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excerto

Shirin examina um retrato de Khusraw | página do Khamsa (Quinteto), a obra mais conhecida de Nizami, séc. XV
Nada há em comum entre
aquele que é cego e aquele que vê.
| CORÃO, “O criador integral”, 19 |
CEGUEIRA E MEMÓRIA
Antes da arte da iluminura, havia as trevas, e depois dela também
haverá trevas. Com nossas cores, nosso talento, nossa paixão,
celebramos o que Alá nos ordena ver. Conhecer é lembrar-se do que se
viu. Ver é reconhecer o que se esqueceu. Pintar, portanto, é lembrar-se
dessas trevas. Os grandes mestres, que compartilham a paixão pela
pintura, compreenderam que a vista e as cores nascem das trevas, e
aspiravam voltar às trevas de Alá através das cores. Os artistas sem
memória não se lembram nem de Alá, nem das suas trevas. Já todos os
grandes mestres buscam em sua obra, para além das cores, a escuridão
profunda que fica fora do tempo. Se me permitem, vou explicitar o que
quer dizer essa “memória das trevas” que encontramos nos ilustres
pintores da escola de Herat.
TRÊS HISTÓRIAS SOBRE A MEMÓRIA E A CEGUEIRA
Alif
Na elegante tradução turca, devida ao brilhante Lami, dos Doze Perfumes da Amizade, de Djami — obra na qual o grande poeta persa
expõe a história dos santos —, está escrito que no ateliê de Djahan Xá,
soberano da Horda do Carneiro Negro, o famoso Sheik Ali, de Tabriz,
havia ilustrado um magnífico exemplar de Khosrow e Shirin. Pelo que
me disseram, nesse lendário manuscrito, ao qual o grande mestre
dedicou onze anos da sua existência, Sheik Ali dava mostra de tanto
engenho e arte, pintara tão esplêndidas imagens que, entre os grandes
nomes da pintura antiga, somente Bihzad teria podido igualá-lo. Djahan
Xá compreendeu, antes mesmo de a maravilhosa obra ser concluída,
que logo iria possuir um livro sublime, único no mundo. Mas Djahan Xá
vivia num temor e numa inveja perene do jovem soberano da Horda do
Carneiro Branco, Hassan, o Alto, a quem tinha como seu arquiinimigo.
E logo pressentiu que, se seu prestígio aumentaria imensamente depois
que esse livro fosse terminado, sempre poderia ser realizada uma versão
superior para Hassan do Carneiro Branco. Sendo um desses homens
invejosos que estragam a sua felicidade martirizando-se com a idéia de
que outro também pode vir a ser feliz, o Carneiro Negro Djahan Xá deu
de cismar que, se o seu prodigioso miniaturista fizesse uma cópia do
livro, ou até uma versão melhor, esta seria necessariamente para seu
arquiinimigo, o Carneiro Branco Hassan, o Alto. Assim, para evitar que
qualquer outro, além dele, possuísse aquela obra magnífica, Djahan Xá
mataria o mestre miniaturista Sheik Ali, assim que ele concluísse a
obra. Mas uma bela circassiana pertencente a seu harém, ouvindo seu
bom coração, observou que bastava sacrificar a visão do mestre. Djahan
Xá acatou essa boa idéia, que revelou a seus acólitos, e o boato logo
chegou aos ouvidos de Sheik Ali. Mas este nem sequer cogitou de fugir
para Tabriz, deixando o livro incompleto, como teria feito qualquer
pintor medíocre. Tampouco recorreu ao subterfúgio de trabalhar mais
lentamente em sua obra ou de enfear sua pintura, para evitar que
ficasse perfeita e, com isso, escapar de ter os olhos furados. Ao
contrário, passou a trabalhar com maior ardor, fé e concentração.
