é tão agradável? E alegria?
Porque é então tão penetrante, tão infinitamente triste?
Por momentos, os sons aumentavam, ampliavam-se,
profundavam-se, e então a figura do músico tornava-se singularmente lúgubre.
Parecia que até ele se admirava da força desconhecida destas novas melodias e
que aguardava ainda qualquer coisa... E parecia que
iam retinir as pancadas mágicas que uniriam todos estes acordes no feixe duma
harmonia vigorosa e esplêndida; e nesse instante o coração dos ouvintes
desfalecia numa expectativa feliz. Mas antes mesmo de subir à altura desejada a
melodia caía, rápida, com um murmúrio choroso,
semelhante a uma vaga a desfazer-se em ressaltos de espuma. E muito tempo
depois da queda ouviam-se notas amargas de incompreensão e de dúvida.
As vezes, o cego interrompia-se por um instante, e então
reinava um silêncio quase absoluto no salão, quebrado apenas pelo sussurro das
folhas no jardim.O encantamento que avassalava os ouvintes e os
transportava para longe, infinitamente longe daquelas paredes modestas,
desvanecia-se bruscamente e a sala tornava-se a fechar, mais pequena ainda do
que era dantes. E a noite olhava, bisbilhoteira, pelas janelas escuras, até que
o músico, retomando força, começou a ferir as teclas.
E de novo os sons aumentavam, firmavam-se e, como se
buscassem qualquer coisa, subiam sempre, em toda a sua plenitude, sempre mais
alto, sempre mais forte. Nos intervalos dos acordes resvalavam fragmentos de
canções populares, impregnadas, uma vezes de amor e de
tristeza, outras vezes de saudades dolorosas e de glória, ou cheias de bravura,
de fé e de esperança. Era assim que o músico cego procurava dar aos sentimentos
formas familiares e conhecidas.Logo que as primeiras notas vibraram, repletas de
lamentos e dum subtil descontentamento, Ana Mikhailowna encarou o filho e
notou-lhe na face uma expressão que lhe pareceu conhecida. Recordou-se do dia
soalheiro duma Primavera distante em que o seu menino estava deitado à borda do
rio, esmagado pelas impressões excessivamente fortes provocadas pela natureza
primaveril. Mas foi só ela que o notou. Levantou-se um tumulto no salão. O
velho Stawroushinko gritava qualquer coisa ao tio Máximo; comovidos, os rapazes
apertavam a mão do músico, profetizando-lhe uma brilhante carreira artística.
— Sim, sim— afirmava o irmão
mais velho. Interpretou duma maneira verdadeiramente notável o carácter da
canção popular. Afirmarei mesmo que não fez senão um com essa melodia, pois
assimilou-a primorosamente. Mas, diga-me, qual era a peça que tocou ao
princípio?Pedro nomeou o fragmento italiano.
— É isso, não me enganei — respondeu o rapaz. — É-me conhecida em parte. Admiro a sua maneira absolutamente
pessoal. Há quem toque melhor, e muito melhor que você, mas ninguém, que eu
saiba, executa esse trecho assim. Como dizer? É uma espécie de tradução da
língua musical italiana para ucraniano. Se há alguma coisa que lhe falta a si,
é uma escola séria... E então...O cego escutava atentamente. Pela primeira vez tornava-se
o centro de toda esta efervescência, destas discussões animadas, e no seu
espírito germinava a consciência orgulhosa da sua força.
Seria possível que estes sons, que há pouco lhe causavam
mais dor e mais sofrimento que nunca, produzissem uma tão forte impressão sobre
os outros? Então... então era capaz de fazer alguma coisa na vida!
Estava sentado na cadeira, os dedos ainda no teclado,
quando sentiu uma carícia quente roçar-Ihe pela mão. Era Evelina que se aproximara
dele e que, apertando as mãos do seu amigo sem que ninguém desse por isso, se
pôs a murmurar, num êxtase de ventura:
— Ouviste? Toda a gente diz que terás o teu trabalho, as
tuas ocupações. Se tu soubesses, se pudesses fazer ideia da impressão que causas
em nós, em nós todos!...O cego estremeceu e levantou a cabeça.
Ninguém no salão se apercebeu desta curta cena; ninguém,
excepto a mãe. A face purpureou-se-lhe, como se fosse ela que recebesse o
primeiro beijo do primeiro amor.O cego permaneceu sempre no mesmo lugar. Lutava tenazmente
contra as sensações inéditas que o invadiam e lhe sugeriam brandamente a
felicidade que o esperava. Talvez que pressentisse igualmente a aproximação da
borrasca, que já subia em nuvens, pesadas e amorfas, das profundidades do seu
ser.
CAPÍTULO VI
Na manhã seguinte Pedro acordou cedo. O seu quarto estava
tranquilo; além de que em toda a casa o movimento do dia ainda
não tinha começado. Pela janela, que ficava aberta toda a noite, subia do jardim a frescura
matinal. Apesar da cegueira, Pedro sentia perfeitamente a natureza. Sabia que
era ainda muito cedo, que o sol olhava, como amigo,
para o seu quarto e que, se ele estendesse o braço pela janela, gotazinhas de
orvalho cairiam, furtivas, dos arbustos. E sentia, além disso, que todo o seu ser estava
impregnado duma sensação nova, desconhecida.
Ficou alguns minutos na cama a escutar o doce gorjeio dum
passarinho no jardim e a analisar o sentimento estranho que surgia no seu coração.
«Que aconteceu?», pensava ele; e de repente brotaram-lhe
na memória as palavras pronunciadas na véspera, ao cair do crepúsculo, por
Evelina, ao pé do moinho: «Na verdade, tu nunca pensaste nisso? Como tu és
tonto, meu Deus, como tu és tonto...»
Pois bem... Sim, ele nunca tinha pensado nisso. A
presença de Evelina causava-lhe um prazer enorme, mas até àquele dia ele não
tinha dado por isso, da mesma maneira que nós não sentimos o ar que respiramos.
Aquelas simples palavras tinham-lhe caído no coração como uma pedra que
escorrega de alto sobre a superfície luzente da água. Um minuto antes estava
unida e reflectia tranquilamente a luz do Sol e o céu azul; bastou, porém, um
único choque para ela se agitar completamente.
Agora tinha acordado com uma alma rejuvenescida,
renovada, e via já a sua amiga de infância sob outro prisma. Ao lembrar-se, nos
mínimos pormenores, de tudo que sucedera na véspera, escutava, espantado, o tom
da sua «nova» voz, que a memória dócil lhe recordava: «Como és tonto!»
Saltou do leito, vestiu-se à pressa e precipitou-se,
pelos atalhos cobertos de orvalho, para o velho moinho. A água pairava como na
véspera e, como na véspera igualmente, as hastes das cerejeiras cochichavam.
Mas ontem era escuro, enquanto hoje brilhava um esplêndido sol matinal. Nunca,
como agora, sentira tão nitidamente a claridade. E afigurava-se-lhe que com a humidade embalsamada e o frio delicioso da manhã os raios
do dia o penetravam do seu esplendor risonho até ao fundo do seu ser e lhe
excitavam todos os sentidos.Tinha-se a impressão de que tudo no castelo se tornara
mais claro e mais festivo. Dir-se-ia que Ana Mikhailowna tinha remoçado como
por encanto. O tio Máximo gracejava muito mais vezes, ainda que de tempos a
tempos se ouvisse, através de nuvens de fumo, o seu ronco, semelhante ao rolar
duma tempestade, passando ao lado em qualquer parte. Resmungava que certas
pessoas tomavam a vida por uma espécie de romance falhado, terminando por um
casamento, e insistia no facto de a existência humana encerrar coisas que
deviam prender muito mais a atenção do que infelizmente se julgava. O Sr.
Popelsky, que entretanto se tornara um homem imponente e quase quadrado, com os
cabelos a embranquecerem duma maneira regular e esquisita e o aspecto
invariavelmente frio, estava sempre de acordo com o cunhado, de quem aceitava
as sentenças, aparentemente por sua própria conta — o
que o forçava a entregar-se com mais zelo ainda aos seus trabalhos, que, aliás,
caminhavam duma forma irrepreensível. Os rapazes sorriam misteriosamente e tiravam
as suas conclusões. Duma maneira ou doutra, toda a gente era de opinião de que
Pedro devia continuar os estudos musicais.
Num dia de Outono, na época em que as colheitas terminam
e em que o «Verão feminino» [2] flutua, preguiçoso e
lânguido, no ar que ele tecia de numerosos fios de ouro, toda a família Popelsky foi de visita a casa dos
Stawroushinkos. O domínio destes encontrava-se a cerca de 70 verstas do castelo
Popelsky, mas a paisagem desta região era completamente diferente: os últimos
contrafortes dos Carpatos, visíveis ainda nos distritos de Volínia e nas
regiões banhadas pelo Bug, já se não viam e cediam o lugar às estepes
ucranianas. Ao longo destes vales acidentados, cortados aqui e ali por
profundas ravinas, estendiam-se, perdidas entre jardins e hortas, muitas
aldeias, separadas na sua maior parte por altos cabeços, que se desenhavam
nítidos no horizonte, e rodeados de medas de feno, já meio amareladas.
A família Popelsky não estava nada habituada a este
género de viagem relativamente longa. Fora da sua aldeia e dos campos vizinhos,
que conhecia perfeitamente, Pedro perdia o pé e tinha uma consciência mais
forte da sua cegueira, tornando-se inquieto e irascível. Entretanto, desta vez
tinha aceite voluntariamente o convite dos Stawroushinkos. Depois daquela noite
inolvidável, no decurso da qual compreendeu a força nascente do seu talento,
começou a experimentar um pouco mais de segurança em face do desconhecido
sombrio e impreciso que lhe encobria o mundo exterior. Este mistério distante
começou mesmo a traí-lo e a tomar cada vez mais lugar na sua imaginação.
Passaram-se alguns dias muito bem. Pedro estava agora
mais à vontade entre a mocidade. Escutava com uma atenção ávida o tocar cheio
de técnica do jovem Stawroushinko e as suas explicações a respeito do Conservatório e dos concertos na capital. Corava de cada vez que o elogiavam entusiasticamente pela
finura do vigoroso, ainda que inculto, sentido musical. Agora já se não escondia
nos cantos retirados, mas, como um interessado, tomava parte, com muito tacto,
nas conversas gerais. A recente reserva e extrema prudência de Evelina
desapareceram igualmente. Estava, pelo contrário, muito alegre, sentia-se
perfeitamente à vontade e cativava toda a gente com as explosões inesperadas de
alegria encantadora.Pouco mais ou menos à distância de 10 verstas do domínio
estava situado um antigo mosteiro, muito conhecido e célebre em toda a região.
Tinha desempenhado em tempos passados um papel muito importante na história do
país. Mais duma vez, como um bando de gafanhotos, as hordas tártaras tinham-no
cercado e arremessaram-lhe nuvens de flechas. Por vezes, bandos com polacos à
mistura escalavam com fúria os muros e, ao contrário dos cossacos, atacavam com
uma fúria selvagem a pequena fortaleza, rodeando o mosteiro para dar caça aos
intrépidos guerreiros do rei da Polónia. Mas agora as velhas torrinhas
esboroavam-se, os muros tinham sido em parte substituídos por sebes ordinárias,
tendo o único objectivo, bem modesto, aliás, de defender sobretudo as numerosas
hortas do mosteiro contra as invasões do gado dos mujiques. Ao fundo dos largos
fossos que costeavam os muros, o milho crescia em abundância.
Por um delicioso dia de Outono, os proprietários do
domínio e os convidados partiram para ir ao mosteiro. O tio Máximo e as
mulheres tomaram lugar numa grande e velha caleche, que oscilava sobre molas altas. Os
rapazes, incluindo Pedro, partiram a cavalo.
O cego montava extraordinariamente bem e com grande
desembaraço, habituado desde pequeno a prestar atenção ao bater das patas dos
outros cavalos e ao rodar das carruagens que o precediam. Ao vê-lo sentado com
tanta segurança e arrogância na sela ninguém adivinharia que este cavaleiro não
via o caminho e que se confiava totalmente ao instinto do cavalo. Ao princípio,
Ana Mikhallowna voltava-se timidamente, com um enorme receio do cavalo e dos
caminhos desconhecidos, mas o tio Máximo olhava-a de lado, com um ar orgulhoso,
onde se lia a zombaria terna dum professor seguro da sua arte.
— Ouçam — disse o estudante
aproximando-se da carruagem. — Acabo de me lembrar dum túmulo excepcionalmente
curioso, cuja história descobrimos nos arquivos do mosteiro. Se quiserem,
podemos lá ir. Não é longe daqui, na extremidade da aldeia.
— Diga-me, caro amigo: porque evoca assim connosco tão
tristes lembranças? — disse Evelina, gaiatamente. — Não é gentil... bem sabe.
— Responderei à sua pergunta um pouco mais tarde.— E o estudante dirigiu-se ao cocheiro. Vá para o vergel
de Ostape.Dito isto, voltou o cavalo e alcançou a galope os outros
cavaleiros.Passados minutos, quando o carro fazia gemer as rodas na
poeira mole e seguia por uma estreita vereda, os rapazes passaram rapidamente à
frente e apearam-se dos cavalos um pouco mais longe e prenderam-nos a uns
arbustos. Os irmãos Stawroushinkos apressaram-se a ir
ao encontro das senhoras, para as ajudarem a descer da carruagem. Pedro
conservou-se no mesmo lugar, encostado ao arção da sela, e de cabeça inclinada,
segundo o seu costume, procurava, tanto quanto possível, definir a sua posição
neste sítio desconhecido.Para ele, este dia cheio de sol de Outono não era senão
uma noite profunda, animada e alumiada pelos ruídos estrepitosos do dia.
Percebia na estrada o arrastar do carro que se aproximava e as divertidas
brincadeiras dos rapazes que corriam ao seu encontro.
Ao lado, os cavalos faziam tilintar as argolas de aço das
rédeas, passando a cabeça por cima da sebe, para atingir a erva alta da horta.
Em qualquer parte, nas proximidades, partindo, evidentemente, do jardim,
ressoava uma canção suave, lânguida, que parecia ondular nas asas da brisa. As
folhas sussurravam; uma cegonha gritava com voz rouca; um galo, lembrando-se de
repente de qualquer coisa, soltou um grito fora de horas e sacudiu as asas com
agitação; a roldana dum poço chiava, queixosa, e todos os sons demonstravam que
os trabalhos quotidianos tinham atingido a sua plenitude.
