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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


Mais Perto do Céu

Catherine Anderson

The Blind Woman - Egon Schiele, 1911
The Blind Woman - Egon Schiele, 1911

Sinopse | Carly Adams sente que lhe deram uma nova oportunidade na vida. Nascida com uma doença rara dos olhos, manteve-se cega até uma operação recente lhe ter possibilitado a recuperação da visão. Agora está ansiosa por experimentar tudo o que o mundo tem para oferecer - incluindo as palavras doces de um vaqueiro que não tem quaisquer planos para assentar, até que descobre que Carly Adams está grávida do seu filho - uma gravidez que lhe ameaça a visão.


Capítulo Um

Um rufar de tambores ecoou pelo bar, assinalando o final do último número. O vocalista da banda country bradou ao microfone, com o som da sua voz parecendo ricochetear das paredes. Depois de apontar com o chapéu na direcção de uma mulher bonita vestida de vermelho, que se encontrava na pista de dança, sorriu e tocou ao de leve nas cordas da guitarra, introduzindo a canção seguinte, «She’ll Leave You with a Smile». A música vibrou no ar, confirmando a belíssima acústica que fazia do Chaps a discoteca mais popular de country-western em Crystal Falls, Oregon.

Acompanhando o ritmo do baixo com a parte da frente da bota, Hank Coulter equilibrou uma moeda no polegar, fez pontaria para a caneca de cerveja vazia que se encontrava no centro da mesa e atirou. Brilhando nas luzes espiraladas, a moeda rodopiou num arco elevado, bateu na borda do corpo e caiu ao lado. Os outros homens que estavam sentados ao lado de Hank riram-se e alguém empurrou uma caneca cheia de cerveja na sua direcção.

— Bebe-a toda, companheiro!

Toda a gente que estava na mesa repetiu a ordem, gritando: - Bebe! Bebe! Bebe! Determinado a libertar-se de todo o seu mau humor, resultado de uma briga que tivera nessa tarde com o seu irmão mais velho, Jake, Hank riu-se e começou a beber. A regra do jogo era beber a cerveja toda sem parar para respirar. A espuma tocou-lhe no nariz enquanto engolia. Quando bateu com a caneca vazia em cima da mesa, os companheiros aplaudiram. Hank limpou a boca à manga da camisa. Eric Stone, sentado à sua esquerda, voltou a encher a caneca.

— Outra vez — ordenou ele, gritando de modo a que a sua voz sobressaísse no meio da música alta. — Reza para que tenhas melhor pontaria, companheiro, ou ficarás arrumado antes da meia-noite. Quantas já lá vão, três?

— Cinco — corrigiu Hank. — E embebedar-me não me vai impedir de avançar. Tenho planos para esta noite.

— E nós não? — Eric pôs para trás o chapéu castanho para observar o bar, com os seus olhos castanhos a cintilarem enquanto fazia o inventário das raparigas. — Tenho aquela moreninha ali debaixo de olho.

Hank reparara na morena e rejubilava com o pensamento de poder vir a fazer sexo com ela. A rapariga tinha um sorriso atrevido e uma forma de menear as ancas que aqueciam o sangue de qualquer homem.

— Avança, filho. — Hank deu uma piscadela. — Talvez tenhas sorte. Aceitando a moeda que Pete Witherspoon fez deslizar na sua direcção,

Hank visou o copo outra vez. Não se conseguia lembrar de como acabara a atirar moedas. Vinha ao Chaps, aos fins-de-semana à noite, para se divertir um pouco, beber uma meia dúzia de cervejas e, esperançadamente, terminar a noite ao lado de uma mulher. Embebedar-se até cair para o lado, logo ao início da noite, não fazia parte dos seus planos, mas, agora que a competição tinha começado, não podia descartar-se.

Mais uma vez, a moeda falhou o alvo, ricocheteando no copo e indo parar à pista de dança. Joe Michaels deu uma gargalhada e procurou mais uns trocos no bolso, enquanto Hank engolia o conteúdo da caneca. Com seis canecas de quinhentos mililitros na barriga, estava definitivamente a começar a sentir os efeitos do álcool.

Sentada numa mesa vizinha, Carly Adams observou o vaqueiro. O cabelo dele era da mesma cor viva dos doces de chocolate que a sua amiga Bess fizera uma noite destas. Enquanto se mantinha de cabeça inclinada para trás para poder engolir, a garganta mexia-se e a laringe batia ao de leve. Observar a forma como os músculos se movimentavam levou Carly a pensar quão diferentes eram os homens das mulheres. A sua própria garganta era suave ao toque, sem nenhum músculo em destaque a não ser que fizesse força para os contrair.

Carly não fazia a mínima ideia da idade que ele tinha. Vinte e muitos, ou possivelmente mais velho. Julgar com precisão a idade das pessoas requeria alguma prática e, tendo recuperado a visão há apenas uma semana, ainda não tivera muita oportunidade para praticar. Não tinha importância. Finalmente, conseguia estar a olhar para um homem. Por isso é que as amigas da escola passavam o tempo todo a cochichar e a rir-se dos rapazes. Em todas as partes em que Carly era flácida e cheia, ele era rijo e achatado, e em todos os lugares em que ela era lisa, ele tinha volumetrias interessantes.

Carly não tinha bem a certeza porque é que achava este homem em particular tão fascinante. Ao contrário dos outros vaqueiros no bar, muitos dos quais envergando roupas garridas estilo western, ele tinha uma camisa lisa e usada, umas calças de ganga velhas e umas botas simples e robustas, com a biqueira já gasta. Talvez sobressaísse dos demais por não ter chapéu — ou fosse de tal maneira bonito que atraía a atenção das mulheres. Não sabia dizer, honestamente, se ele era atraente para os padrões sociais. Só sabia que o achava fascinante.

Mesmo a vários metros distância, a sua risada profunda e sonora era contagiante, e tinha uma forma agradável e arrastada de sorrir que a fazia querer sorrir também. Felizmente para ele, a nova moeda mudou a sua sorte, lendo conseguido enfiá-la dentro do copo quando a atirou a seguir. Aliviado por ter ficado de fora, balançou-se para trás na cadeira para ver o jogador seguinte a actuar.

Carly queria observar tudo nele, e estava contente por se encontrar momentaneamente sozinha para poder fazê-lo sem qualquer embaraço. A sua amiga Bess iria meter-se com ela, de certeza. «Vá lá, Carly, é apenas um tipo», diria. «Não te ponhas a olhar. As pessoas ainda vão pensar que tens alguma coisa de errado.» Grande novidade. Era difícil para Carly não se pôr a olhar quando estava a ver tantas coisas pela primeira vez. Bess procurava entender, mas ninguém que tivesse nascido com a capacidade de visão podia realmente compreender o que era ter subitamente as luzes a iluminar tudo ao fim de vinte e oito anos.

Carly pensou que gostava especialmente da forma como os ombros e o peito do homem lhe enchiam a camisa. De todas as vezes que se mexia, os músculos ondulavam e contraíam-se debaixo do tecido. Gostava até da forma como ele se posicionava, com a cabeça escura inclinada para um dos lados, a atenção concentrada no jogo. Tinha uma postura relaxada, com os braços com os cotovelos para fora, os polegares encaixados num grande cinto de cabedal descaído sobre as ancas estreitas. De cada vez que a cadeira balançava para trás, uma grande fivela de prata brilhava na zona da cintura.

Ele era lindíssimo. Na sua opinião, evidentemente, mas era isso que contava. Sentiu uma agradável sensação de formigueiro a percorrer-lhe o corpo enquanto o observava.

Uma mulher de cabelo ruivo-claro aproximou-se da mesa dele. Tinha os olhos verdes acentuados por uma forte maquilhagem. Quando falou, o vaqueiro olhou para cima, depois sorriu e pôs-se de pé. Antes de seguir a mulher até à pista de dança, agarrou num chapéu escuro que estava em cima da mesa e colocou-o na cabeça.

Carly não conseguia tirar os olhos de cima dele, enquanto o via a guiar a ruiva até ao centro da pista. Ao longe, tinha algumas dificuldades em mantê-lo focado. Tão depressa conseguia distinguir as suas feições como passavam a ser uma mancha. Quando a música começou, o par começou a dançar, com os seus pés a executarem os passos tão depressa que Carly não foi capaz de acompanhar. O vaqueiro fazia girar a mulher com grande facilidade e uma precisão delicada, mudando a forma como lhe agarrava a mão para que ela pudesse enfiar-se debaixo do seu braço. De vez em quando, a ruiva afastava-se para desenhar uns círculos à sua volta, com as botas a marcarem um ritmo rápido de tatu militar, as ancas e as pernas cobertas de ganga movendo-se com uma graça sedutora, os cabelos compridos caindo-lhe em cascata sobre as costas.

Um forte sentimento de inveja percorreu o corpo de Carly. Seriam necessários meses de prática para poder conseguir dominar a arte de pintar os olhos, depois de estes estarem curados, e, se calhar, nunca iria conseguir domar o seu cabelo loiro encaracolado. Esta noite, Bess ajudara-a a vestir-se, obrigando-a a libertar-se do seu habitual rabo-de-cavalo e emprestando-lhe umas roupas, mas Carly desconfiava que nunca iria conseguir arranjar-se sozinha convenientemente.

O número de dança terminou subitamente. A cessação do barulho fez com que Carly voltasse à realidade. O vaqueiro segurou a ruiva com o braço de modo a levantá-la do chão. No extremo da multidão de dançarinos, uma mulher baixinha de cabelo escuro agarrou-lhe pelo braço e ergueu-se na ponta dos pés para lhe murmurar qualquer coisa ao ouvido. Ele sorriu, inclinou-se para beijar o rosto da ruiva, e regressou ao centro da pista com a outra mulher.

A popularidade do homem junto das mulheres era suficiente para responder a uma das perguntas de Carly: ele devia ser muito bonito. Enquanto esperava pelo início da próxima música, conversou com a sua nova parceira, ouvindo atentamente quando ela lhe dirigia a palavra, sorrindo ou rindo quando ela dizia algo divertido.

De repente, como se tivesse pressentido Carly a mirá-lo, olhou para cima. Carly ficou tão embaraçada por ser apanhada a olhar que quis morrer. O seu rosto ficou avermelhado e quente. Meu Deus. Olhou ansiosamente para os dançarinos, procurando descortinar a sua amiga Bess que estava a dançar em linha há quase uma hora. Seria impossível encontrá-la naquela multidão indistinta de corpos.

Carly pôs-se de pé e atravessou as mesas para ir à casa de banho. No caminho, iria jurar que sentira os olhos do vaqueiro incidindo sobre ela. Encolheu-se e apressou o passo, pensando unicamente em escapar durante alguns minutos. Talvez quando regressasse à mesa, ele se tivesse esquecido dela.

No que dizia respeito a mulheres bonitas, Hank tinha uma memória de elefante. Depois de regressar à sua mesa, manteve um olhar sobre a parede do fundo do bar, procurando um pedaço de cabelo loiro. Quando a loira emergiu da casa de banho, descortinou-a imediatamente. E não ficou desapontado. Parecia tão surpreendente como a avaliara à primeira vista.

Tentando não parecer muito óbvio, observou-a enquanto ela caminhava lentamente por entre a multidão. Conhecia a maior parte das mulheres que costumavam frequentar o Chaps ao fim de semana. Nunca vira esta. O cabelo comprido e encaracolado enquadrava um rosto angélico numa auréola vaporosa e ondulada de dourado. Nunca vira feições tão delicadamente esculpidas ou olhos azuis tão grandes. Também tinha um lábio inferior macio que se projectava e pedia um beijo. A camisa cor-de-rosa estilo western albergava uns seios pequenos mas muito bem torneados, e acentuava a sua cintura esguia. Umas calças de ganga novas evidenciavam umas nádegas de primeira categoria e umas pernas elegantes que pareciam não ter fim.

Hank deu uma cotovelada a Eric, apontando para a loira com um ligeiro aceno de cabeça.

— Conhece-la?

Eric olhou demorada e cuidadosamente para a mulher.

— Ainda não.

Hank riu-se e empurrou a cadeira para trás.

— Esquece, amigo. Vi-a primeiro.

— Ficas sempre com as melhores para ti — queixou-se ele.

— Foste tu que reclamaste a morena, lembras-te?

— Talvez tenha mudado de ideias.

— Governa-te então — retorquiu Hank. — Esta está tomada.

Carly endireitou-se quando viu o vaqueiro de cabelo escuro a caminhar na sua direcção. Com o coração a bater, afastou rapidamente o olhar, fixando-o no copo de cerveja que tinha à sua frente desde o início da noite.

«Ele passaria ao lado da sua mesa», tentou convencer-se a si própria. Provavelmente conhecia alguém nas mesas de trás.

Do canto do olho, viu-o a parar ao lado da sua cadeira. Ao longe, não parecera tão alto. Ela olhou para cima — e viu-se a olhar para os olhos mais bonitos que alguma vez imaginara. Eram de uma cor profunda e cristalina que lhe fazia lembrar uma imagem de uma lagoa tropical que vira há alguns dias.

A sua boca firme e larga esboçou um sorriso que aprofundou as rugas do rosto magro e revelou uns dentes brancos e fortes. O tom bronzeado da sua pele acentuava-lhe as feições muito bem delineadas. O nariz, direito e afilado como uma lâmina de faca, sobressaía no meio de umas sobrancelhas fartas e escuras.

— Olá — disse ele.

Só isso, uma única palavra. Olá. Mas o tom profundo da sua voz fez com que o coração de Carly começasse a bater de forma errática.

— Olá — conseguiu responder.

Os olhos dele iluminaram-se com um brilho.

— A menina dança? — perguntou, estendendo uma mão com a palma virada para cima.

Carly não sabia o que dizer. Por fim, o seu cérebro entrou em movimento.

— Oh, não... não posso. A sério. Lamento.

Ele encaixou os polegares no cinto e olhou por cima do ombro.

— Está aqui com alguém?

— Uma amiga. Está a dançar em linha. Os cantos da sua boca torceram-se.

— As amigas não contam. Quero dizer, um tipo.

— Oh. — Carla sentiu-se estúpida. — Eu, hmm... não, não estou com um tipo.

Ele estendeu-lhe a mão de novo.

— Então? Não quer vir polir a fivela do meu cinto? Carly desviou o olhar para a oval de prata que ele tinha na cintura.

— Desculpe?

Ele desatou a rir-se, virou ao contrário uma cadeira que estava junto à mesa e sentou-se nela como se estivesse a montar um cavalo. Pondo para trás o chapéu, olhou para ela lentamente, fixando o olhar nos seus sapatos brancos.

— É a primeira vez que vem a um bar de country-western?

— Sim. — Carly achou que ele estava um pouco bêbedo. Considerando a quantidade de cerveja que o vira consumir, outra coisa não seria de esperar. — A minha amiga Bess adora dançar em linha. Vim vê-la.

— Isso explica a barreira de linguagem, creio. É como visitar um país estrangeiro, não é verdade?

Carly acenou afirmativamente.

— É curioso. Sempre me disseram que os homens deviam tirar os chapéus dentro de casa. Aqui, não há ninguém que não esteja de chapéu.

Ele fingiu um ar escandalizado.

— Tirar o chapéu? Não diga mais nada. Os vaqueiros não conseguem dançar sem chapéu. Sentir-se-iam meio despidos e perderiam o equilíbrio. Habitualmente só o tiramos para dormir e, mesmo assim, penduramo-lo na perna da cama, não vá o diabo tecê-las.

Carly riu-se. «Gostava deste homem», pensou. Ele não tinha medo de fazer troça de si próprio.

— Quando um vaqueiro pede para polir a fivela do cinto é uma outra forma de pedir para dançar — explicou ele. — É o mesmo que convidar para roçar a barriga.

O rosto de Carly ficou quente.

— Estou a ver.

Ele ergueu uma sobrancelha escura.

— Então, o que me diz?

— Não posso. — Olhou aflita para os dançarinos. Durante a sua vida, orgulhara-se sempre de nunca ter tido medo de experimentar coisas novas, mas não estava pronta para o two-step do Texas. Logo a seguir à cirurgia, andar pelo chão era já suficientemente perigoso. — Não sei dançar. Parece complicado e nasci com dois pés esquerdos.

— O country-western não é tão complicado como parece. — Levantou as mãos, implicando com o gesto que a sua falta de experiência não era um obstáculo de monta. — Não tem de se preocupar. O que sei sobre bater de tacões chega para os dois.

Antes de Carly poder adivinhar qual era a sua intenção, ele agarrou-lhe pelo pulso, saiu da cadeira e ajudou-a pôr-se de pé. Segurando-a pela cintura, conduziu-a por entre os dançarinos até ao centro da pista. Quando se virou para olhar para ela, piscou o olho e sorriu.

— Não fique nervosa. Toda a gente aqui teve de aprender um dia pela primeira vez. Não é assim tão diferente das danças normais.

Carly nunca dançara em toda a sua vida, de forma regular ou não. Só via gente a bambolear-se à sua volta, com as mulheres a rodopiarem debaixo dos braços dos seus parceiros e a executarem passos engraçados. O seu corpo começou a transpirar.

— Não posso, não posso mesmo fazer isto.

Ele pegou-lhe na mão direita e colocou o outro braço em torno da sua cintura.

— É claro que pode. Deixe de olhar para os outros e concentre-se em mim. — Sorriu quando ela olhou para ele. — Assim é que é. — Começou a mexer-se, de um forma lenta e ondulante fácil de seguir. — Vamos fazer as coisas de uma forma simples.

— Assim está bem — concordou ela, ofegante. Ele olhou lentamente para o rosto dela.

— Apre, você é linda! Deve estar sempre a ouvir isto da parte dos homens.

Carly olhou para ele, achando que tinha adormecido e entrado num belo sonho. «Ele pensava que ela era linda?» Mesmo que estivesse a mentir, cia queria acreditar nele — só neste pequeno instante.

Ele fê-la rodopiar num grande arco, e ela pisou-lhe a bota.

— Oh, desculpe! Magoei-o?

Ele riu-se e puxou-a mais para si.

— Não se preocupe, querida. Ando sempre com elas. Vamos tentar outra vez, para o outro lado agora. — Ele avançou para a esquerda, pressionando a sua coxa contra a perna direita dela para a fazer recuar. — Pronto, está a ver? Facílimo.

Para contentamento de Carly, era na realidade fácil. Ao deixar-se conduzir por ele, poupava-se à dificuldade de ter de se orientar sozinha. Ele voltou a olhá-la no rosto de novo.

— Onde esteve escondida durante este tempo todo? Quando reparei em si, há pouco, o meu coração quase que deixou de bater. Parecia um anjo, quando a vi sentada ali.

«Um anjo?» Carly já tinha ouvido palavras mais bonitas, mas não deixava de ser um cumprimento gentil.

— Acabei de me mudar para aqui. Vou começar uma pós-graduação em Crystal Falls, em Setembro.

— Ah. Isso explica porque é que ainda não a tinha visto antes. De onde é?

— Portland.

— Ena, uma rapariga da cidade. Por isso é que fala de uma maneira diferente. Virar à direita — instruiu, guiando-a com o seu corpo antes de executar o volteio. Depois: — Tem os olhos azuis mais bonitos que alguma vez vi. Juro, estavam a brilhar para mim como faróis incidindo do outro lado da sala. São lentes de contacto coloridas, não são? Não podem ser de um azul natural.

Enquanto tirava a licenciatura, Carly ouvira os homens que frequentavam os bares da universidade dizerem coisas deste tipo às suas amigas. Frases feitas, nada mais. Ele estava a cortejá-la. E, meu Deus, era tão bom. Toda a sua vida adulta ficara sentada na lateral, ouvindo a vida a acontecer à sua volta e a desejar que alguém reparasse nela. Agora, por fim, alguém reparara. Melhor ainda, ele era lindíssimo e encantador. Sentia-se como uma princesa daqueles contos de fadas que a sua mãe lhe lera há muitos anos.

— Não, não são lentes — assegurou-lhe com uma risada sonora. Pestanejou. — São McCoy verdadeiros.

— Deve estar a gozar. Bolas. É a minha noite de sorte, ou quê? É a mulher mais bonita que está aqui.

Carly sabia que ele só estava a dizer-lhe o que pensava que ela queria ouvir. E ele tinha razão. Era o que ela queria ouvir. A minha vez. Uma excitação irreflexiva e estonteante percorreu-lhe o corpo. Só que, desta vez, não analisaria, ou questionaria, ou preocupar-se-ia em ficar ferida. Esperara uma vida inteira por este momento e queria gozar todas estas deliciosas fracções de segundo.

— Chamo-me Hank Coulter — disse-lhe ele, com a sua voz profunda e áspera, mas estranhamente suave, tal como o rumor da seda natural ao ser esfregada.

— Carly Adams.

Ele inclinou a cabeça na direcção dela.

— Pode repetir? — Depois de ela ter repetido o nome, ele disse:

— Muito prazer em conhecê-la, Charlie. Que sorte a minha.

— Carly — corrigiu ela.

Ele acenou e sorriu. Carly deixou ficar as coisas por aqui. Quando a canção terminasse, ele acompanhá-la-ia até à mesa, e ela nunca mais voltaria a vê-lo, provavelmente.

Ele deslocava-se com uma graça surpreendente para um homem tão grande, com o corpo magro numa harmonia de movimentos enquanto a conduzia pela sala, os tendões das coxas a sobressaírem na ganga desvanecida das calças, as ancas adelgaçadas gingando ao compasso da música. Antes de Carly dar por isso, ele fizera com que ela se pusesse a rodopiar à sua frente, para depois girar em torno de si mesma debaixo do seu braço.

— Hoo-yah! — disse ele com uma risada, depois de ela ter executado um passo perfeito. Piscou o olho, abraçou-a pela cintura e aconchegou-a junto à nu coxa hirta para a obrigar a desenhar um círculo estonteante numa volta de two step. — Isso é que é, miúda.

A pressão da perna dele contra o vértice da sua fez com que o coração de Carly pulasse e o seu corpo se pusesse a zumbir. Era estranhíssimo. Tudo nela estremecia, dentro e fora. Quando ele, de repente, se afastou, deslizando a sua grande mão pelo braço dela para a agarrar pela mão, cumprimentou-a com o chapéu. Depois recuou, com os seus intensos olhos azuis fixos nos dela, as suas feições muito bem delineadas estranhamente tensas.

Sobrecarga sensorial. Todos os instintos que Carly desenvolvera enquanto cega ainda estavam em boa forma, fazendo com que se apercebesse da presença dele em todos os poros da sua pele, e os seus olhos absorvessem prazeres visuais que nunca experimentara antes. Ter um homem a fazer amor com ela com os olhos. Ver os seus ombros largos inclinados sobre os dela. Sentir o pulso forte mas delicado das suas mãos enormes. O cheiro dele — uma mistura de virilidade almiscarada, perfume dos bosques, cabedal e algodão seco ao sol — actuando sobre os seus nervos olfactivos como uma substância inebriante.

A música terminou cedo de mais para contentamento de Carly. Libertou-se do abraço e sorriu.

— Obrigada por me ter convidado para dançar. Foi divertido.

Ele pegou-lhe na mão, cobrindo por completo o seu pulso ossudo com uma mão quente e ligeiramente áspera, outra indicação de que a indumentária de vaqueiro não era só para dar nas vistas. Perante a expressão interrogativa de Carly, sorriu e apertou-lhe a mão com mais força.

— Não se vá embora. Por favor. Passe a noite comigo.

Antes de Carly poder responder, a banda começou a tocar «Be My Babe Tonight». Hank projectou a cabeça para trás e começou a rir-se.

— É coincidência, ou quê? — Envolveu-a com os braços e começou a cantarolar. Quando chegou à parte de «could ya, would ya, ain’tcha» e perguntou se ela queria ser sua essa noite, Carly estava já a rir com demasiada intensidade para se dar conta da situação. Ele fê-la girar num arco grande que pôs a cabeça dela a andar à roda. — Por favor, querida, não digas que não — murmurou-lhe ao ouvido. — Destroçarias o meu coração.

Carly inclinou-se para trás para olhar para ele. Sentia-se como uma vela pousada num parapeito soalheiro, com o corpo quente e repentinamente mole. Sabia que devia pôr um ponto final, antes que as coisas progredissem demasiado. No entanto, saber isso e fazê-lo eram duas coisas completamente diferentes. Será que iria voltar a ter uma oportunidade destas?

— Estou aqui com uma amiga — lembrou-lhe relutantemente.

— Livre-se dela.

— Não posso fazer isso.

Ele envolveu-a com os dois braços, pressionando o rosto contra o cabelo dela e começando a dançar um two-step simples.

— Talvez ela venha a engatar alguém e resolva largá-la — disse ele, com uma nota de esperança envolvendo a sua voz profunda.

Carly sabia que Bess nunca faria uma coisa dessas.

— Talvez — acabou por reconhecer.

— Entretanto, fique comigo — disse ele suavemente.

Carly acenou afirmativamente. Viu os lábios dele a curvarem-se num sorriso. Quando a canção terminou, ele retirou-a da pista. Saindo do meio da multidão, a ruiva com quem dançara anteriormente apareceu à frente deles e convidou Hank para dançar.

Carly tentou libertar a mão.

— Não me importo, Hank. — Era fácil parecer convincente. Dera sempre a sua vez a outras mulheres ao longo da vida. — A sério. Vá dançar com ela.

Ele apertou-lhe a mão.

— Desculpa — disse ele para a ruiva com um sorriso apologético. — Estou derreado. Vamos sentar-nos um pouco.

A mulher encolheu os ombros e afastou-se. Carly olhou para ela. A sério, Hank, não me importo. Ela dança muito bem e eu... enfim... não danço nada.

— Você é fabulosa e não a vou deixar sozinha. Todos os meus amigos lhe cairiam em cima como mel.

Começou a andar, levando-a para um canto no fundo da sala. A aura azul do fumo dos cigarros que pairava sobre a mesa irritou-lhe os olhos demasiado sensíveis, e o cheiro a cerveja era forte.

— Talvez possamos falar aqui — disse ele, enquanto puxava de uma cadeira para que ela se sentasse. — Normalmente, não me importo com o barulho, mas esta noite está de mais. Quero saber tudo acerca de si.

Carly ficou aliviada por se poder sentar na cadeira e escapar ao fumo. Ele sentou-se ao lado dela, virando a sua cadeira para que pudessem ficar frente a frente.

— Fale-me de si, Charlie.

— Carly — corrigiu ela de novo. Ele acenou com a cabeça.

— Já percebi. Fale-me de si, então.

— Não há muita coisa a dizer.

— Idade?

— Vou fazer vinte e oito em Agosto.

— E eu vou fazer trinta e dois em Dezembro. — Ergueu uma sobrancelha escura. — O que é que vai fazer para a universidade?

— Sou professora. Dei aulas a crianças com deficiência visual durante dois anos. Agora quero tirar o mestrado em ensino especial.

— Deve estar a brincar. — Os seus olhos encheram-se de gozo. — Adoro professoras.

— Adora?

— Imenso. Obrigam os homens a fazer as coisas até estar tudo na perfeição.

Carly desatou a rir. A empregada apareceu nesse momento. Hank pediu uma cerveja para cada um. Enquanto esperavam pelas bebidas, contou a Carly que trabalhava num rancho. Quando as cervejas chegaram, explicou que tinha uma sociedade com o irmão. Tinham umas centenas de cabeças de gado e viviam da criação de cavalos da raça quarter horse.

— Então é mesmo um cowboy verdadeiro, não daqueles de imitação.

— Ou um buckaroo. Não soa assim tão romântico, pois não? Os buckaroos trabalham com cavalos, os cowboys com gado. Eu e o Jake ainda temos vacas, por isso ambas as palavras servem. — Inclinou a cabeça sobre a caneca.

— Já bebi tudo e você ainda nem sequer começou a beber. — Fez sinal à empregada. — Precisa de dar mais atenção a esta mesa.

Carly bebeu outro gole obedientemente. Hank debruçou-se para limpar a espuma que ficara por cima do lábio superior dela. O seu toque foi suave, a sua expressão gentil.

— Ainda bem que a descobri. Que grande cura para o estado desalentado em que me encontrava.

— Porque é que estava assim tão desalentado?

A segunda ronda de cervejas chegou nessa altura. Hank pagou à empregada do bar e bebeu vários goles enérgicos antes de responder à pergunta.

— Discuti com o meu irmão Jake antes de vir para aqui. A mulher do irmão do marido da minha irmã faz anos hoje.

— Repita lá.

— É isso mesmo, uma parente afastada. A Maggie Kendrick é uma jóia de pessoa, mas não penso que a sua festa de aniversário seja a melhor maneira de passar uma noite de sexta-feira. O Jake não gosta do meu estilo de vida. Diz que assim não chegarei a lado nenhum e que nunca irei encontrar uma mulher decente num bar. — Ergueu a caneca e sorriu-lhe. — Engana-se.

Carly sentiu-se lisonjeada.

— Obrigada pelo cumprimento. Ê muito simpático da sua parte. Ele acabou a segunda cerveja, observou-a pensativamente e disse:

— A esta velocidade não vai conseguir ficar alegre, minha querida. Que tal um cocktail?

