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 Sobre a Deficiência Visual


Um Mundo Auditivo: a música e a cegueira

Oliver Sacks


Músico de rua em West Memphis, Arkansas - foto de Ben Shan, 1935


Quando menino, na Londres dos anos 1930, eu adorava as visitas de Enrico, o afinador de piano que vinha a cada poucos meses afinar os nossos instrumentos.Tínhamos um piano de armário e um de cauda e, como todos os membros da família tocavam, eles estavam sempre desafinando. Uma ocasião, Enrico adoeceu e em seu lugar veio um substituto - um afinador que, para minha surpresa, andava sem uma bengala branca e parecia enxergar normalmente. Até então, eu supunha que todos os afinadores de piano eram cegos, como Enrico. Refleti sobre isso anos depois quando pensei em meu amigo Jerry B. Além de seus muitos outros talentos, Jerry tem imensa sensibilidade para a música e possui extraordinárias capacidades de memória e imaginação musical. Quando lhe perguntei sobre o assunto, disse que não provinha de uma família musical, mas que nascera com catarata congênita, a qual fora operada só quando ele tinha dois anos. Fora funcionalmente cego nos dois primeiros anos de vida. Antes de a catarata ser removida, ele só podia ver luz, sombra e alguns movimentos. E isso, a seu ver, forçara-o a se concentrar nos sons de todos os tipos, especialmente vozes e música. Essa sensibilidade especial ao mundo auditivo ele conservou por toda a vida. Era um caso semelhante ao de meu paciente Martin, o savant musical, que usava óculos com grossas de lente de cristal como Jerry B.; Martin nascera com severa hipermetropia, de mais de vinte dioptrias, que só foi diagnosticada e corrigida quando eleja tinha quase três anos. Também deve ter sido funcionalmente cego na primeira infância, antes de usar óculos. Isso teria tido alguma influência para torná-lo um savant musical?

A imagem dos músicos e poetas cegos tem uma ressonância quase mítica, como se os deuses houvessem concedido os dons da poesia e da música para compensar o sentido que lhes tiraram. Músicos e bardos cegos têm desempenhado um papel especial em muitas culturas como menestréis ambulantes, artistas da corte, cantores religiosos.

Por séculos vigorou na Europa a tradição dos organistas de igreja cegos. Existem muitos músicos cegos, em especial (mas não exclusivamente) no mundo da música gospel, do blues e do jazz: Stevie Wonder, Ray Charles, Art Tatum, José Feliciano, Rahsaan Roland Kirk e Doe Watson são apenas alguns exemplos. Muitos desses artistas, de fato, têm o adjetivo blind (cego) acrescentado ao nome quase como uma honraria: Blind Lemon Jefferson, Blind Boys of Alabama, Blind Willie McTell, Blind WillieJohnson. Em parte, a canalização de cegos para a vida de músico é um fenômeno social, pois costuma-se achar que eles não têm acesso a muitas outras ocupações.

No entanto, nesse caso as forças sociais combinam-se a poderosas forças internas. Muitas crianças cegas são precocemente verbais e desenvolvem uma memória verbal incomum; muitas delas também são atraídas pela música e motivadas a torná-la central em sua vida.

Crianças destituídas de um mundo visual naturalmente descobrirão ou criarão um rico mundo de toques e sons. Na verdade, todos nós às vezes bloqueamos o mundo visual para nos concentrar em outro sentido. Meu pai gostava de improvisar mentalmente ao piano. Entrava numa espécie de devaneio e tocava com um ar sonhador, de olhos fechados, como se traduzisse diretamente para o teclado o que estava ouvindo em pensamento. E costumava fechar os olhos quando ouvia um disco ou o rádio. Sempre dizia que podia ouvir melhor a música de olhos fechados - assim podia excluir as sensações visuais e imergir totalmente em um mundo auditivo.

Pelo menos existem muitos relatos que corroboram essa idéia. Mas além dessas observações feitas sem método, nos últimos vinte anos houve estudos sistemáticos elaborados por Adam Ockelford. Ele foi professor de música em uma escola para cegos e hoje é diretor do Royal National Institute for the Blind em Londres. Interessa-se especialmente por uma rara condição congênita, a displasia septoóptica (DSO), que causa deficiência visual, às vezes relativamente branda, mas quase sempre grave. Com a colaboração de Linda Pring, Graham Welch e Darold Treffert, Ockelford comparou 32 famílias de crianças portadoras dessa condição com o mesmo número de famílias de controle. Metade das crianças com DSO não tinha visão ou só podia perceber luz ou movimento (foram classificadas como "cegas"), e a outra metade possuía "visão parcial". Ockelford et al constataram que havia muito mais interesse por música entre o grupo de cegos e indivíduos com visão parcial do que no grupo com visão plena. Uma mãe declarou sobre sua filha cega de sete anos: "Ela está sempre com sua música. Quando não há música tocando, ela está cantando. Ouve música no carro, ao adormecer, e adora tocar piano ou qualquer outro instrumento".