Realmente tinham parado junto da vedação do último jardim
da aldeia. Entre os mais distantes ruídos, distinguia-se o som pausado e
cadenciado do relógio do mosteiro, de timbre forte e agudo. Por efeito deste
som ou do ruído do vento, ou talvez por outro sinal desconhecido, Pedro sentia
que lá em baixo, por detrás do mosteiro, o terreno começava a baixar, a descer
talvez na direcção dum rio, e que na outra
margem se estendia, a perder de vista, um vale povoado de murmúrios
indistintos. Mal perceptíveis na tranquila vida diária, estes murmúrios chegavam-lhe em trinados fracos, proporcionando-lhe,
entretanto, uma noção velada, pouco firme, estritamente auditiva, dum ambiente
estranho. É assim que nós vemos os lugares remotos na névoa delicada do
entardecer.O vento agitava-lhe a madeixa de cabelo que se lhe
escapava do chapéu e assobiava-lhe por detrás das orelhas, como o canto
contínuo e prolongado duma harpa eólia. Reminiscências vagas erravam-lhe na
memória, e momentos da sua infância passada, que a imaginação arrancava às
recordações de outrora, ressuscitavam sob a forma de sopros, de carícias, de
sons...Parecia-lhe que este vento, misturado com o tilintar
abafado dos sinos e com bocados da canção, lhe contava uma velha e triste lenda
do passado deste país ou do seu próprio passado, ou, quem sabe?,
do seu futuro sombrio e incerto.Um minuto depois chegou o carro. Todos desceram e
passaram por uma brecha da cerca, dirigindo-se para o pomar. Lá, num canto
abandonado, coberto de altas ervas bravas, jazia uma ampla pedra de cantaria,
que estava enterrada quase por completo no solo. Folhas verdes de bardana, com
flores de rosa escarlate, nigelas desenvoltas, de haste fina, surgiam das ervas
balouçando ao vento, e Pedro percebia o seu murmúrio vago por cima do túmulo
meio dissimulado pela vegetação espessa.
— Não há muito que descobrimos a existência deste
monumento — disse o filho de Stawroushinko. — E,
contudo, sabem quem repousa ali? O célebre cavaleiro,
o velho guerreiro Inácio Kary.— Então é aqui que repousam os restos desse velho
bandido?!— disse o tio Máximo com ar pensativo. — Mas
como se encontra o seu corpo aí? Eis o que eu não consigo compreender!
— Em 18... os cossacos, ajudados pelos Tártaros, sitiaram
este mosteiro, ocupado por tropas polacas. Sabe bem que os Tártaros foram
sempre considerados aliados perigosos.
E possível que os sitiados conseguissem corromper
um chefe tártaro; mas, fosse como fosse, sabe-se que, numa noite, Tártaros e
Polacos atacaram juntos os cossacos. E foi justamente aqui, em Kolodnia, que se
deu um recontro formidável. Se me não engano, os Tártaros foram completamente
derrotados. Mas os cossacos perderam os seu chefe na
batalha. Há nesta história uma outra personagem— continuou o rapaz, sempre pensativo —, mas seria trabalho perdido procurar aqui
outro túmulo. Segundo as velhas memórias que encontrámos no mosteiro, ao lado
do chefe Kary foi enterrado um jovem tocador de
bandurra... um cego, que o acompanhava em todas
as campanhas... —-— Um cego... que tomava parte em campanhas? — bradou, horrorizada, Ana Mikhailowna,
afigurando-se-lhe subitamente o filho a participar numa terrível batalha nocturna.
— Sim, um cego. Era um cantor célebre, conhecido em toda
a Ucrânia. As memórias de que há pouco lhes falei
confirmam, pelo menos, a minha suposição. Esperem! Parece-me que conheço de cor
a página que se refere ao assassínio do cego.
«E, ao mesmo tempo, morreu lurko, célebre poeta cossaco,
que nunca abandonava Kary, de quem era profundamente amado. Os inimigos pagãos
mataram lurko, e duma maneira horrível, sem perdoar ao seu grande talento de poeta
e de músico. Ainda que ele tocasse com tanta sensibilidade que teria sido capaz
de enternecer os lobos nas estepes, os hereges não tiveram piedade e
massacraram-no, durante o ataque nocturno. Jazem ao lado um do outro, o poeta e
o cavaleiro, e possa Deus conceder-lhes uma memória eterna. Ámen!»
— A pedra é bastante larga — diz
alguém. É possível que lá repousem os dois.
— Talvez, mas a infelicidade é que as inscrições que nela
estão gravadas se encontram estragadas pelos musgos. Olhem, pode ainda distinguir-se
o bastão do comando e o bastão de hetman [3] mas tudo o mais está completamente
verde, por causa dos líquenes.Esperem! — exclamou de repente
Pedro, que escutara a descrição com emoção surpreendente.
Aproximou-se do túmulo, inclinou-se sobre ele e os seus
dedos delicados fixaram-se sobre a camada verde dos líquenes que cobriam a
laje. Através das plantas, tacteou as saliências duras da pedra. Permaneceu
assim um bocado, de cabeça erguida, as sobrancelhas
carregadas. Depois começou a ler: «Inácio, chamado Kary... nascido em... abatido por uma
flecha... atirada por um arco tártaro».
— Nós também podemos ler isso — disse o estudante —, mas quanto às palavras que se seguem...
Contudo, os dedos do cego, extremamente tensos, com as
articulações dobradas, desciam mais:
— « ... ímpios
mataram...»— «... lurko e duma maneira horrível...» — continuou vivamente o estudante. — São justamente as
mesmas palavras que encontramos na descrição da morte de lurko. Então, é
verdade, também ele jaz sob esta pedra.
— ... Sim «...os exércitos
pagãos» — leu Pedro. — A seguir não há mais nada...
Não, não, esperem: «... massacrados pelos
sabres tártaros...» Parece que há ainda uma palavra... Não, não há mais nada.
Na verdade, a recordação inteira do grande tocador de
bandurra perdia-se na lepra enorme da laje, que contava mais de cento e
cinquenta anos de existência. Durante alguns instantes reinou um profundo silêncio,
quebrado somente pelo ruído da folhagem. Foi subitamente cortado por um suspiro
lento, cheio de respeito e veneração. Era Ostape, o proprietário do jardim, e
que, partindo da última morada do velho hetman, se tinha aproximado dos
visitantes inesperados e mirava, com um espanto indescritível, este homem novo
de olhos parados e erguidos para o céu, que decifrava, apalpando, as palavras
gastas pelas chuvas e pelos ventos e inacessíveis àqueles que viam, durante
séculos inteiros...— Só o bom Deus... — disse ele, fixando Pedro com respeito... — Deus faz milagres e faz ler a um cego aquilo que os que vêem não puderam ler
com os seus olhos.— Compreende agora, querida menina, porque me lembrei de
Iurko, o tocador de bandurra? perguntou o estudante
quando o carro retomou o caminho pela estrada poeirenta em direcção ao
mosteiro. — Meu irmão e eu admirávamo-nos de como um
cego pudesse acompanhar Kary com as suas tropas, tão ágeis como hábeis. Na
generalidade, os tocadores de bandurra eram velhos cegos, muito pobres, que só
possuíam os seus alforjes e as suas canções e que erravam de aldeia em aldeia,
de burgo em burgo. E
só hoje, quando vi o seu amigo Pedro a cavalo, me surgiu repentinamente na
imaginação a figura de lurko, o cego, sobraçando a bandurra em lugar duma
espingarda e cavalgando atrás do chefe. É bem possível que tivesse participado
em combates — continuou o rapaz, como num sonho. — Não
há dúvida nenhuma de que, quanto às campanhas e aos perigos, partilhava deles
com todos os camaradas... Oh, meu Deus, que belas horas vivia
a nossa Ucrânia!— Era terrível! — suspirou Ana
Mikhallowna.— Era esplêndido! — ripostou o jovem visionário.
— Agora nada resta! — declarou
Pedro num tom decisivo, aproximando-se do lado da carruagem. Alteando as
sobrancelhas e aplicando o ouvido ao passo dos cavalos
vizinhos, obrigou o seu a regular-se pela caleche. — Tudo agora desapareceu — repetiu ele.
— O que foi condenado a desaparecer desapareceu — declarou o tio Máximo, num tom estranhamente frio. — Eles
viviam à sua maneira, vós viveis à vossa, eis tudo.
— O senhor não se arrisca a nada agora — respondeu o estudante. — Já tomou da vida tudo o que ela lhe podia dar. Nós é outra coisa.
— É bem verdade, a vida deu-me tudo e tudo me tirou
— disse, sarcástico, o velho garibaldino, olhando as
muletas. E depois dum curto silêncio acrescentou: — Há muito tempo, também eu
aspirava a tomar parte em batalhas, sonhava com a poesia furiosa das lutas e
com a liberdade completa do espírito... Parti mesmo para a Turquia, onde
Tchaikovsky, nosso compatriota, queria organizar um estado cossaco,
completamente independente... — E depois? — perguntaram
vivamente os rapazes.— Depois... curei-me, e bem depressa. Curei-me desde que
vi «os livres cossacos» servir o despotismo turco. Uma mascarada histórica e
uma escroquerie política foi tudo o que verifiquei.
Então parti para a Itália. Sem mesmo conhecer a língua dos Italianos, estava
pronto a morrer pelo seu ideal.O tio Máximo falava com ar seríssimo, com uma sinceridade grave. Habitualmente não partilhava das discussões de Stawroushinko pai com os filhos, contentando-se em sorrir, duma forma complacente, em
resposta aos apelos dos rapazes, que o consideravam seu
partidário. Mas agora, arrastado pela evocação do drama patético, chamado tão
subitamente para junto da velha pedra alcatifada de musgo, sentiu que este
episódio, exumado de tempos passados e esquecidos, tocava profundamente, por
causa de Pedro, num presente bem vivo.
Desta vez os rapazes, não o contradisseram em nada. Não se poderia
dizer se estavam impressionados pelas comoções que acabavam de passar ao lado
deste túmulo no jardim de Ostape ou se se inclinavam diante da sinceridade
convincente do velho veterano.— Então que nos resta fazer? — perguntou
o estudante, depois de uma pausa impressionante.
— Sempre a mesma luta eterna, eis o que lhes resta.
— Mas onde? Sob que formas?
— Procurem! — respondeu
laconicamente o tio Máximo.Desde o momento que ele tinha abandonado o tom
normalmente trocista, estava, sem dúvida, pronto a continuar a discussão; mas
já não havia tempo para isso... O carro parava diante da portaria do mosteiro e
o estudante, inclinando-se ligeiramente, segurou pela rédea o cavalo de Pedro,
que reflectia no rosto, como uma alma humana entreaberta, uma emoção
profunda...No mosteiro visitava-se geralmente a igreja e subia-se à
torre, donde se desfrutava um panorama tão vasto como magnífico.
O sol começava já a esconder-se quando o pequeno grupo se
aproximou da porta fechada da torre do sino. O tio Máximo ficou no patamar duma
das células. Novo e franzino, um irmão converso, vestido de sotaina e com um
capuz, conservava-se sob a abóbada, apoiado com uma das mãos à fechadura da
porta cerrada. Perto dele, como um bando de pássaros espavoridos, agrupava-se
um rancho de crianças. Era claro que um incidente desagradável se acabava de
passar entre o jovem converso e o grupo das crianças. Da sua posição belicosa e
da maneira de se apoiar à fechadura deduzia-se facilmente que os pequenos desejavam
subir ao sino atrás dos visitantes, mas que o monge não consentia em tal. Estava pálido e
irritado e só as maçãs do rosto estavam coradas.
Os olhos do noviço feriam pela sua estranha imobilidade.
Ana Mikhailowna foi a primeira a notar a expressão daquela figura e desses
olhos, e com um gesto nervoso agarrou na mão de Evelina.
— Um cego! — murmurou a rapariga
ligeiramente assustada.— Chut! — respondeu a mãe. — Também vês?
— Sim. Era difícil não dar pela semelhança flagrante do
frade com Pedro. A mesma palidez nervosa, as mesmas retinas puras, mas imóveis,
o mesmo movimento agitado das
sobrancelhas, estendendo-se a todo o ruído novo e agitando-se por cima dos
olhos, como as antenas dum insecto amedrontado.
As feições eram mais grosseiras e o corpo mais anguloso;
mas a semelhança acentuava-se cada vez mais. Quando ele tossiu, com uma tosse
cavernosa e alquebrada, segurando com as mãos o peito dobrado, Ana Mikhailowna
fixou-o com os olhos muito abertos, como se um fantasma surgisse na sua frente.
Depois que a tosse se acalmou, o irmão converso abriu a
porta e, parando no patamar, perguntou, com voz trémula e débil:
— Não há garotos? Ide-vos embora, canalhas! — gritou, parecendo que se atirava na sua direcção. E, depois
de ter feito passar as visitas, disse, num tom ávido e velhaco:
— Querem dar qualquer coisa ao sineiro? Cuidado... não
tenham pressa... aqui é escuro.Todos principiaram a subir. Ana Mikhailowna, que hesitava
nesse momento em trepar a escada, muito escarpada e incómoda para si, seguiu
por fim, docilmente, os companheiros.
O sineiro cego fechou a porta atrás deles. A luz
desapareceu, e só passados instantes Ana Mikhailowna, que ia mais atrasada,
enquanto os mais novos, saltando e atropelando-se, escalavam as espirais
difíceis da escada em caracol, conseguiu ver um fiozinho vago de claridade
turva, através duma fenda longitudinal, na larga parede de pedra. Sob este raio
carinhoso brilhavam fracamente algumas pedras poeirentas, dum tamanho
irregular.— Tio! Eh, eh... tiozinho, deixe-me passar! — gritavam de fora as vozes franzinas das crianças. — Deixe-nos passar... Seja gentil, tiozinho...
O sineiro, arreliado, precipitou-se para a porta e pôs-se
a bater violentamente com os punhos na dupla porta de ferro.
— Ide embora! Ide embora,
rapazes malditos! Que o raio do bom Deus vos fulmine! — gritava, espumando e
rouco de desespero.— O diabo do cego! — responderam num grito algumas vozes sonoras, pateando muito
depressa uma dezena de pés descalços do outro lado da porta.
O sineiro pôs-se à escuta e reteve a respiração.
— Como são espertos, os canalhinhas... os malditos! Que a morte vos leve a todos. — E mudou
subitamente de tom. — Ó, meu Deus! ó, Senhor! Porque
me abandonaste? — bradou ele com uma voz completamente
diferente, onde se denunciava toda a angústia dum homem infinitamente
desgraçado.— Quem está aqui? Porque ficaste aqui? — interpelou
ele grosseiramente, chocando com Ana Mikhailowna, que tinha estacado junto dos
primeiros degraus. —Mas...
— Ah! Desculpe! Vá, vá! — ajuntou
ele mais docemente. — Espere... Tem para mim... Isto é
... assim... Quer dar alguma coisa ao sineiro?... perguntou
com uma voz insinuante e desagradável.
Ana Mikhailowna pegou no porta-moedas e tirou uma nota,
que passou, em plena obscuridade, para o cego. Ele agarrou rapidamente no
dinheiro da mão da visitante, que, sob a luz turva do raio sempre em movimento,
viu o noviço levar o papelinho à face e passar por ele os dedos trémulos.
Aquele rosto, iluminado por um clarão misterioso e tão parecido com o de Pedro,
crispou-se bruscamente, para reflectir uma expressão de alegria selvagem e
sôfrega.— Obrigado... Agradeço-lhe muito... É dinheiro
autêntico... E eu... que julgava que a senhora estava a troçar de mim! Sabe, há
pessoas que gostam de arreliar os pobres cegos...