Agora, na casa em que vivia recluso, começava a trabalhar bem
cedinho, logo depois da prece matinal, e continuava a pintar noite
adentro, à luz de vela, os mesmos cavalos, os mesmos ciprestes, os
mesmos amantes, dragões e belos príncipes, até jorrarem lágrimas
amargas dos seus olhos avermelhados. A maior parte do tempo, ele
ficava dias a fio olhando para a mesma imagem pintada por um dos
antigos grandes mestres de Herat e fazendo numa folha posta ao lado
uma cópia exata dela, sem olhar para o papel. Quando por fim terminou
a obra destinada a Djahan Xá, o Carneiro Negro, o velho pintor, como
previsto, depois de ter sido coberto de elogios e de moedas de ouro, teve
os dois olhos furados com uma comprida agulha usada para prender as
plumas no turbante. Sheik Ali ainda sofria enormemente, quando
partiu de Herat para se pôr a serviço do Carneiro Branco, Hassan, o
Alto. “Estou cego, é verdade”, disse a este, “mas guardo na memória
todas as maravilhas daquele manuscrito que iluminei nestes últimos
onze anos, lembro-me de cada traço de cálamo, de cada pincelada que
dei, e minha mão é capaz de reproduzi-los todos de cor. Grande Xá,
posso ilustrar para o senhor o mais belo livro de todos os tempos. Meus
olhos não se distrairão mais com as imundícies deste mundo e poderei
pintar de memória todas as glórias de Alá em sua mais pura forma.”
Hassan, o Alto, acreditou no grande mestre miniaturista, que realizou
de memória para o Carneiro Branco, conforme se comprometera, o mais
belo livro já feito. Todos sabem que foi a força espiritual proporcionada
por este novo livro que permitiu a Hassan, o Alto, vencer o Carneiro
Negro e matar seu rival, Djahan Xá, após a grande derrota que lhe
infligiu na localidade de Mil Lagos. Essa obra-prima, entre tantas outras
que Sheik Ali havia produzido para a biblioteca de Djahan Xá, passou a
fazer parte das coleções do tesouro otomano quando o sempre
triunfador Hassan, o Alto, foi derrotado na Batalha dos Pastos, pelo
sultão Mehmet Cã, o Conquistador, descanse em paz. Os que sabem
ver, verão e saberão.
Ba
O Hóspede do Paraíso, sultão Suleyman Cã, o Magnífico, preferia
os calígrafos aos pintores, e os infortunados pintores da sua época
recorriam à história que vou contar para reafirmar a superioridade da
sua arte sobre a da caligrafia. Mas, como quem nela prestar atenção
perceberá, essa anedota na verdade diz respeito à memória e à cegueira.
Depois da morte de Tamerlão, Senhor do Mundo, seus filhos e netos se
desentenderam e passaram a se guerrear sem dó nem piedade. Quando
um deles conseguia tomar de outro alguma cidade importante, seu
primeiro cuidado era cunhar moeda com sua efígie e mandar dizer um
sermão em seu nome na mesquita principal. A segunda medida do
vencedor era desmantelar os livros que lhes haviam caído nas mãos e
inscrever novas dedicatórias, que os proclamavam por sua vez
“senhores do mundo”, depois novos cólofons (1), enquanto uma nova
encadernação não vinha atestar ou, em todo caso, dar a crer a quem
pudesse vê-los que o dono desses livros também possuía o mundo. Um
deles, Abdullatif, filho de Ulug Bei, o timúrida, um dos netos de
Tamerlão, apoderou-se de Herat e teve tanta urgência em mobilizar os
batalhões de miniaturistas, encadernadores e calígrafos, tanto os
apressou a produzir uma obra em homenagem a seu pai, grande
conhecedor do assunto, que, ao arrancarem de cada volume as páginas
escritas a fim de queimá-las, as miniaturas acabaram se embaralhando.