Carly quase que declinava. Ainda estava a tomar analgésicos e o médico dissera-lhe para não beber mais do que duas bebidas. Mas ela só bebera alguns goles de cerveja, recordou, e estava farta de ser sempre tão cuidadosa. Hank pediu um Slammer 1 para cada um deles. Quando as bebidas chegaram, Carly evitara já uma série de perguntas pessoais, contando a Hank apenas o suficiente para satisfazer a sua curiosidade. Provou hesitantemente a bebida que ele pedira e perguntou o que era.

— Uma poção de amor. Dizem que, depois de beber um gole, uma mulher se apaixona loucamente pelo primeiro homem que vê. O que quer dizer que esta é a minha noite de sorte.

Carly achou que era precisamente o inverso, que aquela era a sua noite de sorte. Mal queria acreditar que estava ali sentada com ele — ou que ele parecia só ter olhos para ela.

— É muito bom — disse ela, depois de ter voltado a provar a bebida. Ele esboçou mais um daqueles sorrisos arrastados que ela tanto admirara no início. Era muito mais poderoso ao pé.

— Devagar, minha querida. Um Slammer é quase álcool puro, cortado com um pouco de sumo de limão. Está habituada a coisas fortes?

Ela não era nenhuma abstémica.

— Estou tão habituada a elas como os outros, acho.

— Óptimo. O meu objectivo é descontraí-la um pouco e não pô-la KO. Ela olhou para ele por cima da borda do copo.

— Está a tentar garantir que não me falte nada?

— É isso mesmo.

Ela deu uma gargalhada e bebeu outro gole da bebida.

Hank tentou perceber o que é que esta mulher tinha que o cativava tanto. Já conhecera uma data de mulheres bonitas em bares e nunca quisera nenhuma da forma como queria esta. Talvez fosse o seu rosto gentil. Tinha um olhar inocente nos seus olhos, como não via há muito tempo. Grande ilusão. Não podia haver nenhuma mulher da idade dela ainda inocente, e se, por qualquer circunstância estranha, ainda o fosse, não estaria de certeza num lugar como o Chaps.

Mesmo assim, havia uma falta de artificialidade nela que ele achava atractivo. Tanto quanto lhe era dado a observar, não usava maquilhagem. O cabelo caía-lhe pelos ombros num manto de caracóis que o faziam ansiar por percorrê-los com as mãos.

Mais tarde. Quando a visse um pouco mais atestada, levá-la-ia de novo para a pista. Nada como um two-step aconchegante para aquecer uma mulher.

As imagens de sedução que atravessaram a mente de Hank fizeram-no pegar na bebida. Deu um grande gole. Quando quis voltar a pôr o copo em cima da mesa, perdeu a força na mão e quase que o ia deixando cair. Começou a pensar que talvez estivesse um pouco mais embriagado do que julgava.

— Está bem?

Hank secou a mão nas calças de ganga.

— Não podia estar melhor. Apenas um pouco inebriado. Mas é por isso que estamos aqui. Não é verdade? Para nos divertirmos.

— Pois é. — Ergueu a sua bebida para simular um brinde. — À diversão. - Deu um gole suave. — Nham. Quanto mais bebo, melhor sabe.

Hank encostou-se para trás para observá-la. Não era todos os dias que conquistava uma mulher, e estava a falar verdade quando lhe dissera que era muito bonita. Geralmente, o seu lema era: O que vier à rede é peixe. Além de dizer a uma mulher que a amava, faria o que estivesse ao seu alcance para obter algo mais em troca. As raparigas que costumavam frequentar lugares como o Chaps vinham normalmente pelas mesmas razões e compreendiam as regras do jogo. Fingiam que as frases já gastas eram uma novidade — e possivelmente até era verdade. Era divertido, insignificante e, de manhã, ninguém olhava para trás.

Hank gostava das coisas assim. Ainda não estava preparado para assentar. Se tal tivesse acontecido, de certeza que não andaria a catrapiscar mulheres num bar, sistematicamente cobiçadas e cortejadas por montes de homens.

— Já lhe disse que é lindíssima? Ela sorriu-lhe.

— Não. Lembrar-me-ia dessa palavra.

— Desculpe a desatenção. É lindíssima. Nem acredito que tenha sido eu a descobri-la em primeiro lugar. Pior para eles.

Carly rolou o copo entre as mãos, depois apanhou uma gota de condensação com o dedo. Quando voltou a olhar para cima, os seus olhos tinham uma expressão indistinta e sonhadora.

— Tem razão. Este Slammer é mesmo forte. Hank também já se sentia bastante toldado.

— Não beba muito. — Ele queria descontraí-la um pouco e não pô-la de rastos. — É muito forte. — Enquanto erguia o copo, indagou se não devia seguir o seu próprio conselho. No entanto, sem dar por isso, viu-se com o copo junto aos lábios. «Que se lixe.» O álcool nunca afectara o seu comportamento na cama. Não fazia sentido desperdiçar uma bebida tão boa.

Depois de mais alguns minutos de conversa sem sentido — o habitual prelúdio do sexo, com ambas as partes a fingirem terem dado de caras com a descoberta da sua vida — a banda começou a tocar outra vez. Era uma balada. Hank ajudou Charlie a levantar-se da cadeira. Esta perdeu o equilíbrio e tombou em cima dele. Segurando-a pelos ombros, conseguiu evitar que ela caísse, embora ele próprio já não estivesse muito firme. Riram-se, reconhecendo sem dizer nada que tinham bebido demasiado.

Abraçando-a pela cintura, levou até à pista de dança. Quando a puxou para o pé de si, ela encostou-se suavemente ao seu corpo. Imaginou o mesmo enleio na posição horizontal. Pele contra pele, com os membros esguios dela entrelaçados nos seus. Afagou-a nas costas com as mãos. Depois esticou a cabeça para roçar com o nariz pelos seus caracóis e mordiscar-lhe debaixo da orelha. Ela gemeu suavemente e agarrou-se à camisa dele, tão excitada quanto ele. «Oh, sim.»

Olhou para a porta da frente e começou a dançar nessa direcção. Minha doce Charlie. Ela deu um grito de sobressalto quando chegaram à saída e Hank abriu-lhe a porta. No momento em que saíam para o exterior, a brisa fresca de Maio contribuiu para aumentar ainda mais a sensação de calor que se desprendia dos seus corpos.

— A minha amiga Bess — murmurou com uma preocupação moderada. — Não posso...

Hank calou-a com um beijo profundo e abrasador. «Minha nossa senhora.» Ela sabia ainda melhor do que ele imaginara, com a sua boca tão macia e vulnerável. Respondeu ao avanço pesquisador da língua dele com um toque hesitante da sua. Depois recuou. Hank pensou ter visto alguma incerteza estampada nos seus grandes olhos azuis.

— Não te importas, pois não? — perguntou ele, com uma voz rouca desejo. — Se não quiseres, é só dizer.

— Não, não. Só que... — Ela desprendeu-se e sorriu. — Não há problema. Era tudo o que Hank queria ouvir. Agarrou-lhe nos pulsos e levantou-lhe os braços para a beijar no pescoço. Com um suspiro gutural que inflamou os sentidos de Hank, ela pôs-se em cima das suas botas para diminuir a diferença de altura e pressionar toda a sua suavidade contra o corpo dele.

A cabeça de Hank flutuava. «Virgem Maria.» Durante um segundo, teve a sensação de estar a tocar num fio eléctrico quente. Depois, o seu cérebro esvaziou-se e foi levado por uma corrente de pura necessidade. Virou-se — «devagar», pensou, atendendo ao avançado estado de embriaguez em que se encontrava — para colocar o corpo esguio de Carly entre o dele e a parede de cimento do edifício. Tirou as mãos da cintura para lhe apalpar os seios. Através da camada de roupa, sentiu os mamilos a endurecerem à passagem do seu polegar. Ela sobressaltou-se quando ele os apertou com os dedos.

Hank registou vagamente a sua reacção, só que não conseguia inteirar-se bem daquilo que o parecia perturbar. Ela sabia mesmo bem. Já nem se lembrava da última vez que estivera assim tão excitado. O certo é que o seu corpo ansiava por necessidades que não podiam ser satisfeitas num parque de estacionamento.

Continuando a beijá-la, abraçou-a pela cintura e conduziu-a pelo caminho asfaltado até à sua nova carrinha Ford. Quando abriu a porta da frente ainda teve tempo de dizer:

— Há um motel a dois quarteirões de distância. Vens comigo? Ela lançou um olhar preocupado para a discoteca.

— Se a Bess não me encontrar, vai ficar preocupada.

Hank preparava-se para debater o argumento, mas antes de o conseguir fazer viu-se a beijá-la de novo, esquecendo-se de imediato do que tinha para dizer. Desviou-se para abrir a porta de trás. O assento traseiro não era o lugar mais romântico para fazerem amor, mas se ela não queria ir para o motel, não tinha outra hipótese. Agarrou-a pela cintura e enfiou-a lá para dentro, depois juntou-se a ela rapidamente. Já estava a beijá-la outra vez, ainda antes de fechar as portas.

Todas as suas visões de vê-la nua ao seu lado foram por água abaixo. Seria impossível obter um certo nível de intimidade num parque de estacionamento. Hank começou a tocá-la através da roupa. Sentiu-a a gemer na sua boca, aumentando ainda mais o seu nível de excitação. Quando viu que já estavam suficientemente acalorados e esfomeados, a ponto de ele não conseguir aguentar mais, abriu-lhe as calças e baixou o fecho de correr. A sua pele tinha a textura de um tecido de veludo aquecido pelo sol.

— O que... o que estás a fazer? — perguntou ela, com uma voz trémula. Hank pensou que ela estava preocupada com a protecção.

— Espera um pouco.

Inclinou o corpo por cima do banco da frente, estirando-se na direcção do porta-luvas onde costumava ter uma embalagem de preservativos. Quando conseguiu finalmente abrir o compartimento e encontrar a maldita embalagem, agarrou com os dedos na tampa aberta e todo o conteúdo caiu no chão da frente. Hank praguejou entre dentes. Tentou trepar por cima do banco para tirar um invólucro de alumínio. Só que, sem saber como, entre o pensar e o fazer, viu-se a beijar Charlie de novo.

Sentia-se como um adolescente cheio de desejos — com uma necessidade urgente e sem qualquer tipo de controlo. Nunca fizera sexo sem ser seguro. Soaram-lhe alguns sinos de alarme, quando lhe pôs uma mão dentro das calças para tocar no seu centro húmido e quente. Depois pensou, «Que mal pode acontecer?» As mulheres que frequentam os bares costumam tomar a pílula. Tirando uma gravidez indesejada, onde estava o risco? Ela era demasiado gentil para ter uma doença sexualmente transmitida e ele sabia que ele não tinha nada.

Ela gemeu quando ele lhe tocou no clitóris. Uma humidade melada espalhou-se-lhe pelos dedos. Enfiou um dedo dentro dela e ela gritou de prazer. Puxou-lhe as calças e as cuecas para baixo até aos tornozelos, desapertou as suas calças e posicionou-se entre as suas pernas. Apoiando-se numa das mãos, enquanto procurava atingir o alvo, puxou-a para junto do peito e segurou-a com um braço para lhe poder beijar o ponto sensível mesmo abaixo da orelha.

— Hank?

— O que foi, minha querida? — Tinha o corpo hirto de excitação. Pressionou o membro endurecido contra o corpo dela, encontrando o seu centro molhado e receptivo, para de imediato o perder, com o sémen a espalhar-se descontroladamente antes sequer de ter entrado. Oh, bolas. Desculpa — murmurou atabalhoadamente, quando ela emitiu um ligeiro som de aflição. — Não faz mal. Dá-me só um segundo.

Hank respirou fundo. Não havia problema. Mesmo negligentemente bêbedo, conseguia sempre duas investidas. Ainda poderia dar o tempo por bem passado. Posicionou-se novamente sobre ela. Com um forte golpe de rins, mergulhou nela.

E ela gritou.

Hank sentiu a frágil barreira de tecido a rasgar-se. Ficou paralisado, sentindo a sua respiração a ficar áspera e ofegante. Praguejou indiscriminadamente, com o eco das suas próprias palavras a ricochetear-lhe nos tímpanos como uma bola de pingue-pongue. As luzes apagaram-se no interior da sua cabeça como flashes de uma máquina fotográfica. Pestanejou, tentando ver-lhe o rosto à luz fraca do letreiro luminoso da discoteca que entrava frouxamente pela janela.

«Uma virgem?» Foi esse o seu último pensamento. Exalou duas vezes e caiu inconsciente.


Capítulo Dois

Um pássaro trinou perto da orelha de Hank. O som fez a sua cabeça estalar. Deixou-se ficar, tentando perceber de que maneira um pássaro entrara no seu quarto e porque é que a sua cama confortável parecia tão cheia de altos e baixos como um saco de batatas. Abriu cuidadosamente os olhos. O sol feriu-lhe as pupilas como pinças de gelo. Gemeu e tentou tapar o rosto com um braço, mas os seus ombros estavam entalados num espaço apertado e não se conseguia mexer. «Raios!»

Procurando evitar a claridade, fez um esforço para se concentrar. De início, não fazia a mínima ideia do sítio onde estava. Depois, com um espanto crescente, foi-se apercebendo de que estava estendido no chão da parte de trás da sua carrinha, com o torso encaixado entre os assentos. Olhou estupidamente para a janela de trás que tinha acima dele. O pássaro que o acordara com o seu trinar estava empoleirado na beira do vidro rebaixado. Piu-piu, piu-piu. Os sons explodiam-lhe dentro da cabeça.

Parecia que toda a sua massa cinzenta se estava a desfazer sob a acção das lâminas de uma batedeira. Virou-se e ergueu um cotovelo. O interior da carrinha começou a girar. Olhou estupidamente para o pequeno pássaro cinzento, que inclinara a cabeça para o observar com os seus pequenos olhos brilhantes.

— Xô!

Nada inteligente. «Meu Deus.» A sua cabeça. Pousando um braço no assento esperou que a dor passasse e depois tentou sentar-se. Porque é que dormira na carrinha? Lembrava-se vagamente de ter ido à cidade na noite anterior, mas os acontecimentos do final do dia apareciam-lhe envoltos num nevoeiro crescente. Embebedara-se certamente. Quando bebia demasiado, geralmente fechava o veículo, chamava um táxi e dormia num motel.

Levantando o pescoço para espreitar pela janela, identificou o parque de estacionamento deserto do Chaps. Lentamente, numa desordem enevoada, os eventos da noite anterior começaram a tomar forma. Principiara a noite a atirar moedas com os amigos e já devia estar mais para lá do que para cá às dez da noite. Pouco tempo depois, engatara uma mulher. Uma loira. Marly? Não. Charlie, era isso. Grandes olhos azuis, um rosto de anjo e uma figura aprumada e curvilínea, envergando umas Wranglers justas e uma camisa cor-de-rosa. Dançaram, conversaram e beberam algumas cervejas. Depois, na esperança de desanuviar o ambiente e descontraí-la um pouco, mandara vir um Slammer para cada um.

Em que é que ele estaria a pensar? Os Slammers eram a versão do Chaps do suicídio assistido. Tanta cerveja e uma bebida das fortes para deitar tudo cá para fora? Por isso é que a cabeça lhe doía daquela maneira. Tanto ele como Charlie deviam estar completamente toldados quando saíram do bar.

Hank ficou hirto. Sentiu um arrepio a trepar-lhe pela espinha. As memórias que tinha dela eram como peças soltas de um quebra-cabeças, com as imagens a aparecerem-lhe em fragmentos. Mas havia uma coisa de que se lembrava com bastante clareza. Trouxera-a para a carrinha e fizera sexo com ela no banco de trás.

Olhou para o estofo cinzento e, numa visão vertiginosa, quase que a conseguia ver deitada por baixo dele. Havia uma mancha de sangue seco no cabedal de cor clara. O seu estômago, já de si debilitado, revoltou-se numa náusea. «Meu Deus.» Uma virgem, ela era virgem.

Os sentimentos de choque e incredulidade que o tinham apoquentado na noite anterior avassalaram-no de novo. Quantas mulheres haveriam ainda virgens aos vinte e muitos anos? E, desse número reduzido, que percentagem delas frequentaria lugares com o Chaps? Tinha de haver um engano. Talvez fosse do período e a barreira frágil que sentira outra coisa que não o hímen.

No fundo, já devia ter juízo. Lembrava-se distintamente como ela gritara de dor. Depois disso, não se recordava de mais nada. Perdera a consciência? Já ficara completamente grogue mais vezes do que aquelas que se atrevia a contar, mas nunca perdera a consciência. Que outra explicação haveria para o caso?

«Merda.» Uma virgem. Não tentara ser carinhoso — não se apercebera de que havia necessidade disso. Virou-se para se sentar no banco e viu mais sangue seco junto à braguilha dos seus boxers. Com as mãos a tremer, abotoou as calças. Depois colocou as mãos nos joelhos e apoiou a cabeça entre as mãos. O que é que ele fizera? Não se conseguia lembrar do apelido da rapariga e não fazia a mínima ideia de como poderia encontrá-la.

Depois de ter olhado vagamente para a discoteca fechada, durante alguns minutos, Hank concluiu que não servia de nada ficar ali sentado a lamuriar-se. De que é que ele estava à espera, de ver aparecer subitamente o seu nome em grandes letras na parte lateral do edifício?

Sentindo-se miserável, e com uma dor de cabeça horrível, rastejou para o banco da frente com a intenção de voltar para casa. A visão com que foi brindado enquanto se punha ao volante fê-lo soltar uma praga. Invólucros de alumínio espalhados no chão do veículo. Punha sempre protecção. Era uma regra estrita. Em que é que estava a pensar? Era esse o problema, concluiu. Comportara-se como um bêbedo, sem pensar, ponto final.

Quando Hank estacionou a carrinha perto de casa, meia hora depois, o seu irmão mais velho, Jake, acenou-lhe do estábulo, um enorme edifício de chapa rectangular pintado num tom verde-floresta. Hank não estava com disposição para outro sermão acerca da sua vida social. Quebrara todas as regras na noite anterior, tal como Jake vaticinara que acabaria por acontecer. Hank não lhe queria dar uma oportunidade para olhá-lo fixamente e dizer, «Eu bem te avisei.»

Hank deu um encontrão numa embalagem de preservativos debaixo do pedal do travão. Uma escorregadela em trinta e um anos não era uma média má, tentou convencer-se. Depois, uma voz de troça na parte de trás da sua mente murmurou: «Pois é, meu parvo. Uma escorregadela é suficiente.»

Saiu da carrinha, acenou a Jake e caminhou com passos firmes até aos degraus da frente da casa de madeira de dois pisos. Era natural que Jake precisasse de ajuda com um dos cavalos e certamente que ficaria chateado se Hank o ignorasse, mas a verdade é que esta era a sua manhã de folga. Precisava de tomar qualquer coisa para as dores de cabeça, e de algum sossego. Nada de sermões, nada de discussões, nada de expressões ameaçadoras. Isso podia esperar até ter curado a ressaca.

O chão de madeira brilhante do hall de entrada estava repleto de coisas de miúdos. Hank deu um encontrão a um brinquedo automático da Mattel, tocando acidentalmente no botão que activava o mecanismo de voz. «Bip! Bip! Vou a caminho!» ressoou atrás dele enquanto se dirigia para a cozinha. A mulher de Jake, Molly, estava junto ao fogão com o sobrinho de Hank, Garrett, encavalitado na sua anca. A luz proveniente da fileira de janelas que se encontravam por trás dela realçava-lhe o cabelo acobreado, unido numa coroa de caracóis sedosos em torno da cabeça. Tinha um lápis atrás de uma orelha, o que levou Hank a pensar que tinha estado a trabalhar no escritório lá em baixo, conjugando os seus deveres de esposa e mãe com os da exigente carreira de corretora e consultora de investimentos ultra-sofisticada. Jake contratara uma governanta a tempo inteiro, mas Molly insistia em ser ela a cuidar do filho.

Virou-se e esboçou um grande sorriso.

— Ora, ora, vejam quem chegou.

Hank sobressaltou-se ao ouvir a sua voz. Percorreu aquilo que pensou ser uma linha razoavelmente direita até ao armário, tirou a tampa à prova de crianças de um frasco e meteu três comprimidos de ibuprofeno na mão.

— Parece que viste a morte — observou Molly num tom gracioso. Hank encheu um copo com água da torneira.

— Bom dia a todos.

— Os teus olhos estão tão raiados de sangue que deves estar a precisar de uma transfusão.

— Não comeces.

Hank engoliu os comprimidos e colocou o copo em cima da bancada com um pouco mais de força do que era sua intenção. O som penetrante fez a criança dar um salto. Garrett virou-se nos braços da mãe para olhar para o tio, com os seus grandes olhos azuis subitamente desconfiados. No instante seguinte, o pequeno queixo do sobrinho começou a tremer. Seguiu-se um grilo. A cabeça de Hank parecia estourar.

— Pronto! — Molly aconchegou o filho e olhou para Hank de forma acusadora. — Assustaste-o.

O som dos gritos da criança fez com que Hank desejasse sair dali para se proteger, mas já tinha demasiadas coisas contra ele.

— Olá, pequerrucho. — Passou com uma mão pelas costas estreitas de Garrett. — Sou eu. — Inclinou-se para apertar o nariz da criança, o que fez com que a gritaria parasse e fosse recebido por um sorriso babado que brilhou entre os quatro dentes da frente. — Vem cá, maroto.

Aliviada, a cunhada de Hank libertou o petiz. Sorriu ao ver a forma tomo o filho abraçou o tio.

Hank captou o seu olhar por cima da cabeça de Garrett.

— Desculpa. Não queria ser rude. Só que estou com uma enxaqueca dos diabos, como deves calcular.

— Isso é o que acontece quando bebes até caíres para o lado.

Não era apenas isso que podia acontecer. Uma imagem de Charlie apareceu na mente de Hank.

Molly agarrou no copo e pô-lo dentro do lava-loiça.

— Preocupo-me contigo, Hank. Não me parece que estejas a ir pelo bom caminho.

— Que mal tem um tipo divertir-se um pouco?

— A não ser que queiras uma resposta honesta, é melhor não perguntares.

Hank achou que havia algo de verdade naquela observação. Segurou no pequeno, durante mais algum tempo, depois devolveu-o a Molly.

— Acho que vou dar um passeio.

— Não queres comer nada? Ia fazer uns ovos e umas torradas. Posso preparar mais uns a contar contigo.

Só a simples menção de comida era suficiente para pôr o estômago de Hank a andar às voltas.

— Não, obrigado. — Passou pela mãe e pelo filho, dirigindo-se para a porta das traseiras. — Talvez mais tarde.

Enquanto olhava lá para fora, Molly disse suavemente.

— Gosto muito de ti, Hank. Se isso faz de mim uma chata que está sempre a meter o nariz onde não é chamada, peço desculpa.

Hank deteve-se na soleira para olhar para ela. Molly era uma das pessoas mais bondosas que alguma vez conhecera, um facto que saltava à vista nos seus olhos castanhos.

— Eu também, mesmo que sejas uma chata. Ela encolheu os ombros e sorriu.

— Para um tipo que anda sempre a divertir-se, não me parece que rias muitas vezes.

— Observação registada. Vou tratar disso.

Depois de sair pela porta das traseiras, Hank deixou-se ficar no alpendre. Apesar das manchas de luz amarelo-limão que cobriam o pátio, a floresta circundante ostentava sombras profundas que enchiam a manhã de Maio de uma certa frialdade. As rajadas de ar fresco com aroma a pinheiro ajudaram a suavizar a dor que sentia nas têmporas.

Pensou em sentar-se nos degraus, mas desistiu da ideia. O pessoal contratado para ajudar nas lides do rancho entrava normalmente em casa pela porta das traseiras e, durante o dia, o movimento de pés era constante. Hank precisava de tempo para si próprio.

Dirigiu-se para o riacho que rodeava a propriedade. A relva, da altura do tornozelo, cobriu-lhe as botas com o orvalho da manhã, escurecendo o castanho do cabedal. Um gafanhoto ocasional saltava do esconderijo para se pôr a cirandar entre as suas pernas. Um odor pungente erguia-se da terra encharcada. Hank respirou fundo, com os cheiros e os sons a apaziguarem a tensão que sentia nos ombros.

Gostava sempre de gravitar em torno do riacho quando estava com problemas. Para montante da casa principal havia um relvado junto à margem norte. Não se conseguia lembrar da primeira vez que fora até ali à procura de uma certa privacidade. Só sabia que o som da água a correr o ajudara sempre a concentrar-se, mesmo quando era miúdo.

Quando chegou à beira da água, enfiou-se pela margem lodosa e arrelvada para se atolar na sua miséria, uma parte física e três partes emocional, estando as partes emocionais tão intricadas que não conseguia separar a culpa do arrependimento. Charlie. Naquele preciso momento, Hank daria tudo por tudo para poder recuar no tempo e desfazer os acontecimentos da noite anterior. Lembrava-se do brilho inocente que captara nos olhos de Charlie e queria recriminar-se por isso. Sempre tivera uma tendência para avaliar as capacidades das pessoas. Porquê, quando fora vitalmente importante, ignorara a pequena voz que se fizera ouvir na sua cabeça?

Todos os conselhos dados pela sua mãe pareciam assaltá-lo agora. «Mais cedo ou mais tarde, Hank, irás fazer uma coisa de que te arrependerás. Não podes brincar com o fogo sem nunca te queimares.» Hank ignorara sempre a mãe, atribuindo os sermões à diferença de gerações e a muita Bíblia pelo meio. Agora desejava ter prestado mais atenção. Há alguns meses, lera um artigo acerca do sexo na adolescência que dizia que uma grande percentagem de miúdos com doze anos era sexualmente activa. Como é que conseguira tropeçar numa virgem de vinte e tal anos?

Por breves instantes, Hank sentiu alguma raiva. Olhando para as coisas de forma racional, não havia dúvidas de que toda esta confusão fora provocada por ela, não por ele. Ela procurara sarilhos, indo a um bar de música ao vivo frequentado por rufias, e arranjara-os, isso era certo. Como é que ele podia adivinhar que ela nunca se metera com ninguém? Estava bastante atraente, com aquelas calças de ganga apertadas, mesmo a pedir que alguém lhe caísse em cima.

A raiva de Hank enfraqueceu no preciso instante em que começou a aumentar. Não havia nenhuma lei que dissesse que as virgens tinham de ser portadoras de sinais reveladores da sua inexperiência sexual. E também não havia nenhuma lei que as impedisse de ir a um bar. Charlie não tinha culpa de ser bonita e, por muito que quisesse passar a bola, não podia julgá-la pelo seu comportamento. Quando pedira um Slammer, a sua única intenção fora embebedá-la. Ela já estava um pouco zonza quando saíram do Chaps, e ele tirara partido disso.

De repente, foi assolado por um pensamento horrível. Porque é que uma virgem haveria de tomar a pílula? Suspirou e deixou-se cair na relva. E se ele a tivesse engravidado? Podia estar por aí algures, grávida do seu filho. Teria de descobrir quem ela era, no caso de haver algum problema.

E, se surgisse algum problema, o que é que ele ia fazer?

A resposta já estava na cabeça de Hank, antes de completar sequer o pensamento. Os homens Coulter nunca fugiam às suas responsabilidades e uma criança era uma grande responsabilidade. Desde os catorze anos que o pai lhe vinha matraqueando a cabeça: «Engravida uma miúda e vais ver que não tens escapatória possível. Ou assumes a responsabilidade e fazes o que tens a fazer, ou terás de te haver comigo.»

Nada de «se», «e» ou «mas», Hank tinha de descobrir Charlie. A questão era, como?

Às dez horas em ponto, nessa noite, Hank reentrou no Chaps. Apontou a sua chegada para as dez porque era geralmente a hora mais concorrida da noite. Os que costumavam chegar mais tarde já lá estavam, a esta hora, e os frequentadores mais entusiastas ainda não tinham saído. Algures, por volta das onze, as pessoas começavam a formar pares e, pouco tempo depois, os casais começavam a esgueirar-se. Hank queria falar com o maior número de frequentadores possível para não perder a oportunidade de um deles poder conhecer Charlie.

Depois de entrar, observou a multidão, esperando vê-la. Uma aura de fumo cinzento-azulada pairava em camadas sobre as mesas. O cheiro a cerveja, uísque e suor inundou-lhe as narinas, com a irregular cacofonia de vozes altas em competição constante com a música. De tempos em tempos, sobrepondo-se acima do ruído, uma linguagem mais ordinária irrompia da multidão como água suja refluindo de uma sarjeta.

Estar no Chaps, outra vez, foi suficiente para que Hank se recordasse mais claramente de Charlie. Olhando para a mesa onde ela estivera sentada na noite anterior, lembrou-se dela a dizer que não sabia dançar. Nessa altura, julgou que estava a referir-se às danças country-western, mas agora interrogava-se se ela saberia dançar o que quer que fosse. O mesmo acontecia com uma série de coisas. A dada altura, preocupara-se com o facto de ela não estar acostumada a beber álcool. Também reparara numa hesitação tímida na forma como reagira ao seu beijo. A recordação fê-lo contrair os músculos. Por onde é que ela andara todo este tempo, num convento?

Hank lamentava-se profundamente agora de ter bebido tanto. Se estivesse sóbrio ter-se-ia apercebido de que algo não estava certo e nunca teria tocado nela.

«Se os desejos fossem cavalos, os pobres não teriam problemas em cavalgá-los.» Embebedara-se até cair para o lado e tocara nela. Essa é que era a grande questão.