O rosto da pobre mãe estava inundado de lágrimas.
Enxugou-as à pressa, à toa, e começou a subir a escadaria. Lá em cima, como uma
torrente de água por trás de um muro, retiniam passos sonoros e as vozes animadas
do grupo que se tinha adiantado.Numa das voltas da escada, os rapazes pararam.
Tinham já subido muito alto; e por uma janela muito
estreita, com o ar fresco penetrava um feixe de luz mais claro, ainda que
bastante disperso. Na parede, relativamente plana e lisa neste sítio,
formigavam inscrições. Eram na maior parte assinaturas improvisadas dos
visitantes.Trocando gracejos, os rapazes procuraram nomes de amigos
seus.— E há sentenças! — exclamou o
estudante; e leu com um certo esforço: «Muitos são aqueles que começam, mas são
poucos os que vão até ao fim...». Trata-se, evidentemente, desta ascensão! — acrescentou em tom de brincalhão.
— Compreenda-o como quiser! — respondeu
o sineiro rudemente, desviando a atenção; e as sobrancelhas começaram a
agitar-se-lhe, apressadas e inquietas. — Há outros versos, mais abaixo. Deve
lê-los...— Onde? Não vejo versos.
— Então tu dizes que os não há e eu digo que os há.
Existem muitas coisas que se escondem aos olhos dos que vêem.
Desceu dois degraus e, depois de ter tacteado com a mão
na obscuridade, onde se perdiam já os últimos vislumbres do dia, disse:
— Ei-los. Os versos são muito bonitos, mas, infelizmente,
não os poderão ler sem uma lanterna.
Pedro aproximou-se e, apalpando a parede durante uns
instantes, encontrou facilmente o aforismo austero, gravado na parede por um
homem morto havia talvez mais de cem anos:
Não te esqueças da hora da morte. Não te esqueças do
toque da trombeta.
Não te esqueças da separação da vida. Não te esqueças das penas
eternas.— Uma sentença a mais! — tentou brincar o estudante, mas sem êxito.
— Não te agrada, hem? — disse o
sineiro maliciosamente. — Sim, decerto, és ainda muito novo... mas
apesar disso... nunca se sabe. A hora da morte vem como um ladrão na noite.
Não, os versos são muito bonitos — acrescentou com uma voz diferente. — «Não te
esqueças da hora da morte...». Pois é... espera-nos lá em cima qualquer coisa — concluiu num tom maldoso.
Mais uns degraus e toda a gente saiu
para o primeiro patamar da torre. Lá estava-se já a uma altura elevada, mas uma
abertura na parede conduzia, por uma passagem mais incómoda, ainda mais longe.
Abria-se da última plataforma uma vista larga e esplêndida. O sol descia para o
ocidente, aproximando-se cada vez mais do horizonte; em baixo, em traços
longos, apareciam as sombras e as cores crepusculares; uma enorme e pesada
nuvem parara a leste; os longes perdiam-se nos véus da noite e somente aqui e
ali — aliás muito raramente — os raios oblíquios do
poente arrancavam às penumbras azuis, quer a parede rebocada duma isba branca,
quer uma janela brilhante como um rubi, quer uma centelha vivíssima na cruz
duma torre distante.Todos se calaram. Um vento alto, puro, livre de eflúvios
terrestres, soprava pelos orifícios, agitava as cordas e penetrava até aos
sinos, tirando deles às vezes ecos contínuos, estranhamente sonoros. Os sinos
respondiam com um ruído profundo de metal, nos quais o ouvido surpreendia
qualquer coisa apenas perceptível, como uma música longínqua e imprecisa ou os
suspiros melancólicos do cobre. O panorama que em baixo se estendia estava
impregnado duma paz imperturbável e duma calma serena.
Mas o silêncio que se estabeleceu entre a reduzida
sociedade tinha ainda outra causa: impelidos pelo mesmo impulso, decerto devido
à altura em que se encontravam e à sensação da sua mútua fraqueza perante os elementos,
os dois cegos aproximaram-se das extremidades da balaustrada, apoiaram-se nas
mãos e voltaram o rosto na direcção donde vinha o vento suave da tarde.
Agora a semelhança era impressionante e chamava a atenção
de todos. O sineiro era um pouco mais velho; a larga sotaina caía-lhe
em pregas ao longo do corpo magro e descarnado. As suas feições eram mais
grosseiras e mais duras que as de Pedro. Depois dum exame mais atento,
notava-se facilmente a diferença. O sineiro era louro e tinha o nariz um pouco
corcovado e os lábios mais delgados que os de Pedro. Já tinha bigode e uma
barbicha crespa ornava-lhe o queixo. Mas nos gestos, nas comissuras nervosas dos
lábios, no movimento incessante dos sobrolhos, notava-se aquela analogia mil
vezes estranha, aquela espantosa semelhança, que faz que todos os corcundas se
pareçam como irmãos.O rosto de Pedro era mais calmo. Seduzia pela expressão
duma tristeza habitual, que na figura do sineiro era substituída por uma
irascibilidade que se denunciava e mesmo pela maldade. Mas também ele, aliás,
se acalmava pouco a pouco. O sopro igual do vento parecia varrer-lhe da fronte
todas as rugas, todos os cuidados, e saturá-lo da calma delicada de
que estava banhada toda a natureza roubada aos seus olhos mortos. As
sobrancelhas animavam-se cada vez menos...
Mas eis que de novo palpitam nos dois simultâneamente,
como se ouvissem um som vindo do Vale, e ainda imperceptível para todos.
— Estão a tocar! — disse Pedro.
— É a quinze verstas daqui — explicou o sineiro —, na Igreja de S. Jorge; tocam lá as vésperas sempre meia
hora mais cedo que nós. Ouve tocar? Eu também. Mas os outros não ouvem nada. — E acrescentou com ar melancólico, depois dum curto silêncio: — Está-se
bem aqui. Sobretudo nos dias de festa. Já me ouviu alguma vez tocar?
Uma vaidade ingénua ressoou na sua pergunta.
— Venha um dia ouvir-me tocar... O padre Panfílio... Não
conhece o padre Panfílio? Bom. Ele mandou vir
expressamente para mim estes dois pequenos sinos.
Dizendo isto, abandonou a parede e com mão amorosa
acariciou dois sinos que não tinham tido tempo de ser empanados como os outros.
— Como tocam bem estes sininhos! Como eles cantam, como
eles cantam bem! Sobretudo na véspera da Páscoa.
Agarrou no extremo da corda pendente e, num movimento
rápido de dedos, produziu nos dois sinos como que o rufar de tambor, surdo e
melodioso. As pancadas dos badalos foram tão fracas e tão nítidas que toda a
gente ouviu o tinido, mas os sons não ultrapassaram decerto a plataforma da
torre.— E este — mostrou o sino grande
— faz: «Bou-ouk! Bou-ouk! Bou-ouk!».
O rosto resplandecia-lhe já duma alegria a que se
misturava, todavia, uma expressão dolorosa que causava grande pena.
— O padre Panfílio mandou vir os sinos — disse com um
suspiro —, mas não pensa em me fazer uma peliça nova. É muito
avarento. E, contudo, faz bem frio na torre, sobretudo no Outono... Oh, que
frio lá faz!... — Parou e, escutando, disse : — O coxo
chama-vos lá em baixo. Vão, que é tempo.
— Vamos — disse Evelina, que foi
a primeira a levantar-se. E continuou a fitar o sineiro com um olhar fixo, como se estivesse
enfeitiçada. Os rapazes tomaram o caminho da saída. O sineiro ficou em cima. Pedro, depois de
ter andado alguns passos atrás da mãe, parou bruscamente.
— Desçam — disse num tom
imperativo —, irei ter já com vocês.
Os passos deixaram de se ouvir. Só Evelina, deixando
passar Ana Mikhailowna, ficou no mesmo lugar e, sem quase
respirar, colou-se contra a parede.
Os cegos julgaram-se sozinhos na torre. Durante alguns
instantes permaneceram imóveis, constrangidos, escutando alguma
coisa.— Quem está aí? — perguntou enfim o sineiro.
— Eu...
— Tu também és cego? —
— Sim, cego. Há muito tempo que perdeste a vista? — interrogou Pedro.
— Nasci cego — respondeu o
sineiro. — Temos cá um outro; chama-se Roman... Perdeu a vista aos sete anos. E
tu, sabes distinguir o dia da noite?
— Sim, sei.
— Eu também. Sinto perfeitamente quando ele principia a romper.
Roman não, e, contudo, devia ser-lhe mais fácil.
— Porquê? — perguntou
vivamente Pedro.— Porquê? Não deduzes porquê? Ele viu o dia e lembra-se da mãe. Compreendes...
adormece, por exemplo, e eis que a mãe vem ao pé dele, visitá-lo, à noite. Mas
agora é velha, enquanto ele a vê sempre nova. E tu tens sonhos?
— Não — respondeu surdamente
Pedro.— Ora vê lá! São somente os que perderam a vista que
podem ainda sonhar. Mas nós, os cegos de nascença, é outra coisa...
Pedro permanecia triste, sombrio, como se uma nuvem o
envolvesse. As sobrancelhas do sineiro ergueram-se subitamente por cima dos
olhos, nos quais Evelina viu a expressão do sofrimento dos cegos, que ela
conhecia.-Ó, Senhor!, Virgem Santa,
faz-me ver o dia alegre, nem que seja uma vez só! — bradou
de repente o sineiro.Mas a face crispou-se-lhe e ele repetiu, com ar colérico
e cheio do fel que lhe era familiar:
— Não, não, nunca... nunca me concederão isso. Oh! Sim, acontece-me
por momentos começar sonhos; então qualquer coisa brilha ao longe e desaparece
imediatamente. Mas quando acordo não me lembro de nada.
Parou e aplicou o ouvido. Empalideceu e uma expressão
convulsiva, maldosa, contraiu-lhe as feições.
— Deixaram entrar os monstrozinhos — disse ele malevolamente.
Com efeito, de baixo, da
passagem estreita, como um rumor de enchente, subiam passos e gritos infantis.
Num instante cessou tudo; a turba de gaiatos chegava, evidentemente, à
plataforma do meio e todo o alarido se espalhou para fora. Mas imediatamente na
galeria escura começou o estrondo, como num tubo de órgão, e um enxame gárrulo
de crianças, correndo o mais que podia, passou como um relâmpago na frente de Evelina. Os garotos pararam um momento no último degrau e depois alinharam na
frente do sineiro cego, que, com o aspecto alterado pelo furor, arremessava à
toa os punhos fechados, esforçando-se por atingir os invasores.
De repente surgiu na obscuridade da abertura uma nova
personagem. Era, sem dúvida, Roman. Tinha um rosto largo, bondoso, desfigurado
pelas bexigas. As pálpebras descidas dissimulavam as órbitas vazias e
bailava-lhe nos lábios um sorriso bondoso. Passando diante da rapariga
escondida contra o muro, subiu à plataforma. O braço levantado do camarada
caiu-lhe justamente sobre a nuca.— Irmão! — exclamou ele numa voz
agradável e bem timbrada. — Jorge, estás sempre em pé de guerra.
Encontraram-se e apalparam-se um ao outro.
— Porque deixaste passar estes monstrozinhos? — interpelou-o Jorge, em ucraniano, a voz ainda trémula de cólera.
—
E porque não? — respondeu Roman, imperturbavelmente complacente. — São avezinhas do Senhor... Porque lhes ralhas sempre? Não é preciso, meu pequeno, não é
preciso... Onde estais vós, os monstros?
Os garotos, muito calados, agachavam-se nos cantos, perto
das grades, e os olhos brilhavam-lhes de malícia e, em parte, de medo.
Evelina, caminhando sem barulho na sombra, acabava de
descer até metade da primeira escadaria quando os passos firmes dos dois cegos
ressoaram por detrás dela e no alto se ouviram guinchos furiosos e os gritos
das crianças que tinham atacado em bando Roman, que ficara na última plataforma.
Os visitantes saíam do portão do
mosteiro quando retiniu a primeira pancada do sino. Era Roman que tocava as
vésperas.Tinha-se posto o Sol. O carro rodava ao longo dos campos
que escureciam, acompanhado pelos toques do sino, iguais e melancólicos, que
morriam, desfalecidos, nas sombras azuladas do crepúsculo.
Quase todos se conservaram silenciosos até chegarem a
casa. À noite notaram repentinamente que Pedro não estava presente. Estava
sentado em qualquer parte, num canto escuro do jardim, e não respondia sequer
às chamadas de Evelina. Entrou às apalpadelas no quarto quando já todos estavam
deitados.Os Popelsky passaram ainda uns dias em casa dos
Stawroushmkos. Uma vez por outra reaparecia o bom humor em Pedro, que mostrava
então um ar animado e mesmo alegre;
tocava em vários instrumentos, de que o filho mais velho de Stawroushinko possuía
uma colecção bastante considerável, e isso prendia muito a atenção do cego.
Entretanto, a disposição taciturna predominava e os períodos de animação
pareciam ser curtas crises no fundo geral, que se tornava cada vez mais negro.
Como se fosse de comum acordo, ninguém fazia alusão ao
episódio do mosteiro. Parecia que esta parte do divertimento tinha desaparecido
da memória e estava completamente
esquecida. Todavia, era fácil verificar que a sua recordação estava profundamente
radicada no coração do cego. Todas as vezes que ficava sozinho, quando dominava um silêncio geral ou,
enfim, quando não prestava atenção nenhuma as conversas dos outros, Pedro caía em meditação
e um ar de desgosto amargo obscurecia-lhe o rosto. Era uma expressão muito
conhecida de todos, mas, agora, acentuava-se cada vez mais,
fazendo lembrar terrivelmente a do sineiro cego.
Sentado ao piano, no mais aceso da inspiração, introduzia
muitas vezes notas que lembravam o delicado repique dos sinos e os suspiros
requebrados do cobre do campanário. E se ninguém se atrevia a falar, saltavam,
no entanto, claramente, à imaginação de cada um as passagens obscuras, a
pancada delicada do sineiro, com cor de tuberculoso, os seus gritos maldosos e
os seus lamentos amargos contra o destino. E, a seguir, os dois cegos na mesma
posição de atalaia. O que os pais e amigos de Pedro tomavam como o carácter individual eram já os
traços comuns dos cegos, impondo a marca
misteriosa, igual para todas as vítimas.
— Escuta, Ana — perguntou o tio
Máximo à irmã, quando regressaram a casa —, não sabes o que aconteceu durante a
nossa viagem? Noto que o nosso rapaz mudou duma forma terrível nestes últimos
dias. O que há?— Ah! Tudo isso são consequências do encontro com o cego — respondeu Ana Mikhailowna num suspiro.