Como era inconcebível que os livros oferecidos em homenagem a um
amador tão apaixonado e versado como Ulug Bei reunissem ilustrações
sem indicar a que relatos se referiam, seu filho convocou de novo todos
os miniaturistas e mandou que contassem as histórias relativas àquelas
miniaturas, para que se pudesse pô-las em ordem. Ora, da boca de
cada um saiu uma história diferente, de modo que a desordem das
ilustrações só aumentou. Foram então em busca do mais velho de todos
os miniaturistas, de quem não se tinha mais notícia desde o dia em
que, ao cabo de cinqüenta e quatro anos de bons e leais serviços
prestados aos sucessivos xás e príncipes de Herat, ele perdera a vista.
Grande foi a preocupação quando se soube que o velho pintor, o mestre
que conferia todas aquelas pinturas, estava de fato completamente
cego. Alguns ironizavam. O velho pintor pediu que trouxessem um
garoto, de apenas sete anos, que fosse inteligente mas que não
soubesse ler nem escrever. Encontraram um menino assim e levaram-no a ele. O ancião colocou-o diante de uma série de miniaturas e lhe
pediu para descrever o que via. À medida que o menino descrevia as
miniaturas, o velho pintor, erguendo para o céu os olhos cegos,
pronunciava ouvindo-o: “Livro dos reis, de Firdusi: Alexandre
embalando no colo o corpo de Dario; O roseiral, de Saadi: o mestre-escola apaixonado por seu belo aluno; Nizami, Tesouro dos segredos: o
concurso dos médicos...”, e os outros miniaturistas, amargurados e
despeitados por seu colega cego e mais velho, comentavam: “Isso nós
também podíamos dizer: são as mais famosas cenas das mais
conhecidas histórias”. Então o velho cego, sempre muito atento,
submeteu ao garoto as ilustrações mais difíceis: “Firdusi, Livro dos reis:
Hurmuz envenena um a um todos os calígrafos...”, diz, sempre como os
olhos voltados para o céu, “... Antologia de contos de Rumi: história —
não muito brilhante — do corno que encontra sua mulher em cima de
uma pereira com seu rival. O desenho também não vale grande coisa”.
E assim por diante, de sorte que, fiando-se nas descrições do garoto e
reconhecendo cada desenho sem o ver, tornou possível a correta
encadernação dos livros.Quando Ulug Bei entrou em Herat à frente do seu exército,
perguntou ao velho miniaturista qual era o segredo que lhe permitia
identificar as cenas sem ver, quando todos os outros pintores eram
incapazes de fazê-lo vendo-as. Ao contrário do que se poderia crer, a
resposta não decorre de minha cegueira ser acompanhada de uma
memória mais apurada”, respondeu o velho pintor. “É que não esqueci
que essas lendas são transmitidas não apenas por imagens mas
também por palavras.” Ulug Bei respondeu que seus miniaturistas
também conheciam aquelas palavras e aquelas histórias, mas nem
assim puderam classificar as miniaturas. “É que”, disse o velho pintor,
“apesar de entenderem tudo o que se pode entender de arte e pintura,
eles não compreendem que os velhos mestres pintavam essas
miniaturas a partir da memória do próprio Alá!” Ulug Bei perguntou
então como uma criança podia saber disso. “A criança não sabe”,
explicou o velho pintor. “Só um velho pintor cego como eu sabe que Alá
criou o reino da Terra da maneira como um menino inteligente de sete
anos gostaria de vê-lo. Não só isso, Alá criou este mundo de tal maneira
que, principalmente, ele possa ser visto; depois, deu-nos a palavra, para
que pudéssemos compartilhar e debater com os outros o que vemos. E
nós fizemos as histórias acreditando, equivocadamente, que elas
nasciam dessas palavras e que a pintura servia para ilustrá-las, quando, na verdade, pintar é buscar as lembranças de Alá com o fim de ver o
mundo tal como Ele o vê.”