Hank deu várias voltas, parando primeiro numa mesa, depois noutra. Em cada uma delas, fazia o mesmo, tentando saber se as pessoas se lembravam de uma loira com quem ele estivera na noite anterior e perguntando se alguém a conhecia. Infelizmente, nenhuma das pessoas com quem falou, incluindo Gary, o empregado de bar, vira Charlie antes. Na esperança de que ela ainda voltasse ao bar de música ao vivo, Hank deixou o seu contacto a Gary para que este pudesse contactá-lo.

No momento em que Hank deixava o bar, parou junto à porta para olhar para a sala. Há meses que este lugar funcionava como uma segunda casa para ele. Agora interrogava-se porque é que viera cá tantas vezes. Era estranho como os gostos de uma pessoa podiam mudar tão depressa.

Enquanto saía e passava por baixo da luz do letreiro para se embrenhar na escuridão, parou e pôs-se a olhar para o céu. Milhares de estrelas brilhavam sobre ele, como diamantes no meio de veludo preto. Quando era rapaz, gostava de se sentar no alpendre com o seu avô McBride e ficar a olhar para as estrelas. O velhote desafiara várias vezes Hank a escolher a estrela mais brilhante, para depois afastar o olhar e tentar encontrá-la outra vez. Esse esforço terminava sempre em fracasso.

Hank temia que voltar a encontrar Charlie apresentasse o mesmo grau de dificuldade. Crystal Falls e as zonas envolventes tinham uma população de 150 000 habitantes. Sem um apelido, não fazia a menor ideia por onde começar sequer a procurar. Para complicar ainda mais as coisas, Charlie podia ser um diminutivo.

A única esperança de Hank era que ela regressasse ao Chaps, e isso não era muito provável. Tudo dependia do Destino, a partir de agora. Fizera tudo o que estava ao seu alcance para tentar encontrá-la.


Capítulo Três

Nessa noite, Hank sonhou que era um velho, ainda a trabalhar no rancho Lazy J. No início, era um sonho bonito. Estava a juntar feno num estábulo e a luz da manhã espreitava através do cercado adjacente, aquecendo-lhe os ombros. O cheiro a cavalo rodeava-o. O bater dos cascos e o sopro suave das éguas faziam-no sentir-se tranquilo.

Como acontece muitas vezes nos sonhos, Hank não tinha a menor noção da sua vida, apenas uma sensação de que era velho e vivera bem, criando cavalos, como lhe tinha sido predestinado. Tinha uma sensação maravilhosa de justiça e de paz.

Depois ouviu um carro a parar no exterior. Endireitando-se do trabalho, coçou uma orelha e pôs-se à escuta. Uma sensação horrível de medo percorreu-lhe o corpo. Não sabia porquê. Encostou o ancinho à parede e foi até à zona central, com o tremor a aumentar. De certa forma, sabia que estava a sonhar, e disse a si mesmo para acordar, mas a sua mente insistia no desenrolar da cena.

Fora do estábulo, Hank viu um jovem alto de cabelo escuro ao lado de um carro vermelho empoeirado. Ao ouvir a passada arrastada de Hank virou-se e amaldiçoou Hank com os seus olhos azuis brilhantes. Olhos Coulter. Hank nunca vira aquele jovem, mas, de certa forma, sabia que era seu filho. Hank calculou que tivesse vinte e tal anos. O que batia certo. Haviam decorrido vinte e cinco anos desde aquela noite fatal no Chaps, quando Hank desflorara uma virgem e perdera a consciência antes de se inteirar sequer do nome dela.

— Posso ajudá-lo? — perguntou Hank.

O jovem lançou um olhar crítico sobre Hank, mirando-o desde a ponta das botas até ao cimo da cabeça,

— Ando à procura do Hank.

Hank pressentiu a raiva do rapaz e sabia que iria ser libertada no momento em que ele se identificasse.

— Encontrou-o.

O rapaz cerrou os punhos e avançou na sua direcção.

— Seu filho da mãe!

Hank viu o soco a chegar, mas não foi suficientemente rápido para o evitar. Quando tocou no chão, deixou-se ficar, pestanejando e tentando ver, pensando estupidamente que o seu filho lhe dera um soco de todo o tamanho. Quem sai aos seus não degenera.

— Pensei em passar por cá para me apresentar. Chamo-me Hank. A minha mãe deu-me o nome do sacana de quem sou filho e nunca me pôs o seu apelido.

Hank acordou num sobressalto e ergueu-se muito direito. «Um sonho, apenas um sonho.» Mas parecera tão real. Tinha o corpo inundado de suor. Fez um esforço para se libertar dos lençóis colados e levantou-se da cama. Procurando respirar melhor, deixou-se ficar no centro do quarto com o coração a bater-lhe pesadamente.

Lentamente, a realidade foi-se apoderando dele. Sentou-se na beira da cama e apoiou a cabeça entre as mãos. As recordações apareceram-lhe na mente como cenas de um filme. «Charlie, deitada debaixo dele.» No último segundo, quando se apercebeu de que ela era virgem, recuara, mas sabia muito bem que o mesmo não acontecera aos seus espermatozóides.

Tinha um pressentimento horrível de que o sonho fora profético, que fizera o impensável na noite anterior e era pai de um filho ilegítimo.

Ainda ensonada, Carly sentou-se numa poltrona da sala de estar, com as pernas dobradas por baixo dela. Na obscuridade da aurora, poucos eram os sons vindos das paredes e do tecto dos apartamentos vizinhos. Nem sequer os espanta-espíritos no patamar da frente do rés-do-chão faziam qualquer barulho. Nestas últimas três semanas, desde que ela e Bess haviam alugado a casa, Carly começara a ficar acostumada ao tinir musical. Dentro de algumas horas, muitos dos vizinhos começariam a agitar-se, alguns saindo para o trabalho, outros emergindo para passearem os seus cães pequenos no relvado comum. Mas, por agora, Carly sentia-se como a única pessoa no mundo que estava acordada. Não conseguir sequer ouvir os carros a passarem na rua, geralmente movimentada durante o dia.

Acendera uma vela para afastar as sombras e o sonho mau que a tinha acordado. A verdade é que o brilho cintilante não a fez sentir-se muito melhor. Visões do rosto de Hank Coulter continuavam a assolar-lhe a mente e, de todas as vezes, uma sensação de humilhação misturada com vergonha elevava-se que nem ácido do seu abdómen.

Achou que um copo de leite talvez pudesse acalmar o seu estômago e os nervos. Não querendo acordar Bess, que sempre tivera um sono leve, caminhou em bicos de pés até à cozinha adjacente. Tinha acabado de tirar um copo do armário e começado a verter o líquido quando a voz de Bess a apanhou de surpresa.

— O que estás a fazer?

Carly deu um salto e entornou o leite.

— Bess, o que estás a fazer acordada?

A sua amiga ligou as luzes fluorescentes do tecto. Carly pestanejou.

— Precisamos de ter essas luzes ligadas?

Bess murmurou qualquer coisa acerca de viver como vampiros e voltou a mergulhar a cozinha numa semi-escuridão.

— Quanto tempo vai demorar até que os teus olhos estejam suficientemente sarados para podermos acender as luzes como pessoas normais?

— Mais alguns dias. Eu sei que é por causa das cicatrizes, mas as luzes brilhantes ainda me afectam terrivelmente. — Carly voltou a verter o leite. — Peço desculpa por te ter acordado. Temos de pedir ao senhorio para arranjar a porta do frigorífico. Está a fazer barulho.

— Tira o dedo de dentro do copo. Já não és cega. Carly pôs o dedo médio na parte exterior do copo.

— Não vais conseguir treinar o teu córtex a não ser que o uses.

— Estás a ser mazinha. Porque é que não vais para a cama?

— Porque estou acordada agora, graças a ti. — Bess abriu a boca num bocejo. — Ainda não respondeste à minha pergunta. Porque é que já estás a pé?

Carly voltou a pôr o leite no frigorífico e limpou a bancada.

— Que horas são?

Bess olhou para o relógio.

— Ainda não são cinco. É a segunda noite consecutiva que andas de um lado para o outro. O que se passa, Carls? Se precisas de falar um pouco acerca do que aconteceu outro dia, sou toda ouvidos.

Com uma mão pousada no abdómen ainda sensível, Carly pegou no copo de leite. Ladeou a amiga e regressou à sua poltrona na sala de estar. Seguindo-a, Bess foi-se sentar no sofá ao lado. Depois de se encostar numa almofada, levantou as pernas e agarrou-se aos tornozelos. À luz da vela, com os raios desmaiados da aurora a incidirem sobre a janela que tinha por trás, o seu cabelo escuro assemelhava-se a uma cortina de seda pendendo sobre os ombros.

Normalmente, Carly seria capaz de confiar quase tudo a Bess, mas certos pormenores acerca do incidente com Hank Coulter eram de algum modo diferentes — extremamente pessoais e, pior ainda, horrivelmente humilhantes. Pôs o copo de lado e puxou pela parte inferior da sua camisa de noite.

— Estou um pouco preocupada — confessou ela. — Acho que o Hank não usou nenhuma protecção.

Os olhos Bess alargaram-se.

— Achas ou tens a certeza?

Carly abanou a cabeça. Bess já sabia acerca dos analgésicos e do álcool não serem uma boa mistura. Não valia a pena falar sobre o assunto outra vez.

— Não estava a segui-lo muito bem. Lembro-me de o ver inclinado sobre o assento para tentar alcançar qualquer coisa, mas acho que a deve ter deixado cair... ou mudou de opinião.

Bess ergueu uma sobrancelha de preocupação.

— Oh, Carls — murmurou ela. — E se ele te engravidou? Era essa a preocupação de Carly.

— Assim que se apercebeu de que eu era virgem parou. Tenho a certeza que nem ejaculou dentro de mim. Sendo esse o caso, não estou totalmente segura?

Bess não disse nada.

— O coito interrompido não é uma forma segura de controlo de nascimentos, Carly. Ele penetrou-te. Mesmo que os homens não ejaculem, podem segregar um líquido pré-ejaculatório. E para engravidar uma mulher basta um espermatozóide.

O estômago de Carly começou uma revolução lenta. Lá no fundo, ela sabia o que esperar.

— No meu caso não houve muito coito. Talvez, desta vez, tenha funcionado.

— E se não funcionou? E se estiveres grávida? Por acaso tens o contacto dele?

Erguendo o queixo numa atitude de teimosia, Carly disse:

— Não lhe vou ligar, se é isso que estás a pensar. Não o quero voltar a ver.

— Se estiveres grávida, que opção tens?

— Ele foi ordinário comigo — Carly recordou-lhe. — Depois disso, senti-me tão suja... com aquele tipo de sujidade que não volta a sair. Não lhe devo nada, absolutamente nada.

Talvez não. Mas ele deve-te. Além disso, um homem tem o direito de saber quando é pai de uma criança, e todas as crianças têm o direito de saber quem é o pai delas. Tens de entrar em contacto com ele.

— Eu não estou grávida. Isso não pode acontecer. — No preciso momento em que pronunciava estas palavras, sabia que estava a tentar iludir-se a si própria. — Ter um filho iria sabotar os meus estudos, possivelmente a minha vida inteira. Isso não pode acontecer.

Bess afastou o cabelo dos olhos.

— Vamos esperar que não aconteça nada. Se estiveres grávida, logo veremos.

Carly respirou fundo.

— Pelo menos consegui uma coisa. Já não sou a última virgem de vinte e oito anos à face da terra.

Bess riu-se, apesar de estar preocupada.

— Lá isso é verdade. Daqui a nada serás uma veterana a dar-me conselhos. Carly abanou a cabeça.

— Uma vez bastou-me. Na minha opinião, os prazeres do sexo estão altamente sobrevalorizados.

— Melhoram com o tempo.

— Se é isso que pensas, tudo bem. — Na verdade, não queria saber se voltaria ou não a fazer sexo.


Capítulo Quatro

Seis manhãs mais tarde, Carly acordou agoniada. Quando Bess a encontrou na casa de banho ajoelhada ao lado da sanita, passou pelo rosto de Carly um pano molhado e começou a dizer, «Oh, não!» como se fosse uma ladainha.

— Deve ser da gripe — conseguiu dizer Carly entre vómitos. — Os enjoos matinais não costumam começar assim tão cedo. Pois não?

— Depende. — Bess sentou-se no chão e encostou-se às portas do armário do lavatório. — Há mulheres que começam com os enjoos muito cedo.

O estômago de Carly lá se acalmou e ela pôde sentar-se sobre os calcanhares.

— Pelo sim, pelo não — disse Bess —, talvez fosse melhor ligarmos ao doutor Merrick para ver se os medicamentos que estás a tomar não fazem mal ao bebé.

— Que bebé? — Carly apertou com força os joelhos e olhou para a amiga, cujo rosto não passava de uma mancha difusa. — Não há nenhum bebé, Bess. Não pode haver. — Outra onda de vómito. Carly inclinou-se sobre sanita e apoiou a cabeça entre os braços. — Meu Deus, o que vou fazer? Não estou com febre. Normalmente, quando estou com gripe, fico com febre.

Bess pôs a mão em cima do ombro de Carly.

— Bem, em primeiro lugar, não vamos entrar em pânico.

— Pois é — disse Carly com uma voz ténue. — Provavelmente foi qualquer coisa que comi.

— Exactamente — respondeu Bess de uma forma calma e confortante. — Os vómitos podem ser causados por uma série de coisas. Temos de esperar para ver. Se o teu período se atrasar e ainda te sentires enjoada, então devias fazer um teste de gravidez.

Carly não queria acreditar no que estava a acontecer.

— Entretanto — prosseguiu Bess —, parece-me aconselhável telefonar ao médico e perguntar de que modo um feto poderá afectar os teus olhos. A distrofia lattice é uma doença tão rara que nunca se sabe. — Apressou-se a contornar o assunto. — Não estou a dizer que haja um bebé, vamos ver se nos entendemos. Mas ficarias mais segura desta forma.

— Está bem. — Carly endireitou-se de novo com cuidado. O botão da tampa do autoclismo começou a flutuar à sua frente, com o reflexo metálico transformado numa orbe brilhante e dançante. — Não estou a conseguir focar como deve ser.

Bess inclinou-se para afastar uma madeixa de cabelo dos olhos de Carly.

— Está melhor assim?

— Não. — Carly pressionou os dedos na base da garganta, fechou os olhos e engoliu várias vezes em seco.

— De certeza que não é nada de grave — disse Bess. — O médico disse-te para esperares episódios de visão enevoada durante vários meses.

Carly acenou num gesto de concordância, lembrando-se dos avisos do médico acerca das aberrações visuais que iriam incapacitá-la com frequência, durante pelo menos três meses, tornando quase impossível para ela manter um emprego ou uma função normalmente. Foi por isso que marcara a primeira operação, chamada queratectomia superficial, para o final de Maio, para que a visão enevoada e os outros problemas visuais tivessem praticamente desaparecido antes das aulas começarem em Setembro. Mais tarde, como as melhorias provocadas pela queratectomia não iriam durar para sempre, talvez fosse necessário fazer uma segunda operação.

Alguns minutos depois, Bess dirigiu-se à cozinha, marcou o número do especialista em doenças da córnea de Portland e estendeu o telefone a Carly. Quando o médico atendeu, não ficou nada satisfeito ao saber que Carly podia estar grávida.

— Se estava a planear ter um bebé, não devia ter feito a primeira queratectomia — disse. — A gravidez pode ter efeitos adversos sobre a distrofia lattice e reduzir a eficácia da operação.

Os olhos de Carly latejavam do recente fluxo de vómitos, e a única coisa que conseguiu dizer foi, «Estou a ver», o que parecia uma coisa estúpida, atendendo às circunstâncias.

Merrick suspirou.

— Devia tê-la informado sobre os perigos de gravidez de uma forma mais veemente. Durante uma das nossas conversas, deu-me a entender que não era sexualmente activa, e que a gravidez não seria uma preocupação imediata. Tencionava dar-lhe mais instruções, na próxima consulta de rotina, daqui a duas semanas.

Carly lembrava-se da conversa a que ele se estava a referir, e ele tinha razão: ela dissera-lhe que queria estar na posse da sua visão, enquanto decorresse a pós-graduação, para poder levar uma vida social normal e, possivelmente, começar a namorar.

— As circunstâncias mudaram — foi tudo o que conseguiu dizer. — Não planeei a situação, doutor Merrick. Só que... aconteceu.

— Estou a ver. — Um barulho de papéis do outro lado. Seguiu-se um breve silêncio. — Se estiver grávida e a sua condição encurtar o período de vigência da queratectomia, não recomendo que faça uma segunda operação antes de o bebé nascer.

A dor de cabeça de Carly impedia-a de pensar convenientemente. Está a dizer que poderei voltar a ficar cega, antes de o bebé nascer, sem poder fazer nada?

— Se estiver grávida e a primeira queratectomia fracassar rapidamente, será uma forte indicação de que a sua distrofia lattice terá um efeito adverso sobre quaisquer intervenções que venham ser feitas durante a gravidez. Não pode fazer assim tantas queratectomias superficiais e transplantes da córnea. Porquê perder uma série inteira de uma só vez, quando a sua doença está a galopar? Iria desperdiçar anos de acuidade visual.

Carly compreendeu o seu raciocínio: só que lhe era difícil aceitar.

— Não quero decididamente fazer mais operações enquanto estiver grávida, se acabarem sempre por fracassar. Foi por isso que esperei tanto tempo para fazer a primeira operação, para que pudesse ver quando começasse a trabalhar. Quero ver durante o máximo de tempo que puder.

O médico aclarou a garganta.

— Ainda não tem a certeza de estar grávida, correcto?

— Correcto.

— Seria aconselhável fazer um teste de sangue. São muito precisos antes da primeira falta. — Ouviu um barulho seco do outro lado da linha e depois o som de folhas a serem manuseadas, indicando que devia estar a tentar ver qualquer coisa num livro. — Aqui está — disse. — St. Luke é o hospital que tem aí ao pé. Vou enviar-lhes um fax esta tarde, para que possa tirar sangue segunda-feira de manhã. Assim, saberemos imediatamente.

— Está bem — disse Carly com uma voz apagada.

— Entretanto, não se preocupe muito com a questão de poder vir a perder a visão. Não vale a pena agudizar mais as coisas. A gravidez pode ter efeitos secundários sobre algumas doentes de lattice, de uma forma bastante rápida, mas outras passam por ela sem grandes complicações. Se estiver grávida, talvez seja uma das sortudas.

— Estou a ter alguns problemas de focagem neste momento. As coisas ficam nítidas, mas depois desfocam-se outra vez.

— Já falou com o médico que lhe recomendei aí em Crystal Falls para fazer um exame pós-cirúrgico? — Outro restolhar de papéis. — Ah, sim, aqui está o relatório. Segundo ele, parecia tudo bem. Isso foi há quanto tempo... dez dias?

— Mais ou menos.

— Trata-se de um belíssimo cirurgião e de uma pessoa bastante qualificada para detectar qualquer problema resultante da cirurgia. A visão enevoada que está a ter neste momento é provavelmente normal. Mesmo que a visão tivesse melhorado para um nível máximo de acuidade, agora que as córneas estão recuperadas, o córtex visual continuaria a estar inadequadamente treinado para poder processar e assimilar tudo o que os seus olhos vão absorvendo. Como tal, haverá alturas em que lhe pregarão partidas. É provável que se ponha a olhar directamente para uma coisa sem conseguir vê-la. Ou pensar que está a ver uma coisa que, na realidade, não está lá. Pense nisso como um novo banco de memória cujo controlo ainda lhe escapa, como acontece durante os sonhos, com as imagens soltas a sobreporem-se. Só que, no seu caso, poderá ocorrer quando está acordada.

Carly sabia tudo acerca de ver coisas que não existiam, nomeadamente a ternura que detectara nos olhos de Hank Coulter.

— Os episódios de visão enevoada — continuou o médico — irão diminuir gradualmente de frequência e acabar por desaparecer. Ainda continuará a ter dificuldades na interpretação de certos pormenores, como os padrões de fundo, e a sua percepção da profundidade poderá ser sempre fraca, mas a focagem irá melhorar. Só precisa de levar as coisas com calma até o córtex visual ter tempo para se ajustar.

— Se estiver grávida e isso afectar adversamente a minha lattice, quanto tempo demorará até perder a visão?

Alarmada pelo rumo que a conversa estava a tomar, Bess aproximou-se. O Dr. Merrick demorou algum tempo a responder.

— Não existe nenhuma resposta certa para essa pergunta. Tudo depende do doente, da gravidade da lattice para começar, e de uma série de outras coisas. Poderá não notar qualquer alteração na sua visão durante meses. Por outro lado, a sua visão poderá desaparecer num abrir e fechar de olhos.

— Perdi o direito ao estatuto de cega, doutor Merrick. Se voltar a perder a visão, quanto tempo demorará até estar novamente em condições de poder receber um subsídio especial para prosseguir os estudos?

— Uma vez que fez uma cirurgia correctiva e conseguiu recuperar a visão para 20/200, ou melhor, tornou-se inelegível para o estatuto de cega até todas as intervenções cirúrgicas para a correcção do problema terem sido feitas 2. Em resumo, não poderá ser reintegrada a não ser que faça outra queratectomia, seguida de um transplante, e ambas as intervenções venham a fracassar.

Carly encostou-se ligeiramente à bancada.

— Não me parece justo. Se ficar cega em resultado da gravidez, e só puder fazer uma cirurgia correctiva depois de o bebé nascer, como é que vou poder fazer a pós-graduação? Não terei qualquer subsídio.

— Não sou eu que faço as leis — recordou-lhe. — Mas antes de começarmos a pintar os cenários mais negros, é melhor certificarmo-nos de que existem motivos para preocupação. Jogando pelo seguro, convinha parar com os analgésicos que receitei no fim-de-semana. As suas córneas já devem estar saradas, por esta altura, e as gotas serão suficientes.

Carly sentia-se inebriada quando desligou o telefone.

— Bem, foi uma conversa bastante edificante. — Apressou-se a informar Bess de tudo o que o médico lhe tinha dito. — Se estiver grávida e isso vier anular o efeito da queratectomia, não poderei fazer nada até o bebé nascer.

Bess pôs um braço em torno dos ombros de Carly. Deixaram-se ficar ali, mutuamente apoiadas, durante algum tempo. Quando Bess retirou finalmente o braço, disse:

— Se perderes a visão outra vez, deves ter direito a um subsídio especial para poderes frequentar a universidade. Não acredito que te obriguem a fazer mais duas intervenções cirúrgicas para poderes ser reintegrada.

— É esse o problema. Teria de largar tudo e voltar a candidatar-me ao mestrado no próximo ano.

— Oh, Carly, trabalhaste tanto para conseguires chegar até aqui. Se largares tudo, temo que nunca mais consigas recomeçar. Com uma criança nos braços, obter esse grau de mestre seria fundamental para ti. Não só te daria mais oportunidades de emprego, como te iria aumentar substancialmente o salário.

— Já tenho uma licenciatura. Pelo menos, tenho isso a meu favor. — Carly tinha a cabeça a latejar. — Vou conseguir tirar o mestrado, Bess. De uma forma ou de outra. Poderá levar mais tempo do que pensava. — Carly sentou-se à mesa. — Não acredito que isto me esteja a acontecer.

Na manhã seguinte, Carly sentiu-se novamente agoniada. A náusea diminuiu de intensidade durante a tarde, e já tinha desaparecido por completo ao início da noite, o que ela tomou com um mau sinal. Deitou-se na cama, com uma mão sobre o ventre. «Um bebé.» Não queria acreditar que uma vida pudesse começar de uma maneira tão sórdida. As crianças deviam ser desejadas e amadas pelos seus pais, e não apontadas como erros.

Até esse momento, Carly não pensara no bebé como uma pessoa pequena com sentimentos e necessidades, mas agora que o fizera, não conseguia eliminar as imagens da sua mente. «Um filho.»

Agora que começava a pensar no bebé como um ser, era difícil para ela desejar que desaparecesse. Quando era criança, sempre quisera ter filhos um dia. Mais tarde, na adolescência, quando começou a perceber que os rapazes não estavam interessados nela devido à sua cegueira, abandonou os seus sonhos de maternidade e concentrou-se em ser professora de deficientes visuais.

Enroscando-se, envolveu a cintura com os braços, sentindo-se, subitamente, protectora da vida que podia estar a crescer dentro dela.

Bess apareceu e sentou-se na beira da cama.

— Em que é que estás a pensar? Carly virou-se de costas.

— Já me conformei com a situação. Embora ainda não tenha a certeza se estou grávida, é difícil explicar como me sinto, mas acho que... bem, se estiver, Bess, acho que devia estar feliz por isso. Quero lá saber que a minha vida fique estragada. Há coisas bem piores.

Bess apoiou os braços no colchão atrás dela.

— Concordo. Olhar para o lado negro não me parece produtivo. Se tencionas manter o bebé, precisamos de ser um pouco mais positivos.

Carly olhou para o tecto. Até há bem pouco tempo, teria sido capaz de individualizar alguns dos torvelinhos existentes na textura do estuque. O mesmo não acontecia agora. Esperava que fosse devido à luz fraca.

— Vou manter o bebé. O aborto clínico vai contra os meus princípios, aquilo em que eu acredito.

— Nunca discutimos isso a sério, mas sempre pensei que era essa a tua opinião.

— É a única maneira que eu tenho de ver as coisas — murmurou Carly. — Quando fui concebida, a minha mãe tinha quarenta e três anos. Tenho a certeza de que devem ter pensado na possibilidade de interromper a gravidez devido à idade. Se tivessem tomado essa decisão, eu não estaria aqui.

— É um sentimento demasiado pesado para se carregar com ele durante toda a vida.

Carly passou com os dedos pelo tecido de felpa.

— Ajuda-me a manter as coisas perspectivadas. Houve alturas, em especial quando era adolescente, em que me sentia revoltada por ter nascido cega. Ficava sempre mais animada quando me punha a pensar na alternativa, a de não ter nascido. Nem sempre foi fácil, mas tenho apreciado a vida, e, antes de tudo estar terminado, espero dar o meu contributo trabalhando com deficientes visuais. Quando penso em termos de tudo ou nada fico realmente contente por ter nascido.

— Tens todo o meu apoio. O mundo não seria o mesmo sem ti. Carly sorriu.

— Tu adoras-me. — Calou-se por uns momentos. — Olhando para trás, para a minha infância, sei que deve ter sido difícil para os meus pais algumas vezes. Ter uma criança deficiente não é pêra doce. Mas nunca deram qualquer sinal de estarem arrependidos por me terem tido. Ficarei sempre grata por isso.

— Não tinha a noção de que a tua mãe era assim tão velha quando tu nasceste. Achas que a idade contribuiu para o facto de teres nascido cega?

— Talvez. — Carly pensara nisso várias vezes. Não havia relatos de cataratas congénitas ou distrofia lattice de ambos os lados da família. — Não tem importância o que causou. O que me interessa é a minha qualidade de vida. Tem sido difícil às vezes, mas também me tenho divertido muito, e estou curiosa em relação ao futuro. Sob esse ponto de vista, como é que poderei negar arbitrariamente ao meu filho a hipótese que os meus pais me deram?

— Compreendo, Carly. Não precisas de explicar. O aborto também nunca seria uma opção para mim. — Bess olhou para Carly com uma expressão cheia de malícia. — Sempre quis ser tia. Vai ser divertido mimar uma criança e deixar-te com a parte mais difícil.

Carly riu-se.

— Isso é o que tu pensas. Provavelmente ainda estaremos a viver juntas.

— Não pensei nisso. Tens razão. Talvez deva reconsiderar a minha posição.

— Não creio. Quero um filho para ter uma tia que o mime. Nunca tive isso. A minha mãe não tinha irmãos e o único irmão do meu pai morreu no Vietname. Sendo filha de pais velhos, nem me lembro dos meus avós.

— Deves ter passado muito tempo sozinha.

— Nunca sentimos saudades daquilo que não temos.

— O teu filho irá ter-me a mim e a Cricket como tias — assegurou-lhe Bess.

Pensar na sua amiga Cricket fez Carly sorrir de novo. Ela crescera com Hess a morar de um lado e Cricket do outro. Tendo as três a mesma idade, tornaram-se inseparáveis no jardim-de-infância e passaram a comportar-se como irmãs desde então.

— Quem me dera poder estar com ela mais vezes. Fiquei contente por ela ter sido escolhida para aquela escavação na Colômbia, mas tenho muitas saudades da sua voz.

— Aposto que está muito feliz agora — pensou Bess em voz alta. — Remexendo na terra, sonhando com a maior descoberta arqueológica do novo milénio.

— O que é que lhe atrairá tanto na terra? — Carly abanou a cabeça. — Já quando éramos crianças ela adorava escavar. Lembras-te dos ossos que ela encontrou no canteiro de flores de Mistress Kirpatrick?

— Já não me lembrava disso! Pensou que tinha desenterrado um dinossauro. Depois descobriu-se que era o túmulo do Grand Danois de Mistress Kirpatrick, e ficámos todas de castigo. — Bess riu-se. — Por pensar nisso, formávamos um trio muito curioso: uma gestora de negócios, uma professora e uma arqueóloga. De que é que falávamos quando estávamos juntas?