Muito recentemente tinha ela enviado ao mosteiro duas
peliças de pele de carneiro, dinheiro e uma carta dirigida ao padre Panfílio
pedindo-lhe que amenizasse a sorte dos dois cegos. Geralmente, ela tinha bom
coração e era muito generosa; mas primeiro tinha-se esquecido por completo da
existência de Roman, e foi preciso Evelina lembrar-lhe que era necessário
cuidar dos dois desgraçados.«Ah! Sim, sim, bem entendido!», respondera Ana
Mikhailowna; mas era evidente que tinha o espírito ocupado por qualquer outra
coisa. Misturava uma espécie de sentimento supersticioso com a sua ardente
compaixão. Parecia-lhe que este acto de caridade ajudaria a afastar uma força
tenebrosa, que já estava suspensa, como uma sombra negra, por cima da cabeça do
seu filho.— Com qual cego? — perguntou o tio Máximo, muito admirado.
— Com aquele... da torre...
O tio Máximo deu com a muleta uma pancada feroz.
— Oh! Ai, ai, que desgraça ser um mutilado sem pernas!
Esqueces, evidentemente, que eu não subo às torres dos sinos! Será realmente
possível entendermo-nos com as mulheres? Evelina, minha amiga, fazes favor de
me contar convenientemente o que se passou na torre.
— É que... — respondeu baixinho a rapariga, que também
perdera as suas cores havia alguns dias — ...é que há lá um sineiro cego. E
ele...Estacou. Ana Mikhailowna cobriu com as mãos a face
ardente, coberta de lágrimas.— E ele... parece-se muito com Pedro.
— Mas vocês não me disseram nada! E então? Não vejo ainda
explicação suficiente para esta cena trágica. Ana, escuta... — disse ele num tom de doce censura.
— Ah! É terrível! — respondeu
Ana Mikhailowna, com voz abafada.— Mas o que é terrível? Que ele
se pareça com o teu filho?Evelina lançou um olhar significativo ao velho e ele
calou-se. Alguns minutos depois, Ana Mikhailowna saiu e Evelina ficou com o seu
inseparável trabalho entre mãos.— Não me disseste tudo? — perguntou
o tio Máximo, depois de um silêncio de alguns segundos.
— Sim... Quando todos desceram, Pedro ficou lá em cima. Pediu à tia Ana
(era assim que ela tratava sempre Mme Popelsky) que seguisse o grupo e que ele
ficasse sozinho com o cego. Mas eu... eu também fiquei.
— Para os espiar? — interrogou o
velho pedagogo, quase maquinalmente.
— Não pude ir-me embora — respondeu Evelina. — Eles conversavam como...
— Como companheiros de desgraça?
— Isso... como cegos. Depois Jorge perguntou a Pedro se
via a mãe em sonhos.
Pedro respondeu: «Não!». Jorge também nunca vê a mãe. Mas há
ainda outro cego, Roman, que vê a mãe em sonhos, inteiramente jovem, se bem que
ela já seja velha...— Bem. E então?
Evelina ficou pensativa e depois, erguendo para o velho
os seus olhos azuis, onde se lia ao mesmo tempo o sofrimento e a luta, disse:
— O outro cego, Roman, é muito gentil e calmo. Tem um
aspecto triste, mas nada maldoso. Nasceu com vista. Mas o outro... sofre
horrivelmente — disse ela mudando bruscamente de tom.
— Fala-me francamente, peço-te — interrompeu, impaciente, o tio Máximo. — O outro encoleriza-se?
— Sim. Quis bater nas crianças e injuria-as
constantemente. Quanto a Roman, os garotos gostam dele, evidentemente.
— Ele é mau e parece-se com Pedro... Sim, compreendo — disse o tio Máximo com ar meditativo.
Evelina calou-se uns instantes e em seguida, como se as
palavras lhe custassem uma luta interior extremamente violenta, disse baixinho:
— Não se parecem na cara... As feições são completamente
diferentes. Afigurava-se-me ao princípio que a expressão de Pedro era antes a
mesma de Roman, mas agora... vejo cada vez mais que ele se parece com o
outro... e ainda... receio, creio...
— Que receias tu? Vem cá, criança sensata— disse o tio Máximo com uma ternura extraordinária.
E quando, desfalecendo sob esta inesperada carícia,
Evelina se aproximou dele com as lágrimas nos olhos, passou-lhe a mão grande
pelos cabelos macios e disse-lhe:— Então, que pensas tu? Dize, querida. Vejo que sabes
discorrer.— Penso que ele supõe agora que todos os cegos de
nascença são ruins... e que... ainda está persuadido de que também ele o é, infalivelmente. .
— Ah... Essa agora! — bradou o
tio Máximo, erguendo a mão. — Fazes favor, minha querida, de me chegar o cachimbo. Está no
parapeito da janela.Instantes depois espalharam-se por cima da sua cabeça
espirais azuis de fumo de tabaco.— Sim, é uma infelicidade — murmurava ele em aparte. — Enganei-me. Ana tinha razão: pode-se sofrer muito e
entristecer-se a gente por aquilo que nunca se
experimentou. Doravante a consciência juntar-se-á ao instinto. É um caso
verdadeiramente infeliz. Além disso, é fatal, não há fumo sem fogo. Este dia
havia de chegar, cedo ou tarde.Desapareceu por completo na nuvem azul e negra.
Na cabeça do velho mutilado agitavam-se ideias novas, decisões
imprevistas. Chegou o Inverno. A neve espessa cobriu as estradas, os
campos, as aldeias. O castelo estava branco; grandes flocos graciosos
acumulavam-se nas árvores, dando a impressão de que o jardim desabrochava em
flores brancas. O fogo granizava no grande fogão e todos os que vinham do pátio
traziam o cheiro e a frescura da neve macia.
O cego compreendia à sua maneira a poesia do primeiro dia
de Inverno. Ao acordar experimentava sempre a impressão duma força inteiramente
particular e percebia a chegada do Inverno no bater característico dos pés das
pessoas que entravam na cozinha, no ruído das portas, nos eflúvios ligeiros que
invadiam a casa toda, no ranger das botas no pátio, na frieza singular de todos
os sons exteriores. E quando partia para os campos na companhia de Jokhime
escutava com delícia os rangidos sonoros do trenó escorregando na neve
inviolada e os estalidos ressoantes que trocava a floresta da margem oposta com
a estrada larga e o campo.Desta vez, o primeiro dia branco não lhe trouxe senão uma
melancolia mais profunda do que nunca. Tendo calçado de bom humor as botas altas, saiu para o pátio e, deixando para trás um
sulco ligeiro, dirigiu-se para o moinho, por veredas cobertas de neve.
Uma calma absoluta reinava no jardim. O solo gelado,
coberto dum tapete suave e compacto, estava silencioso e não devolvia eco
nenhum. Em compensação, o ar estava particularmente ressoante e repercutia,
mais claramente e mais plenamente do que nunca, os gritos
da pega, os golpes do machado e o fraco estalido dum ramo que se quebrava
subitamente. De tempos a tempos distinguia-se um som estranho, que parecia
produzido pela vibração dum vidro frágil. O ruído subia a alturas inconcebíveis
e dir-se-ia morrer nos longes inacessíveis. Eram garotos que atiravam pedras ao
tanque da aldeia, coberto pela delgada camada do primeiro gelo.
O tanque do castelo estava também gelado; mas o riacho
junto do moinho, que se tornara lento e mais negro que o costume, filtrava
ainda entre as margens lanuginosas e murmurava nos açudes.
Pedro aproximou-se do dique e parou. O sussurro da água
era já diferente, mais pesado, sem melodia. Parecia que o frio dos arredores
adormecidos o tinha invadido.Também na alma de Pedro fazia frio e havia sombra. O
sentimento perturbador que, desde a reunião daquela noite feliz e inolvidável,
se duplicara, no seu íntimo, de dúvida, dum certo descontentamento e de
hesitação, tinha já tido tempo de crescer e de ocupar o lugar das emoções e
alegrias de outrora.Evelina estava ausente do castelo. Os laskoulsky tinham
partido para casa da velha condessa Potozka, que insistia por que os velhos lhe
levassem a filha. Depois de, ao princípio, ter resistido, Evelina satisfez por
fim a vontade ao pai, ao qual se tinha aliado com toda a energia o tio Máximo.
Perto do moinho, Pedro recordava-se dos antigos
sentimentos, procurava revivê-los em toda a sua plenitude e perguntava a si
mesmo se sentia verdadeiramente a falta da sua amiga e companheira. Sim,
evidentemente, sentia-a; mas, ao mesmo tempo, verificava que a presença de
Evelina lhe não assegurava a felicidade e que, pelo contrário, lhe causava
certos sofrimentos que se atenuavam com a separação.
Aos seus ouvidos pareciam ressoar-lhe ainda as palavras
que Evelina tinha pronunciado não havia muito tempo. Na memória surgiam-lhe,
com nitidez, todos os pormenores da primeira explicação, sentia na mão os seus
adoráveis cabelos macios, ouvia ainda no seu peito o palpitar do coração da
rapariga. De toda esta cena formava-se ordinariamente uma imagem que o enchia
de alegria. Mas nesta ocasião qualquer coisa de amorfo, como um fantasma vago,
fez passar sobre esta imagem um sopro mortífero, e ela desapareceu. Não
conseguia já reunir as suas recordações nessa plenitude harmoniosa de
sentimento, que o tinha enchido de entusiasmo nos primeiros tempos. Ao
princípio mesmo, a suspeita duma «outra coisa» conservava-se no fundo desta
sensação. Mas agora esta «outra coisa» estendia-se na sua frente, como uma
nuvem tempestuosa se estende no horizonte. Extinguindo-se o som da voz de
Evelina, abria-se um vácuo onde estavam outrora as recordações brilhantes
daquela noite de felicidade. E para preencher esse vácuo subia do fundo da alma
do cego um novo sentimento, tão incómodo como penoso.
Agora queria vê-la!
Dantes experimentava apenas uma dor surda, que o
inquietava duma maneira imprecisa, que o atormentava como uma dor de
dentes a que se não presta senão uma reduzida atenção. O encontro com o sineiro cego tinha comunicado a este mal
a aspereza dum tormento reconhecido e definido.
Ele queria ver Evelina!
Assim decorriam os dias no castelo, amortalhados na neve
e na quietação.Quando as recordações de felicidade jorravam, vivas e
sonoras, Pedro animava-se um pouco e o seu rosto iluminava-se. Mas isto não
durava muito e, sepultados com o andar do tempo, estes minutos claros
impregnavam-se mesmo duma característica inquietadora: parecia que o cego
receava que eles desaparecessem instantaneamente, para nunca mais voltarem.
Este receio tornava-o desigual; momentos de ternura
espontânea e impetuosa e de forte excitação nervosa cediam lugar a dias
inteiros de tristeza acabrunhante e sem consolo. À noite, o piano chorava no
salão, chorava e saturava o ar duma profunda e dolorosa melancolia, provocando
cada som um eco acerbo no coração de Ana Mikhailowna. Enfim, as suas mais
pessimistas apreensões realizavam-se: os sonhos aflitivos da infância voltavam
a apoquentar Pedro. Uma manhã entrou a mãe no quarto do filho.
Ele dormia ainda, mas o seu sono era estranhamente perturbado:
com os olhos meio fechados, filtrava-se um olhar vago por debaixo das pálpebras
soerguidas; o rosto estava pálido e transmitia uma expressão de excitação
geral.Ana Mikhailowna parou e pôs-se a examinar o filho,
esforçando-se por descobrir a causa dessa alteração estranha. Mas somente
conseguia verificar que a inquietação ia aumentando e que o aspecto de Pedro,
adormecido, reflectia cada vez mais uma tensão esgotante.
Subitamente teve a impressão de que um movimento apenas
perceptível se produzira ao de cima da cama do filho. Um raio brilhante de sol
de Inverno veio bater na parede, justamente no travesseiro de Pedro; depois
tremeu ligeiramente, quebrou-se e resvalou mais para baixo. Ainda uma outra vez
e ainda... A pequena linha luminosa deslizava docemente, prudentemente, para os
olhos, sempre meio cerrados, e à medida que se aproximava a excitação de Pedro
aumentava.Ana Mikhailowna conservava-se imóvel, num estado frisante
de pesadelo, e não podia desviar o olhar cheio de pavor daquela pequenina tira
reluzente que lhe parecia descer por sacudidelas ligeiras, mas perceptíveis,
para o rosto do filho. E este rosto empalidecia cada vez mais, alongava-se, contraía-se numa máscara de feições endurecidas pelo esforço
interior. O raio de ouro tocou nos cabelos, iluminou a fronte de Pedro; num
gesto instintivo, a mãe lançou-se para a frente, para defender o seu filho, mas
as pernas não se mexeram, como que retidas pelo medo. Durante este tempo as
pálpebras do adolescente levantaram-se; umas faúlhas brincavam nas retinas
imóveis e a cabeça destacou-se nítida no travesseiro, ao encontro da luz.
Qualquer coisa como um sorriso — podia mesmo dizer-se
como um soluço correu-lhe em convulsão momentânea pelos lábios, e, depois, todo
o seu rosto se condensou de novo num élan imóvel.
A mãe conseguiu enfim vencer o entorpecimento que lhe
prendia o corpo e, aproximando-se da cama, pousou a mão na cabeça de Pedro.
Este estremeceu e acordou.— És tu, mamã? — perguntou.
Levantou-se. Parecia que uma névoa lhe envolvia a
consciência. Mas disse um segundo depois:
— Sonhei novamente. Acontece-me agora muitas vezes, mas
não me recordo de nada...Ao humor desesperadamente melancólico de Pedro sucedia-se
uma irritabilidade nervosa. Ao mesmo tempo a acuidade extraordinária das suas
sensações aumentava dia a dia. O ouvido estava maravilhosamente apurado; ele
sentia a luz com todo o seu ser e demonstrava-o mesmo durante a noite;
conseguia distinguir uma noite de luar duma noite escura e acontecia-lhe
muitíssimas vezes passear longamente no pátio em plena noite enquanto toda a
gente dormia. E, triste e silencioso, entregava-se de corpo e alma à influência
singular do luar, sonhador e fantástico. Nesses momentos a sua face pálida
voltava-se invariavelmente para o globo de fogo que boiava no éter e os seus
olhos reflectiam a luz faiscante dos raios frios.
E quando esse globo, que crescia à medida que se
aproximava da Terra, se cobria dum pesado nevoeiro vermelho e se escondia
lentamente por detrás do horizonte nevado,
o rosto do cego tornava-se mais calmo, mais tranquilo, e ele voltava para o
quarto.Seria difícil dizer em que pensava durante estas
compridas noites. Todo o homem que tem uma consciência passa numa certa idade
por uma crise moral. Suspendendo-se no limiar da existência cheia de actividade
que o espera, esforça-se por definir o seu lugar na natureza, a sua
significação, o seu valor, as suas relações e os seus laços com o universo que
o rodeia. É uma espécie de «ponto morto» muito perigoso, e feliz é aquele que
neste período não provoca um abalo muito violento. Para Pedro, esta crise
agravava-se naturalmente muito mais, pois que à pergunta geral: «Para que
viver?», juntava-se uma pergunta estritamente pessoal: «Qual a razão de viver
para um cego?» E à inquietação provocada por este pensamento lúgubre juntava-se
qualquer coisa de estranho, uma espécie de mortificação física produzida por
uma necessidade insaciável, que tinha um reflexo tão normal como molesto na
formação do seu carácter.Pouco antes do Natal, os laskoulsky regressaram a casa, e
Evelina, com uma animação encantadora e uma alegria juvenil, os cabelos
polvilhados de neve e toda penetrada de frescura e de frio, acorreu ao castelo
e abraçou com uma impetuosidade violenta Ana Mikhailowna, o tio Máximo e Pedro.