Mais de dois séculos atrás, os miniaturistas árabes tinham o
temor ancestral e mais que legítimo, compartilhado por gerações e
gerações de pintores, de não ficar cegos. Para tanto, olhavam para o
horizonte ao raiar do dia, na direção do Ocidente. Ê sabido também
que, um século mais tarde, os pintores de Shiraz comiam em jejum
todas as manhãs, com esse mesmo fim, uma mistura de nozes moídas e
pétalas de rosa. Na mesma época, os velhos miniaturistas de Isfahan,
que imputavam à luz do sol a cegueira que os vitimava um depois do
outro como se fosse a peste, trabalhavam quase sempre à luz de vela
num canto escuro da sua cela, para que o sol não incidisse sobre a
mesa de trabalho. Já na escola uzbeque, os artistas do grande ateliê de
Bukhara lavavam os olhos com água benta. Mas de todas as
interpretações da cegueira, a que se deve a Sayyid Mirak, o célebre
mestre de Herat, que formou o grande Bihzad, distingue-se
evidentemente como a mais pura. Para ele, a cegueira não era um mal,
mas a graça suprema concedida por Alá ao pintor que dedicara a vida
inteira a celebrá-Lo; porque pintar era a maneira de o miniaturista
buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem igual só pode ser
alcançada por meio da memória, depois que o véu da cegueira cair
sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de trabalho duro. Assim, a
maneira como Alá vê o seu mundo só se manifesta por meio da memória
dos velhos pintores cegos. Quando por fim alcançar essa imagem,
quando, com a sua memória, enxergar através das trevas da cegueira o
mundo tal como Alá o vê, então o velho pintor, que passou a vida toda
exercitando a mão, será capaz de passar essa maravilhosa revelação
para a folha de papel. De acordo com o historiador Mirza Muhammed
Haydar Dughlat, que compilou as biografias dos principais pintores de
Herat, o Grande Mestre Sayyid Mirak tomava como exemplo, para
ilustrar sua teoria, um pintor que queria pintar um cavalo. Mesmo o
mais medíocre dos pintores, argumentava Sayyid Mirak, aquele com a
cabeça tão vazia quanto esses pintores europeus de hoje em dia, que
pintam cavalos olhando para cavalos verdadeiros, mesmo este é
obrigado a pintar de memória. Prova disso é que é impossível olhar ao
mesmo tempo para o cavalo e para a página em que o cavalo é
desenhado. Primeiro o pintor olha para o cavalo e depois transfere para
o papel os traços que guardou na memória. Ainda que entre uma coisa
e outra tenha ocorrido apenas um breve piscar de olhos, o que ele
representa no papel nunca é o cavalo tal como ele vê, mas a lembrança
do cavalo que ele viu, de sorte que a pintura, mesmo no caso do pior
artista, é sempre uma obra de memória. A conseqüência lógica dessa
concepção, que considera a atividade dos pintores ao longo de toda a
sua vida como uma preparação para a dupla felicidade que irá coroá-la,
a felicidade da cegueira e a da memória cega, é que os mestres de Herat
consideravam as miniaturas que produziam para os xás e os príncipes
como exercícios destinados a “treinar a mão”, e se submetiam a esse
interminável afã de pintar debruçados sobre o papel, dias a fio sem
parar, à luz pálida de um candeeiro, como o bem-aventurado trabalho
que levaria o miniaturista a alcançar a cegueira.
Ao longo de toda a sua vida, o grande pintor Mirak buscou
constantemente o momento mais propício para esse que era o mais
glorioso dos desenlaces, e ora tentava apressar a cegueira, pintando
minuciosamente numa unha, num grão de arroz ou até num fio de
cabelo uma árvore inteira, com todas as suas folhas, ora procurava
adiar prudentemente a chegada das trevas, pintando sorridentes jardins
inundados de sol. Ele tinha setenta anos quando Hussein Bayqara,
para recompensar esse grande artista, lhe deu acesso a seu tesouro,
onde guardava ciosamente, trancada a sete chaves, uma coleção de milhares de miniaturas. Aí, no meio desse tesouro, que também continha
armas, ourivesaria, sedas e veludos, mestre Mirak pôde admirar, à luz
dos candelabros de ouro, as maravilhosas páginas daqueles livros
lendários, devidas aos maiores nomes da Escola de Herat. Ao fim de três
dias e três noites, ele havia perdido a visão. O Grande Mestre aceitou
sua nova condição com sabedoria e resignação, como se tivesse recebido
os anjos de Alá, e nunca mais pintou nem pronunciou uma só palavra.