— É uma coisa que me ultrapassa. Mas acho que arranjaria uma conta de telefone enorme se pudéssemos entrar em contacto com ela. É pena a recepção do telemóvel ser tão má no sítio onde está.

— Ela dar-te-ia um sermão durante trinta minutos, listando todas as razões para nunca teres saído do bar com um estranho. Depois ralharia contigo por teres bebido enquanto estavas a tomar analgésicos. Depois disso, quereria saber tudo acerca de Hank.

Carly nem sequer queria pensar em Hank. Mas se havia uma criança a caminho, devia pelo menos dar-lhe a notícia.

— Olhaste bem para ele, Bess?

— Sim. Porquê?

— É bonito?

Bess deu uma gargalhada.

— Estás a perguntar isso a mim?

— Sabes muito bem que não sei avaliar o aspecto das pessoas. Quando passamos a vida toda cegos, a beleza física não é um conceito que possamos apreender facilmente. Sempre que sais para ir a uma entrevista de emprego, ponho-me a ver filmes. É uma boa forma de ver topografias diferentes, animais e todo o tipo de pessoas. De início, julgava que os actores principais primavam-se pelo mesmo tipo de beleza, mas são muito diferentes uns dos outros. Ainda não sei bem o que é a beleza.

— Talvez não seja uma coisa má. Somos todos influenciáveis. A indústria de entretenimento cria o padrão, e vamos todos atrás como carneiros. Acho que seria interessante não ter noções pré-concebidas acerca da beleza física.

— Do meu ponto de vista, estou apenas um pouco confusa. Gostei do aspecto do Hank e, na altura, era tudo o que me parecia importante. Agora, com a possibilidade de um bebé a caminho, preciso de saber se ele é bonito ou feio.

— E se eu dissesse que ele era horrendo?

— Ficaria preocupada. Gostaria que o meu filho tivesse bons genes.

— Ele é bonito — assegurou-lhe Bess. — Muito bonito. Não tens de te preocupar com isso, querida. Escolheste um homem bem dotado fisicamente.

A tensão diminuiu no corpo de Carly.

— É bom saber isso. Significa que o meu filho terá cinquenta por cento de hipóteses de vir a ser atraente.

— Cinquenta por cento? Não deves estar a contar contigo. Tu e o Hank vão ter um filho muito bonito.

Carly sorriu.

— Espero bem que sim.

— Não pode ser outra coisa.

Carly imaginou o rosto moreno de Hank e sentiu um nó na garganta.

— Estás bem? — Bess estendeu um pé e colocou-o debaixo da outra perna. — Se quiseres falar sobre isso, continuo a ser toda ouvidos.

Carly virou-se de lado e apoiou a cabeça na curvatura do braço.

— O que me enfurece mais é ter sido tão ingénua.

— Não estavas na posse de todas as tuas faculdades — lembrou-lhe Bess. — Houve um tipo no Chaps que me disse que quem conseguir acabar um Slammer, sair do bar pelo próprio pé e voltar a entrar, tem direito a beber de graça até ao fim da noite.

— O Hank avisou-me que era forte. Não me apercebi de quão forte. O doutor Merrick disse que os analgésicos eram moderados e que podia beber à vontade duas bebidas numa noite. Só tinha bebido alguns goles de cerveja quando ele pediu o Slammer. Pensei que não fazia mal beber uma coisa dessas.

— Acho que os Slammers são feitos com bebidas de elevado teor alcoólico. Nem sei como é que conseguiste deslocar-te.

— Não estava a pensar de forma muito coerente. Nunca devia ter ido lá para fora com ele, mas o facto é que pus de lado todo o senso comum e quis acreditar, não sei, que tinha encontrado alguém especial, creio.

— Oh, querida.

— Estou muito triste com toda esta situação. A sério. — Carly sorriu de forma contida. — Agora sinto-me apenas humilhada.

— Quando começamos a namorar pela primeira vez, somos todos muito ingénuos. E incluo também os rapazes. Antes de ganharmos mais juízo, é natural que fiquemos com os corações destroçados, uma vez ou outra.

— Talvez seja verdade. — Pessoalmente, Carly achava difícil acreditar que o coração de Hank Coulter pudesse ficar alguma vez destroçado. Se aquilo que Bess estava a dizer era verdade, ele pertencia a um grupo de gente bonita e era natural que se tivesse preocupado com o seu aspecto durante toda a vida. — Só sei que não quero passar por isto outra vez.

— Todos nós nos sentimos dessa maneira, depois de uma má experiência. Irás ultrapassar, vais ver.

Carly tinha dúvidas acerca disso.

Na segunda-feira de manhã, depois de ter feito a sua busca diária na Internet, Bess levou Carly até ao St. Luke para fazer um teste de gravidez. Depois de lhe terem tirado sangue, Carly foi informada de que alguém entraria em contacto com ela para lhe dar os resultados no dia seguinte.

A chamada chegou pouco antes do meio-dia de terça-feira, numa altura em que Bess se encontrava ausente por ter ido a uma entrevista de emprego. Quando Carly desligou o telefone, estava a tremer. Enfrentar a possibilidade de estar grávida era uma coisa. Saber ao certo era muito mais sério.

Durante uma hora, Carly deambulou de divisão para divisão, tentando arranjar maneira de se manter ocupada e tirar as preocupações da mente. Em desespero, foi à procura dos livros que mandara vir antes da cirurgia para treinar o córtex visual. Depois de ter estado a olhar durante trinta minutos para as imagens de uma enciclopédia visual, com alguma dificuldade em ler as legendas, só lhe apetecia gritar. Estava grávida. Dentro em breve seria responsável por cuidar de uma criança e aqui estava ela sentada a olhar para um livro estúpido. Precisava de fazer alguma coisa. Mas o quê? Não seria capaz de manter um emprego nem que fosse apenas por três meses.

Acabou por pegar nos óculos de sol e sair do apartamento para dar um passeio e treinar o córtex visual de uma forma fisicamente mais activa. Sempre que se encontrava no exterior, ainda hesitava com os movimentos repentinos — os carros a passarem, os pássaros a esvoaçarem por entre as árvores, os ramos a abanarem ao vento. Enquanto cega vivera num mundo cinzento e sem movimento, pelo que lhe era extremamente difícil acostumar-se a toda a actividade que as outras pessoas mal reparavam. Só o gesto de olhar para baixo, enquanto caminhava, era já por si um desafio. O passeio parecia estar sempre a deslocar-se enquanto caminhava, o que a punha tonta.

Andando quatro quarteirões, Carly passou pelo supermercado e pelo centro comercial onde ela e Bess costumavam fazer agora as compras. Acharam que era uma prioridade, quando andavam à procura de apartamento, encontrar um lugar a pouca distância das lojas para que Carly não ficasse limitada quando Bess não se encontrava disponível. O supermercado dava para uma rua principal. Na esquina, Carly parou para olhar para o trânsito denso que circulava de ambos os lados, desejando ter confiança nos seus olhos e pôr o pé fora do passeio. E se aparecesse um carro que ela não conseguisse ver, ou os veículos estivessem mais próximos do que pareciam estar? Lembrando-se do aviso do Dr. Merrick para o facto de o córtex visual a poder trair, decidiu não passar para o outro lado, por precaução, e optou por virar à esquerda. As ruas laterais que iam dar à rua principal não eram tão problemáticas para os transeuntes.

Carly estava tão perdida nos seus pensamentos, não fazendo a mínima ideia da distância que percorrera, quando chegou a uma grande parcela de terreno rodeada por uma vedação em ferro de uma altura considerável. O relvado no interior de recinto estava coberto por vários blocos de cimento e pedra esculpida. Nunca vira uma coisa assim. Mas, por outro lado, que importância é que isso tinha? Tudo era novidade para ela.

Curiosa e determinada a não desistir até descobrir que lugar era aquele, Carly caminhou ao longo do passeio até chegar a um grande portão. Um sinal afixado no arco da entrada dizia «CEMITÉRIO DE ROSE HILL». Carly demorou algum tempo a decifrar as letras. Um cemitério? Envolveu a cintura com os braços e ficou a olhar através da vedação para aquilo que pareciam ser lápides. Tantos mortos. Ela nunca imaginara que pudesse haver tantos túmulos num único lugar.

A percepção da realidade sossegou Carly, de algum modo. Sim, ela tinha muitos problemas. Quando pensava nas consequências desta gravidez, sentia o pânico a invadi-la. mas não era o fim do mundo. Ela era jovem e, além dos seus problemas de visão, saudável. Mesmo que ficasse cega de novo e não pudesse prosseguir os estudos, teria sempre a licenciatura. Se acontecesse o pior, podia regressar a Portland e tentar dar aulas outra vez. O dinheiro não seria muito, e teria de viver com um orçamento limitado, mas, com o tempo, talvez conseguisse um aumento ou outro. Até então, conseguira sempre safar-se. Ela e o bebé ficariam bem.

Nessa noite, Bess chegou a casa um tanto ou quanto desanimada por ainda não ter conseguido arranjar um emprego.

— Não é que esteja à procura de um emprego na área da gestão de negócios — lamentou-se, enquanto se servia de um copo de chá gelado. — Estou disposta a aceitar qualquer coisa, um lugar de recepcionista, até mesmo de contabilista. Outros dizem que tenho qualificações a mais. Vá-se lá saber. Começo a ficar preocupada por não conseguir encontrar emprego.

— Encontrarás alguma coisa — assegurou-lhe Carly. — Pode não ser aquilo que pretendes, nas tudo se irá resolver.

Carly decidiu guardar as novidades até Bess ter tido tempo para descomprimir. Ao jantar, disse finalmente:

— Ligaram-me esta manhã com os resultados do teste.

— Oh, meu Deus, estou tão triste com a situação do emprego que quase me ia esquecendo. — Bess parou de mastigar. — O que é que eles disseram?

— Estou grávida.

A afirmação planou no ar como uma mortalha. Carly continuou a dispor o feijão-verde no prato. Bess pousou o garfo.

— Têm a certeza?

Carly pôs o guardanapo em cima da mesa e levantou-se para ir buscar água. As suas mãos tremiam enquanto fazia rodar o manípulo da torneira.

— Acho que o teste de sangue é bastante fidedigno, Bess, e deu positivo. — O coração de Carly começou a bater de uma forma estranha e sentiu o estômago a apertar-se como da primeira vez em que resolvera saltar sem pára-quedas ao lado de Cricket. — Muitos parabéns.

Carly bebeu a água. Depois colocou o copo na bancada para poder secar as mãos. Esquecendo-se da refeição, Bess atravessou a sala para lhe ir dar um abraço.

— Ah, Carly — murmurou ela. — Não sei o que dizer. Interpondo o pano entre as duas, Carly pousou o rosto no ombro da amiga.

— Não há muito mais para dizer. — Exalou de forma trémula. — Sei que poderá parecer um pouco pateta. A minha mãe partiu há dois anos. Mas, meu Deus, que falta me faz! Gostaria tanto de a ter aqui comigo.

— Queres ligar à minha? Depois de ter um ataque cardíaco, até iria lidar com as notícias bastante bem.

Carly riu-se frouxamente. Conhecia a mãe de Bess, Norma Grayson, praticamente desde que nascera, e a mulher era extremamente sensível. Depois do primeiro choque, faria os comentários adequados.

Bess recuou para poder olhar directamente para Carly.

— Não há um certo cowboy a quem devias ligar primeiro? O filho é dele, no final de contas.


Capítulo Cinco

A última pessoa com quem Carly queria falar era com Hank Coulter. Por mais infantil que a sua acção pudesse parecer, olhou para Bess de forma implorante e perguntou:

— Tem mesmo de ser?

Bess bateu ligeiramente com o punho no queixo de Carly.

— Sim, tem de ser. É a coisa certa a fazer. Carly pôs as mãos na cintura.

— O que vou dizer quando o vir? Olá, e já agora, estou grávida? E se ele não acreditar que o filho é dele?

Bess revirou os olhos.

— Poupa-me. Será que passaste de uma virgem de vinte e oito anos para uma Lolita de um dia para o outro? Se ele não acreditar que é dele, é um parvo, e tu e o bebé vêem-se livres dele. O importante para ti é saber que ele foi informado.

Encontrar Hank na lista telefónica era mais difícil do que Carly pensara. Havia vários Coulters, mas nenhum tinha o primeiro nome correspondente.

— Tens de ligar para eles todos, se calhar. — Bess leu lentamente o primeiro número enquanto Carly carregava nas teclas.

— Bolas! — Carly pousou o auscultador para começar tudo de novo. — Nunca tive problemas destes no tempo em que não conseguia ver o maldito telefone!

— Deixa que eu faço. — Bess tentou pegar no telefone.

— Não. Tenho de ser eu a fazê-lo. É apenas uma tecla com um número, por amor de Deus. Conheço a sua disposição de cor e salteado, mas agora que consigo ver, parece que está tudo ao contrário.

— E uma situação nova para ti — lembrou-lhe Bess. — Se for preciso, fecha os olhos.

— E que tal trabalhar o córtex visual? Estás sempre a chatear-me com isso.

— Sim, bem, atendendo às circunstâncias, creio que não haverá problema em abrir uma excepção.

Carly estava ansiosa por apanhar Hank ao telefone. Persistiu, olhando para a tecla, tentando correlacionar as imagens visuais com as formas do número que memorizara pelo toque. Os dígitos começaram a esbater-se, e depois a entrepor-se. Fechou os olhos e passou o telefone a Bess.

— É melhor seres tu, vendo bem. Não preciso disto agora.

— Acalma-te. Se ele for rude, não está ao pé de ti, certo?

— Certo.

Bess iniciou o processo de ligar para cada um dos números, para depois estender o telefone a Carly. A meio da lista, Carly conseguiu finalmente falar com uma senhora de idade que dizia ser a mãe de Hank.

— Eu, hmm... sou uma amiga de Hank — explicou Carly, depois de se ter apresentado. — E preciso de entrar em contacto com ele. Podia dar-me o número?

— Já ligou para o rancho?

— Eu, hmm... não. Hank mencionou o rancho, mas nunca me disse o nome.

— É estranho — pronunciou a mulher em voz alta.

— Sim, bem. Acho que ele nunca mo chegou a dar.

— Normalmente — prosseguiu Mrs. Coulter —, não gosto de dar contactos pelo telefone. Mas se diz que é uma amiga, posso abrir uma excepção.

Carly não tinha bem a certeza se poderia qualificar-se como uma das amigas de Hank, mas o pensamento de tentar explicar a natureza exacta da sua relação foi suficiente para não tentar corrigir essa impressão. Quando Mrs. Coulter lhe deu o número, Carly fez sinal a Bess para apontar enquanto repetia os dígitos.

— Ele ainda deve estar a trabalhar no exterior a estas horas — disse Mrs. Coulter. — Nesta altura do ano, só pára quando a noite cai. O número que lhe dei é do telemóvel. Se estiver ligado, o que acontece geralmente, não terá problemas em falar com ele. Caso contrário, poderá deixar uma mensagem ou ligar para o Lazy J.

— O Lazy J. Já tomei nota. Obrigada, Mistress Coulter.

Depois de Carly ter desligado, Bess apressou-se a ligar para o telemóvel antes que Carly perdesse a coragem. Carly procurou a mão de Bess quando o telefone começou a tocar. Um homem com uma voz profunda atendeu.

— ‘Tou?

Carly engoliu em seco e disse:

— Hank?

— Sim, o próprio.

Carly olhou de forma desesperada para Bess.

— Eu, hmm... daqui fala... Carly Adams.

— Quem?

Um arrepio percorreu o corpo de Carly. Fechou os olhos, incapaz de acreditar nos seus ouvidos. Durante uma semana e meia, o rosto deste homem perseguira-a nos sonhos e, nos últimos dias, passara a maior parte do tempo agarrada à sanita por causa dele. Contudo, ele não se lembrava dela?

Durante uns segundos terríveis, não conseguiu fazer mais nada do que ficar parada a olhar. Depois a fúria invadiu-a em ondas virulentas. Pousou o auscultador com tanta força que sentiu a pancada no cotovelo.

— O que foi? — perguntou Bess. — Meu Deus, Carly, o que é que ele disse?

— «Quem?»

A expressão de Bess permaneceu atónita.

— O quê?

Um soluço trepou pelo peito de Carly.

— «Quem!» — repetiu com uma voz estridente. — Foi o que ele disse. «Quem.» Ele não se lembra de mim.

Bess ficou lívida.

— Ele quem?

Carly não era muito dada a demonstrações de mau feitio, mas a raiva que a tinha inundado precisava de ser libertada. Pegou na lista telefónica e atirou-a com toda a força para o outro lado da pequena sala de estar.

— Só espero que caia num lago e se afogue!

— Carly, acalma-te. Estás grávida, lembras-te? Isso não é bom para ti nem para o bebé.

— Acalmar-me. Pois é. — Carly cobriu o rosto com as mãos. Quando olhou para Bess de novo, disse:

— Não sei porque é que estou desiludida. A verdade é que não quero saber. — Deu três passos, depois virou-se tocando no peito com o dedo. — Este é o meu filho, meu e só meu. Ele acabou de perder todos os direitos. Não quero falar com o sacana outra vez.

Bess seguiu Carly até à sala de estar.

— Como é que ele não se lembra de ti, Carly? Só passou uma semana e meia.

— Porque é um idiota arrogante e egoísta! Apareceu à minha frente, embebedou-me e depois ele... ele... — Carly olhou para Bess com um ar miserável. — O que aconteceu não teve qualquer significado para ele, Bess. Nem sequer passei de uma simples mancha no ecrã do seu radar.

— Oh, querida.

Carly levantou uma mão para lhe dar outro abraço.

— Não faças isso. Quero tudo menos simpatia. Diz-me apenas que fui uma idiota e que ele é um verme nojento.

— Se ele não se lembra de ti, é porque é definitivamente um verme.

— Claro. — Carly expirou com força. — Quero esquecer que me cruzei com ele. A partir deste momento, o meu filho não tem pai. Não quero voltar a ouvir o seu nome outra vez.

Carly foi para o quarto, bateu com a porta e atirou-se para cima da cama. «Quem? Oh, meu Deus.» Ela odiava-o. Como é que ele podia ter feito sexo com uma mulher e não se lembrar dela uma semana depois?

Hank ligou as luzes do tecto e entrou no corredor central do estábulo para olhar para o telemóvel. Uma suspeição terrível atormentava-lhe o cérebro. «Carly, Charlie.» Os dois nomes eram muito semelhantes e ele estava muito bêbedo naquela noite. Com tanto barulho, será que tinha percebido mal o nome? Enquanto se punha a cismar, lembrou-se vagamente de ela o ter corrigido a certa altura, durante a noite, mas o estado em que estava não lhe permitira fixar o seu nome da forma correcta. Charlie funcionara para os seus propósitos — uma noite de sexo e um «Adeus, querida» antes do nascer do Sol.

«Raios.» Hank não gostava de se lembrar onde tinha a cabeça naquela noite. Já não se lembrava de quando começara a pensar em sexo em termos puramente recreativos. Os seus pais tinham-lhe dado uma educação esmerada. Ficariam muito desapontados se soubessem — quase tão desapontados como ele estava consigo mesmo.

Ligou para o número que tinha ficado registado no telemóvel. Quando os dígitos apareceram, gravou-os, voltou a estabelecer a ligação e levou o telefone ao ouvido no momento em que este começou a tocar. Sentiu o coração a bater e o corpo a encher-se de suores frios, enquanto esperava que Charlie - não, Carly — respondesse. Não tivera notícias dela durante este tempo todo. Porque é que ela lhe ligara subitamente?

Hank tinha um pressentimento de que já sabia a resposta a essa pergunta. Ainda era cedo para ela ter a certeza se estava grávida, mas dada a forma desagradável como o encontro terminara, não conseguia pensar noutra razão para ela restabelecer o contacto.

Ela atendeu o telefone quase imediatamente. Ele apresentou-se:

— Carly? Sou eu, Hank Coulter. — Queria explicar a sua confusão com os nomes, mas ela não lhe deu qualquer hipótese. — Peço desculpa por....

— Quem? — perguntou ela, com um sarcasmo mordaz. Hank sabia que as coisas não iam ser fáceis.

— Ouve. Sei que pode ter parecido...

Ouviu-se o som de algo a bater com força e a ligação terminou. Hank praguejou entre dentes e ligou outra vez. Desta vez, o telefone tocou interminavelmente. Sabia que era ele que estava a tentar ligar e era óbvio que ela não queria atender.

— Muito bem — disse, com uma voz cheia de frustração. — Deves estar pior do que estragada. A não ser que tenhas um identificador de chamadas, poderei esperar pela melhor altura e apanhar-te de surpresa.

Hank apercebeu-se de que estava a falar sozinho e olhou por cima do ombro. Uma das éguas pusera-se a olhar para ele com um certa curiosidade enquanto se entretinha a mastigar o feno. Introduziu o número de Carly na memória do telemóvel e depois prendeu o aparelho no cinto. Dentro de uma hora e picos, quando Carly já não estivesse à espera que ele lhe ligasse, tentaria outra vez.

— Era o Hank a ligar de volta, não era? — Bess estava de pé ao lado da cama de Carly, de mãos nas ancas.

— Grande dedução. Como é que adivinhaste?

— Por que outra razão gritarias para que eu não atendesse o telefone quando este tocou pela segunda vez? O que é que ele disse?

— Nada — respondeu Carly. — Ele não disse nada.

— Deve ter dito alguma coisa.

— Não lhe dei essa oportunidade. — Carly olhou para a amiga com uma expressão de rebeldia estampada no rosto. — Usei para com ele a mesma táctica, ou seja, desliguei antes de ele poder dizer alguma coisa e não atendi quando tentou ligar outra vez. Já te disse, não quero voltar a falar com ele outra vez E estou a falar a sério. Tentei informá-lo acerca do bebé. Não tenho mais nenhuma dívida para com ele, e, digas o que disseres, não vou mudar de opinião.

Bess ligou o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Carly tapou a vista com um braço.

— Importas-te de desligar a luz?

— Quero ver a tua cara enquanto falamos. Vais ver que os teus olhos se vão ajustar rapidamente.

— Parece que tenho facas a espetarem-se-me nas pupilas.

— Não olhes directamente para a luz. — Bess encostou-se à parede. — Ah, Carly.

— Não comeces o sermão, Bess. Estou a falar a sério. Ele é um perfeito idiota.

— Um idiota que, pelo menos, tentou responder ao telefonema. Compreendo o que possas estar a sentir, Carls, honestamente, e não te censuro. Mas sabes o que eu penso?

— Não — disse Carly com um ar cansado -, mas já sei que mo vais dizer.

— Acho que devias, pelo menos, falar com o tipo. Estás grávida do filho dele. Se ele quiser ajudar-te financeiramente, seria uma loucura se não aceitasses a oferta.

— Ajudar-me financeiramente? — Carly não queria acreditar que Bess estivesse a sugerir tal coisa. — Não lhe liguei na esperança que me fosse oferecer dinheiro. É por isso que estavas tão interessada, porque achavas que ele iria providenciar algum dinheiro?

Bess levantou as mãos.

— É o filho dele. A minha resposta a isso não é apenas sim, mas um grande sim.

— Não aceito esmolas.

— Recebeste uma bolsa especial para frequentares a universidade. Que diferença é que isso faz?

Carly sentou-se num ápice.

— Diferença? As bolsas são financiadas por organismos governamentais e pelo sector privado. Existem bolsas para quem quer fazer investigação, bolsas para os mais desfavorecidos, bolsas para as mães solteiras e bolsas para deficientes, só para dar alguns exemplos. Estou dentro dos parâmetros para poder receber ajuda. Quando concorri, o meu processo era um entre centenas, quiçá milhares. Não havia nada de pessoal nisso. Não é o mesmo que pedir uma esmola, ou apontar um erro à cabeça de um tipo e fazê-lo pagar por isso, durante os próximos vinte e um anos.

— Está bem que queiras sofrer pelo erro cometido, mas achas bem que ele saia impune? É assim que queres? Isso não me parece muito equitativo?

— Não és tu que estás grávida. Não és tu que teus de resolver a situação. Bess cruzou os braços.

— Aceitas então a minha ajuda, mas não a dele.

— Tu és minha amiga. Se alguma vez precisares de mim, procurarei estar do teu lado também. Isto não é o mesmo. Deves conseguir perceber isso. Não quero o dinheiro de Hank Coulter. Iria sentir-me como uma obra de caridade. Além disso, vamos supor que eu aceitava o que ele tinha para oferecer. Isso dar-lhe-ia direitos que eu preferia que ele não tivesse.

— Tais como?

— Tais como... não sei. Sentir-me-ia constrangida, é tudo. Não o quero voltar a ver, Bess. Não compreendes? De todas as vezes que penso nessa noite, só me apetece morrer.

Bess roçou a ponta do sapato na alcatifa.

— Carly, a não ser que ele tenha um QI abaixo da média, não achas que deve desconfiar porque é que lhe telefonaste? Ele vai pensar no assunto e somar dois mais dois. Quando chegar a quatro, irá procurar-te se tiver um mínimo de decência.

— Um mínimo de decência? Estás a dar-lhe o crédito da decência? — Carly voltou a cair na cama. — Ele foi rude quando se apercebeu de que eu era virgem. Não teve problemas em magoar-me. Limitou-se a saltar sobre mim, proferir umas ordinarices quaisquer e perder a consciência. Agora, decorrido pouco mais de uma semana, já não se lembra de mim? Não me fales acerca de decência. — Carly colocou a almofada por cima do rosto para quebrar a luz. — Não quero falar mais sobre isto. Já tenho a cabeça em água. Ouviu Bess a desligar a luz.

— Queres as tuas gotas?

— Não, ainda não. São caras. Vou esperar para ver se os meus olhos deixam de arder.

— Precisas das tuas gotas, mas como são caras preferes sofrer em vez de pô-las? Quer aceites quer não o dinheiro de Hank, ele continua a ter direitos, Carly. Mais cedo ou mais tarde, poderá querer ver a criança. O que vais fazer então? Dizer-lhe que não?

Carly pressionou ainda mais a almofada contra o rosto.

— Nunca faria uma coisas dessas. Se ele for suficientemente esperto para me descobrir, e se me encontrar e se se importar muito com isso, deixá-lo-ei ver o filho. Mas não penses que isso vai acontecer. Ele é um parvalhão, é o que te digo. Os parvalhões não querem saber dessa história das visitas e não estão particularmente interessados no sustento dos filhos.

Carly ouviu Bess a sair do quarto. Quando ficou sozinha, virou-se de lado e agarrou-se aos joelhos. «Quem?» De todas as vezes que se lembrava de Hank a dizer isso, ficava tão furiosa que começava a tremer. Pior ainda, doía mais do que se atrevia a admitir, mesmo para si própria.

Hank deixou o telemóvel ligado toda a noite, indagando como é que Carly conseguira o número. Dera-o a muito poucas pessoas, e sabia perfeitamente que não lho tinha dado.

Às dez, Hank disse boa-noite a Jake e a Molly, depois subiu pelas escadas de madeira para se dirigir para o quarto e tentar ligar outra vez para Carly. Unia mulher com uma voz mais cavada atendeu logo ao primeiro toque, dando-lhe a impressão de que estava mesmo ao pé do telefone. Hank sabia que não era Carly. Quando ligara pela primeira vez, a sua voz parecera-lhe suave e trémula. Esta rapariga tinha uma voz igual à de um sargento dos fuzileiros.

— Eu, hmm... — Apanhado desprevenido, Hank não sabia o que dizer. — Daqui fala Hank Coulter. Posso falar com a Carly?

Silêncio prolongado. Depois a mulher disse:

— Ela está a dormir agora.

Hank pensou que devia ser a amiga de Carly. Tinha todo o ar de ser uma mulher firme.

— Importa-se de dizer que eu lhe liguei? Preciso de falar com ela urgentemente.

Hank pensou que a mulher lhe iria desligar o telefone na cara, tal como Carly fizera. Em vez disso, disse:

— Daqui fala a Bess, a colega de quarto da Carly.

— Ah. Prazer em conhecê-la, Bess.

— Duvido. E duvido seriamente que faça a menor ideia da urgência que tem em falar com a Carly.

Hank sentiu o estômago a apertar-se, e um pressentimento glacial invadiu-lhe novamente o corpo.

— Infelizmente — prosseguiu Bess —, perdeu a sua oportunidade. Ela nunca mais irá falar consigo. Só tentou entrar em contacto porque se sentiu na obrigação de o pôr ao corrente. E depois você não se lembrou de quem ela era. Diga-me, Mister Coulter, costuma desflorar assim tantas virgens na parte de trás da carrinha para não se lembrar do nome delas?

Hank sentou-se na beira da cama. Não conseguia arranjar indignação suficiente para se defender.

— A Carly está grávida. — A voz de bagaço de Bess tremia de raiva. — A culpa foi sua e, por extensão, minha. Nunca a devia ter levado a esse bar, em primeiro lugar, e tenho a certeza de que não a devia ter deixado sozinha para que um verme predatório pusesse as mãos em cima dela.

Hank queria dizer que não era nenhum verme predatório, mas a verdade é que passara a ver uma data de coisas de maneira diferente, a partir daquela noite, e Bess estava basicamente correcta. Fora ao Chaps para se divertir e terminar a noite com uma mulher disponível, sem qualquer compromisso. Por razões que lhe escapavam, Carly aparecera no seu terreno de caça.