No primeiro momento o rosto do cego iluminou-se, como ao sopro duma ventura
inesperada; mas pouco depois reapareceu-lhe a expressão de tristeza habitual.
— Parece-te que te amo? — perguntou
ele num tom glacial à rapariga, no mesmo dia, logo que ficaram sozinhos.
— Mas, meu pequeno, estou certa
disso! respondeu Evelina.--Pois bem... eu não sei ao certo! — replicou o cego, mais
taciturno que nunca. — Não há muito tempo, também eu
estava absolutamente seguro de que te amava acima de tudo no mundo; mas agora
não sei nada. Deixa-me, atende antes aqueles que te convidam a viver uma
verdadeira vida, e fá-lo enquanto não é tarde de mais.
— Porque me atormentas? — queixou-se
Evelina docemente.— Atormento-te, eu? — perguntou Pedro, e de novo uma expressão de egoísmo
voluntarioso lhe endureceu a face. — Ah, sim, tens
razão, é verdade que te atormento! E fica sabendo que te atormentarei assim
sempre, toda a vida, e que não posso comportar-me doutra maneira... não posso
deixar de te atormentar. É a minha natureza, que queres tu? Não o sabia eu
mesmo, mas sei-o agora. Não tenho culpa. O mesmo destino que me privou da
vista, mesmo antes de nascer, pôs-me no coração esta maldade. Nós todos, cegos
de nascença, somos assim. Deixa-me, deixai-me todos, porque em troca do vosso
amor só vos posso dar sofrimentos. Eu quero ver — compreendes o que te digo? —, eu quero ver e não
consigo desembaraçar-me deste desejo. Se pudesse — ainda que fosse uma só vez! — ver o céu, a terra e o
sol! Se pudesse ainda, uma vez também, ver a minha mãe, o meu pai, ver-te a ti
e ao tio Máximo, seria feliz! Lembrar-me-ia sempre, e traria a recordação nas trevas
do resto da minha vida.Com uma tenacidade
verdadeiramente surpreendente, voltava sempre a esta ideia. Desde que ficasse só, tomava nas mãos
diversos objectos apalpava-os com uma atenção verdadeiramente extraordinária e
depois, pondo-os de lado, esforçava-se por se aperfeiçoar no conhecimento das
suas formas. Reflectia igualmente nas diferenças entre as superfícies
escarlates e coloridas que, graças à sensibilidade extrema do seu sistema
nervoso, ele percebia com a ajuda do tacto. Mas tudo isto penetrava na
consciência justamente e unicamente como diferenças, como correlações mútuas de
coisas, sem lhe dar a menor noção da substância real dessas mesmas coisas.
Presentemente não distinguia um dia de sol da obscuridade nocturna senão pelo
efeito da luz, que, impressionando-lhe o cérebro, por vias subconscientes, lhe
provocava crises cada vez mais terríveis.
Um dia, entrando o tio Máximo no salão, encontrou lá
Evelina e Pedro. A rapariga parecia confusa; o rosto do cego estava carregado.
Parecia, havia algum tempo, que sentia uma espécie de
necessidade irresistível de procurar novas fontes de dor e de martirizar os
outros tanto como se martirizava a si.
— Ele pergunta-me o que é o «repique vermelho» — disse Evelina ao tio Máximo —, e eu não lhe sei explicar.
— De que se trata? — perguntou
Máximo laconicamente a Pedro.O cego encolheu os ombros.
— Para falar a verdade, nada de extraordinário. Mas desde
que os sons têm cores e eu não vejo, resulta daí que os sons e os ruídos não me são acessíveis em toda a sua
plenitude. Ora aí está! — Bagatelas e mais nada! — respondeu o tio Máximo, decisivo. — Tu mesmo compreendes
muito bem que isso não é assim ; os ruídos são-te acessíveis numa medida que
ultrapassa, e muito, a nossa.— Mas então esta expressão verbal, que significa?
Representa alguma coisa? Sim, ou não?
Máximo ficou pensativo.
— É uma simples comparação — disse por fim. — Dado que o som não é senão o efeito do movimento, como a luz,
devem ter os dois muitos traços comuns.
— Bom! De que propriedades
naturais se trata nesse caso? — continuou o cego
obstinadamente. — «O repique vermelho» o que é?
Máximo recaiu em meditação. Veio-lhe repentinamente ao espírito uma explicação respeitante aos relativos entre os números de vibrações, mas sabia perfeitamente que não era a nada disso que o cego
se aferrava. Além disso, dizia-se que aquele que primeiro se serviu do epíteto estritamente visual
no domínio auditivo não conhecia seguramente a
física. O que não o impedira de apreender uma
certa semelhança. Onde residia ela?
Principiou a formar-se no espírito do velho uma imagem.
— Espera — disse ele. — De
resto, não sei se conseguirei explicar-te como deve ser. Tu sabes tão bem como
eu o que significa «o repique vermelho». Mais de uma vez o ouviste nos dias de
festa, mas esta expressão não é corrente no nosso pais.
— Ah, sim, sim, espere! — interrompeu
Pedro, e abriu rapidamente o piano. Com mão segura bateu as teclas,
imitando o toque majestoso dos sinos. A ilusão era absoluta. Um acorde de
algumas sonoridades médias compunha uma espécie de fundo, sobre o qual se
destacavam, alegres e saltitantes, notas mais claras e mais rápidas do registo
superior. Em suma, era justamente esse canto alto, alegre e excitante que
inundava ordinariamente o ar de festa.
— Sim — disse o tio Máximo —,
isso assemelha-se muito, e nós, os que vemos, não poderíamos nunca apreender
melhor que tu essa parecença. Compreendes, meu pequeno... Quando olho uma
grande superfície vermelha, ela produz na minha vista a mesma impressão
inquietante que uma coisa que fosse rígida e vacilante ao mesmo tempo.
Parece-me que o vermelho muda, conservando sempre o mesmo fundo escuro;
eleva-se aqui e ali em manchas mais claras, que se destacam vivamente e tornam
a cair igualmente rápidas... Se queres, são ondas que se agitam fortemente
sobre a vista, sobre a minha vista, pelo menos.
— Justamente, justamente! — exclamou
Evelina. — Também eu experimento a mesma sensação e não posso, por exemplo,
olhar durante muito tempo para um tapete de pano vermelho.
— Exactamente como certas pessoas que não suportam o
repique de festa. Para que a minha comparação seja satisfatória, ocorre-me ao
espírito uma outra. Sabem que existe entre nós ainda uma expressão: «o repique
morango», à maneira da cor «morango». Esta aproxima-se do vermelho, mas é mais
profunda, mais unida, mais doce. Diz-se entre nós que toda a campainha, depois
dum largo uso, soa muito melhor; é que a sua tonalidade perde pouco a pouco as
irregularidades que feriam o ouvido ao princípio, e então a campainha produz o
som que se chama som «morango». Pode-se chegar ao mesmo resultado escolhendo
uma combinação de sinos pequenos de igreja.
Sob os dedos de Pedro o piano ressoou, como uma porção de
campainhas de estação telégrafo-postal.
— Não! — disse o tio Máximo. — Eu diria que é vermelho de mais.
— Ah! Cá está! Recordo-me...
E o instrumento pôs-se a vibrar mais por igual. Altos,
animados e claros ao princípio, os sons tornavam-se cada vez mais profundos e
suaves. Dir-se-ia o tilintar duma escala de guizos, presos ao arco duma tróica
russa, correndo numa estrada poeirenta para distâncias desconhecidas, e
desaparecendo docemente... sempre mais doce até morrerem as últimas notas no
silêncio dos campos sossegados.— Aí está! — bradou o tio
Máximo. — Compreendeste a diferença. Noutro tempo, quando tu ainda eras pequeno, a tua mãe
tentou explicar-te as cores pelos sons.
— Sim, eu lembro-me. Porque não nos deixou continuar?
Talvez eu conseguisse compreender.
— Não — respondeu o velho
mutilado, pensativo —; não, não valeria de nada. Creio, além disso, que a uma
certa profundidade da alma as impressões provocadas pelas cores e pelos sons
são já uniformes. Lemos frequentemente: «Este homem encara a vida por um prisma
cor-de-rosa...» Isso quer dizer que esse indivíduo tem bom humor. A mesma
disposição de espírito pode ser criada por um conjunto estudado de sons. Em
geral, os sons e as cores são os símbolos dos movimentos mentais.
O tio Máximo acendeu o cachimbo e encarou atentamente o
sobrinho. O cego mantinha-se imóvel e escutava avidamente o seu interlocutor.
«Devo continuar?», pensava o velho; mas um instante
depois abandonava-se já, como contrariado, ao curso bastante estranho dos seus
pensamentos.— Sim, sim, é bem assim... Ideias singulares me vêm
muitas vezes ao espírito. É, na verdade, um facto ocasional que o nosso sangue
seja vermelho?— É vermelho... quente — disse o
rapaz, meditativo.— Justamente — vermelho e
quente. A cor vermelha, assim como os sons vermelhos, dão à nossa alma
claridade, excitação e impressões de sensibilidade que nós designamos
exactamente por «quentes>-., «ardentes», etc...
Note-se que os artistas chamam aos tons
vermelhos e avermelhados «tons quentes».
O tio Máximo aspirou o fumo, envolveu-se em espirais
azuis e continuou:— Brandindo o teu braço por cima da cabeça, traças um
semicírculo. Suponhamos agora que o teu braço é infinitamente longo.
Ora, se pudesses fazer um movimento com esse
braço desmedido, traçarias um semicírculo nos
espaços infinitos. É assim que vemos o hemisfério do céu, que é infinito, azul
e puro. Quando o vemos assim, a nossa alma enche-se duma sensação de serenidade
e de calma. Mas quando o céu se cobre esta serenidade de alma enfraquece e começa a desaparecer. Sentes a aproximação duma tempestade, não é assim?
— Sim, tenho então uma sensação estranha, como se alguém,
ou alguma coisa, me apertasse a alma.
— É isso! Esperamos com impaciência que o azul profundo
reapareça por detrás das nuvens. Logo que a tormenta passe, o céu retomará as
suas cores. Nós sabemo-lo muito bem, e é por isso que esperamos o fim da
borrasca. Portanto, o céu é azul. O mar também é azul quando está calmo. A tua
mãe tem os olhos azuis. Evelina também...
— Como o céu... — disse o cego
com uma ternura inesperadamente revelada.
— Como o céu, perfeitamente. Os olhos azuis são sinal
duma alma serena. E agora queres que te diga duas palavras a respeito da cor
verde? O solo é negro. Os troncos das árvores, na Primavera são negros ou
pardos; mas desde que os raios claros e quentes do Sol
aquecem as superfícies escuras, principiam a crescer ervas verdes e folhas
verdes. A verdura tem necessidade de luz e de calor, mas em proporções
moderadas. É por isso que a verdura é tão agradável à vista; ela evoca imagens
de alegria tranquila, de saúde, mas não as das paixões e do que a gente chama felicidade.
Compreendeste?— Não! Isso não é suficientemente claro. Mas não tem
importância, continue sempre.— Pois sim, continuo, ainda que nada consiga. Desde que o
Verão se torna mais quente, a verdura parece começar a fatigar-se da
superabundância de forças vitais, as folhas pendem, languescentes, e se o calor
não é doseado pela humidade da chuva a verdura pode perecer completamente. Mas,
no Outono, o fruto que se esconde na folhagem fatigada fica cheio e escarlate.
Faz-se vermelho justamente do lado onde há mais luz, e dir-se-ia que lá se
concentra toda a força da vida, todo o ardor da natureza, da flora. Vês bem que
aqui também o vermelho é a cor da paixão, de que é o símbolo. É a cor da
embriaguez dos sentidos, do pecado, da fúria, da cólera e da vingança. O povo,
em todos os países, na ocasião das rebeliões, exprime os sentimentos que o
abrasam, na bandeira vermelha que flutua por cima das suas cabeças como uma
flâmula. Já não compreendes bem?— Não importa, continue!
— Mas eis que chegam os últimos dias de Outono. O fruto
já está muito pesado. Não podendo mais, desprende-se do ramo materno e cai,
maduro, ao chão. Morre, mas já um germe lá vive, e nesse germe estão
contidas, latentes, todas as possibilidades, toda a planta futura, com toda a
sua folhagem cerrada e com o fruto que há-de vir. O germe cai no solo. A terra
já está aquecida e iluminada por um sol frio; é varrida cada vez mais,
fustigada pelos ventos, e envolvida em nevoeiros húmidos.
Não somente a paixão, mas a própria vida, se entorpecem lentamente,
imperceptivelmente. Por baixo da verdura, o solo aparece completamente negro,
todo negro, e cambiantes sempre frias, impiedosamente cinzentas, reinam
na atmosfera. Mas um dia vem em que esta terra, resignada e triste como
uma viúva, se cobre de milhões de flocos de neve, e então torna-se monótona,
igual, fria... e branca. O branco é a cor da neve fria, a cor das imagens mais longínquas
da terra, que flutuam na frialdade inacessível dos céus — a cor dos cumes altivos e estéreis. É
o emblema da impassibilidade, da santidade austera e melancólica; enfim, o
emblema da vida árida do Além. Quanto à cor negra?...
— Eu sei... eu sei...-cortou o cego. — é... quando não há sons, nem
movimentos. É a noite!— Sim, meu rapaz, sim! É o emblema da tristeza e da
morte.Pedro estremeceu e disse com voz surda:
— Tu mesmo o disseste: da morte. Mas para mim tudo é
negro em redor... sempre e por toda a parte negro.
— Isso não é verdade! — respondeu
o tio Máximo, que se tornou brusco. — Há muita coisa bela e boa para ti; os
ruídos, o calor, o movimento e o amor. Tu estás rodeado de amor. Muitos são
aqueles que gostariam de sacrificar
a luz dos seus olhos para dispor daquilo que tu desdenhas, tu, louco que és!
Passeias por todos os lados a tua desgraça, como um autêntico egoísta.
— Sim — gritou com veemência
Pedro. É contra vontade que eu a passeio, como tu dizes.
Como queres que me furte a ela, se ela me segue sempre e por toda a parte?
— Bastaria apenas que quisesses reparar que a vida
regurgita de infelicidades que são cem, mil vezes mais terríveis que a tua!