Mirza Muhammed Haydar Dughlat, em sua História segundo o Reto
Caminho, explica o fato da seguinte maneira: o pintor que alcança o
espaço e o tempo infinito de Alá não pode nunca mais voltar às
paisagens pintadas nos livros para os simples mortais; e acrescenta
que, onde o pintor cego alcança Alá com sua memória, reina um
silêncio absoluto, uma feliz escuridão e o infinito de uma página vazia.
Embora eu soubesse que essa questão de Mestre Osman sobre a
cegueira e a memória era, antes de mais nada, um pretexto fácil para o
Negro vir espionar meus aposentos, minha mobília e meus trabalhos,
fiquei feliz por constatar que minhas histórias não o deixaram
indiferente. “A cegueira é um mundo à parte”, concluí, “em que o Diabo
e o Pecado não podem penetrar.”Mas o Negro me fez uma observação: “Em Tabriz, ainda hoje,
certos pintores da escola antiga, influenciados pela anedota relatada
por Mirak, consideram a cegueira o apogeu das virtudes que Alá nos
concede em sua graça e acham vergonhoso envelhecer sem ficar cego.
Por isso, temendo que os outros considerem sua visão uma prova de
falta de talento e de arte, fingem ser cegos. Essa convicção leva alguns
deles a seguir o exemplo de Djamaluddin de Kazvin e passar semanas
no escuro, em meio a espelhos, contemplando as páginas dos mestres
antigos à luz tênue de uma lamparina, sem comer nem beber, a fim de
aprender a olhar como cegos, apesar de não o serem”. [...]
DUAS HISTÓRIAS SOBRE A CEGUEIRA E O ESTILO QUE O MINIATURISTA CONTOU PARA ALIVIAR A SOLIDÃO DA SUA ALMA
Alif
A idéia de pintar cavalos observando cavalos de verdade não é, como se acredita, uma invenção dos pintores europeus. Nós a devemos ao Grande Mestre Djamaluddin, de Kazvin. Depois da tomada dessa cidade por Hassan, o Alto, à frente da Horda
do Carneiro Branco, o velho Djamaluddin não se contentou simplesmente com incorporar-se ao ateliê do cã vitorioso, mas partiu em campanha com ele, proclamando que desejava ilustrar a Gesta do novo soberano com cenas de guerra recolhidas ao
vivo. Assim, esse grande artista, que durante sessenta e dois anos pintara cavalos e cavaleiros, combates e formações de combate sem nunca tê-los visto, foi para a guerra pela primeira vez. Mas, antes de ter ocasião de assistir em pessoa
a um ataque real, com seu estrépito de armaduras e relinchos de cavalos suados, teve as duas mãos e os olhos arrancados por um projétil de canhão. Como todos os verdadeiros grandes pintores, Djamaluddin já esperava mesmo a hora de ficar
cego — era um sinal da graça de Alá —, e também não lamentou muito a perda das mãos. De fato, ele tinha o costume de sustentar que a memória do artista não reside na mão, mas no coração e na alma, e até declarava que foi só quando ficou
cego que pôde enfim contemplar as verdadeiras imagens da natureza, as paisagens e os “verdadeiros cavalos” sem defeitos, como Alá quer que sejam vistos. Para compartilhar essas maravilhas com os amantes da arte, contratou um aprendiz, um
magro e pálido calígrafo de bochechas rosadas e belos olhos verdes, a quem ditou como desenhar exatamente os maravilhosos cavalos que lhe apareciam na divina escuridão de Alá — como ele próprio os teria desenhado se pudesse segurar um
pincel na mão. Depois da morte do mestre, seu método para desenhar trezentos e três cavalos começando da perna dianteira esquerda foi compilado pelo belo aprendiz de calígrafo em três volumes intitulados: A pintura de cavalos, A torrente
de cavalos e O amor aos cavalos, que tiveram seu momento de glória e foram muito apreciados por certo tempo, pelo menos nas regiões controladas pela Horda do Carneiro Branco. No entanto, embora vários manuscritos tenham circulado,
permitindo que numerosos jovens pintores, seus aprendizes e discípulos os aprendessem de cor usando-os como livros de exercício, a lembrança de Djamaluddin e a sua obra não sobreviveram ao apogeu dos turcomanos e foram eclipsadas pelo