— Não me apercebi — disse ele. — Se soubesse que ela era virgem, nunca lhe teria tocado, juro, mas ela não me deu qualquer sinal.

— Devia estar muito bêbedo, para não ser capaz de interpretar esses sinais convenientemente.

Hank segurou o auscultador com tanta força que até ficou com os dedos doridos. As recordações sobrepuseram-se na mente: Carly, bebendo uns goles da bebida e franzindo o nariz; Carly, resistindo momentaneamente quando ele a levou a dançar lá para fora; Carly, sem saber onde pôr as mãos quando ele a beijou. Bess tinha razão. Ele não interpretara os sinais convenientemente.

Bess suspirou como se a raiva a tivesse deixado de rastos. Com uma voz apagada e triste, disse:

— Para tornar as coisas ainda piores, Mister Coulter, a Carly não era apenas virgem. Ela nasceu cega, com cataratas congénitas e distrofia lattice recorrente. Tinha feito uma operação para recuperar a visão há duas semanas e meia, apenas uma semana antes de a ter conhecido. Faz alguma ideia do que isso significa?

Hank sentiu o colchão a desaparecer subitamente debaixo dele.

— Cega, disse? Lamento imenso. Nem sei o que dizer. Cataratas e que tipo de distrofia?

Lattice. Endurece e racha a superfície das córneas. Nos casos mais graves, como o da Carly, provoca a cegueira. A única solução é raspar a superfície das córneas, ou fazer um transplante córneo. A Carly tinha feito a sua primeira queratectomia uma semana antes de você a ter conhecido.

Hank não queria ouvir isto. Ele não queria, sinceramente, ouvir isto.

— Neste preciso momento, o seu córtex visual funciona como o de um recém-nascido — prosseguiu Bess. — É a parte do cérebro onde as imagens ficam registadas numa espécie de memória, à falta de uma explicação mais científica. Quando nascemos, o córtex visual está vazio. Como ela nasceu cega, o seu córtex continuou vazio. Agora que já consegue ver, tem de fazer um esforço para aprender as cores, reconhecer visualmente os números e as letras, familiarizar-se com o mundo à sua volta, sujeitando-se a ficar com umas dores de cabeça horríveis pela pressão constante de estímulos. E agora, graças a você, não pode sequer tomar medicamentos para as dores porque está grávida. Hank engoliu em seco. Sentia um enorme mal-estar no estômago.

— Na noite em que você conheceu a Carly, ela tinha ido comigo ao Chaps para se sentar a uma mesa e ficar simplesmente a ver. Nunca vira pessoas a dançar, e os poucos homens que alguma vez observara fora sempre ao longe. Quando você começou a falar com ela, ela acreditou, na realidade, nas suas palavras ocas. — Bess emitiu um som de frustração. — Oh, ela diz agora que não foi isso que aconteceu, que se deixou levar pelo momento, sabendo, na verdade, que tudo não passava de um punhado de frases feitas. Mas eu conheço-a desde pequena. Até certo ponto, ela acreditou em todas as mentiras que você lhe disse. Caso contrário, nunca teria ido para a carrinha consigo.

Hank sentiu um aperto doloroso no coração. «Oh, meu Deus.» Lembrava-se de ter indagado se Carly teria acabado de sair de um convento. Não se apercebera, na altura, quão próximo estava da realidade. Fora um dos primeiros homens que ela vira ao pé? Ouviu a sua própria voz ecoando-lhe na memória. «É tão bonita. Quando a vi pela primeira vez, o meu coração quase que parou de bater. Onde esteve escondida durante este tempo toda, querida?» Ele aparecera como uma forte rajada.

Hank não podia culpar Bess pelas críticas de que estava a ser alvo, e limitou-se a ouvir, num silêncio miserável, enquanto ela lhe informava de que a gravidez podia ter um efeito adverso na distrofia lattice de Carly.

— A primeira queratectomia poderá não durar tanto como estava previsto e o seu especialista é contra a realização de uma segunda intervenção enquanto ela estiver grávida. Compreende o que isso significa, Hank? A minha amiga, que esperou vinte e oito anos para conseguir finalmente ver, poderá ficar cega de novo, durante a gravidez, e ficar assim até a criança nascer. Para piorar ainda mais as coisas, não poderá candidatar-se a uma bolsa especial para ajudá-la a prosseguir os estudos. Para poder ser reintegrada como cega e candidatar-se de novo a um apoio financeiro, teria de fazer outra queratectomia e um transplante da córnea, facto que, neste momento, está completamente fora de questão. Como é que acha que isso poderá afectar-lhe os estudos, para já não falar do aspecto financeiro?

Hank pôs um cotovelo em cima dos joelhos e bateu com o punho na testa. «Merda, merda, merda!»

— Ter um bebé também sai caro — acrescentou Bess.

— Ela não tem seguro?

— Um plano saúde básico, com um anexo relativo à cobertura de olhos, que o sei pai arranjou antes de ela ter concluído a licenciatura, mas que só cobre oitenta por cento.

— Ela tem um seguro privado? Pensei que ela era professora.

— Ela era professora, mas sabia de antemão que teria de deixar o emprego dentro de dois anos para poder fazer a pós-graduação. A cobertura deixou de ter efeito assim que ela abandonou o cargo.

— Não poderá ficar abrangida pelo Cobra 3 até a direcção da universidade se reunir e poder obter um seguro de estudante?

— O Cobra é demasiado caro, especialmente no que diz respeito à cobertura de olhos, e ela só poderia beneficiar durante dezoito meses.

Isso parecia muito tempo para Hank, até que Bess acrescentou:

— A Carly não tinha qualquer garantia em relação ao êxito da primeira cirurgia. Se isto não tivesse acontecido, o especialista teria esperado que os seus olhos recuperassem e depois teria feito um transplante da córnea, prolongando o prazo até ela começar a frequentar as aulas e poder qualificar-se para ficar coberta pelo seguro. Mesmo que o Cobra tivesse alargado a sua cobertura, tendo em conta a condição preexistente, ela não teria podido pagar o valor exorbitante dos prémios por muito tempo.

— Ah.

— Quando se tem uma situação crónica como a da Carly, que exige numerosas cirurgias, e ainda não estamos prontos para iniciar um trabalho permanente, porque queremos estudar mais, convém zelar pelo futuro e certificarmo-nos de que temos sempre seguro, qualquer que seja a situação. Há muitas coisas que podem correr mal. Se deixarmos a cobertura privada caducar, as hipóteses de encontrarmos outra seguradora privada são muito diminutas. Da maior parte das vezes, nem sequer pensam em aceitar uma pessoa com uma grave condição preexistente. Ela só conseguiu a cobertura por ter estado durante anos sob o seguro do pai. Quando terminou a universidade e deixou de ser considerada como sua dependente, a seguradora foi obrigada a dar-lhe cobertura com um seguro próprio.

Mal conseguindo concentrar-se, Hank passou com uma mão pelos olhos, tentando recordar-se porque é que se tinham posto a falar de seguros. «Grávida.» Precisava de alguns minutos para recuperar o equilíbrio e arrumar as ideias.

— Imagine isto, Hank. Uma estudante universitária cega, grávida, sem as suas gotas para os olhos porque são muito caras. Um plano básico não comparticipa nos medicamentos ou ajuda com consultas domiciliárias.

Bess calou-se durante um tempo interminavelmente longo. Por fim, perguntou:

— Então? Não vai dizer nada?

Hank não conseguia pensar no que dizer. Isto era bem pior do que ele imaginara. O que é que ele fizera?

— Dê-me um segundo. Estou a tentar pensar.

— Pensar em quê? Sem a sua ajuda, esta gravidez irá dar cabo da vida de Carly.

— Compreendo perfeitamente.

Hank acenou com a cabeça, depois apercebeu-se de que ela não o podia ver.

— Ainda está aí?

— Sim, estou aqui — respondeu ele.

— Não está a falar muito. Será que esse seu cérebro de pedra registou alguma coisa do que eu disse?

Normalmente, Hank não aceitaria de ninguém uma observação deste tipo, mas, por agora, sabia que não podia dizer nada. Por mais invectivas que Bess lhe dirigisse, fora Carly a mais atingida. «Brinca com o fogo e vais ver que te queimas.» Oh, como desejava que tivesse sido isso a acontecer. Mas, em vez de arruinar a sua própria vida, destruíra a de outra pessoa.

— Neste preciso momento, o comentário sobre a pedra tem algum fundamento. Ainda estou um pouco à nora.

— Só isso? É tudo o que tem a dizer, que está à nora?

— Acha que me deparo com uma situação destas todos os dias? Tente pôr-se do meu lado. Não só desflorei uma virgem, que, verdade seja dita, é uma coisa praticamente impossível de encontrar nos dias de hoje, como desflorei uma virgem cega. Melhor, uma ex-virgem cega, que agora está grávida e poderá ficar cega outra vez, graças a mim. Estou a tentar absorver tudo isto e ver o que posso fazer.

— Parece-me muito óbvio para mim.

Hank deixou-se cair na cama. Procedera mal uma série de vezes, mas nunca desta maneira.

— Nenhuma oferta de dinheiro? — perguntou Bess com uma voz estridente. — Nenhuma garantia de que irá proceder da forma correcta? Só consegue pensar em si. Bem, deixe-me que lhe diga algumas coisas, seu covarde. Não é você que anda a vomitar todas as manhãs. E não foi o seu futuro que foi por água abaixo.

— Bess, eu...

— O que é que ela pode fazer, começar a servir hambúrgueres para tentar cobrir as despesas? Ela ainda nem sequer consegue ler. Experimente confiar em visões que se esbatem ao menor movimento ou invocar coisas que não estão lá e talvez, apenas talvez, consiga começar a imaginar a dificuldade que ela não teria em começar a trabalhar agora.

— Dê-me um minuto, Bess. Não estou a fugir às minhas responsabilidades.

— Quando o vir, humildemente, de carteira estendida, talvez acredite.

— Não desligue.

— Vá passear.

— Não posso aparecer de carteira estendida, se não souber onde ela mora.

— Posso dar-lhe a morada. Ela não quer voltar a vê-lo, e agora que eu própria falei consigo, não a culpo por isso. E, a propósito, cowboy, não passa de um amante de terceira. Não sei exactamente o que aconteceu na carrinha, naquela noite, mas não foi algo de que Carly se vá recordar com afeição para o resto da vida.

Com esta última tirada, Bess desligou-lhe o telefone na cara. Hank ficou a ouvir o silêncio, ainda atordoado com tudo o que Bess lhe dissera. Não chegou a ser dito que ele iria tomar conta de Carly financeiramente. Mas, de alguma fora, isso não parecia suficiente.

Vomitar todas as manhãs? E, a avaliar por outras coisas que Bess dissera, os enjoos matinais poderiam ser o menor dos problemas físicos durante a gravidez. Não podia apenas passar-lhe um cheque para salvar a sua consciência, arranjar maneira de apoiar o filho, visitá-lo e depois afastar-se.


Capítulo Seis

Hank precisava de falar com alguém. Era certo que não podia confidenciar com Jake, reclinado no sofá, com a sua linda mulher aninhada num dos braços e o filho a dormir em cima do peito. Parecia demasiado respeitável para uma troca de palavras. Em vez disso, Hank foi ter com o seu irmão Zeke, que era quase dois anos mais velho do que ele, ainda solteiro, e talvez pudesse compreender como é que um tipo podia terminar numa situação destas. Hank ficou aliviado ao ver as luzes ainda acesas na casa de madeira recentemente comprada do seu irmão. Estacionou no caminho de gravilha circular.

O ar fresco da noite entrou-lhe pelo pescoço enquanto avançava por cima das pedras do caminho até à grande varanda estilo country. Há dois meses, quando Hank ajudara o seu irmão a mudar-se, Zeke mostrara interesse em comprar algumas cadeiras de repouso para poder sentar-se no alpendre e ficar a olhar para as suas terras, mas, até agora, ainda não tinham aparecido.

Quando chegou ao pé da porta, Hank tocou à campainha. Um segundo depois, ouviu o bater dos tacões das botas no ladrilho da entrada.

— Olá, Hank — disse Zeke enquanto a porta se abria. — O que estás a fazer aqui a estas horas?

Confiem num irmão para passar por cima dos cumprimentos. Um cheiro a peixe surgiu por entre a porta aberta. Hank calculou que Zeke tivesse jantado uma das suas famosas refeições gourmet. Por mais masculino e duro que fosse o aspecto do seu irmão, adorava cozinhar. A mãe deles costumava dizer que ele daria um marido maravilhoso para uma mulher sortuda, mas, até agora, Zeke conseguira ignorar os seus conselhos.

— Preciso que me dês ouvidos, Zeke. Só espero que não seja má altura. Zeke olhou para o relógio.

— Tenho de me levantar cedo amanhã, mas posso conceder-te alguns minutos.

Isto iria demorar mais tempo do que isso. Hank entrou. Ouviu o som de uma televisão acesa, um noticiário, a avaliar pelo som, o que lhe fez lembrar que o mundo ainda não tinha descarrilado. Mas ele achava que sim.

— Consegui os tomateiros hoje — disse Zeke enquanto fechava a porta. — Se tivesses vindo mais cedo, podias ter visto a horta.

Hank queria tudo menos discutir jardinagem.

— Estou metido numa alhada — confessou ao irmão.

— Sim? — Zeke franziu o sobrolho, parecendo-se de tal maneira com o reflexo de Hank no espelho que até era assustador. — Deixa-me adivinhar. Discutiste num bar, envolveste-te numa briga e deste cabo de alguém?

— Não entro num bar há quase duas semanas. Quem me dera que tivesse sido apenas uma briga. Isso seria demasiado simples.

— O que foi então?

Zeke conduziu-o até à sala de estar, que se encontrava bastante arrumada por não haver mais ninguém senão ele para desarrumar. Depois de ter desligado a televisão, foi até à zona do bar devidamente apetrechado.

— Senta-te — disse ele, apontando para o sofá com um aceno de cabeça. A parede espelhada atrás do bar reflectiu a luz, que incidiu nos olhos de Hank enquanto este se sentava numa almofada.

— Que veneno queres? — Zeke pôs uma garrafa na bancada. — Bourbon, scotch? Se preferires cerveja, tenho Black Butte e Fat Tire.

Hank abanou a cabeça.

— Não quero nada, obrigado. Estou a tentar cortar na bebida.

Zeke deteve-se, agarrando na garrafa de uísque com a sua grande mão.

— Deixaste de frequentar bares e cortaste na bebida?

— É isso mesmo. — A expressão espantada do rosto de Zeke irritou Hank. — Pensei que ias ficar contente. Há quase um ano que me andas a chatear a cabeça para largar as duas coisas.

Seguiu-se um longo silêncio. Finalmente, Zeke largou a garrafa e saiu de trás do bar.

— Virgem Santíssima, o que foi que fizeste? — Falava como o seu avô católico irlandês num momento de ira. — Deve ter sido uma coisa realmente má para te convencer dessa maneira a mudares de rumo.

Hank inclinou-se para a frente no sofá e apoiou a testa nos pulsos.

— Engravidei uma rapariga.

Zeke deixou-se cair na poltrona adjacente e estendeu as pernas. Do canto do olho, Hank conseguia ver apenas uns longos trechos de ganga empoeirada e as solas já gastas das botas do irmão.

— Muito bem — disse Zeke. Outro silêncio. — Raios. Não sou eu que sou o teu irmão mais velho. Porquê atirares com isso para cima de mim? Devias ir falar com o Jake.

— O Jake é casado. Sinto-me mais à vontade contigo. Pensei que podias compreender melhor como é que me meti nesta alhada.

— Pensa outra vez. A não ser que o preservativo se tenha rompido, não há qualquer desculpa para teres engravidado uma mulher.

Hank esfregou a cara com a mão.

— Não estava a usar nenhuma protecção. Normalmente uso. Desta vez, eu... — Encolheu os ombros. — Como estavas a dizer, não há nenhuma desculpa. Estava um pouco bêbedo. — Hank olhou para o rosto moreno do irmão. — Pronto, muito bêbedo.

— De tal maneira bêbedo que perdeste a noção das coisas? Desculpa, não vou nessa.

— Comecei por tirar os preservativos do porta-luvas. A embalagem caiu e o conteúdo espalhou-se pelo chão. Estávamos na parte de trás e... — Hank engoliu em seco para tornar a sua voz mais firme. — A verdade nua e crua é que estava demasiado bêbedo para me dar ao trabalho. Não pensei como devia ser. Achei que não ia ter problemas.

— As famosas últimas palavras. Fizeste isso na tua carrinha? — Zeke parecia admirado.

— Ela não quis ir para o motel que ficava a dois quarteirões de distância. — Hank tirou o chapéu para empurrar o cabelo para trás. Depois atirou-o para a almofada que estava ao lado dele. — Compreendo que me acuses, mas agora, preciso de conselho, não de um sermão. Fiz asneira. Admito. Por isso, vou ter de arranjar uma maneira de contornar a questão.

Zeke suspirou e apertou a cana do nariz.

— Uma gravidez é uma coisa fácil de resolver.

— Não é só isso, Zeke. Ela era virgem.

— Era quê?

— Foi o que ouviste.

Zeke inclinou-se na cadeira. Depois levantou-se para ir até ao bar.

— Que Deus nos ajude. Quantos anos tem?

— Vinte e oito. Pelo menos dá-me crédito por ainda me pautar por alguns princípios. Se uma mulher não tem cara de ter mais de vinte e um anos, afasto-me.

Os olhos azuis de Zeke brilharam de desaprovação enquanto abria a tampa da garrafa de uísque.

— Não estava a dizer que não te pautavas por certos princípios. — Verteu o uísque para um copo, sem se dar ao trabalho de acrescentar gelo. Enquanto voltava para a cadeira, disse:

— Apanhaste-me desprevenido. Onde é que foste desencantar uma virgem de vinte e oito anos?

— No Chaps.

— O que é que ela estava lá a fazer, a viver perigosamente?

A questão fez com que Hank começasse a falar e, antes de dar por isso, já tinha contado a maior parte dos pormenores, incluindo tudo acerca dos problemas de visão de Carly. Depois disso, Zeke ficou sentado, a olhar para a biqueira das botas.

— Importas-te de dizer alguma coisa? — insistiu Hank, com a voz cheia de tensão e embaraço.

— Não consigo pensar em nada para dizer. — Zeke bebeu o conteúdo do seu copo em três goles. Assobiando com a sensação de ardor, disse:

— Não quero acreditar no que estou a ouvir, Hank. Uma rapariga cega? O que vais fazer?

— É por isso que estou aqui, para pedir conselho. Não é uma situação normal. Não posso limitar-me a ajudá-la financeiramente, tentar ver o miúdo, e deixar que ela faça tudo sozinha.

Zeke encostou a cabeça nas costas da poltrona. Quando olhou de novo para Hank, disse:

— Precisas de uma bebida, maninho. Estás a tremer que nem varas verdes.

Hank olhou para as suas mãos, viu que Zeke tinha razão e disse:

— Talvez. Ainda estou em choque, creio. Quando a amiga dela, Bess, começou a contar-me toda esta história, senti-me inebriado. Agora sentir-me inebriado seria uma melhoria. Não quero acreditar que fiz uma coisa tão estúpida. Tê-lo feito com alguém como a Carly só veio piorar ainda mais as coisas.

— Uma bebida ou duas não te farão mal — assegurou-lhe Zeke. — Talvez fiques mais calmo para poderes começar a resolver as coisas. Tens o sofá por tua conta esta noite.

— Obrigado. De certeza que não vou beber e conduzir. Pela forma como anda a minha sorte, teria um acidente.

Zeke dirigiu-se novamente ao bar.

— Desculpa eu estar a referir isto, mas parece-me que essa regra foi quebrada algumas vezes. — Perante o olhar inquiridor de Hank, acrescentou: — Conduzir até um motel. Tocar a uma campainha?

— Existe uma rua de ligação — explicou Hank — e passo lá sempre a horas muito tardias. Só tenho de atravessar uma rua pública, e é uma rua lateral sem trânsito a essa hora. Da maior parte das vezes, no entanto, acabo sempre por fechar a carrinha e chamar um táxi.

— Ainda bem que é assim. Detestaria ver-te a conduzir por uma artéria principal nesse estado.

— Nunca. — Hank olhou de frente para o irmão. — Sei que poderá parecer o contrário, mas tenho sido sempre responsável. O que se passou com a Carly foi um desvio à norma.

— Como é que avançaste tanto sem... te dares conta de que ela era virgem? Não reparaste que não se mexia tão bem?

— Para mim, mexia-se muitíssimo bem. Ela era... — Hank deteve-se e franziu o sobrolho. — Estás a envelhecer esse uísque ou a vertê-lo num copo?

Zeke acabou de encher os copos e voltou para a poltrona. Depois de ter dado um copo a Hank, disse:

— Se essa tal Carly perder a visão outra vez, como é que vai poder continuar a estudar sem bolsa e apoio financeiro? Além disso, terá uma série de custos adicionais, contas de médico, hospital e possíveis complicações durante a gravidez. E como é que uma mulher cega irá lidar com o dia-a-dia e cuidar de um filho, enquanto tenta ir às aulas?

Hank limitou-se a abanar a cabeça, sentindo-se deprimido.

— Tens razão — disse Zeke. — Não vai ser fácil chegar a tudo. Nem sequer sei se existe alguma solução prática. Só o custo de suportar duas casas durante uma série de anos seria um rombo no orçamento. És capaz de não conseguir fazer isso, Hank.

Hank pensara o mesmo.

— Gostas suficientemente dessa mulher para casar com ela?

— Não consigo dizer, sinceramente, se gosto ou não dela — confessou Hank, com uma voz apagada. — Naquela noite, conhecê-la não estava nos meus planos. Ela era bonita. Queria engatá-la. A conversa era só para compor as coisas, uma coisa para quebrar o gelo. Mas quanto a casar com ela?

— Hank encheu as bochechas de ar. — É a única solução viável que me vem à cabeça e as minhas preferências não interessam para o caso.

— Já lhe falaste em casar?

— Não. Ainda não discuti nada com ela. De todas as vezes que tento falar, desliga-me o telefone.

Zeke arqueou as suas sobrancelhas escuras.

— Fizeste sexo com a mulher e agora ela não fala contigo?

Dando um pequeno gole no uísque, Hank explicou a confusão acerca do nome Carly.

— Também não fui propriamente um príncipe nessa noite. Não me consigo lembrar exactamente do que aconteceu, mas sei que ela gritou. Foi então que me apercebi de que ela era virgem. Logo a seguir, bem, devo ter perdido a consciência. Acordei, na manhã seguinte, na parte de trás do carro. Ela tinha desaparecido. Andei bastante preocupado durante uma semana e meia. Não me conseguia lembrar do apelido dela para a poder encontrar e só hoje é que ela entrou em contacto comigo.

— Bem, maninho, é decididamente uma situação complicada. Talvez devesses ir a casa dela e falar frente a frente. Pela minha experiência, as mulheres têm mais dificuldade em cortar com um tipo quando o estão a ver em carne e osso.

— Tenho de saber onde mora primeiro. Ela não me quer dar a morada. — A dor incomodativa que Hank sentia atrás dos olhos aguçara-se e ampliara-se.

— Antes de fazer isso, preciso de me organizar. É óbvio que ela não vai acolher muito bem a ideia do casamento. Mas, por mais que tente, não consigo pensar numa alternativa melhor. Com o problema que tem na vista, não vai poder trabalhar e suportar qualquer tipo de custos. E a sua amiga Bess disse-me que o seguro de saúde dela é uma coisa muito básica, que apenas cobre oitenta por cento. O meu é mais abrangente, incluindo olhos e estomatologia, mais comparticipação nos medicamentos. Eu e o Jake juntámo-nos a uma associação de ranchos que oferece um seguro colectivo a um preço muito razoável. Se a Carly casasse comigo, ficaria automaticamente coberta.

— Mesmo com condições preexistentes?

— Estive a ler todos os pormenores, antes de sair de casa. Para os novos cônjuges, só existe um período de carência de três meses em relação a todas as condições preexistentes. As taxas de família iriam ser mais elevadas, mas podia cobrir os dividendos relativos aos nossos dois seguros durante três meses. Depois disso, ela teria tudo coberto, incluindo cirurgias e parto.

— Só isso poupava-te uma pipa de massa.

— Sim — disse Hank, com a sua voz a ficar ligeiramente mais rouca de cansaço. — Coabitar também sairia mais barato, com contas únicas e tudo o mais. Estava a pensar que podíamos viver na casa de madeira ao pé do riacho. Não é o Ritz, mas não teríamos de pagar renda e poderia dar um jeito à casa. Estou a fazer um bom dinheiro agora e tenho algumas poupanças, apesar de não ser rico.

— Que forma de começar um casamento, Hank.

— Eu sei. Mas que outra opção tenho? — Hank olhou melancolicamente para o seu uísque. — Casar não era a prioridade número um da lista. Acredita em mim. Mas é o meu filho. Todo o futuro da Carly depende de mim e da maneira como decidir enfrentar as minhas responsabilidades.

O rosto curtido de Zeke enrugou-se num ligeiro sorriso. Depois de olhar para a face de Hank, disse:

— Continua assim, maninho, e começo a pensar que finalmente cresceste. Hank sentia um nó no peito do tamanho de uma bola de basebol.

— Mereço isso, acho. Demorei algum tempo até começar a desabrochar, não demorei?

Zeke afundou-se na poltrona e cruzou os tornozelos.

— Dá-me ideia que sim. Eu despachei-me logo na universidade.

— Tinha dois empregos e estava a tirar um curso — lembrou-lhe Hank. — O pai estava a ficar sem dinheiro para poder pagar as contas do médico da nossa irmã, durante o meu primeiro ano, e perdeu o rancho a seguir.

— Ah, é verdade. — Zeke franziu as sobrancelhas e a sua expressão adquiriu um tom amargo. Hank sabia que o irmão estava a pensar na irmã deles, Bethany, e a recordar esse período triste das suas vidas. Apesar das muitas cirurgias e de todos os sacrifícios do pai, o acidente de Bethany, aos dezoito anos, deixara-a paraplégica e, desde então, ficara confinada a uma cadeira de rodas, — Estou a ver que andares por aí a divertir-te não era uma opção, pois não?

— Não, e depois de me ter licenciado, passei a estar demasiado ocupado a trabalhar e a poupar para entrar na sociedade com o Jake para me envolver em loucuras. Este último ano, a maré mudou. Comecei a fazer mais dinheiro e não precisei de dar tanto ao litro. Pela primeira vez, pude divertir-me. Abusei durante algum tempo, acho eu. Comprando brinquedos, bebendo. Agora Carly está a pagar por isso. — Hank suspirou. — Nunca pensei que isto pudesse acontecer. Sinto-me tão... — Hank esfregou a nuca. — Não consigo descrever como me sinto. Um monte de merda, ou pior do que isso.

— Sabes o que o pai diz. Não há melhor mestre do que o arrependimento. Hank virou o copo que tinha na mão.

— Já chega de lamúrias. Está feito e não vale a pena flagelar-me mais per isso. Tenho de pensar na Carly e no que é melhor para ela e para o bebé. Terei tempo depois para me punir.

— É verdade. A criança estará a teu cargo durante os próximos vinte e um anos, ou até formar-se.

— Neste momento estou mais preocupado com o futuro imediato. Pela minha óptica, se conseguir convencer a Carly a casar comigo, poderei lidar com as coisas financeiramente. O meu horário é bastante flexível no rancho, per isso poderei também olhar pelo bebé, eliminando o custo de uma ama, e dar-lhe a oportunidade de estudar. O mesmo se aplica se alguma coisa correr mal durante a gravidez. Poderei tomar conta dela. A sua amiga Bess parece gostar bastante dela, mas, por aquilo que percebi, também é estudante. Não poderá frequentar as aulas, manter um emprego, estudar e ainda ter tempo para ajudar a cuidar do bebé, ou ficar a tomar conta da Carly, se ela adoecer.

— Como é que achas que a Carly vai receber esta ideia? — perguntou Zeke. — Vai ser difícil convencê-la.

Só de pensar na possível reacção de Carly foi suficiente para que a dor de cabeça de Hank aumentasse.

— Talvez possas partir para um acordo temporário — sugeriu Zeke. — Apenas para os primeiros anos, até ela fazer outra cirurgia para recuperar a visão, obter o mestrado, conseguir um emprego, e conseguir viver sozinha se a ajudares financeiramente.

Hank acolheu rapidamente a ideia.

— Dois anos parece ser muito melhor do que uma sentença para toda a vida. Continua.

Zeke acenou afirmativamente.

— Prenderes-te uma vida inteira com uma pessoa que não amas é um pensamento assustador. Desta forma, podias pagar todas as suas despesas, ajudá-la durante a gravidez, e tomar conta do bebé enquanto ela estava na escola. Assim que ela obtivesse o mestrado, podias dar-lhe um capital inicial e depois adios. Ela não ficaria devastada pelas privações, o miúdo ficaria com o teu nome e o Estado dar-te-ia automaticamente direito a visitá-lo. Não é uma solução ideal, mas, nos dias de hoje, uma data de miúdos tem pais divorciados. Depois disso, ambos seriam capazes de prosseguir com as vossas vidas.

Pela primeira vez, desde a conversa que tivera com Bess, Hank sentiu um raio de esperança.