Existem desgostos em face dos quais a tua vida assegurada e a tua existência,
que goza da compaixão geral, são um verdadeiro bem-estar, um sonho ou conto de
fadas, mas...— Não é verdade! Não é verdade! — interrompeu
o cego num tom de arrebatamento apaixonado. — Eu desejaria trocar a minha
situação com o mais miserável mendigo, pois ele é bem mais venturoso que eu. E,
por outro lado, os cegos não têm necessidade nenhuma de estar cercados de
cuidados; é um grande erro! Eles só pedem uma coisa: que os guieis à estrada
larga e os deixeis aí pedir esmola. Se eu fosse um simples pobre de pedir,
seria com certeza menos desgraçado e suportaria privações muito menores que agora.
— Acreditas? — perguntou o tio
Máximo friamente ; e olhou na direcção de Evelina. Um sentimento de piedade e
de pesar brilhou nesse olhar.A rapariga estava branca e o seu rosto patenteava uma
expressão grave como nunca.— Sim, acredito — respondeu Pedro,
inflexível. — Mesmo agora, invejo Jorge, que trabalha lá em baixo na torre. Muitas
vezes, ao acordar, e sobretudo quando uma tempestade de neve sepulta tudo lá
fora, lembro-me de Jorge e vejo-o subir à sua guarita.
— Mas há frio na sua guarita — disse-lhe Máximo, baixinho.
— Sim, eu sei... há lá muito frio; ele treme e tosse. E pragueja contra o pai
Panfílio, que lhe não quer comprar uma peliça. Depois aproxima-se dos sinos;
agarra as cordas com as mãos transidas de frio e toca as matinas. Talvez se
esqueça de que é cego. Quanto a mim, não esqueço nunca a minha enfermidade, e
eu...— E tu não tens ninguém a quem recriminar.
— Sim, é assim mesmo. Não tenho nada a censurar a
ninguém. Toda a minha vida é preenchida pela minha cegueira. Ninguém tem culpa,
mas isso não impede que eu seja mais infeliz que qualquer mendigo.
— Não quero discutir contigo — disse o tio Máximo, cada vez mais pensativo. — É possível que tenhas razão. De
toda a maneira, há uma coisa que é certa: se a tua vida fosse pior do que é
agora, tu, pessoalmente, serias melhor.
Lançou ainda um olhar condoído à rapariga e saiu do
quarto, batendo com as muletas no chão.
Tendo-se agravado a sua disposição dolorosamente depois
desta conversa, Pedro entregava-se cada vez mais à análise penosa que lhe
devorava o cérebro. Por vezes conseguia aquilo que procurava: encontrava por
breves instantes as sensações de que lhe falara o tio Máximo, e acrescentava-as
às suas concepções da distância.Triste e soturna, a terra estendia-se infinitamente. Pedro
desejava medi-la, mas não possuía meio de o fazer; alguma coisa lho arranjou...
Um trovão atordoante rolava na sua memória, e nesses momentos concebia, ou
quase, a noção do espaço e do infinito do universo. E depois o trovão cessava,
mas no alto, no céu, ficava sempre qualquer coisa que lhe fazia nascer na alma
impressões de grandeza e de claridade. De tempos a tempos, essas impressões
definiam-se: a voz de Evelina misturava-se com elas e a da mãe também, «cujos
olhos eram como o céu». Então a imagem que se esboçava no fundo da sua
imaginação, e que quase se precisava por completo, desaparecia de súbito, ou,
mais exactamente, passava para um outro domínio de concepções.
Todos estes fenómenos, extremamente vagos e obscuros,
afligiam-no e tiravam-lhe toda a satisfação. Requeriam esforços consideráveis,
e, no fim de tudo, eram de tal forma indecisos que ele sentia um
descontentamento contínuo, seguido duma dor pesada e aguda ao mesmo tempo,
penetrando todo o seu ser, que, em busca de satisfação nas suas sensações, não
queria de forma nenhuma parar diante de um obstáculo, fosse ele qual fosse.
Chegou a Primavera.
À distância de cerca de sessenta verstas do castelo de
Popelsky, na direcção oposta ao domínio dos Stawroushinkos, uma cidade atraía muitíssima gente, graças a uma milagrosa imagem católica. Os iniciados
descreviam em todos os seus pormenores o poder extraordinário dessa imagem
sagrada: todo o homem que fosse a pé vê-la no dia da sua festa beneficiava de
vinte dias de indulgência, durante os quais o bom Deus lhe perdoava todos os
pecados que ele cometesse durante esse período. É por isso que todos os anos, logo no começo da Primavera, num dia fixo e
conhecido de toda a região, a pequena cidade de província se animava,
até ao ponto de mudar completamente de aspecto.
A velha capela era enfeitada na altura da festa com as
primeiras verduras e as primeiras flores primaveris.
O ar enchia-se do repique festivo dos sinos; divisavam-se
em todos os cantos as carruagens dos proprietários das vizinhanças e os
peregrinos marchavam em bando pelas ruas e praças, chegando mesmo a
embrenhar-se pelos campos. Não eram somente católicos que lá iam. A fama da
célebre imagem espalhava-se por todo o país e seduzia numerosos ortodoxos,
doentes e melancólicos, que na sua maior parte pertenciam à burguesia.
No próprio dia de festa os crentes alinhavam-se numa fila
interminável e heterogénea dos dois lados da capela. Aquele que contemplasse
este espectáculo do alto duma das colinas que rodeavam a povoação teria tido,
sem dúvida, a impressão de que uma serpente gigantesca se estirava pela estrada
junto da capela, e aí se mantinha imóvel, agitando somente, de tempos a tempos,
as escamas mates e multicolores. Uma multidão de Mendigos, importunando os
peregrinos com súplicas, postava-se nas bordas da
estrada, cheia de homens, mulheres e crianças, chegados de todos os lados.
O tio Máximo, sobre as muletas, e ao lado Jokhime, com
Pedro, passavam lentamente ao longo da rua que conduzia à saída da cidade em
direcção aos campos.Os gritos da multidão de vozes múltiplas, a algazarra dos
mercadores judeus, o estrondo dos carros, todo este tumulto que rolava numa
vaga enorme e produzia um bramido incessante, vibrando como uma corda, tinha
ficado para trás deles. Mas mesmo aqui, se bem que a turba estivesse mais
espalhada, se ouvia o estrépito dos transeuntes, o ranger das rodas e as vozes
das pessoas, num movimento contínuo. Um séquito de carroças de aldeões chegava
do campo, com um estrondo de fazer arrebentar os tímpanos, e virava para uma
ruela próxima.Pedro seguia docilmente o tio Máximo e não prestava senão
uma fraca atenção ao que ocorria à volta de si. Aconchegava a todo o momento o
sobretudo, pois fazia frio, e, enquanto caminhava, agitavam-se-lhe
continuamente na cabeça pensamentos fatigantes.
Mas, de súbito, no meio das suas meditações egoístas, um
espectáculo o impressionou a tal ponto que tremeu e parou, chumbado ao chão.
Terminavam nessa altura as últimas casas da cidade.
Abria-se uma larga estrada entre um grande número de valados e de extensos
terrenos. Mesmo no limite dos campos, uma mão piedosa tinha edificado um pilar
de pedra com uma imagem e uma lanterna, que se limitava a gemer ao vento e não alumiava nunca. Ao
pé deste pilar estavam amontoados pedintes cegos, escorraçados, pelos
concorrentes com vista, dos lugares mais bem situados e vantajosos. Com escudelas de madeira nas mãos, mantinham-se quase
imóveis, e só de tempos a tempos um deles encetava uma cantilena chorosa.
— Dai aos pó... bres cé... gos, em no... me de Cris...
to...Era um dia acentuadamente fresco, e os mendigos, pobres
diabos que ocupavam os seus lugares desde manhãzinha, se não desde a madrugada,
estavam expostos ao vento flagelador que vinha dos campos. Era-lhes impossível
circular por entre a multidão para reanimarem um pouco, e nas suas vozes,
psalmodiando cada um por sua vez canções vagarosas e aflitivas, havia o eco dos
seus males físicos e do seu completo desamparo. Percebiam-se bem os primeiros
sons, mas em seguida um murmúrio queixoso escapava-se daqueles peitos
atrofiados e morria num ligeiro tremor provocado, que se tornava por fim
intolerável. Entretanto, a mais insignificante e a mais primitiva melodia, que
se perdia, por vezes, no alarido da rua antes de chegar a ouvidos humanos,
chocava o ouvinte pela intensidade da agonia que nela se encerrava.

O Mendigo Cego - Jules Bastien Lepage
Pedro estacou, e o rosto crispou-se-lhe subitamente, como
se um fantasma sonoro tivesse surgido diante dele sob a forma de gemidos,
cheios duma angústia indizível.— Porque estás espavorido? — perguntou-lhe o tio Máximo. — Mas são
justamente estes lamentos abençoados que tu invejavas não há muito tempo. São mendigos cegos que
pedem esmola. Bem entendido que eles têm um certo frio... Mas, na tua opinião,
estão perfeitamente...— Passemos! — gritou Pedro,
agarrando-lhe na mão.— Ah! Bem... Já queres passar... Em face do verdadeiro
sofrimento alheio não encontras eco no teu coração.
Mas espera um pouco, peço-te. Queria falar-te inteiramente a sério e ficaria
satisfeito se fosse aqui mesmo. Lamentas-te constantemente de que os tempos
mudaram e de que os cegos não participam, como Iurko, o tocador de bandurra, de
terríveis combates na noite, e que os não matem. Irritas-te por não teres
motivos de recriminação, como Jorge, o sineiro, e, ao mesmo tempo, amaldiçoas a
família que te ama ternamente e que acusas de te ter privado de todas as
vantagens de que gozam os cegos. Palavra, é natural
que tenhas razão. Sim, juro pela minha honra de velho soldado que cada um tem
todo o direito de dispor da própria sorte. És um homem; logo... Mas, ainda
assim, escuta o que te vou dizer: se queres reparar todas as nossas faltas,
todos os nossos erros, se queres arremessar à face do destino todas as mercês
de que a vida te rodeou desde a mais terna infância, dize-mo francamente; e
então eu, Máximo Iatzenko, prometo-te toda a minha estima, a minha ajuda e tudo
aquilo de que disponho. Pedro, ouves-me bem? Repara
no que te digo. Era um pouco mais velho do que tu quando me lancei na luta...
Como faz agora a tua mãe, a minha também chorou lágrimas ardentes quando eu
parti. Mas, que diabo!, eu acreditava que agia no meu
pleno direito, como tu neste momento.
Uma vez na vida acontece a mesma coisa ao homem. O destino aproxima-se de nós e
diz: «Escolhe!» Ora tu não tens agora mais nada senão escolher!
Dito isto, voltou-se para os cegos e gritou:
— Teodoro Kandiba, estás aí?
— Pois decerto que estou. É o senhor que me chama, Máximo Mikhailowitch?
— Sim, meu amigo, sou eu. Queres
ir, de hoje a oito dias, onde te disse?
— Irei, senhor; irei sem falta.
Neste meio tempo a voz do cego juntou-se de novo ao coro
dos camaradas.— Bem! — disse o tio Máximo, e
os olhos brilharam-lhe. — Escuta, Pedro... Vais conhecer um homem que tem tanto
direito de se queixar da sua sorte como da gente. Aprende com ele como se pode
suportar a desgraça.— Ora vamos! — disse com maldade
Jokhime, lançando um olhar furioso ao velho mutilado.
— Não dês importância, Pedrinho...
— Alto! — gritou, por seu turno,
maliciosamente, o tio Máximo. — Ninguém passa diante dos cegos sem lhes dar
dinheiro. É possível que te fosses daqui sem ao menos esboçares esse gesto
insignificante? Tu, homem farto e que invejas as criaturas que têm fome! Tu,
que não podes só blasfemar! É vergonhoso isso!
Pedro levantou a cabeça, como se o tivessem esbofeteado.
Tirando a bolsa da algibeira, dirigiu-se para os cegos. Tacteando
com a bengala o primeiro enfermo, encontrou com as mãos a malga de madeira, contendo
algumas peças de cobre, e lá pôs cuidadosamente o
seu dinheiro.Alguns transeuntes pararam e olharam com espanto este
rapaz gentil, belo e elegantemente vestido, que, às apalpadelas, dava esmola a
um cego, que, igualmente às apalpadelas, lha aceitava.
Durante este tempo o tio Máximo voltou-se bruscamente e
seguiu a coxear pela rua. Tinha o rosto afogueado e os olhos brilhavam-lhe.
Passava, evidentemente, por uma das crises conhecidas de todos no período da
sua juventude. Neste momento não se tratava dum pedagogo sopesando as palavras
antes de as dizer; era um homem vítima das suas paixões, que dava livre curso à
sua cólera ardente. Mas repentinamente lançou um olhar de través a Pedro e
pareceu sossegar um pouco. Pedro estava pálido como um lençol, mas o sobrolho
tinha carregado e o seu rosto reflectia uma agitação desusada, mesmo para ele.
Um vento frio ergueu turbilhões de poeira, que ele fazia
ir adiante de si pela povoação adiante. De roda do pilar, no meio dos cegos,
soltavam-se gritos e injúrias, por causa do dinheiro dado por Pedro.
Seria difícil dizer se era consequência dum resfriamento
ou o resultado duma crise moral, ou, enfim, as duas coisas juntas, mas o certo
é que na manhã seguinte Pedro estava doente, de cama, com uma febre nervosa. Com a face crispada, agitava-se no leito e, de
vez em quando, prestava atenção a ruídos imperceptíveis e tinha o ar de quem
queria correr perdidamente para qualquer parte. O velho médico da pequena
cidade apalpava o pulso do doente e falava do vento frio do Outono.
O tio Máximo franzia as sobrancelhas e evitava olhar a
irmã.A enfermidade anunciou-se tenaz desde o primeiro momento.
Em plena crise, o doente ficou sem se mexer durante dias seguidos. Por fim, o
organismo moço triunfou.Uma manhã — era um dia soalheiro
do Outono — um raio brincalhão penetrou pelos vidros da janela e caiu na
cabeceira da cama de Pedro. Notando-o, Ana Mikhailowna disse a Evelina:
— Puxa o cortinado. Tenho tanto medo desta claridade...
A rapariga levantou-se para executar a ordem, mas a voz
do enfermo ergueu-se pela primeira vez e fê-la parar:
— Não, não, está bem... Peço-lhes... Deixem assim...
As duas mulheres inclinaram-se para ele, contentes.
— Ouves-me, meu querido? Estou aqui, perto de ti, perto
do meu queridinho! — disse a mãe.— Sim... — respondeu Pedro; e calou-se bruscamente, como
se procurasse recordar-se de qualquer coisa.
— Ah, sim — começou docemente, e
fez um movimento inesperado para se levantar... — Dize... o homem... quer dizer,
Teodoro, já me veio ver?Evelina olhou interrogativamente Ana Mikhailowna; a mãe
tapou a boca do filho com a mão.— Chut... chut... Não fales, que
te faz mal... Pedro levou a mão da mãe aos lábios e cobriu-a de beijos. Saltaram-lhe lágrimas
dos olhos. Chorou durante muito tempo, e isso pareceu acalmá-lo um pouco. Durante alguns dias conservou-se meigo e pensativo; mas
um ar de acentuada inquietação se apoderava dele todas as vezes que o tio Máximo
passava diante do quarto.Notando isso, as mulheres pediram ao inválido que se
mantivesse provisoriamente um pouco longe. Mas um dia o próprio Pedro pediu que
chamassem o tio Máximo e os deixassem sozinhos.