Embora as crianças com visão parcial também demonstrassem interesse mais acentuado por música, habilidades musicais excepcionais foram observadas apenas nas criançascegas - habilidades que emergiram espontaneamente, sem ensino formal. Portanto, não foi a DSO em si, mas o grau de cegueira, o fato de não dispor de um mundovisual significativo, que desempenhou o papel crucial de estimular as inclinações e habilidades das crianças cegas. Em vários outros estudos, Ockelford constatou que 40% a 60% das crianças cegas que ele ensinava tinham ouvido absoluto, e um estudo recente de Hamilton, Pascual-Leone e Schlaug também determinou que 60% dos músicos cegos tinham ouvido absoluto, em comparação com talvez 10% dos músicos que vêem. Nos músicos com visão normal, o ensino musical em tenra idade (antes dos seis ou oito anos) é crucial para o desenvolvimento ou manutenção do ouvido absoluto - mas nesses músicos cegos, o ouvido absoluto era comum mesmo quando o ensino musical começara relativamente tarde, às vezes na adolescência.

Um terço ou mais do córtex humano ocupa-se da visão, e se subitamente o input visual é perdido, podem ocorrer reorganizações e remapeamentos muito extensos no córtexcerebral, às vezes com o desenvolvimento de todo tipo de sensações intermodais. Há muitas evidências, do trabalho de Pascual-Leone e seus colegas (Ver, por exemplo, Amedi, Merabet, Bermpohl e Pascual-Leone, 2005), bem como de outros trabalhos, mostrando que nas pessoas que nascem cegas ou ficam cegas em tenra idade o extenso córtex visual, longe de permanecer sem função, é realocado para outros inputs sensitivos, especialmente da audição e do tato, e se torna especializado no processamento desses inputs? Mas mesmo quando a cegueira surge mais tarde na vida, pode ocorrer essa realocação. Nadine Gaabef, em um estudo sobre um músico com ouvido absoluto que ficou cego em idade mais avançada, mostraram que ocorria extensa ativação em ambas as áreas de associação visual quando esse indivíduo ouvia música. Algumas pessoas com cegueira congênita ou adquirida são capazes de formar mapas auditivos precisos e detalhados de seu ambiente imediato John Hull descreve elegantemente a aquisição dessa capacidade em seu livro Touching the rock.

Fréderic Gougoux, Robert Zatorre e outros, em Montreal, mostraram que "pessoas cegas saem-se melhor do que indivíduos com visão normal usados como controle na tarefa de julgar a direção da mudança de tom entre sons, mesmo quando a velocidade das mudanças é dez vezes maior que o percebido pelos indivíduos de controle - mas isso só se aplica às pessoas que ficaram cegas em tenra idade". Uma diferença de dez vezes, nesse caso, é extraordinária: não costumamos encontrar diferenças dessa magnitude em se tratando de uma capacidade perceptiva básica. Ainda não foram totalmente identificados os correlates neurais exatos que fundamentam as habilidades musicais nos cegos, mas o tema está sendo intensivamente estudado em Montreal e em outros lugares. Enquanto isso, temos para nos guiar apenas a imagem icônica do músico cego, os numerosos músicos cegos do mundo, os relatos biográficos e as descrições da freqüente musicalidade das crianças cegas.

Dos relatos biográficos, um dos mais belos é o de Jacques Lusseyran, escritor e herói da Resistência francesa que foi músico talentoso e tocou violoncelo quando menino, mesmo antes de ficar cego aos sete anos. Em seu livro, Memórias de vida e luz, Lusseyran ressaltou a imensa importância que a música assumiu para ele ao perder a visão: A primeira sala de concerto em que entrei, aos oito anos, significou mais para mim no espaço de um minuto do que todos os reinos encantados. [...] Entrar naquela sala foi o primeiro passo de uma história de amor. A afinação dos instrumentos cativou-me [...] eu chorava de gratidão toda vez que a orquestra começava a cantar. Um mundo de sons para um cego, que súbita graça! [...] Para um cego, a música nutre. [...] Ele precisa recebê-la, servida em intervalos, como alimento. [...] A música foi feita para os cegos.

 

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UM MUNDO AUDITIVO: A MÚSICA E A CEGUEIRA
é um excerto da obra:
'Alucinações musicais : relatos sobre a música e o cérebro'
título original: Musicophilia : tales of music and the brain.
autor: Oliver Sacks
tradução: Laura Teixeira Motta
São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

 


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22.Set.2013
Publicado por MJA