brilho da Escola de Herat. A virulência das críticas, tal como a deflagrada contra ele por Kamaluddin Riza, de Herat, em sua refutação, também em três volumes, intitulada Os cavalos do cego, em que diz à guisa de conclusão que aqueles
modelos mereciam ser queimados, não foi alheia a esse seu declínio. Kamaluddin Riza sustentava, no fundo, que nenhum dos cavalos descritos nos três livros de Djamaluddin podia ser uma visão divina, dada sua extrema imperfeição e visto que o
velho mestre se baseava, para descrevê-los, em suas próprias lembranças, breves embora, de uma batalha real e de cavalos vivos. Como o tesouro de Hassan, o Alto, fez parte do butim trazido para Istambul por Mehmet, o Conquistador, não
seria de espantar se eventualmente alguns dos seus trezentos e três escritos aparecessem por aqui no meio de todos esses manuscritos que se amontoam na cidade, e até mesmo se alguns cavalos fossem desenhados de acordo com as instruções ali
contidas.
Lam
Em Herat e Shiraz, quando, ao cabo de uma vida de excessivo labor, um mestre miniaturista acabava perdendo a vista, isso era para ele um duplo motivo de glória: não apenas como sinal da sua determinação, mas também como reconhecimento pelo
próprio Alá do seu trabalho e do seu talento. Em conseqüência disso houve em Herat uma época em que era malvisto um artista chegar a uma idade avançada sem ficar cego, o que teria levado certo número de velhos pintores a fugir do opróbrio
induzindo a própria cegueira. Houve assim um longo período em que os homens reverenciosamente recordavam artistas que se cegaram, seguindo os passos dos legendários mestres que haviam preferido furar os olhos a trabalhar para outro
monarca ou a mudar de estilo. Foi nessa época que Abu Said, neto de Tamerlão pela linhagem de Miran Xá, introduziu uma nova excentricidade em seu ateliê, depois de conquistar Tachkent e Samarcanda: honrar mais a imitação da cegueira do
que a verdadeira cegueira. Veli, o Negro, o velho artista que inspirou Abu Said, havia afirmado que um miniaturista cego podia ver, do fundo das suas trevas, os cavalos tal como Alá os vê; mas que o verdadeiro talento consistia em poder,
sem ser cego, enxergar e pintar essa visão dos cegos. Dizem que ele demonstrou isso aos sessenta e sete anos de idade desenhando um cavalo que veio à ponta do seu pincel sem olhar um instante sequer para a folha, apesar de seus olhos terem
ficado o tempo todo abertos e fitos no papel. Ao fim dessa cerimônia artística, durante a qual Miran Xá mandara músicos surdos tocarem alaúde e contadores mudos recitarem histórias para secundar o legendário mestre em sua proeza, o
esplêndido cavalo que Veli, o Negro, havia desenhado foi comparado demoradamente com os outros cavalos que ele tinha feito. Não foi encontrada nenhuma diferença entre eles, para grande contrariedade de Miran Xá. Então o Grande Mestre
declarou que um miniaturista em plena posse do seu talento sempre e somente verá cavalos dessa maneira, isto é, da maneira como Alá os percebe. E no caso dos grandes miniaturistas, não há diferença entre os cegos e os videntes: a mão sempre
desenharia o mesmo cavalo, porque naquela época ainda não havia essa novidade européia chamada “estilo”. Os cavalos feitos pelo Grande Mestre Veli, o Negro, foram imitados por todos os pintores do islã durante um período de 110 anos. Ele
próprio, após a queda de Abu Said e a dissolução do seu ateliê, mudou-se de Samarcanda para Kazvin, onde foi acusado, dois anos depois, do sombrio desígnio de atentar contra o versículo corânico segundo o qual “os videntes e os cegos não
são iguais”. Começaram por lhe furar os olhos, depois ele foi executado pela Jovem Guarda de Nizam Xá. [...]