Entrando no quarto, o tio Máximo tomou a mão do doente e
acariciou-a com muita ternura.— Está bem, meu pobre amigo; parece-me que desta vez te
devo pedir perdão.— Compreendo — disse, baixo,
Pedro em resposta ao aperto de mão do velho. — Deste-me uma boa lição e estou-te
reconhecidíssimo.— Ao Diabo as lições — trovejou
o tio Máximo, com uma careta de impaciência. — É muito mau permanecer-se
demasiado tempo pedagogo; tornei-me realmente asno. Não, desta vez não pensava
em lição nenhuma; estava simplesmente arreliado contigo, e mesmo comigo.
— Então tu querias, seriamente, que eu...
— Sim, exactamente. Eu queria isso. Quem poderá dizer o
que um homem quer quando, de repente se enraivece! Quereria que sentisses os desgostos alheios e que
deixasses de passear os teus por toda a parte... Eis tudo! Calaram-se ambos um
instante.— Aquela canção — recomeçou
Pedro —, lembro-me dela até no meu delírio. Mas dize, tio, quem é esse Teodoro
que convidaste a vir a nossa casa?
— Teodoro Kandiba é meu amigo velho.
— Ele também é... cego de nascença?
— Pior ainda. Perdeu a vista durante a guerra. Tem os
dois olhos queimados.— E ele passeia pelo mundo entoando aquela canção?
— Sim. Mais ainda: ampara e alimenta um rebanho inteiro
de sobrinhos órfãos. Homem curioso, encontra para cada
um uma palavra alegre e uma amabilidade.
— É verdade? — perguntou Pedro,
admirado.— Dize o que quiseres, mas aí há um mistério. Eu também,
muito quereria...— Que quererias, meu rapaz?
Mas nessa altura ressoaram os passos precipitados de Ana
Mikhailowna, que entrou em seguida no quarto. Pôs-se a encarar, inquieta, os
dois homens e buscava, evidentemente, o motivo da conversa, interrompida pela
sua chegada.Uma vez vencida a doença, o organismo moço de Pedro
acabou por dar depressa fim a tudo que ainda restava. Quinze dias depois já estava
a pé.Mudou muito e até as feições se lhe alteraram. Parecia
que a marca dos antigos sofrimentos morais abandonara para sempre a face
delicada de Pedro. O choque brusco, ressentido em todo o seu ser, tinha feito
nascer uma embaladora fantasia e uma melancolia calma.
O tio Máximo receava imenso que isto não passasse duma
mudança temporária, provocada pelo enfraquecimento da tensão nervosa de Pedro
durante a sua doença.Um dia, ao crepúsculo, aproximando-se do piano, pela
primeira vez desde que esteve doente, Pedro começou a improvisar, segundo o seu
hábito. Os temas eram tão calmos e tristes como a sua disposição.
Mas eis que, inesperadamente, entre uma avalancha de sons
impregnados duma melancolia cativante, saltaram as primeiras notas da canção
dos cegos. A melodia calou-se de repente. Pedro levantou-se bruscamente do
piano; pelo rosto, decomposto, rolaram-lhe grossas lágrimas.
Na mesma tarde, o tio Máximo conversou de novo e
longamente, a sós, com Pedro. Passaram-se semanas depois deste incidente, e a
disposição de espírito do rapaz era sempre a mesma. Parecia que a consciência
excessiva e terrivelmente egoísta do seu mal individual lhe comunicava uma
passividade acabrunhante e carregava pesadamente a sua energia inata,
agitando-a e dando lugar a outra qualquer coisa. Começava outra vez a elaborar
planos, a visar certos objectivos ambiciosos. A vida renascia nele, tenaz e
exigente; a alma, meio despedaçada, fazia renascer os rebentos, como um arbusto
abalado e doente que a Primavera milagrosa faz florir com o seu sopro de
ressurreição.Os Popelsky, numa reunião familiar, tomaram a decisão
firme de mandar Pedro no Verão seguinte para Kieff, a fim de
continuar os estudos com um dos mais célebres pianistas. O tio Máximo insistia
para que partissem os dois, ele e Pedro; e lá o levou.
Por uma tépida noite de Julho, uma caleche meio
descoberta, atrelada a uma parelha de cavalos, estava parada em pleno campo,
perto duma clareira.Na manhã seguinte, de madrugada ainda, passaram na grande
estrada que serpenteava ao lado de dois cegos. Um deles
manobrava a manivela dum instrumento primitivo, composto dum cilindro de
madeira, que girava na abertura duma caixa vazia, e fazia vibrar cordas
fortemente retesadas. O instrumento produzia um rumor monótono e triste. Uma
voz de velho, nasalada, mas muito agradável, cantava uma prece matinal.

Cego Tocador de Viola de Corda - Francisco Herrero o Velho, 1640
Os mujiques ucranianos que passavam na estrada nas suas
carroças carregadas de peixe seco viram dois senhores, sentados num tapete, no meio do campo, ao lado da caleche,
chamar os dois cegos. Quando, um pouco
mais tarde, os carros pararam junto dum poço
para os animais beberem, os cegos passaram novamente diante deles, mas eram
então três. Em cabelo, batendo no chão com um pau comprido, caminhava um velho
de cabeleira grisalha ao vento e de longos bigodes caídos. A testa estava
coberta de cicatrizes de antigas úlceras, provenientes, parecia, de queimaduras; no lugar dos
olhos só se viam cavidades. Trazia ao ombro uma correia larga, presa à cintura
do cego que marchava atrás de si. O outro era muitíssimo robusto, a face
amarela terrivelmente marcada pelas bexigas. Os dois avançavam com passo igual,
regular, a cabeça levantada para o céu, como se lá procurassem o seu caminho.
O terceiro cego era um adolescente, vestido com fato de
aldeão, completamente novo. O seu rosto impressionava pela palidez e pela
expressão ligeiramente assustada. Os seus passos eram mal seguros e parava de
tempos a tempos, a escutar qualquer coisa, retardando os seus camaradas de
jornada.Pelas duas horas da manhã já eles estavam muito longe. A
floresta estendia-se como uma fita azul no horizonte longínquo. Em redor deles
era só a estepe, e o ar estava cheio da vibração dos fios telegráficos,
aquecidos cada vez mais pelo sol, e que corriam ao longo, atravessando a
estrada envolta de poeira. Os cegos desembocaram nesta e tiveram somente o
tempo suficiente de tomar o primeiro cotovelo à direita quando ouviram por trás
de si o trote de cavalos e o ruído seco de rodas rangendo nas pedras miúdas.
Os cegos alinharam à borda da estrada:
— Dai qualquer coisa aos pobres cegos...
Ao ruído do cilindro de madeira misturava-se agora o
canto suave das cordas, sob os dedos do adolescente.
Uma moeda tiniu, caindo aos pés do velho Kandiba. O rumor
das rodas cessara; os passeantes pararam, evidentemente para observar se os cegos encontravam a moeda.
Kandiba achou-a apalpando um momento e o rosto reflectiu imediatamente todo o
seu contentamento.— Que Deus vos abençoe! — disse
ele para a caleche, onde estava imobilizado o corpo quadrado dum senhor
grisalho, tendo ao lado duas muletas.
O cavalheiro de idade olhou atentamente para o cego mais
novo. Este estava ainda pálido, mas muito mais sereno. Aos primeiros sons da
canção, os dedos correram-lhe nervosamente pelas cordas, como se procurassem a
melhor maneira de adoçar os sons, antes
bruscos e duros, do instrumento. A caleche continuou o seu caminho, mas o velho distinto voltou-se repetidas vezes para os enfermos,
que retomaram a estrada. Dentro em pouco, o fragor das rodas extinguiu-se ao
longe. Os cegos alinharam-se e seguiram o seu caminho.
— Sabes, Iury, és muito habilidoso — disse Kandiba — e tocas muito bem.
Passado um minuto, o cego que estava no meio perguntou:
— Que vais fazer a Potskaieff?
Prometeste isso? Fizeste algum voto?
— Sim! — respondeu de mansinho o
jovem. — Esperas que Deus te restitua a vista? — perguntou ainda o cego do centro, com um
sorriso amargo.— As vezes acontece... — disse o
velho, conciliador...— Há muito tempo que corro mundo, mas nunca encontrei um
caso desses! — ripostou o cego bexigoso. E continuaram
o caminho. O sol continuava a subir; só se via a linha branca da
estrada, direita como uma flecha, os corpos escuros dos cegos e o ponto negro
da caleche que acabava de passar. Depois a estrada bifurcava-se. A carruagem
tomou a direcção de Kieff. Os cegos viraram à direita, seguindo caminhos
adjacentes a Potskaieff, célebre pelo seu mosteiro.
Uma carta chegada de Kieff informava os habitantes de que
tudo ia bem. O tio Máximo escrevia que os dois se encontravam bem e tudo se
havia de arranjar o melhor possível.
Durante esse tempo, os três cegos caminhavam para mais
longe. Nesta altura já andavam os três com passo igual. Como anteriormente,
Kandiba, batendo no chão com o pau, mantinha-se à cabeça do grupo. Conhecia
perfeitamente todos os caminhos, grandes e pequenos, e conseguia, sem errar,
chegar a aldeias importantes nos dias de festa, onde os lugares de mercados
regurgitavam de gente vinda de toda a parte.

Caravana de ciegos - Manuel Vega Lopez
A pequena orquestra atraía os
amores apaixonados e as peças de metal não cessavam de tilintar alegremente no
boné de Kandiba.Toda a expressão de perturbação e receio desaparecera,
havia muito, do rosto do rapaz e tinha sido substituída por outra completamente
diferente. A cada passo chegavam até eles novos ruídos, provenientes dum mundo
estranho, vasto, enorme, que substituía perfeitamente o murmúrio dolente e
embalador do castelo.Os olhos cegos tornaram-se-lhe maiores; parecia que o
peito também se alargava e que o ouvido se desenvolvia em proporções incríveis.
No meio da multidão reconhecia ele sem a menor
dificuldade os companheiros: Kandiba, sempre bondoso e compreensível, e Kouzna,
invariavelmente irascível. Gostava de caminhar atrás das carroças estridentes
dos mujiques, dormia junto das fogueiras na estepe, escutava com prazer o
alarido dos mercados e das feiras de aldeia e aprendia a verdadeira natureza da
infelicidade, tanto dos que viam como dos cegos, diante da qual já mais duma
vez o seu coração se tinha confrangido dolorosamente.
Coisa extraordinária: hoje encontrava lugar bastante na
sua alma para todas estas sensações. Tinha assimilado completamente a arte
vocal dos vagabundos cegos, e dia a dia, à voz deste mar imenso de sofrimentos
humanos, as suas aspirações individuais para objectivos inacessíveis serenavam
cada vez mais. A sua memória, extremamente sensível, apanhava todas as novas
canções ou melodias e, no momento em que, ao caminhar, ele começava a dedilhar,
branda e docemente, as cordas do instrumento, o próprio Kouzma, de aspecto
soturno e cheio de fel, reflectia um contentamento calmo, roçando o êxtase.
À medida que se aproximavam de Potskaleff, aumentava o
bando de cegos.Num dos últimos dias de Outono, na estrada obstruída
pelas primeiras neves, com grande espanto de todos, Pedro, acompanhado de dois
cegos e miseravelmente vestido como um verdadeiro mendigo, regressou ao
castelo. Segundo uns — e eram muitos —, Pedro tinha
partido de Potskaleff com o único fim de obter a cura, por meio de orações.
No entanto, os seus olhos estavam como dantes: puros e
cegos. Mas a sua alma sem dúvida que tinha sarado. Dir-se-ia que um pesadelo
terrível abandonara para sempre o castelo. Quando o tio Máximo, que continuava
a escrever, cada vez mais bem disposto, voltou, enfim, a casa, Ana Mikhailowna,
correndo ao seu encontro, bradou-lhe, indignada:
— Nunca mais na minha vida te perdoarei isto! — Mas
via-se claramente que as palavras estavam em flagrante desacordo com a
expressão dos seus olhos.Durante noites inteiras Pedro relatou a sua vida de
vagabundo e, ao anoitecer, ressoavam ao piano novas melodias, que ninguém em
casa até aí tinha ouvido.A viagem a Kieff foi adiada para o ano seguinte e todo o
castelo vivia somente das esperanças e dos planos de Pedro.
CAPÍTULO VIINo mesmo Outono, Evelina anunciou aos pais a decisão
irrevogável de se casar com «o cego do castelo». A mãe desfez-se em pranto. Quanto ao
velho laskoulsky, começou por erguer orações ardentes aos santos familiares e
disse logo que, na sua opinião, era justamente assim que o Todo-Poderoso
exprimia a sua firme vontade!Celebrou-se o casamento. Uma ventura juvenil e calma começou então para Pedro. Todavia, um certo desassossego se
infiltrava no seu bem-estar; nos instantes mais serenos e descuidados na
aparência sorria de tal forma que através desse sorriso se lia uma dúvida
angustiosa, como se ele mesmo considerasse a sua felicidade como qualquer coisa
de ilegítimo e instável. E quando lhe anunciaram que talvez fosse ser pai recebeu
esta notícia com tanto pavor que nem procurava sequer dissimulá-lo.
Contudo, a vida quotidiana, que lhe impunha os esforços
mais sérios e cuidados meticulosos referentes à mulher e ao futuro filho, não
lhe permitia muito concentrar-se nas velhas e estéreis ocupações. Em certos
momentos, no meio destes pensamentos, que lhe absorviam todo ou quase todo o
tempo, subiam-lhe ao coração reminiscências ligadas estreitamente aos gemidos
chorosos dos cegos. E então partia para a aldeia, em cuja extremidade se
encontrava a nova cabana de Teodoro Kandiba. Este pegava na sua cozba, ao som
da qual cantava de maneira que fazia correr as lágrimas. Às vezes conversava
tranquila e longamente, e as inquietações de Pedro desfaziam-se como por
milagre e os seus planos consolidavam-se.
Agora era bem menos sensível às sensações luminosas
exteriores e a agitação interior de outrora tinha abrandado. Parecia que as
forças orgânicas, que lhe comunicavam a perturbação, estavam adormecidas, e ele
procurava não as despertar, graças ao trabalho assíduo da vontade, que lhe
ditava, lhe sugeria, que reunisse num todo sensações diversas. E em lugar
desses esforços inúteis e desagradáveis ele tinha agora fortes e seguras
recordações vivas e esperanças actuais mais ou menos susceptíveis de ter
realização. Mas quem poderia dizer se esta calma espiritual não era devida
muitíssimo mais ao trabalho orgânico subconsciente que se impunha a toda a sua
vida? É assim que nos sonhos a nossa cabeça cria ideias e imagens que não
elaboraria nunca se fosse ajudado e criado pela vontade.