— Ela talvez aceite isso. Se conseguir fazer com que ela fale comigo, quero dizer.

— Não tenho ideias brilhantes nessa frente. O charme é contigo, maninho. Estava muito atrás quando andaram a distribuí-lo.

— Tens o charme suficiente.

Zeke riu-se e atirou uma almofada do sofá a Hank.

— Pois é. Os cavalos adoram-me. As mulheres, bem, isso é outra história. Para mim, uma espada é sempre uma espada. As mulheres gostam que os homens mintam um pouco. — Pôs-se de pé. — Uma pergunta. Se a Carly se recusar a dar-te a morada, como é que a vais encontrar?

— Tenho o número de telefone dela. E uma boa amiga no departamento de Polícia que poderá conseguir-me a morada através do número. Encontrá-la não será um problema. Mais difícil será convencê-la a falar comigo.


Capítulo Sete

Carly passou com os dedos pelos frascos que havia em cada uma das prateleiras do armário de medicamentos à procura do soro fisiológico. Desde que fizera a cirurgia, há três semanas, que acordava muitas vezes de manhã com os olhos colados.

Depois de localizar o frasco, apertou-o e verteu algumas gotas sobre os olhos, inclinando a cabeça para trás para deixar a solução amolecer a crosta que colava as suas pálpebras. Mesmo depois de ter limpo os dois olhos, os contornos das coisas à sua volta pareciam indistintos.

Preocupada, Carly foi até à cozinha. Depois de várias tentativas abortadas, conseguiu finalmente ligar para o número do consultório do especialista em doenças da córnea de Portland. Quando ele finalmente atendeu, Carly estava tão preocupada que toda ela tremia. Com alguma hesitação, descreveu a sua visão enevoada e disse-lhe que lavar os olhos não ajudara.

— A gravidez já foi confirmada? — perguntou ele. Sentiu o estômago a apertar-se de ansiedade.

— Sim. Ligaram-me ontem para me informarem dos resultados.

— Não vou mentir-lhe, Carly. Como expliquei, durante a nossa última conversa, a gravidez enfraquece a sua resistência à lattice, desviando a maior parte dos nutrientes e vitaminas para o bebé em vez dos olhos. Em casos como o seu, em que foi feita uma queratectomia superficial em córneas já de si debilitadas, a lattice tem sempre um ponto de apoio e pode agravar-se rapidamente. Em resumo, se o enevoamento for assim tão pronunciado pode ser devido à gravidez. Desejava que não tivesse engravidado nesta altura.

Não há muito tempo, Carly desejara o mesmo, mas agora queria este bebé. Preparando-se para o pior, perguntou:

— Com a situação a deteriorar-se assim tão rapidamente, quando é que acha que voltarei a ficar outra vez cega, doutor Merrick?

O médico levou algum tempo a responder.

— É impossível prever. — Fez outra pausa. — Vamos pensar de forma positiva. Está bem? A visão enevoada pode dever-se a uma série de coisas. O córtex visual poderá estar a ajustar-se. Ou poderá estar a desenvolver blefarite, uma inflamação das pálpebras. A lattice deixou as suas muito fragilizadas. — Parou por instantes. — Só para ficar descansado, gostaria que fosse examinada. Dada a distância, seria uma loucura perder quatro horas para vir até aqui, quando existe um médico em Crystal Falls perfeitamente capaz de observar os seus olhos. Consegue arranjar transporte para ir até ao seu consultório ainda hoje?

Bess partira para outra entrevista, mas Carly contava que ela estivesse de regresso ao início da tarde.

— Posso lá estar por volta das duas ou das três.

— Óptimo. Vou ligar para o consultório, marcar uma consulta, e depois volto a ligar-lhe.

— Obrigada, doutor Merrick.

— Pode ser que seja apenas um caso ligeiro de blefarite, ou algo similar. É provável que ele lhe diga para continuar a pôr as gotas antibióticas, descansar mais a vista e tentar não se preocupar tanto. Ficar preocupada não é bom para si nem para o bebé.

Carly envolveu a cintura com um braço. O médico tinha razão. A forma como se sentia em relação ao facto de poder vir a perder a visão de novo já não era a sua preocupação principal. Tinha outra pessoa em que pensar agora.

O especialista terminou a conversa dizendo:

— Segundo os meus registos, a sua consulta das seis semanas é no dia sete de Julho. Poderei dizer-lhe mais qualquer coisa nessa altura.

— Se a visão enevoada se dever à lattice, devo ir mais cedo? — perguntou. O médico hesitou antes de responder.

— Se a lattice for responsável, Carly, não poderei fazer praticamente nada até o bebé nascer. Só precisamos de ter a certeza de que não tem uma infecção pós-cirúrgica. Se, por acaso, for esse o problema, o médico poderá tratar disso tão bem como eu.

Depois de ter desligado o telefone, Carly pôs uma fatia de pão na torradeira e olhou para o frigorífico, tentando ver o que estava nas prateleiras. Nada com ar apetitoso. Ao longo da última semana, ansiara loucamente por coisas amargas. Tirou um litro de leite com chocolate por abrir e depois virou-se para os armários. Na prateleira do meio, encontrou o que esperava ser um frasco de chucrute.

Quando desapertou a tampa, o cheiro a azedo que invadiu as suas narinas pareceu-lhe celestial. Agarrou no garfo, provou um bocadinho para identificar o conteúdo, e depois começou a comer com entusiasmo directamente do frasco. «Delicioso», pensou, enquanto engolia uma enorme porção de couve fermentada com o leite aromatizado. Em termos racionais, sabia que a combinação a devia fazer estremecer de repulsa, mas, estranhamente, não fez. Melhor ainda, pareceu aliviar-lhe o estômago atormentado.

Depois de comer, Carly tomou um duche e vestiu-se. Emergindo da casa de banho, sentiu-se mais parecida com o seu antigo Eu, com a náusea e as tonturas praticamente desaparecidas. «Chucrute e leite com chocolate.» Tomou mentalmente nota para se abastecer destes itens, para que os tivesse sempre à mão para o pequeno-almoço matinal. As couves-de-bruxelas pareciam combinar bem, também. Lembrava-se de ter ouvido algures que os apetites durante a gravidez eram muitas vezes causados por deficiências a nível de vitaminas e minerais.

Acabara de se pentear quando ouvi a campainha da porta a tocar. Assim que abriu a porta, viu um homem de pé no patamar. À distância de um metro e meio, com o sol por detrás criando uma auréola ofuscante de dourado em volta da sua cabeça escura, as suas feições pareciam-lhe indistintas. Olhou directamente para ele, com a súbita claridade a lancetar-lhe os olhos como agulhas.

— Olá, outra vez — disse ele.

Carly teria reconhecido essa voz profunda e sedosa em qualquer parte. Sentiu o estômago a apertar-se e a resvalar subitamente até aos joelhos. Agarrou a maçaneta da porta com a mão, sentindo que tinha perdido momentaneamente a firmeza nos pés. Estava demasiado surpreendida para falar, com a mente a girar vertiginosamente em torno de perguntas sem resposta. Como é que ele a encontrara? Porque é que se dera ao trabalho de ir até ali? K como é que se atrevia a dizer, «Olá, outra vez», como se eles se tivessem separado na melhor das circunstâncias?

— Não me reconheces? — perguntou ele com uma risada de incredulidade. Carly não queria explicar que o sol a estava a cegar. Ele aproximou-se, o que fez com que as suas feições cinzeladas e escuras adquirissem contornos mais nítidos, e o fizessem agigantar-se junto à porta, mais alto e largo de ombros do que ela tinha em mente. O azul brilhante dos olhos rivalizava com o céu por detrás.

O primeiro impulso de Carly foi dar-lhe com a porta na cara e correr para o quarto. Em vez disso, deixou-se ficar, apoiando-se na porta.

— Olá, Hank.

Ele transferiu o peso do corpo, dobrando um joelho e erguendo a anca. Vestido com umas calças de ganga desbotadas e uma camisa azul, estava tal e qual ela se lembrava, um verdadeiro exemplo de força bruta. Quando ele sorriu, mostrando os seus dentes brancos e perfeitos, o coração começou a bater-lhe intensamente, sem conseguir deixar de olhar para aquela boca, lembrando-se do que sentira quando ele a beijou. A recordação enfureceu-a e encheu-a de vergonha. Como é que ela podia ter sido tão insensata? Aquele encontro não significara nada para ele. Ela não significara nada para ele. Se calhar, dormia com uma mulher diferente todos os fins-de-semana.

— Vai-te embora — conseguiu dizer.

Ele colocou uma mão na ombreira da porta.

— Sabes que não posso fazer isso, Carly. Falei com a Bess ao telefone, ontem à noite. Já sei do bebé.

— A Bess contou-te? — A sensação de traição por parte de Bess chegou depressa e com força.

— Alguém tinha de o fazer. É o meu filho. Tenho direito a saber. Bess sabia como é que Carly se sentia em relação a ver Hank de novo.

— E ela deu-te a nossa morada também?

— Não, não. — Ergueu uma mão. — Ela não me ia dizer onde viviam. Fui eu que consegui o teu número de telefone. Uma amiga minha descobriu a vossa morada.

Carly colocou uma mão protectora por cima da barriga. Não gostava do brilho determinado nos seus olhos. Enquanto estudante, soubera de raparigas que tinham ficado grávidas acidentalmente, e lembrava-se muito bem como é que a maior parte dos seus namorados reagira. «Desfaz-te do bebé.» Se Hank viera aqui, na esperança de convencê-la a fazer uma coisa dessas, bem que podia desistir.

— Peço desculpa por não ter reconhecido o teu nome quando ligaste ontem à noite. Com todo o barulho que havia no bar, pensei que tinhas dito Charlie. Demorei algum tempo a fazer a associação e, quando isso aconteceu, já tinhas desligado. Não é que não me lembrasse de ti. Cheguei a ir ao bar na esperança de te encontrar. Se não acreditas em mim, liga para o Chaps e pergunta ao Gary, o empregado do bar.

— Com tudo isto, quero lá saber se te lembras de mim ou não. — No momento em que dizia estas palavras, Carly sentiu uma dor imensa no coração. — Só quero que te vás embora.

Hank arrastou um salto da bota por cima do tapete.

— Estás grávida do meu filho. — A sua voz afundou-se num timbre enrouquecido. — Não posso ignorar isso.

— Não te vou dar uma opção.

Ele olhou fixamente para ela, com os seus olhos azuis subitamente penetrantes e incisivos. Sem nenhum sorriso suavizando a sua expressão.

— Gostaria de falar contigo sobre a maneira como devíamos lidar com a situação.

Tremendo, Carly disse:

— Vou ter este bebé. Se vieste aqui para me oferecer dinheiro para fazer um aborto, bem podes tirar o cavalinho da chuva e esquecer-te da ideia tão rapidamente como te esqueceste de mim. O meu filho não é um erro que necessite de ser corrigido. Faço-me entender?

— Perfeitamente. Não estou aqui para sugerir nada disso. Posso entrar para que ouças o que eu tenho para dizer?

— Podes fazê-lo do patamar.

Carly não queria saber se estava a ser detestável. Comportara-se de forma tão estúpida naquela noite. Não havia cliché que não se aplicasse ao seu caso, com o seu comportamento de bêbeda idiota figurando no topo da lista.

Franzindo as sobrancelhas, ele endireitou-se e encaixou os dedos no cinto.

— Queres mesmo que toda a gente deste complexo de apartamentos fique a saber do nosso assunto?

— Do nosso assunto? Não há nenhum nós nesta equação. Os olhos dele voltaram a encher-se de brilho.

— Posso perguntar de outra maneira. Queres mesmo que toda a gente fique a par do teu assunto, ou seja, que estás grávida do meu miúdo?

— É um bebé, não um miúdo, e é meu, não é teu. — Sentiu o estômago a dar uma reviravolta e a chucrute que tragara com tanto apetite ao pequeno-almoço fez com que um jacto de ácido lhe subisse à garganta. — Não tenciono entrar em contacto contigo, dentro de cinco anos, com a minha mão estendida, se é isso que queres saber. Podes afastar-te, não voltar a olhar para trás e fingir que nada disto aconteceu.

— É isso que achas que eu quero, afastar-me?

— Não me interessa o que tu queres.

— Qualquer que seja a tua opinião sobre mim, isso não nega o facto de eu ser o pai desse bebé.

— Sim, biologicamente, és o pai. O mesmo acontece com um doador de esperma.

O músculo maxilar de Hank começou a tremer. Carly sentiu um fluxo irracional de trepidação. Por ter sido sempre cega toda a vida desenvolvera um sexto sentido em relação às pessoas, um radar que a ajudava a sentir as suas auras. Naquela noite, no Chaps, notara em Hank uma bondade subjacente que a fizera confiar logo nele. Agora sentia força e determinação emanando da sua pessoa em ondas poderosas, e apercebeu-se, instintivamente, que ele não iria ceder facilmente, uma vez disposto a fazer qualquer coisa.

— Pode ser que eu seja apenas um doador de esperma. Mas, mesmo que isso seja verdade, sinto-me na obrigação de zelar para que tu e o bebé não tenham falta de nada. A Bess contou-me acerca dos teus problemas de visão, Carly, e o modo como a gravidez poderá afectar-te tanto física como financeiramente. Gostaria de aligeirar a carga que pesa sobre ti da melhor forma que puder.

Carly ficou hirta atendendo às implicações que isso acarretava.

— Grande novidade. Não quero que te sintas obrigado, em relação a mim ou ao bebé. É isso que pensas, que entrei em contacto contigo só para te sacar dinheiro? Apenas achei que tinhas o direito de saber que, em breve, irias ser pai. Espoliar-te, com a intenção de obter qualquer tipo de apoio, não fazia parte dos meus planos.

Hank estava a ver que isto não ia dar a lado nenhum. Enquanto permanecia ali, tentando organizar os seus pensamentos, não pôde evitar de se congratular por uma coisa: pelo menos, escolhera uma bela mulher para ser mãe do seu filho. Mesmo à luz crua do dia, Carly tinha umas feições muito bem delineadas, a par de uma imaculada pele de marfim e uns grandes e expressivos olhos azuis. O seu cabelo parecia naturalmente loiro, raiado com madeixas cor de mel e caindo-lhe sobre os ombros esguios como cortinas douradas. Uma T-shirt branca e umas calças de ganga confortáveis punham em destaque a sua figura, caracterizada por uns seios pequenos e muito bem torneados, uma cintura estreita, umas ancas graciosamente redondas e umas pernas elegantes.

Vê-la assim foi suficiente para avivar memórias adormecidas — como tão bem ela se sentira nos seus braços, quão precipitados haviam sido os seus beijos e quanto ele a queria. Olhando para trás, nunca desejara tanto uma mulher.

No entanto, por mais adorável que ela fosse, aquilo que prendia mais a atenção de Hank era a sua doçura angélica. Reparara nisso, naquela noite, e minimizara o facto. As mulheres que frequentavam bares tinham geralmente um rosto endurecido. O coração de Carly brilhava-lhe nos olhos.

Aqueles olhos. Tão belos que mal conseguia acreditar que não eram perfeitos. Mas, pior do que isso, era saber de que modo a forma descuidada como se servira do seu corpo fora suficiente para condená-la a meses de cegueira. Como é que ela poderia continuar os estudos sem a sua ajuda?

Um rangido chamou a sua atenção. Viu o braço esquerdo de Carly a movimentar-se, com os tendões do antebraço distendidos enquanto tentava rodar o puxador da porta com a mão. Era o gesto inconsciente de alguém hirto de tensão. Todos os seus sentidos ficaram em estado de alerta. Voltou a olhar para o rosto dela, notando-lhe uma certa rigidez nos músculos faciais. Seria medo que viu na sua expressão?

A hipótese fê-lo parar para pensar. Não era que ele se tivesse imposto sobre ela. Tanto quanto se lembrava, ela derretera-se nos seus braços quando ele a beijou, permitindo que ele avançasse.

Talvez fosse esse o problema. Ela rendera-se ao momento, entregando-se a ele sem reservas. Pondo isso para trás agora, e tentando meter-se na posição dela, achava que ela tinha razões para se sentir desconfiada. «Ela acreditou em todas as tuas frases feitas.»

— Tenho muito que fazer — informou-o. — Se quiseres dizer mais alguma coisa, diz agora. Não posso ficar aqui de pé toda a manhã.

Hank coçou atrás da orelha e desejou ter o chapéu consigo. Nos momentos mais tensos, um chapéu vinha sempre a calhar.

— Vens jantar comigo? — Pouco ou nada brilhante.

A pele suave de Carly enrugou-se num ligeiro franzir de sobrancelhas.

— O que é que te levou a pensar, mesmo por uns segundos, que eu iria jantar contigo?

— Não estou a falar de um encontro. Estava só a pensar, bem, que talvez te sentisses mais confortável em terreno neutro, num lugar público, onde pudéssemos discutir e tomar algumas decisões.

— Estávamos em terreno neutro da última vez que nos encontrámos — recordou-lhe.

Hank não conseguia pensar em nada para poder refutar aquele ponto.

— E quaisquer decisões respeitantes a este bebé sou só eu que as tomo — acrescentou. — Serás informado quando a criança nascer. Se quiseres ter direito a visitas, estás à vontade. Mas não quero ter mais nada a ver contigo.

Isto não estava a tomar o rumo que Hank queria.

— Carly, por favor, eu...

Aqueles seus olhos tão lindos ficaram brilhantes de raiva.

— Sabes o que me disseste momentos antes de teres perdido a consciência? Hank não fazia a mínima ideia. Era óbvio que isso se notava no rosto dele, pois de imediato ela empinou o seu pequeno queixo e disse:

— Foi uma ejaculação apropriada, atendendo às circunstâncias. Isso ajuda-te a refrescar a memória?

Antes de ele poder responder, ela fechou-lhe a porta na cara. Uma ejaculação apropriada? Contraiu-se face às implicações. Normalmente, nunca usava linguagem obscena em frente de mulheres ou crianças. Era uma regra estrita, que o seu pai lhe incutira. Fechou os olhos, sentindo-se envergonhado. Ela dera-lhe um presente precioso — a sua virgindade — e ele dissera-lhe uma ordinarice daquelas?

Deixou-se ficar ali, indeciso entre bater à porta até ela a abrir de novo ou afastar-se. Decidiu-se por esta última. Fizera um contacto inicial. Ela estava a ser hostil e tinha razões para isso. Daqui a uns dias, talvez já se mostrasse mais disposta a falar com ele.

Quando Bess chegou a casa, três horas depois, Carly explicou como acordara nessa manhã com a visão enevoada.

— O médico dos olhos aqui em Crystal Falls pode ver-me às cinco e um quarto. Importas-te de me levar?

— Claro que não. — Bess franziu o sobrolho de preocupação. — O doutor Merrick acha que podes perder a visão?

Carly evitou o seu olhar.

— Ele diz que há hipóteses de ser apenas uma pequena inflamação. Mas, dada a gravidez, pode ser também a lattice a recuperar um ponto de apoio.

Bess agarrou no ombro de Carly.

— Tão depressa? Como é que pode ser?

— Ele diz que a maior parte dos nutrientes daquilo que ingiro estão a ir para o bebé em vez dos olhos. Algumas mulheres perdem a visão muito depressa. — Carly tentou sorrir. — Não vale a pena ficares triste, Bess. Se isso acontecer, aconteceu. Por agora, estou a tentar pensar de forma positiva. Porquê preocupar-me quando pode ser apenas uma infecção? Há boas hipóteses para que ainda seja capaz de ver durante mais uns meses, talvez até ao final da gravidez.

Mais tarde, enquanto Carly deixava o edifício médico na companhia de Bess, recontou tudo o que o oftalmologista lhe tinha dito.

— Ele diz que o problema do olho colado é causado por uma inflamação nas pálpebras — disse. — Preciso de usar gotas antibióticas mais vezes e descansar frequentemente os olhos. — Carly sorriu. — Põe-te a pau. Muitas sonecas, ordens do médico.

Bess destrancou as portas do seu velho Toyota. Por cima do tejadilho do carro, perguntou:

— E as tuas córneas? Como estão?

Carly entrou para o veículo e apertou o cinto. O seu estômago agitou-se com os nervos enquanto dizia:

— Ele viu alguma deterioração, mas, por agora, ainda não é muito grave. Vai ligar para o doutor Merrick. Um deles entrará em contacto comigo amanhã, com mais informações.

Bess falou muito pouco durante o caminho de regresso ao complexo de apartamentos. Uma vez em casa, foi até à cozinha para se servir de chá gelado e preparar um sumo para Carly. A caminho da sala de estar, olhou para a amiga com uma expressão de preocupação.

— Achas que vais ficar cega, não achas?

— Estás a esquecer-te de que fui cega durante toda a minha vida. Se isso acontecer, saberei lidar com a situação.

Bess ainda estava com um ar preocupado, mas não voltou a insistir no assunto. Carly sentiu-se aliviada. Se ela ficasse cega de novo, havia hipóteses de não ser para breve. Não queria pensar no assunto até as coisas acontecerem. Depois, arranjaria maneira de lidar com a situação. Ela era boa em lutar contra as adversidades. Quando se nasce cego, não há outra alternativa.

Bess cancelou uma entrevista, no dia seguinte, para que pudesse estar no apartamento quando o Dr. Merrick ligasse. Quando Carly terminou a conversa com o médico, Bess sentou-se muito direita na cadeira da cozinha, com os seus olhos castanhos revelando uma grande preocupação, a sua boca tensa.

— O que é que ele disse? — perguntou ela. Carly empurrou a cadeira para trás.

— Há uma deterioração definitiva das minhas córneas. O médico local conseguiu detectar o desenvolvimento de fendas.

Bess fechou os olhos.

— Mas o aspecto positivo — prosseguiu Carly — é que não é uma indicação segura de que vá ficar cega durante a gravidez. A lattice é uma coisa estranha. Pode progredir rapidamente, durante algum tempo, e depois entrar em remissão. Ou, pelo contrário, provocar ligeiros danos no início da gravidez e depois galopar, provocando a cegueira numa questão de dias ou semanas. Os meus olhos não têm qualquer infecção. A deterioração até agora é mínima. — Carly encolheu os ombros. — Vamos esperar para ver. Como os danos até agora são ligeiros, tenho esperança de ser capaz de ver durante mais alguns meses.

— Como é que podes estar tão calma? É uma coisa que me deixa louca. Carly revirou os olhos.

— Achas que serviria de alguma coisa pôr-me aos gritos e a puxar pelos cabelos? Tenho de lidar com as coisas tal como elas são. Reza por mim, Bess. Se possível, preferia não ficar cega. Seria muito mais fácil se continuasse a ver e assim poder ir para a universidade conforme planeado.

Na segunda-feira à noite, Hank ganhou coragem e ligou para o número de Carly. Ela respondeu ao segundo toque.

— Olá, Carly, é o Hank.

Com as suas frases bem ensaiadas, Hank respirou fundo para continuar, mas, no processo, o telefone emudeceu depois de um clique.

— Carly?

Nenhuma resposta. Hank afastou o telefone e ficou a olhar para ele. Como é que ele poderia comunicar com ela, se ela se recusava a falar com ele? Era óbvio que ela esperava que ele se afastasse e esquecesse que ela existia, que o filho dele existia. Bem, ele tinha notícias para ela. Nenhum filho dele iria crescer sem saber quem era o pai. E ele não queria saber se ele abandonaria a mãe quando ela precisasse dele.

Hank sentou-se à secretária e escreveu a Carly uma longa carta, pedindo profusamente desculpas pelo seu comportamento indesculpável na noite em que tinham estado juntos e, mais uma vez, oferecendo-lhe todo o apoio moral e financeiro que viesse a precisar durante a gravidez. Na sexta-feira, quando não chegou nenhuma resposta, quer por correio quer por telefone, teve de se resignar com o facto de esta abordagem passivo-agressiva não estar a funcionar. Por último, tentou a velha opção, enviar flores. Quando tudo o mais falhava, por vezes, uma dúzia de rosas era suficiente.

Estendida no chão, em frente da televisão, Carly franziu as sobrancelhas enquanto tentava resolver um puzzle, um passatempo que a entediava até mais não, mas que era de extrema utilidade para a ajudar a treinar o córtex visual e assim poder aprender a reconhecer e conjugar formas diferentes. O que realmente a irritava era o facto de um puzzle infantil ser tão difícil para ela. Fazia-a sentir-se completamente burra.

A campainha tocou nesse momento, fornecendo uma distracção bastante bem-vinda. Engolindo o seu último pedaço de pickle, pôs-se de pé. Por uns instantes, depois de se ter levantado, o quarto girou e a alcatifa bege pareceu ondular. Carly parou e esperou para que o seu córtex visual se ajustasse antes de avançar.

Um homem magro estava de pé no patamar, com o seu rosto enrubescido transformado numa mancha nebulosa. Nos seus braços, segurava uma caixa comprida que Carly achou que era de um tom rosa-claro. As várias tonalidades de cor-de-rosa confundiam-na e estava a começar a desesperar e a pensar que nunca mais as viria a distinguir.

— Carly Adams? — perguntou o homem.

— Sim.

Ele deu um passo para lhe colocar a caixa nos braços. Nesse momento, o seu rosto ficou claramente focado. Carly viu que era novo, com cabelo ruivo e tinha umas marcas castanhas engraçadas por toda a cara. Sardas. Carly ouvira falar de sardas, mas nunca vira nenhumas. Ele esboçou um sorriso terno.

— São para si, Mistress Adams. Há um cartão lá dentro. Espero que goste. Surpreendida, Carly viu o homem a afastar-se até não ver mais nada a não ser uma mancha distorcida balouçando-se através do verde flutuante do relvado partilhado por todos os ocupantes do complexo de apartamentos. Um aroma agradável invadiu-lhe as narinas, fazendo com que o seu olhar se dirigisse de novo para a caixa. Rosas? O cheiro era inconfundível.

Depois de ter fechado a porta, Carly foi até à mesa da cozinha, abriu a caixa e suspirou de prazer enquanto tirava o papel de cera verde e via os botões vermelhos. Rosas.

Enquanto olhava para as flores, sentiu uma vontade imperiosa de tirá-las da caixa e examiná-las. Sempre adorara o seu aroma, mas nunca tivera oportunidade de examiná-las de perto. Eram muito mais bonitas do que ela imaginara, com as pétalas dobradas de um veludo suave. Mas quem as teria enviado? O seu pai, a viver actualmente no Arizona, tinha uma pensão fixa. Seria capaz de lhe enviar um cartão de parabéns, aquando do nascimento do bebé, mas rosas não estavam ao seu alcance.

De repente, Carly soube quem enviara as flores. Hank. O seu primeiro impulso foi atirá-las para o lixo, tal como fizera com a carta, mas não conseguiu fazer isso. Uma coisa tão bonita merecia ser apreciada. Tirou os botões de pé longo da caixa e tocou ligeiramente com o nariz nas pétalas. Não as podia deitar fora. Não podia, ponto final.

Consolou-se com o pensamento de que Hank encomendara provavelmente as rosas por telefone e pagara com cartão de crédito. Nunca as vira, na realidade, o que diminuía o seu sentimento de repulsa em ficar com elas.

Bess chegou a casa no momento em que Carly estava a enfiar a última rosa num frasco de chucrute vazio, a coisa mais parecida com uma jarra que ela encontrara.

— Como é que correu a entrevista? Bess atirou a mala para o sofá.

— Era uma entre mais de cinquenta candidatos. Nem sequer consegui um talvez.

— Na próxima semana encontrarás alguma coisa — assegurou-lhe Carly.

— Oh! — Bess gritou quando viu as flores. — São tão lindas!

— São, não são? — Carly recuou para admirar o arranjo. A jarra não era suficientemente alta e os botões caíam em todas as direcções, ampliando a sua presença na mesa.

— Quem é que as enviou?

— Não estragues tudo com essa pergunta. Quase que as ia deitando fora.

— Hank. — Bess pegou num pequeno cartão dourado que Carly deixara ainda por ler nas dobras de papel. Observou a mensagem, com a sua expressão a ficar cada vez mais pensativa. — Hmm.

Carly não gostou do som produzido.

— O que é que diz?

— Não muito, apenas que está muito arrependido e que espera que tu lhe ligues.

— Não me parece.

— Uma dúzia de rosas de pé longo, mandada entregar por uma florista, é uma coisa dispendiosa, Carly. Ele está obviamente a tentar fazer as pazes contigo.

— Pobre Hank, dizes tu? Desculpa. Essa não me convence. Bess foi até ao frigorífico para o seu copo da tarde de chá gelado.

— Na minha opinião, qualquer tipo que envia rosas para pedir desculpas devia ter direito a fazê-lo pessoalmente. Que mal faria ouvi-lo?

Carly afastou-se da mesa para apreciar as flores. Quando quis ajeitar num botão descaído, confundiu o alvo e deu um encontrão à jarra. A água espalhou-se. Bess apressou-se a vir em seu salvamento com uma toalha.

— A tua visão piorou assim tanto? Carly encolheu os ombros.

— Responde-me, Carly. A tua visão piorou assim tanto nesta última semana?

Carly não queria mentir, mas, ao mesmo tempo, achava difícil pronunciar as palavras em voz alta.

— Ligeiramente. Só espero que tenha a ver com a blefarite.

— Já ligaste ao doutor Merrick?