glossário:
cólofon — nos manuscritos antigos, nota final com as referências sobre a obra e indicações sobre a impressão.
djim — gênio malévolo, ou às vezes benéfico, na cultura muçulmana.
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Ohran Pamuk é o maior romancista turco da actualidade. A tradução inglesa de "Meu Nome é Vermelho" ganhou em 2003 o 'International IMPAC Dublin Literary Award'. A tradução francesa
deu-lhe o prémio francês para 'Melhor Livro Estrangeiro' e a tradução italiana alcançou o Prémio 'Grinzane Cavour' em 2002. Em 2006, Pamuk recebeu o Prémio Nobel de Literatura.

Sobre "Meu Nome é Vermelho"
Na Istambul do fim do século XVI, em comemoração ao primeiro milênio da Hégira, o sultão encomendou um belíssimo livro que representasse o poder e a riqueza do Império Otomano, que vivia o seu apogeu. Os mais
renomados pintores miniaturistas são convidados a iluminá-lo, mas a missão é das mais perigosas. O sultão quer demonstrar ao doge de Veneza a superioridade do mundo islâmico, e para isso pede iluminuras feitas com as técnicas
ocidentais da então florescente pintura renascentista — o que vai de encontro a um preceito básico do islã, segundo o qual toda arte figurativa constitui uma afronta.
O desaparecimento de um dos miniaturistas parece comprovar o risco da empreitada. Rivalidade profissional, crime passional ou terror religioso? A única pista deixada — um cavalo de estranhas narinas desenhado no corpo do morto — só
faz aumentar a intriga. E um novo assassinato vem complicar ainda mais o caso. De volta a Istambul após doze anos de ausência forçada, Negro é incumbido de desvendar o mistério. Seu prazo, porém, é exíguo: ele tem apenas três dias
para encontrar o assassino — e ganhar a mão da bela Shekure, seu primeiro e único amor.
Diversas vozes se alternam nessa trama multifacetada, contada por dezenove narradores diferentes — entre eles um cachorro, um cadáver, uma moeda falsa e a cor que dá nome ao livro. Repleto de reviravoltas e construído na confluência
da arte, da religião e da filosofia, Meu nome é Vermelho mistura elementos do romance policial aos do romance histórico. Esplêndida e misteriosa, aqui está a Turquia da última década do século XVI — e, por tabela, também a dos dias
de hoje. Pois é Pamuk quem afirma: "Vivo numa cultura em que o choque entre o Oriente e o Ocidente, ou a harmonia entre o Oriente e o Ocidente, é nosso estilo de vida. A Turquia é isso".
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excerto da obra:
MEU NOME É VERMELHO
Autor: Ohran Pamuk
Título original: Benim Adim Kirmizi, 1998
Edição Companhia das Letras, 2006
Tradução: Eduardo Brandão (com base na tradução francesa de Gilles Authier "Mon nom est Rouge", e na tradução inglesa "My name is Red" de Edrağ Göknar)
Fonte do texto: Digital Source
12.Ago.2011
Publicado por
MJA
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