No mesmo quarto onde, um dia, tinha nascido Pedro reinava
um profundo silêncio, interrompido somente pelos vagidos vagos e fracos dum
recém-nascido.Já tinham passado alguns dias após o seu nascimento e Evelina
recobrara rapidamente as forças. Ao contrário, nesses dias, Pedro parecia
esmagado pelo pressentimento duma desgraça próxima e iminente.
O médico tomou a criança nos braços, deu alguns passos
com ela e aproximou-se da janela. Arredando rapidamente o cortinado, deixou
penetrar no aposento um raio claro de sol e, com um instrumento de óptica na
mão, inclinou-se para o recém-nascido. Pedro estava sentado no mesmo quarto, de
cabeça baixa, acabrunhado, e parecia indiferente ao que se passava em torno de
si. Como sabia de antemão o resultado, não prestava a menor atenção aparente ao
exame do médico.— É com certeza cego — repetia
ele. — Não devia ter nascido.O médico, novo ainda, não respondia e continuava as suas
observações. Por fim pôs o oftalnioscópio de lado e ouviu-se no quarto a sua
voz calma e bem timbrada:— A pupila contraiu-se. Não há dúvida nenhuma: a criança
vê bem.Pedro estremeceu e levantou-se rapidamente. Este
movimento demonstrava que tinha ouvido as palavras do médico, mas julgar-se-ia,
pela sua expressão, que não tinha compreendido a significação delas. Apoiando-se com a
mão trémula à ombreira da janela, conservou-se assim, com o rosto, pálido,
erguido para o tecto e as feições absolutamente imóveis.
Até este momento tinha manifestado uma excitação
insólita. Parecia não dar pela sua existência, embora todos os seus nervos só
vibrassem e estremecessem de impaciência.
Sentia vivamente a escuridão que o rodeava como um mar.
Reconhecia-a, sentia-a fora de si, em toda a sua imensidade. Movia-se por cima
de si, e ele abraçava-a na imaginação, media-a, como se quisesse defrontá-la.
Dirigia-se ao seu encontro, desejoso de defender o filho contra esse oceano
formidável de trevas impermeáveis. Permaneceu neste estado de sobreexcitação
extrema todo o tempo em que o médico fez os preparativos. Já estava inquieto
mais cedo ainda, antes do nascimento do filho; mas umas veleidades de esperança
viviam até aí na sua alma, ao passo que agora era tudo diferente. Hoje, a
angústia, terrível e esgotante, tinha atingido o último grau, apossando-se por
completo dos seus nervos, violentamente tensos, ao mesmo tempo que a esperança
se lhe apertava no fundo do coração e ia morrendo, tímida, lânguida...
E, bruscamente, esta frase curta: «A criança vê bem...»,
tinha mudado completamente a sua disposição de espírito. Era um abalo brusco,
um golpe formidável, que penetrava, como um raio fulminante, na sua alma
entristecida. Teve a impressão de que as palavras do médico lhe deixavam um
traço de fogo no cérebro. Uma centelha brotou, em qualquer parte, dentro de si
e abrasou o fundo misterioso do
seu ser... Tudo nele se pôs em movimento e ele próprio tremeu como uma corda
fortemente esticada treme sob o efeito duma pancada inesperada. E a seguir,
imediatamente a este relâmpago, fantasmas estranhos iluminaram-se subitamente
diante dos olhos, que estavam extintos antes mesmo de ele nascer. Não podia
distinguir se eram cintilações ou sons. Eram antes sons que nasciam milagrosos,
tomavam formas cuja natureza se não podia perceber e se moviam, se dispersavam
e se uniam em raios de luz. Brilhavam como a cúpula do céu; rolavam como sol
brilhante na abóbada etérea; vibravam como vibra o murmúrio e o segredar duma
estepe nova e verde; balançavam-se como a folhagem das faias em meditação.
Tal foi o primeiro momento, curto como um pensamento. Só
as impressões entrecortadas e misturadas deste momento se fixaram na sua
memória. Tudo o mais esqueceu ele em seguida. Mas não se cansava de afirmar que tinha
visto durante esse instante.Era absolutamente impossível saber o que ele tinha visto,
como tinha visto e se na realidade vira alguma coisa. Alguns asseguravam que
isso era impossível, mas ele insistia que tinha visto o céu e a terra, a mãe, a
mulher e o tio Máximo.Passaram alguns minutos sem ele se mexer, de cabeça
levantada e a face mais pálida e mais serena do que nunca. Produzia uma
impressão tão fantástica que todos se voltaram para ele e tudo se calou.
Parecia que o homem que estava no meio do quarto não tinha semelhança nenhuma
com aquele que eles conheciam havia muitos anos e, antes, era um outro ser,
completamente diferente e desconhecido. O antigo Pedro tinha desaparecido,
envolto num mistério que o penetrara e transformara de repente.
Este mistério pairou por cima dele durante uns breves
instantes. Apesar de todas as contradições, Pedro conservou durante muito tempo
a certeza inteira de que tinha recobrado momentaneamente a vista, o que lhe
proporcionara uma sensação de alegria sem fim.
Era possível, realmente?
Era possível que ele tivesse visto com os seus olhos
mortos o céu azul, o sol resplandecente e o rio transparente com a colinazinha
ao lado, onde ele tinha experimentado tantas sensações delicadas, melancólicas,
e onde chorara tantas vezes, na sua tenra infância? E depois o moinho, e as
noites com o firmamento cheio de estrelas, quando ele se atormentava
horrivelmente, e a Lua silenciosa, taciturna? E a larga estrada poeirenta, e a
calçada, e a fila de carroças com as rodas cercadas de ferro, e a multidão
heterogénea e multicor no meio da qual ele cantava a canção dos cegos?...
Ou era, talvez, a sua imaginação vigorosa que lhe tinha
gerado imagens fantásticas no cérebro e lá lhe introduzira montanhas
desconhecidas de todos, imensos e prodigiosos vales, árvores esplêndidas que
não existiam em parte nenhuma, inundado todo o quadro de jorros de sol que
tinham admirado inumeráveis gerações de antepassados?
Pode ser que tudo isso se agitasse em sensações nessa
zona profunda do seu cérebro onde, segundo o tio Máximo, as cores
reflectiam tão bem como os sons a satisfação ou a melancolia, a alegria ou a
angústia.Quem sabe?
Quanto a ele próprio, só se recordava duma coisa — desse momento para sempre inolvidável em que o mistério o
tinha envolvido inteiramente. Nesse instante, resplandecentes e deslumbrantes,
as visões sonoras, entrelaçadas e entremeadas profundamente, tinham vibrado,
extinguindo-se depois — como vibra e vai morrendo uma
corda tensa —, ao princípio mais nítidas e em seguida enfraquecendo, cada vez
mais mal perceptíveis, fundindo-se num clarão gigantesco que desmaia numa
noite...O mistério caiu no fundo do oceano e... fez-se silêncio.
Noite plena e silêncio completo... Fantasmas indefinidos,
esforçando-se ainda por renascer das sombras escuras, mas já sem forma, sem
tintas nem cores. Somente os trilos duma escala de música ressoam tímidos, em
qualquer parte, além, muito longe, em filas cerradas e fulgurantes, rasgam o
crepúsculo e caem, enfim, por sua vez, no abismo.
Então parece que os ruídos vindos do outro mundo chegam
aos seus ouvidos sob a forma habitual. Pedro tem o ar de quem desperta, mas
permanece de pé e, radioso, feliz, aperta as mãos da mãe e do tio Máximo.
— Que tens, meu filho? — pergunta-lhe
Ana Mikhailowna, com voz inquieta.
— Deus... Mas parece-me que eu... que vos vi a todos. Não
estou a dormir, não é verdade?— E agora? — inquiriu ainda a
mãe, sempre comovida. — Lembras-te agora? Poderás recordar-te?
O cego suspirou profundamente.
— Não — respondeu ele enfim,
fazendo um grande esforço... — Mas não importa, porque dei tudo isso... a
ele... ao filho e a vós todos...
EPÍLOGO
Passaram-se três anos.
Um público numeroso, aproveitando a época dos Contracts
em Kieff, dirigia-se a um concerto, dado por um músico muito original.
Era cego, mas corria que era dotado de um grande talento
e que, sobretudo, o seu destino era extraordinário. Contava-se que, ainda
criança, terá sido roubado a uma família abastada, por
um bando de cegos, com os quais tinha andado de terra em terra, até que um
célebre professor de música se interessou vivamente, ardentemente, pelo seu
prodigioso talento.Outros diziam que ele tinha abandonado a família
voluntariamente, levado por um impulso puramente romântico. Duma maneira ou
doutra, a sala do concerto estava à cunha e a receita, que era destinada a uma
obra de beneficência ignorada, ultrapassava tudo o que se pudesse esperar.
Um silêncio profundo reinava na sala quando no estrado
apareceu um homem novo, de rosto pálido e olhos grandes e belos. Ninguém o julgaria
cego, se os olhos não ferissem pela sua imobilidade e se o músico não tivesse
sido guiado por uma jovem loura, que parecia ser sua mulher.
— Nada admira que produza uma tão formidável impressão — disse na multidão um melómano, dirigindo-se ao vizinho. — Logo à primeira vista ele cativa pelo seu aspecto extremamente dramático.
Na verdade, essa figura pálida, de expressão sonhadora e
grave ao mesmo tempo, com os olhos fixos, e toda essa distinta apresentação,
faziam esperar qualquer coisa de singular, de desusado.
Em geral, o auditório ucraniano gosta e aprecia as
canções populares. Mas nesta altura a multidão confusa dos Contracts comoveu-se
imediatamente com a profunda sinceridade da expressão musical. O sentimento
vivo do país natal, o sentido original e tocante das fontes directas da melodia
popular, exprimiam-se da maneira mais encantadora na improvisação que, como uma
corrente irresistível, escapava das mãos do músico cego. Rica de cores, leve e
deliciosamente cantante, ondulava em arabescos sonoros, umas vezes elevando-se
em hino solene, inundando a sala, outras vezes repetindo-se em motivos
melancólicos, arrancados ao coração, e que mal se ouviam. Parecia que, por
momentos, uma tempestade formidável crescia no firmamento e rolava sem obstáculo
no espaço infinito. Por vezes, o vento da estepe rumorejava na erva sobre a
colina e trazia em si os sonhos embaladores do passado distante.
Quando acabou, um trovão de aplausos frenéticos encheu a
enorme sala.O cego ficou com a cabeça inclinada, escutando, admirado,
o alarido entusiasta. Mas eis que ele levanta novamente as mãos e toca no teclado. O auditório de milhares
de cabeças tornou-se silencioso num momento.
Neste instante o tio Máximo entrou na sala. Lançou um
olhar atento à assistência, presa pelo mesmo sentimento e que voltava os
olhares ávidos e brilhantes para o cego.
O velho inválido compreendeu e esperou. Mais que ninguém
de entre o auditório, ele compreendia o drama vivo que se reflectia claramente
no tocar de Pedro. Receava que este improviso vigoroso, que se derramava com
tanta facilidade da alma do músico, se interrompesse, como outrora, por uma
questão de angústia dolorosa, capaz de abrir uma nova chaga sangrenta no
coração do seu discípulo. Mas os sons aumentavam, estabilizavam-se, tomavam
amplitude, impunham-se cada vez mais e ganhavam o coração da multidão
enfeitiçada, arrebatada pela mesma alegria.
E quanto mais o tio Máximo escutava, mais nitidamente
retinia nos seus ouvidos um motivo conhecido no toque do cego.
Sim, era bem ela, a rua barulhenta. Uma vaga muito
avermelhada, retumbante, cheia de vida, rola, esparge, derrama chispas,
dispersa-se em milhares de sons. Tanto sobe larga e robusta como cai em
murmúrios longínquos e incessantes, conservando sempre o mesmo tom calmo, solene,
impassível e frio. Subitamente, o coração do tio Máximo apertou-se. Como nos
tempos passados, um gemido saltou das mãos do músico. Saltou, produziu um som
pungente e morreu. E de novo foi o murmúrio repleto de vida, crescendo dum instante para o outro, forte,
brilhante e inconstante, feliz e claro, claro...
Já não eram somente os queixumes do desgosto individual,
os gemidos provocados pelas dores pessoais da cegueira. Lágrimas grossas
deslizaram dos olhos do tio Máximo. Lágrimas corriam pelas faces dos seus
vizinhos.«Recobrou a vista... Sim, sim, achou-a!», pensou o velho.
Todavia, sobre a trama da melodia serena e animada,
venturosa e livre como o vento dos campos e como ele descuidada, entre a
algazarra colorida e atordoadora da vida, sobre o fundo, umas vezes
melancólico, outras vezes majestoso, do motivo da canção popular, uma nota
surpreendente, dolorosa, se destacava cada vez mais frequente, dominadora e
forte.«Muito bem, meu rapaz, muito bem!», encorajava o tio
Máximo em pensamento. «Eles são felizes e contentes; dize-lhes então toda a
verdade. Esse leitmotiv é justamente o que falta. Muito bem...»
Um instante depois só a canção dos cegos, majestosa e
cativante, dominava a imensa sala e a multidão encantada.
«Dai... aos pó... bres cé... gos...» Mas já não era uma
súplica de esmola, um gemido choroso, que abafava o estrépito da rua. Não,
tinha lá tudo o que dantes tinha quando, sob a influência da melodia, Pedro,
não podendo mais, com a face crispada de emoção, fugia do piano, não tendo forças
para lutar com a dor lancinante. Agora tinha triunfado na sua alma e vencia a
alma dessa multidão, dizendo-lhe toda a
profundidade e todo o horror da verdade que governa a vida...
Era a noite sobre o fundo da luz fascinante, era uma chamada
à desgraça no meio da plenitude duma existência feliz. Dir-se-ia que um
estrondo terrível retumbava por cima da multidão e que todos os corações
tremeram, como se Pedro lhes tivesse tocado com os seus dedos vivos e rápidos.
Apesar de ele ter acabado de tocar, a assistência continuava a guardar o mais
profundo silêncio.O tio Máximo baixou a cabeça e pensou: «Sim, ele vê. Ele
substituiu os seus sofrimentos egoístas, cegos e insaciáveis por uma verdadeira
e nobre noção do que é a vida. Já sente a ventura e a desgraça humana.
Recuperou, enfim, a vista e saberá doravante lembrar aos felizes que existem
desgraçados...»E o velho soldado inclinou a cabeça, meditando ainda.
Ele próprio tinha executado tudo que as forças lhe
consentiram. Então não tinha sido de mais na Terra. Asseguravam-lho os sons
cheios de energia e convicção que enchiam e arrebatavam todo o auditório.
E assim começou o músico cego.
FIM
NOTAS
1. Era assim que se chamava antigamente a célebre feira de Kieff.
2. É assim que se chama na Rússia aos últimos dias de Verão.
3. Título entre os cossacos, (N. da T.)
ϟ

texto integral de:
O Músico Cego
(1886) Vladimíro Korolenko Tradução de Natércia Caramalho
Colecção Livros de Bolso Europa América
Publicações Europa-América, 1971
10.Jan.2011
Publicado por
MJA
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