— Porquê? Estou a pôr as gotas antibióticas. Poderão ajudar ou não a melhorar a visão enevoada. Merrick disse-me, com toda a franqueza, que não podia fazer nada se o problema fosse da lattice. A doença tomará o seu rumo.

Bess deixou-se cair no sofá com o copo entre as mãos. Olhou para as rosas durante algum tempo.

— Oh, Carly, acho mesmo que devias tentar falar com o Hank. Que mal pode fazer?

— É engraçado como estás a usar a palavra mal. Foi exactamente isso que pensei uma dezena de vezes, naquela noite, enquanto punha de lado toda a sanidade. «Que mal pode fazer?» Esquece a parte emocional. Ele fez-me mal fisicamente. Nem me conseguia ter de pé durante dois dias.

— Só porque ele estava bêbedo e não sabia que precisava de ter cuidado. Ele está arrependido, Carly. Todos nós cometemos erros.

— O meu foi ter confiado nele em primeiro lugar. Não o quero voltar a ver. Não quero falar com ele de novo. Para mim, ele não existe.

Bess ficou a matutar no assunto.

— Ainda te sentes atraída por ele. Carly fingiu um certo escárnio.

— Poupa-me.

— É verdade. Vejo isso escrito em ti. É por isso que estás tão revoltada contra o facto de o poderes ver outra vez. Tens medo que ele fale docemente contigo, que te esqueças de quão horrível foi da primeira vez e acabes de novo na mesma situação.

— Nunca. — Quando Bess fez menção de dizer mais alguma coisa, Carly fez um gesto com as mãos. — Basta! Como é que podes pensar que eu me sinto atraída por ele? Só porque cometi um erro estúpido, isso não significa que o meu tamanho de sutiã seja maior do que o meu QI.

— Será que ele também não pode cometer erros?

— Achas realmente que eu fui o seu primeiro erro? Deves estar a gozar. Eu não fui o seu primeiro engate de bar. O nosso encontro terminou apenas de uma forma mais desagradável do que os outros.

— Talvez tenhas razão. Mas, partindo dessa hipótese, existe alguma lei que diga que ele não possa ver o erro do seu comportamento? Acho que ele merece o benefício da dúvida. Nem todos os tipos se disporiam a tanto para levar por diante as suas responsabilidades.

— Não quero ser uma das responsabilidades de Hank Coulter.

Carly rematou desta forma a conversa e foi para o quarto. Sentou-se na beira do colchão e enterrou o rosto nas mãos. No fundo, sabia que Bess tinha razão. Ela tinha medo de Hank Coulter. Da última vez que estivera sozinha com ele, ocorrera o desastre. Lembrava-se do seu aspecto, na outra manhã, de pé no patamar, imponente e pleno de força. Havia algo nele que a perturbava. Como tal, todos os seus instintos femininos lhe diziam para se afastar dele.


Capítulo Oito

Encostado para trás na poltrona reclinável, Hank dormitava ao som de um filme de Winnie the Pooh que Molly pusera no leitor de vídeo para fazer com que o seu filho, Garrett, adormecesse na sequência de um sonho mau. Quanto o telefone tocou, registou vagamente o som e a voz de Jake a dizer, «Estou». Uns segundos depois, Hank estava a ser acordado pela cunhada.

— É para ti — murmurou Molly.

Pegando no portátil, Hank afastou o apoio para os pés e levantou-se.

— Está lá? — disse ele, enquanto se dirigia para a cozinha para escapar ao barulho.

— Olá, Hank. Daqui fala a Bess. Tentei ligar para o telemóvel, mas ninguém atendeu.

Hank bateu no cinto.

— Peço imensa desculpa. Devo tê-lo deixado na carrinha. — Esfregou os olhos para acordar definitivamente. — O que se passa? A Carly está bem?

— Não, na verdade, creio que ela não está nada bem. A resposta pôs Hank em alerta total.

— O que se passa?

— Acho que ela está a perder a visão. — Bess relatou rapidamente os momentos em que vira Carly a chocar contra as coisas e a franzir os olhos para conseguir ver. — Acho que está a desenvolver-se muito depressa. Juntamente com isso e os enjoos matinais, está a ter umas dores de cabeça horríveis.

— Ela já falou com o médico?

— Ele disse-lhe que não podia fazer nada. Andei a fazer umas pesquisas na Internet e obtive alguma informação acerca da lattice durante a gravidez. O prognóstico é muito reservado. Algumas mulheres ficam cegas rapidamente, num período de três semanas, nalguns casos, e, a avaliar pelo que observei, dá-me ideia de que a Carly será uma delas.

Hank passou novamente com uma mão pelos olhos.

— Três semanas?

— A visão dela tem os dias contados, Hank. Ela ainda tem esperanças de que a visão enevoada e a percepção errónea da profundidade se devam à inflamação das pálpebras, mas acho que se está a tentar iludir a si própria.

Hank colocou uma mão na borda da bancada.

— E tudo por minha causa. Lamento imenso.

— Começo a acreditar que sim — disse ela calmamente.

— Ela continua a não falar comigo. Tentei telefonar. Cheguei mesmo a ir ao apartamento uma manhã. A visita terminou com ela a fechar-me a porta na cara.

— Ela contou-me. As rosas eram lindas, a propósito. Ela não costuma ser tão mazinha. Só que... bem, tem andado um pouco desorientada com toda esta situação e parece que você a assusta um bocadinho.

Hank podia pensar numa série de palavras para descrever Carly, mas «mazinha» não era de certeza.

— Senti a sua apreensão. Só que não consigo perceber a razão. Por muito que a tenha magoado naquela noite, não a forcei a entrar para a carrinha comigo.

— Não sei bem o que é que a perturba. Ela não tem falado muito sobre isso.

— Algum palpite?

Uma primeira vez dolorosa e medo de se deixar levar outra vez pelas suas palavras bonitas? Houve um rapaz, há muito tempo. Não vou entrar em pormenores, mas o certo é que ele foi muito mau para ela. Ela acreditou nele, ela acreditou em si. Talvez não confie mais na forma como julga as pessoas. — Bess deu um suspiro de cansaço. — O orgulho ferido pode também estar implícito. Estou a tentar perceber. Não sei sinceramente. Talvez seja uma combinação de várias coisas. Nós, mulheres, somos criaturas complicadas.

— O mínimo que eu podia fazer era ajudá-la financeiramente.

— Talvez deva deixar de aceitar o não como resposta. Hank arqueou uma sobrancelha.

— O que quer dizer exactamente com isso?

— A minha amiga está grávida e, quer ela queira quer não, prestes a ficar cega outra vez. Tem tido enjoos matinais praticamente todos os dias. As dores de cabeça pela estimulação repentina ao córtex visual também têm sido constantes. Para já não falar das complicações que qualquer mulher poderá ter durante a gravidez. Em Setembro, voltarei para a universidade para tirar o MBA 4, e irei estar a trabalhar a tempo inteiro. Quem é que vai poder tomar conta dela se ficar doente ou tiver problemas inesperados com os olhos? E como é que vai poder sobreviver quando as facturas adicionais começarem a pingar?

Hank não tinha respostas.

— Ela ficará num beco sem saída, Hank. As suas poupanças para os estudos já se terão eclipsado pela Primavera, desbaratadas em despesas fixas e contas do médico, deixando-a sem o dinheiro que rá precisar para poder fazer uma segunda operação à vista. O que é que ela vai fazer, ficar cega até conseguir o dinheiro suficiente para fazer outra queratectomia?

Hank tentou dizer qualquer coisa, mas Bess prosseguiu logo:

— Como professora contratada conseguiu tirar vinte e nove mil por ano, nestes últimos dois anos. Tirando os impostos, não sobra muito. Vivendo juntas, poderíamos poupar para a universidade, mas é difícil. Mesmo que ela regressasse a Portland e recuperasse o seu antigo emprego, dificilmente iria conseguir manter-se debaixo de um tecto. Em resumo, Hank, ela vai precisar de ajuda e muita. Se estiver disposto a dar um passo em frente, aconselho-o a fazê-lo rapidamente.

— Como é que posso ajudá-la se ela se recusa a falar comigo?

— Lá voltamos ao mesmo. Deixe de aceitar o não como resposta. Por vezes... — Interrompeu o que estava a dizer e bufou para o auscultador. — Meu Deus, nem quero acreditar no que estou a dizer, mas, por vezes, uma mulher deixa-se levar pelas emoções e a Carly é muito má nesse aspecto. Muitos deficientes aceitam as suas limitações e contentam-se com pouco. A Carly não é assim. Se eu e a nossa amiga Cricket decidíamos fazer qualquer coisa, ela estava determinada a fazê-lo também, com a menor ajuda possível. Andar de bicicleta, pôr-se em cima de uma prancha de skate. Eu e a Cricket gritávamos as direcções e lá ia ela até esbarrar num carro estacionado ou galgar por cima de um passeio. Quando era criança, andava sempre com os joelhos e os cotovelos esfolados, mas nunca desistiu. Fazer tudo sozinha foi sempre muito importante para ela.

Hank não estava a ver o que é que isso tinha a ver com a situação actual.

— Agora ela está grávida — confirmou Bess sem necessidade. — Você está disposto a portar-se como um homem grande e forte e vir em seu salvamento. A Carly não chegou aonde chegou deixando que as outras pessoas fizessem tudo por ela. Isso faz algum sentido?

— Não propriamente. — Hank não conseguia imaginar uma rapariga cega a andar de bicicleta. Em que é que os pais dela estariam a pensar? — Todos nós precisamos de ajuda algumas vezes.

— A Carly precisou de ajuda toda a vida. Para ela não era a excepção, mas a regra. Ela tinha uma opção, desistir e deixar que a cegueira controlasse a sua vida, ou bater-se firmemente para ser normal. Desenvolveu uma atitude, afogar-se ou nadar, fazer ou morrer. Mesmo quando era pequena, recusava ser alvo de um tratamento especial. Dirigiu-se sozinha para a nossa sala de aula do primeiro ano. Transportava o seu próprio tabuleiro do almoço. Trepava pelas cordas no ginásio. No liceu, caminhava pela pista para contar os passos entre as barreiras e, na tarde seguinte, saltava-as. Se caísse, endireitava a barreira e tentava outra vez.

— Valha-nos Deus — murmurou Hank.

— Quando se apercebeu de que as pessoas podiam ver que ela era cega porque pendurava a cabeça, começou a manter-se sempre direita. Recusava-se a deixar que a cegueira a tornasse diferente.

— Por outras palavras, ela é teimosa como um raio.

— Teimosa. Difícil por vezes. Mas olhe para ela. Alguma vez diria que ela era totalmente cega há pouco mais de um mês?

Hank não dera decididamente por nada na noite em que se encontraram.

— Não — admitiu com voz rouca. — Até onde quer chegar, Bess?

— Neste momento, estou a fazer o papel de Judas — disse com uma voz trémula. — Nem sonha como me sinto mal por isso.

— Você só está a tentar ajudá-la.

— E, no processo, a revelar coisas pelas quais ela poderá nunca me perdoar. — Hesitou, e depois continuou. — Acho que esta gravidez se transformou noutra corrida de obstáculos para Carly. Além de ter receio de si, fazer tudo sozinha está relacionado com a sua percepção de auto-estima. Há mulheres que engravidam e têm os filhos fora do matrimónio. Há mulheres que fazem das tripas coração para conseguir criar os filhos. Não costumam casar com um homem que não amam para terem a vida facilitada.

Hank esfregou a nuca.

— Ela precisa de pensar no bem-estar do nosso filho.

— Eu sei. Mas para ela é mais fácil dizer do que fazer. Ela quererá que o seu filho ou filha tenham orgulho nela um dia. Na óptica da Carly, isso só poderá acontecer se conseguir subsistir por si própria e ser admirada por isso.

— Então qual é a resposta? — Hank olhou por cima do ombro para se certificar de que ainda estava sozinho na cozinha. Depois contou a Bess a conversa que tivera com o seu irmão Zeke. — Se eu conseguir convencê-la a casar comigo, fá-lo-ei num abrir e fechar de olhos. É a única solução plausível que consigo arranjar. Podíamos estabelecer um acordo provisório, uma medida temporária até ela fazer a segunda operação e conseguir acabar o mestrado. Se, nessa altura, ela ainda quisesse fazer a sua vida à parte, poderia providenciar-lhe um capital inicial e dar-lhe o divórcio.

— Se ela ainda quisesse fazer a sua vida à parte? Isso quer dizer que estaria disposto a manter o casamento mesmo que ela não quisesse?

Hank virou-se para encostar as ancas à bancada e observar a porta.

— Estou receptivo a essa possibilidade. Quem é que diz que não nos vamos dar bem e ser felizes para sempre? Seria muito melhor para o nosso filho se ficássemos juntos.

Longo silêncio. Depois Bess disse:

— Avance.

Hank franziu o sobrolho.

— Avance para onde?

— Case com ela. Com todas as outras despesas que irá ter, manter duas casas seria um descalabro para si. Se a Carly achar que pode ser uma situação temporária, acabará por aceitar. Confie em mim. Dê limões à rapariga que ela fará uma limonada.

— Mas há um problema. Como é que poderei casar com ela quando ela nem sequer fala comigo?

— Não me parece que você seja estúpido, Hank. Puxe pela imaginação.

— Como? Não a posso forçar a casar comigo. Há leis contra esse tipo de coisas.

— Também há leis que dão aos pais alguns direitos inalienáveis. A Carly não está em posição de poder sustentar o filho agora.

Hank sentiu um formigueiro a trepar-lhe pelas costas acima.

— O que está a sugerir?

— Tentou comportar-se como uma pessoa correcta e simpática. Funcionou?

— Não.

— Então? Talvez esteja na altura de fazer as coisas de uma forma mais dura. Ela não irá arriscar perder o bebé. Conheço-a.

Hank não gostou do rumo que a conversa estava a tomar.

— Ela não tem família que a ajude?

— Só o pai no Arizona. A Carly foi uma filha tardia, por isso ele já tem bastante idade. Ela podia ficar com ele, mas trata-se de um condomínio residencial para reformados, de carácter sazonal, que encerra as portas em Abril. Não há escolas e, tanto quanto sei, também não tem transportes públicos, o que tornaria impossível para ela deslocar-se, caso mantivesse o cargo de professora. Ela já estará cega, lembre-se. Os cegos não podem conduzir. O pai dela faria tudo por ela, mas ele não tem passado bem. Ele não poderia cuidar da criança enquanto ela estivesse a trabalhar, e ela não poderia contar com ele para o transporte diário.

— Ela teria de estar em condições de poder trabalhar para poder receber o salário e os benefícios de um seguro de saúde.

— Exactamente.

— E não há mais ninguém? — Vindo de uma família tão grande e unida, Hank não conseguia conceber que isso fosse possível. — Não tem irmãos ou irmãs?

— Ela é filha única. O pai dela tem setenta e três anos. A mãe morreu de cancro nos ovários há dois anos. Eu estarei ao lado dela, claro, mas irei ficar um bocado limitada, trabalhando e frequentando as aulas. Poderia largar a escola, é verdade, mas teria de continuar a trabalhar oito a dez horas por dia. A nossa amiga Cricket encontra-se neste momento na Colômbia, a trabalhar numa escavação. Não poderia regressar a casa para lhe dar uma ajuda sem que com isso prejudicasse a carreira.

— Compreendo — disse Hank, e compreendia realmente. Era este o seu problema. Não podia esperar que outras pessoas largassem tudo e fossem a correr ajudar Carly. Fora ele o causador de todos estes problemas e competia-lhe a si resolvê-los.

Carly acordou na manhã seguinte e descobriu, para grande consternação sua, que já não havia chucrute e couves-de-bruxelas. Bess já saíra para uma entrevista num consultório de veterinário, por isso Carly não tinha nenhum motorista à disposição. Como o chucrute e as couves-de-bruxelas pareciam apaziguar-lhe o estômago atormentado, vestiu-se rapidamente, escovou o cabelo e partiu para o supermercado, que ficava a quatro quarteirões de distância.

Quarenta e cinco minutos depois, estava já de regresso à rua onde morava. Sentia a boca a salivar pela comida que transportava nos sacos de plástico, um em cada mão. O peso das mercearias fizera com que as alças dos sacos se cravassem na sua carne e tinha os dedos dormentes.

Estava quase a chegar ao complexo de apartamentos quando reparou numa carrinha azul estacionada junto ao passeio. No momento em que se virou para percorrer o caminho central que atravessava o espaço relvado comum, viu um homem a sair do veículo e a bater com a porta. Embora pouco mais não fosse do que uma mancha de ganga azul, Carly apercebeu-se logo pelo andar suave e bater de botas no pavimento de que só podia ser Hank.

Sentiu o coração a bater-lhe apressadamente no peito. Ela dissera-lhe com todas as letras que não o queria voltar a ver. Porque é que ele não a deixava em paz?

À medida que o som produzido pelos tacões das suas botas ia aumentando de intensidade, foi-se apercebendo de que ele estava a ganhar terreno sobre ela. Esteve vai-não-vai para desatar a correr para lhe escapar, mas o orgulho deteve-a. Não lhe daria o prazer de a ver a fugir como um coelho assustado.

Ainda antes de conseguir chegar ao patamar, ele entrepôs-se no caminho.

— Eu levo-te as coisas. Carly continuou a andar.

— Não, obrigada. Vai-te embora.

— Nem penses.

Retirou-lhe com violência os sacos de mercearias das mãos, acção que fez de uma assentada, apesar da força com que ela os segurava. Ela ainda pensou em reclamar a sua posse com um gesto violento, mas um olhar para os ombros bem musculados de Hank foi suficiente para inteirar-se de que uma competição física não a levaria a lado nenhum.

Como se adivinhasse os seus pensamentos, ele esboçou um sorriso arrastado.

— Diz-se olá.

Ela não estava com disposição para qualquer troca de cumprimentos. E ele piorou ainda mais as coisas ao atingir o patamar primeiro do que ela.

— Vamos ter de resolver as coisas de uma vez por todas, Carly. — O tom jocoso abandonara por completo a sua voz, substituído por uma forte determinação. — Se achas que te sentes mais segura a falar comigo num restaurante, a oferta ainda se mantém, mas vamos ter de conversar, quer queiras quer não.

— Mais segura? — Carly conseguiu subir os degraus sem tropeçar, o que não era uma coisa fácil. Avançando para a porta, disse: — Não tenho medo de ti.

— Apreensão, talvez?

— Não me sinto nada apreensiva.

Com as mãos a tremer, procurou a chave no bolso. Recusando-se a olhar para ele, visou a fechadura, esperando ter sorte e acertar no buraco. Negativo. Mais frustrada do que nunca, tentou por várias vezes acertar no buraco.

Hank pôs os sacos numa mão e tirou-lhe a chave da mão. À primeira tentativa, inseriu-a no buraco.

Carly entrou dentro de casa e virou-se com a intenção de lhe dar com a porta na cara, mas ele foi a tempo de pôr um pé na abertura. Ergueu as chaves e as mercearias e esboçou outro sorriso.

— Esqueceste-te de alguma coisa?

Ele era um idiota convencido, controlador, arrogante e autoritário, e ela desejava nunca o ter conhecido. Olhou para os sacos de mercearias, onde estava a sua cura matinal para os enjoos. Depois de ter percorrido uma distância de oito quarteirões para obter os produtos, não ia deixá-lo ficar com eles.

Enfiou um braço pela abertura.

— Dá-me cá isso. Ele sorriu.

— Para depois dares-me com a porta na cara? Dentro do possível, preferia não ter de gritar em voz alta o que tenho para te dizer através do buraco da fechadura. Vamos fazer um acordo. Primeiro, convidas-me para entrar, depois dou-te os sacos.

Ela resmungou entre os dentes cerrados:

— Dá-me já isso ou eu...

— Ou eu o quê?

Carly sabia que seria infantil pôr-se a fazer ameaças que não podia concretizar, por isso resolveu gritar:

— Ou eu chamo a Polícia!

Ele baixou os sacos para olhar lá para dentro.

— Couves-de-bruxelas congeladas e... — inclinou a cabeça para ler um rótulo — chucrute? Não creio que isto me qualifique como ladrão. Arrisco, portanto.

De uma assentada, Carly passou de meramente zangada para absolutamente enraivecida.

— És impossível.

Continuando a bloquear a entrada com uma bota, pousou os sacos ao lado dele e relaxou os ombros, aparentemente preparado para ficar ali todo o dia se fosse preciso.

— Dás-me a honra de sair comigo para tomar o pequeno-almoço? Há um IHOP 5 a poucos quarteirões de distância que tem umas panquecas fabulosas, um óptimo café e montes de gente. Podíamos falar sem chamar a atenção.

Só a ideia de comer uma panqueca lhe dava vómitos.

— Não, não vou fazer isso. Só quero que me dês as minhas coisas e que te vás embora.

— Estava com receio de que fosses dizer isso.

Antes de ela ter tempo para adivinhar o que é que ele queria dizer com isso, ele apoiou um ombro contra a madeira e conseguiu entrar. Recuando, Carly pôs-se a olhar para ele com uma cara de estúpida, enquanto o via a fechar e a trancar a porta.

— Sai! — gritou. — Não podes entrar aqui dessa maneira. Ele examinou a sala, como se estivesse à procura de reforços.

— Com que arma é que me vais deter? — Enfiou-lhe a chave no bolso e colocou-lhe os sacos de mercearias nos braços. — Tentei fazer as coisas da forma mais correcta, Carly. Agora temos de ir pelo caminho mais difícil. Resultado final, vamos ter mesmo de falar.

— Só digo mais uma vez. Sai daqui.

— Desculpa, querida, mas isso não vai acontecer. Verás o que é a teimosia depois de te aviares comigo.

Carly teve uma vontade louca de lhe bater com o saco que tinha os frascos de chucrute.

— Achas que vais conseguir alguma coisa, forçando dessa maneira a entrada no meu apartamento? Acreditas, com toda a sinceridade, que tal comportamento far-me-á sentir mais inclinada a falar contigo? O que esperas provar, que és maior do que eu?

— Se tiver de provar que sou maior do que tu, estaremos ambos envolvidos num grande sarilho.

Carly não sabia muito bem até onde ele queria chegar. Ele não se ofereceu para dar qualquer tipo de explicação, optando por cruzar os braços musculados.

— Quanto às tuas inclinações, não estou minimamente interessado, neste momento, em saber se vais falar ou não. Eu tenho muito para dizer.

Ela não gostou do tom utilizado.

— Vai lá dentro e arruma a comida — sugeriu-lhe ele com simpatia. — Eu não te interrompo. Posso falar enquanto tratas das coisas.

Carly fez um inventário mental das suas alternativas e depressa chegou à conclusão de que não havia nenhumas. Tinha um homem imponente e determinado na sua sala de estar, bloqueando a única saída. Nem pensar em fazer-lhe frente. Para piora ainda mais as coisas, lembrava-se com azedume da forma fácil como ele lhe pegara pelos braços e a largara no assento de trás da carrinha, naquela noite. Será que ela queria realmente iniciar uma luta física?

A resposta era não, mas talvez não a pudesse evitar.

Virou-se e dirigiu-se para a cozinha, consciente do facto de ele ter ido na sua peugada. As mercearias bateram com estrondo na bancada quando ela pousou os sacos.

— Então, começa a falar. Tens cinco minutos. Se não estiveres lá fora depois disso, chamo a Polícia. — Ela olhou de forma incisiva para o telefone. — Não cometas o erro de pensar que não o farei. A minha paciência está a chegar ao limite.

Encostando um ombro à parede que dividia a cozinha da sala de estar, Hank olhou lentamente para o telefone de parede, depois tirou o chapéu e atirou-o para o sofá da sala. A ausência de chapéu retirava-lhe alguns centímetros de altura, mas isso não foi suficiente para fazê-la sentir-se mais confortável.

Passou com os dedos pelo cabelo para tirar a marca deixada pelo chapéu.

— Há alguma maneira de podermos recuar um pouco e começar tudo de novo?

— Não. Porquê? Não há qualquer possibilidade de melhorar uma coisa francamente desprezível.

Ela tirou uma embalagem de couves-de-bruxelas do saco, colocou o bloco quadrado de vegetais congelados numa taça, encheu-a até meio com água quente e levou-a ao microondas. Depois pôs-se a arrumar a outra comida. Deixou um frasco de chucrute e uri pacote de leite com chocolate em cima da bancada.

— É esse o teu pequeno-almoço?

— Se não estás interessado em saber acerca dos meus hábitos de alimentação, bem podes sair pelo mesmo sítio por onde entraste.

Ele suspirou e encostou o corpo à parede: para poder cruzar os tornozelos. Nunca, como naquele momento, o apartamento lhe parecera tão pequeno. Carly não tinha muita prática em avaliar a altura das pessoas, mas achava que ele devia ter muito mais do que um metro e oitenta. O seu corpo bem constituído mas delgado fazia com que elai e tudo o mais, incluindo o frigorífico, parecessem anões ao pé dele.

Depois de ter tirado a tampa do chucrute, agarrou num garfo e começou a comer. Não tinha outra hipótese. Se não pusesse qualquer coisa no estômago não tardaria a estar de joelhos na casa de banho, venerando a deusa de porcelana toda a manhã.

Entre várias garfadas, disse:

— Então? Começa a falar. O tempo voa. Cinco minutos. É tudo. Depois terás de sair daqui, a bem ou a mal.

Ele olhou de novo para o telefone, a pouca distância do braço.

— Eu e tu estamos metidos no mesmo barco — principiou ele calmamente. — Seria muito mais proveitoso se pudéssemos resolver as coisas de uma forma que fosse do agrado de ambos.

Carly levou o garfo à boca com mais chucrute, olhando para ele enquanto mastigava.

— Não quero ter nada em comum contigo. Poderei apanhar alguma coisa.

Ele atreveu-se a sorrir.

— Não há perigo. Costumo usar sempre protecção. — Recuou quando o olhar dela o fez aperceber-se do que dissera. — Foste o meu único deslize.

— Isso é o que tu dizes.

— Se estiveres mesmo preocupada com a possibilidade de teres contraído uma doença venérea, poderei fazer um teste e mostrar-te os resultados.

Carly ficara preocupada com essa possibilidade, mas nunca iria admiti-lo à frente dele. Ele ficaria a saber que ela passara horas infinitas obcecada com o encontro. Ele que pensasse que nunca tinha permanecido na cabeça dela.

— Uma doença venérea é a última das minhas preocupações neste momento. — Acentuou a frase metendo mais chucrute na boca.

— Eu sei. É por isso que temos uma longa conversa pela frente.

O microondas apitou. Carly tirou as couves-de-bruxelas para fora e começou a devorá-las com um ar esfomeado, alternando cada garfada com uma enorme quantidade de chucrute. De vez em quando, agarrava no leite com chocolate e bebia um gole. Não queria saber se o leite lhe deixava um bigode no lábio superior. Esperava, sinceramente, que Hank se enojasse e saísse dali o mais depressa possível.

Não iria ter tal sorte. Ele continuava a observá-la, revelando uma expressão que denotava um misto de incredulidade e curiosidade alarmante.

— É por isso que tens enjoos matinais.

— Na verdade, até me alivia um pouco — disse ela, com uma couve dentro da boca. — E como é que sabes que tenho enjoos matinais?

Ele ficou momentaneamente perplexo com a questão. Depois, recuperou e disse:

— A maior parte das mulheres tem enjoos.

Carly estava tentada a interrogá-lo um pouco mais, mas achou que quanto menos participasse na conversa, melhor. Mesmo assim, não conseguiu resistir a dizer:

— Para quem estava tão determinado a falar comigo, pareces não ter lá muita coisa para dizer.

— Queria ver se começava por algum lado.

Carly foi até ao lava-loiça para humedecer um guardanapo de papel. Assim que se afastou dele, viu-lhe o rosto a transformar-se numa mancha escura de bronze. Depois de limpar a boca, regressou à refeição e disse:

— Os teus cinco minutos estão quase a acabar.

Ele acenou afirmativamente. O músculo maxilar começou a tremer-lhe. Carly lembrava-se de ouvir histórias em cassetes e tentar imaginar como seria um músculo a tremer. Agora, por fim, sabia. Evidenciava uma expressão zangada — e determinada — e um pouco intimidadora. Teve o pressentimento terrível de que Hank Coulter se encontrava numa missão e não iria sair dali sem a dar por concluída.

Finalmente, ele disse:

— Carly, vim aqui para te fazer uma proposta.

— Uma proposta? — Ela lançou-lhe um olhar cáustico e pôs mais chucrute na boca.

— Não esse tipo de proposta. — Enfiou os dedos nos bolsos da frente das calças de ganga, o que teve o efeito perturbador de fazer com que os seus ombros parecessem maiores. — Vamos olhar para a situação de forma racional. Está bem?

— Está a querer dizer que eu não estou a ser racional, Mister Coulter?

— Não, não estou a implicar que estejas a ser irracional — respondeu calmamente. — Foi uma má escolha de palavras. O que eu estou a dizer é que precisamos de olhar para esta situação de todos os ângulos, pensar nos potenciais problemas para os tentar resolver em função dos nossos recursos e tomar as decisões correctas quer para o teu bem, quer para o bem do nosso filho.

— Do meu filho — corrigiu ela.

Os seus olhos azuis começaram a brilhar.

— Do nosso filho. Eu sou o pai.

— Isso é o que tu julgas.

— Será fácil de verificar com um simples teste sanguíneo. Não te metas por aí. Desempenharei um papel activo na vida do meu filho, com ou sem a tua cooperação. Confia em mim quando digo que terás a vida facilitada se cooperares.

Carly fez um esforço para engolir uma couve. Durante um momento horrível, pensou que ia sufocar.

— Estás a ameaçar-me?

— Interpreta como quiseres. Eu sou o pai da criança e tenho certos direitos inalienáveis, para já não falar de responsabilidades. O Estado intervirá sempre em meu favor, sob esses dois aspectos. É do teu interesse não entrares em conflito comigo.

«Definitivamente uma ameaça.» O apetite de Carly pelos vegetais diminuiu drasticamente, deixando cair o garfo no frasco com um estampido.

— Os factos são estes.

Começou a enumerar uma lista de razões pelas quais ela precisava da sua ajuda, algumas das quais ele não podia forçosamente saber a não ser que alguém próximo lhe tivesse dado a informação. Carly estava a tremer quando ele acabou.

— Como é que sabes isso tudo?

— Fiz algumas investigações. Disse alguma coisa até agora que não seja verdade?

Carly limitou-se a olhar para ele.

— Agora, no que toca à minha parte. — Afastou-se da parede. — Não sou propriamente um homem rico, mas estou a conseguir fazer um bom dinheiro agora. Quebrei todas as minhas regras na noite em que te conheci e, como tal, dei cabo da tua vida de uma forma que poderá afectar todo o teu futuro.

— O meu futuro só a mim me diz respeito.

— Noutra situação, concordaria contigo. Mas agora que estás grávida do meu filho, tenho um interesse legal. É da minha responsabilidade zelar pelo bem-estar da criança, tanto a nível emocional como financeiro, e os teus sucessos e fracassos terão um impacto directo.

— Para um reles frequentador de bares, pareces levar a paternidade muito a sério.

Carly não tinha bem a certeza, mas quis-lhe parecer que os lábios dele tinham ficado da cor branca.

— Vou ter de conviver com isso, creio. — A sua maçã-de-adão movimentava-se como se estivesse a engolir uma das couves-de-bruxelas dela. — No entanto, por agora, vamos deixar o meu passado irregular de fora e concentrar-nos em resolver esta embrulhada.

Carly queria dizer que era a ela que lhe cabia resolver a embrulhada, mas já tinham navegado por essas águas.

— Eis os factos do meu lado da equação — prosseguiu ele. — Não poderei cobrir todas as tuas despesas relacionadas com a operação aos olhos, mais o custo do parto e o sustento da criança, ajudar-te com os estudos e pagar a tua alimentação se vivermos em casas separadas.

As últimas palavras ficaram a pairar no cérebro dela.

— Falaste em «casas separadas»?

— Não fiques preocupada enquanto não ouvires o resto.

— Estás a...? — Carly engoliu em seco e respirou calmamente. — Estás a sugerir que vivamos juntos? — Sentiu uma necessidade louca de dar uma gargalhada. — Não deves estar a falar a sério.

— Estou a falar muito a sério, mas não estou a sugerir que vivamos juntos. Estou a sugerir que cases comigo e quanto mais depressa, melhor.

Carly não queria acreditar no que estava a ouvir.

— O quê?

— Foi o que ouviste. E antes de começares a dizer que não, deixa-me acrescentar que podemos casar numa base temporária, um acordo provisório, por assim dizer, até tirares o mestrado. Até que isso aconteça, ponho-te no meu seguro, que cobre tudo, pago-te as despesas, ajudo-te a cuidar da criança para poder eliminar os custos de uma ama e garanto-te o transporte para a universidade. Também pagarei qualquer assistência suplementar de que possas vir a precisar para completar os estudos, se ficares cega.

Carly levantou uma mão para o silenciar, mas ele continuou a falar.

— Depois de obteres o diploma e fazeres a operação para recuperar a vista, dou-te algum capital inicial, dissolvemos o casamento e cada um irá à sua vida. Espero, claro, poder continuar a visitar o meu filho, cujo esquema será determinado pelo Estado. Também pagarei mensalmente uma pensão de alimentos, cujo valor terá por base o meu rendimento anual.

Um ardor ácido invadiu a garganta de Carly.

— Estás louco. O que é que te levou a pensar, por pouco tempo que fosse, que eu estaria disposta a casar contigo? — Envolveu a cintura com as mãos. — A Bess não tinha o direito de te contar isto tudo. Nenhum direito.

— Não culpes a Bess. Não te vou mentir e dizer que não conversámos. Conversámos. Mas não obtive toda esta informação através dela. Ela é uma amiga leal.

— Se ela é assim tão leal, como é que sabes que o meu seguro apenas cobre oitenta por cento? E que o meu pai vive no Arizona?

— Sou um perito em Internet. Com o software correcto podemos encontrar quase tudo, até o tipo de filmes que as pessoas alugam.

Carly não acreditou nessa. Ele sabia demasiados pormenores que só podiam ter vindo da parte de Bess. E, oh, como isso magoava. Como se ele tivesse pressentido os seus pensamentos, disse:

— A Bess é tua amiga, Carly. Ela preocupa-se muito contigo. Talvez tenha deixado escapar algumas coisas, mas só por se preocupar contigo e com o bebé.

— Os teus cinco minutos acabaram — disse ela com nervosismo. O músculo maxilar de Hank começou a tremer de novo.

— Não vou sair daqui até deixarmos tudo isto resolvido.

— Vais, vais. Eu e o meu filho não temos nada a ver contigo.

— Estás errada. Do meu ponto de vista, não me parece que estejas em condições de poder sustentar convenientemente o meu filho.

Carly agarrou no telefone.

— Sai. Se não saíres, chamo a Polícia. Ele não se mexeu.

— Estou a falar a sério, Hank. — Olhou para a tecla com o número. Precisava de marcar o 911. Onde é que estava o nove?

Antes de ela ter tempo para fechar os olhos e marcar pelo toque, Hank carregou no botão de descanso do auscultador.

— Espero realmente que possamos discutir isto como dois adultos e chegar a um acordo.

A fúria de Carly aumentou.

— Fazes alguma ideia de quantas mulheres ficam grávidas anualmente e não se casam com os pais dos filhos? Ninguém diz que são irrazoáveis.

— Essas mulheres não estão perante as mesmas circunstâncias. Poderás perder a visão outra vez, Carly.

«E ficar de alguma forma cega faz de mim uma pessoa menos capaz?» Até a sua melhor amiga se virara contra ela. As lágrimas inundaram os olhos de Carly.

— Só quero facilitar-te as coisas e poder proporcionar o melhor para o nosso filho.

— Já disse uma vez, e volto a repetir, que não preciso ou quero a tua ajuda.

Ele manteve a mão no descanso do auscultador para impedir que ela fizesse a marcação.

— Queria evitar isto, mas não tenho outra hipótese. Carly olhou para ele com um ar preocupado.

— Achas que me vou afastar, sabendo que o meu filho poderá nascer no meio da penúria por causa de uma mãe cega? Ou casas comigo e manténs o casamento até atravessares mau bocado que eu provoquei, ou irei pôr um processo no tribunal pela custódia do meu filho.

O sangue esvaiu-se do rosto de Carly. O seu corpo parecia subitamente borracha fria. A sua mão escorregou de forma entorpecida do telefone. Deixou-se ficar de braços estendidos; pesados e inertes, ao longo do corpo.

— Não deves estar a falar a sério?

— Experimenta.

Hank sabia que tinha poucas hipóteses de ficar com a custódia. Era uma encenação, nada mais. Só esperava que Carly não se apercebesse disso.

— Odeio-te — murmurou ela.

Hank não duvidava que ela o odiasse. A sua palidez repentina fê-lo sentir-se como um grandessíssimo sacana. Também se apercebeu de que a ameaça a assustara. Por um lado, lamentava o sucedido, mas, por outro, sentia-se aliviado. Alguém tinha de a ajudar a passar por isso e essa pessoa só podia ser ele.

As verdadeiras emoções de Carly apareceram-lhe reflectidas nos olhos, enquanto o observava com incredulidade, surpresa e medo numa luta com uma raiva cada vez menor.

— Sai daqui — murmurou ela com um ar miserável.

Hank tirou a mão do descanso do telefone. No momento em que atravessava a sala de jantar para recuperar o chapéu, disse:

— Não cometas o erro de pensar que não irei lutar pela custódia. Se não me deres outra hipótese, não pensarei duas vezes. — Uma vez na porta, parou e virou-se para olhar para ela. — Dou-te uns dias para pensares no assunto. Depois, entrarei em contacto. Está tudo dito, ou casamos ou contrato um advogado. A opção é tua.

— Vai e contrata um advogado! — ripostou ela. — Vê se me importo. Não podes tirar o meu filho. Não tens motivos para isso e hei-de lutar até ao meu último fôlego.

Hank saiu para o patamar. Antes de fechar a porta atrás dele, disse:

— Talvez tenha fundamentos, talvez não tenha. Caberá ao juiz decidir. Se quiseres entrar nesse jogo, avança. Enquanto te decides, lembra-te de uma coisa. Contratar um advogado e entrar num luta de custódia sairá muito caro. Eu posso pagar. E tu?

Hank fechou a porta e deixou-se ficar em cima do tapete de boas-vindas, lutando com a sua consciência. Ameaçar levar-lhe o filho era uma coisa muito reles de se fazer, e tudo nele se rebelava contra isso. Estava muito tentado a entrar lá dentro e dizer-lhe que não era isso que tencionava fazer. Mas havia outra alternativa? Deixar que ela lutasse para conseguir sobreviver, por qualquer meio, enquanto ele se afastava alegremente?

Enquanto permanecia ali, indeciso, Hank ouviu um soluço abafado vindo do interior do apartamento. Instantes depois, apercebeu-se do som de uma porta interior a bater, seguido por uma série de soluços que pareciam vir do quarto à direita do patamar. Olhou solenemente para a janela, imaginando Carly na cama, com o rosto pressionado contra a almofada.

Porque é que, indagava, esta mulher o fazia sentir-se extremamente culpado, mesmo com ele a tentar fazer o mais correcto? Agarrou no puxador e por pouco que não o rodava. Depois, no último instante, deixou cair o braço. O casamento era a melhor solução — a única solução. Se fosse lá dentro e retirasse tudo o que tinha dito, voltariam à estaca zero, com ela a recusar aceitar fosse o que fosse e a desligar-lhe o telefone de cada vez que ele ligava.

Hank não podia deixar que isso acontecesse. Quer ela admitisse quer não, precisava dele, e ele queria estar ao pé dela, de uma forma ou de outra. Se com isso ele a fizesse desprezá-lo, que se lixe.


Capítulo Nove

Carly estava no quarto quando Bess chegou a casa para o almoço, três horas depois. O som da porta da frente a abrir e a fechar alertou Carly para a chegada da amiga. Com os olhos inchados e o nariz entupido de ter estado a chorar, virou-se de lado e agarrou-se às costelas, temendo a discussão que estava para vir.

— Estás aí! Carly? Nem vais acreditar! Acho que consegui um emprego! E num consultório de dentista! Será perfeito para mim!

Bess abriu a porta e entrou no quarto. Quando viu o rosto de Carly, deteve-se.

— Meu Deus, o que se passa?

Carly pôs as pernas de um dos lados da cama e sentou-se. Perante o movimento repentino, o sangue subiu-lhe à cabeça e parecia que as suas têmporas iam explodir. Depois de ter olhado silenciosamente para a amiga, durante alguns segundos, disse:

— O Hank esteve aqui. Bess aproximou-se.

— Oh, Carly, os teus olhos. Dá para ver que tiveste outra enxaqueca. Vou buscar gelo.

— Não, por favor. — Carly pôs-se de pé. — Preciso de dizer umas coisas.

— Dizer o quê?

— Somos amigas desde os cinco anos — disse-lhe Carly. — Pensei que podia confiar plenamente em ti.

— E podes.

— Foste contar tudo ao Hank... acerca da possibilidade de a minha visão poder vir a falhar, de como tenho andado doente, da cobertura do seguro, das minhas finanças, do meu pai, tudo. Mais, acredito que o encorajaste a usar a informação contra mim.

Bess ficou pálida.

— Para crédito do Hank — prosseguiu Carly —, ele tentou cobrir-te ao máximo, mas muitas coisas do que ele disse só podiam ter vindo directamente da tua boca. — Carly sentiu as lágrimas a resvalarem-lhe novamente pelo rosto. Afastou-se pestanejando. — Ele diz que és uma amiga leal e tem razão. Tens sido uma amiga leal. — Uma sensação de aperto na garganta de Carly forçou-a a engolir em seco para que pudesse prosseguir. — Até agora.

— Oh, Carly.

— De início, fiquei zangada. Mas agora... — Carly fez um gesto desesperado com as mãos. — Porquê, Bess? Porque é que me fizeste isto?

Os olhos de Bess ficaram subitamente brilhantes. Sentou-se na cama, como se toda a sua energia lhe tivesse escapado pelas pernas.

— Fiz o que achei que tinha a fazer. E, para que conste, não o fiz a ti, fi-lo por ti.

Carly encostou-se à parede.

— Ele ameaçou retirar-me o bebé. Diz que tentará obter a custódia se eu não casar com ele.

Um sentimento de culpa atravessou o rosto de Bess.

— Sabias? — Não era propriamente uma questão.

— Não discutimos pormenores, mas disse-lhe para deixar de aceitar o não como resposta. Quando à custódia, fui eu que lancei a ideia. Deve tê-la aproveitado para os seus fins.

Carly sentiu o coração a ficar destroçado.

— Disseste-lhe para ficar com o meu filho?

— Espero que não chegue a esse ponto. Quanto à sugestão, sim, fui eu que a dei. Que outra hipótese é que ele tem? Precisas de ajuda, Carly, mas és demasiado teimosa para aceitá-la. Sempre admirei essa característica em ti. Conseguiste fazer coisas que a maior parte dos cegos nunca se atreveria a fazer e acho que és uma mulher fantástica. Mas estás a levar a independência demasiado longe desta vez.

— Não te cabe a ti decidir isso. É a minha vida.

— Não, já não é. Tens de tomar decisões por dois, agora. E não tens estado a tomar as mais sábias.

— Não tens o direito...

— Oh, sim. — Bess pôs-se de pé. — Adoro-te, Carly, e vou adorar o teu filho. Mais, conheço-te melhor do que tu própria às vezes. Compreendo e respeito a tua necessidade de fazer tudo por ti. Mas chega. A teimosia não enche os armários de comida. Não providenciará sustento para o bebé se adoeceres. Não te pagará as propinas da universidade. Não te pagará os prémios mensais do seguro, nem os honorários em falta dos serviços médicos, que hão-de começar a aparecer. Mais, não pagará uma operação à vista no próximo Verão. Já pensaste nisso? O que tencionas fazer, ficar cega durante vários anos até conseguires poupar o suficiente para outra operação?

Carly sentiu uma sensação de submersão a apoderar-se-lhe do estômago.

— Ainda nem sequer marcaste uma consulta pré-natal — acusou Bess.

— Errado — retorquiu Carly. — Telefonei para marcar uma consulta no próprio dia em que me ligaram a confirmar a gravidez. Só que não pude obter a confirmação de imediato e esqueci-me de te dizer.

— Óptimo. Fico contente por saber. Mas, fora isso, ainda não estás a pensar acerca do bebé da forma mais correcta — prosseguiu Bess com dureza. — Não propriamente. E mais, não estás a ser realista.

— Há mulheres grávidas que têm os seus filhos sozinhas — argumentou Carly.

— Há mulheres grávidas que não se vêem confrontadas com o mesmo tipo de problemas. Acorda, Carly. Não se trata de quereres chegar à meta com os braços erguidos num gesto de vitória.

Bess virou-se para deixar o quarto. Carly olhou para ela, atónita, ferida e procurando fazer um esforço para não chorar.

— É do meu filho que estamos a falar! Bess parou junto à porta.

— Precisamente, por isso começa a pensar como uma mãe. O ultraje levou Carly a seguir Bess até à sala de estar.

— Não me vou prostituir num casamento sem amor.

Bess sentou-se no sofá, dobrou as pernas e enfiou os pés por debaixo dela.

— É isso que pensas, que o Hank irá fazer exigências físicas?

Carly pôs os braços na cintura.

— Estaremos casados. E se ele achar que todas estas despesas lhe dão direito a ter algum tipo de compensação? Não quero passar por isso outra vez!

Bess arqueou as sobrancelhas.

— Como é que sabes que não irias gostar?

— Gostar? — Só o pensamento de voltar a sentir essa dor fê-la sentir um aperto nas entranhas. — Deves estar louca. Nunca, estás a ouvir? Nunca.

— Nem sequer se isso significar manteres o teu filho? Deve ter ocorrido uma química bastante forte entre os dois, nessa noite, caso contrário nunca te terias metido nesta alhada.

— Oh, por favor. Ele comportou-se como um idiota esta manhã, forçando a porta para entrar, recusando-se a sair e fazendo ameaças.

— E de quem é a culpa? Ele só estava a tentar ser simpático. E tu não lhe deste qualquer oportunidade.

— Não acredito que estejas do lado dele!

— Estou do teu lado, Carly. E do bebé. Na minha óptica, o Hank é a tua única salvação. Se recusares aceitar a sua ajuda, o que é que vais fazer, viver à custa de subsídios e pedir dinheiro emprestado ao teu pai para lutar contra o Hank no tribunal?

— Sabes que eu nunca poria o meu pai ao barulho. Se ele pensasse, mesmo por um segundo, que eu podia ficar sem o meu filho, venderia tudo o que tem e encher-se-ia de dívidas para impedir que isso acontecesse. Ele já fez muitos sacrifícios por mim.

— É o que os pais fazem, sacrifícios — disse Bess suavemente. — Talvez devas seguir o seu exemplo e pensar em fazer alguns também.

Hank inclinou-se sobre a mesa de bilhar de Zeke, visou o alvo com cuidado e preparava-se para dar uma tacada quando o telemóvel tocou. Deu um salto. Em vez de atingir o alvo, a bola branca fez um ângulo para a esquerda, bateu na bola número oito e caiu atrás dela na bolsa do canto.

— Bem, merda.

Zeke quase que se engasgava com o riso.

— Salvo pelo telefone. Pensei que ias ganhar-me e ficar com os meus dez dólares.

Hank tirou o telemóvel do cinto.

— Sim, Hank.

— Hank? — exclamou uma voz de mulher trémula.

Hank olhou de forma significativa para o irmão, depois levantou os ombros e virou-se de costas para a mesa.

— Carly?

— Sim. Eu, hmm... preciso de falar contigo.

Só havia uma razão para ela lhe estar a ligar; decidira aceitar a proposta. Em certa medida, só lhe apetecia respirar de alívio, mas, por outro lado, ficou apreensivo com a sua voz trémula. Não era claramente uma coisa fácil para ela.

Aproximou-se da porta de vidro deslizante para tentar abafar o som da televisão e desviar-se do olhar curioso do irmão.

— Não há problema. O que é que estás a pensar?

— Estou a ver que estás ocupado. Posso ligar mais tarde?

Ela parecia verdadeiramente disposta a levar esta ideia por diante. Hank agarrou melhor no telemóvel. O aparelho era demasiado pequeno para a sua mão e teve de ver aonde é que estava a pôr os dedos.

— Não estou ocupado, querida. — Assim que a palavra carinhosa lhe saiu dos lábios, contraiu-se. A última coisa que queria era assustá-la. — Estou só a passar o tempo em casa do meu irmão Zeke. Não podias ter escolhido melhor altura para falar.

— Oh. — Seguiu-se o silêncio. — É muito tarde.

Hank olhou para o relógio. Eram dez e trinta, não propriamente hora de ir para cama.

— O que estás a pensar? — perguntou ele de novo.

— Eu, hmm... bem, não sei bem como começar. Dava para ver que não sabia.

— Também tive dificuldades em estabelecer o diálogo contigo, diz o que tens a dizer e depois se verá.

Mesmo através da linha telefónica, conseguia sentir a sua tensão frágil.

— Eu, bem, estive a pensar numa série de coisas... sobre a tua proposta. Tal e qual como ele pensara. Sentiu o corpo a ficar tenso.

— E?

— Estou a começar a achar graça à ideia, apenas a achar graça, não te esqueças, de levar isto por diante.

Toda a rigidez acumulada na coluna de Hank desapareceu. Se ela estava a começar a achar graça à ideia, era apenas uma questão de tempo até concordar.

— Estou a ver — respondeu ele, fazendo um esforço para não deixar que a sua voz demonstrasse mais satisfação.

Ouviu um restolhar de papel.

— Gostaria de introduzir duas cláusulas. Pareceu-lhe que ela tinha feito uma lista.

— Oh? Que tipo de cláusulas?

— Em primeiro lugar, quero que fique claro que te pagarei assim que puder. Não posso aceitar o teu dinheiro assim sem mais nem quê.

Hank duvidava que ela fosse financeiramente capaz de o reembolsar, e não esperava, de maneira nenhuma, que ela o fizesse, mas esse pequeno detalhe podia ser limado mais tarde. Se isso a fizesse sentir-se melhor, quem era ele para se pôr a discutir. — Está bem. Claro. Por mim, tudo bem.

— Quero um registo de todos os teus gastos — salientou ela. — Quando nos divorciarmos, deduziremos o que terás pago para sustentar a criança durante esse tempo e ficar-te-ei a dever o restante. Elaboraremos um plano de pagamento mensal, algo acessível, e acabarei por pagar a dívida.

Era óbvio que pensara bastante neste assunto. Nada de favores especiais. Por mais frustrante que a teimosa dela pudesse parecer, admirava-a por isso. Muito boa gente passava a vida inteira de mão estendida, esperando nunca ter de pagar nada. Carly tinha problemas em aceitar o que quer que fosse, mesmo que lhe fosse enfiado pela garganta abaixo.

— Claro. Farei isso. — Hank esperou um segundo, depois disse: — E?

— E, o quê?

Ele sorriu ligeiramente.

— Falaste em duas cláusulas. Qual é a outra?

Com uma voz abafada, ela disse qualquer coisa que ele não percebeu bem. Tapou a outra orelha para bloquear o barulho da televisão.

— Repete lá?

— Nada de sexo — repetiu. A electricidade que passou através do fio fez com que a nuca de Hank ficasse toda arrepiada. — Não quero que venhas ter comigo daqui a três meses para falar sobre as injustiças do nosso acordo. Nada de sexo, ponto final, em tempo algum.

Hank coçou o rosto ao lado do nariz e aclarou a garganta. Até agora, não pensara nos aspectos específicos do acordo. Concentrara-se tanto em fazer com que ela concordasse que nada mais lhe parecera importante.

— Estou a ver — disse ele.

A sua voz ficou ainda mais trémula, se é que isso era possível.

— Não pareces lá muito contente com o facto.

Hank olhou distraidamente pela janela, vendo as sombras que cobriam o pátio de Zeke.

— Não estou propriamente descontente. Preocupado seria uma palavra melhor. — Olhou para o irmão, que estava a juntar cuidadosamente as bolas de bilhar no triângulo de modo a não fazer barulho. — Compreendo que este acordo esteja fora do que seria normal para ti. Também partilho das tuas reservas. Mas, para o bem do nosso filho, tinha esperança de que pudéssemos, pelo menos, manter um espírito mais aberto.

— O que é que queres dizer com isso?

Hank olhou para o irmão outra vez. Zeke tinha acabado de juntar as bolas e estava agora extremamente interessado na conversa de Hank.

— Que esperava que pudéssemos tentar fazer com que a nossa relação funcionasse — explicou Hank. — Tens de admitir que seria muito melhor para o nosso filho se acabássemos por ficar juntos.

— Não disseste nada sobre isso esta manhã — contrapôs com uma voz estridente. — Disseste que eu podia refazer a minha vida assim que obtivesse o diploma e fizesse a operação aos olhos.

— Poderás sempre refazer a tua vida. É uma coisa implícita, não achas? Estou só a considerar as possibilidades. Odeias-me assim tanto a ponto de achares inconcebível poderes vir a gostar de mim?

— Sim.

«Bolas para isto.» Hank encostou a testa ao copo fresco. Respirou fundo e de forma pausada. Precisava de manter a calma e dizer as coisas certas. Apesar de tudo, a resposta pronta e o pânico contido na voz de Carly eram sérios motivos de preocupação.

— Carly, uma resposta honesta, está bem? Foi assim tão horrível para ti, naquela noite, para que tenhas medo de fazer sexo comigo de novo?

— Sim — disse ela vagamente.

A televisão ficou subitamente silenciosa. Hank olhou por cima do ombro e viu Zeke com o comando do outro lado da mesa. Era óbvio que o irmão de Hank não queria perder pitada da conversa. Hank voltou a encostar a testa ao copo.

— Lamento o rumo que as coisas tomaram naquela noite — disse ele, tentando falar o mais baixo que podia. — Nunca saberás como lamento, Carly. Daria o meu braço direito para poder recuar no tempo e tratar-te da maneira que mereces, fazer tudo como deve ser.

— Ámen — entoou Zeke suavemente.

Hank desejava que o seu irmão mantivesse a boca fechada ou, melhor ainda, desaparecesse dali.

— Não quero falar sobre aquela noite — disse Carly, com a sua voz denotando alguma frustração. — Quanto a essa história de nada de sexo, devia ter pensado que não irias concordar.

— Não é que não concorde — clarificou Hank. — Se não pusermos aquela noite para trás das costas e começarmos tudo de novo então é óbvio que nunca faremos sexo. Só que não quero ficar preso a premissas que excluem qualquer possibilidade de o nosso casamento poder funcionar. É tudo.

— Nada de sexo? — Zeke falou quase num murmúrio. — Deus do céu. Tem cuidado com o que prometes, maninho. Dois anos é muito tempo.

— Bem, compreende uma coisa! — gritou Carly ao ouvido de Hank. — Não sei se estou disposta a fazer um acordo que possa, compreensivelmente, virar-se contra mim. Pensei que podíamos fixar algumas regras básicas.

Hank recuou no tempo e tentou pôr-se do seu lado. Ele achava com toda a justiça que ela tinha razões legítimas para se precaver. Ela não sabia muita coisa acerca dele. Se ele era um sacana de marca maior — e o facto é que lhe dera poucas razões para pensar o contrário —, era fácil de perceber que tinha a vantagem física do seu lado.

— Que seja, então.

— Que seja o quê?

— Fixemos algumas regras básicas. Estou disposto a prometer-te que nada, absolutamente nada, poderá acontecer entre nós que não seja da tua vontade.

— Isso é que é falar — foi o voto de aprovação de Zeke.

— Como é que sei que estás a falar a sério? — perguntou Carly.

Com os nervos em franja e a tensão a aumentar, Hank passou com uma mão pelo rosto.

— Se a minha palavra não for válida, não tens qualquer garantia de que eu vá cumprir as promessas feitas até agora.

— Como se eu não soubesse isso! — exclamou ela.

A admissão do facto fez com que Hank se pusesse a pensar na precariedade que este acordo podia ter para ela. Por isso é que ela tinha a voz a tremer.

Hank encostou o ombro à estrutura deslizante. Queria lá saber se Zeke estava a ouvir. Tornar as coisas difíceis não podia ser bom para ela — ou para o bebé.

— Carly, querida, ouve-me. Está bem? — Hank apercebeu-se de que usara outra palavra carinhosa e também não quis saber disso. Ouvira o pai usar palavras carinhosas durante toda a sua vida. O seu uso era tão natural para Hank como abrir a porta a uma senhora ou puxar de uma cadeira. Havia também o facto incontornável de Carly nunca vir a conhecê-lo verdadeiramente se ele continuasse a medir todas as palavras e a fingir ser alguém que não era. — Estás a ouvir?

— Sim — disse com uma voz fraca.

— Na minha família, a palavra de um homem é sagrada. Não faço promessas à toa, especialmente a uma senhora. Se isso acontecesse, o meu pai e os meus quatro irmãos fariam fila para me darem um pontapé no rabo.

— Eu seria o primeiro — inseriu Zeke com uma risada áspera.

— Oh — murmurou Carly.

Hank duvidada que ela acreditasse nele. Até ela conhecer a sua família e ficar a conhecê-lo melhor, não se devia sentir muito à vontade com toda esta situação. Desejava saber como remediar isso, mas algumas coisas não podiam acontecer da noite para o dia. Ganhar a confiança numa relação era uma delas.

Entretanto, não estava disposto a aceitar uma situação que o deixasse de mãos atadas. Talvez ela tivesse razão, e as suas hipóteses de fazer com que o casamento resultasse fossem escassas ou inexistentes. Ao mesmo tempo, recordava-se da forma terna como ela reagira aos seus beijos naquela noite fora do bar. Existira realmente alguma paixão entre eles. Ele só precisava de uma oportunidade para reacendê-la. Nesse caso, quem é que diria que não poderiam ficar juntos?

— Eu sei que não te dei muitas razões para acreditares em mim, mas não sou um tipo assim tão mau.

Zeke desatou a rir. A afirmação foi recebida com silêncio do outro da linha — um silêncio condenador.

Hank mudou de posição e apoiou a anca na ombreira da porta.

— Juro-te, de alma e coração, que nada acontecerá entre os dois que tu não queiras que aconteça, Carly. Se pensares nisso, não é tão sólido como a tua cláusula? Os mesmos resultados, palavras diferentes. Nada de sexo contra a tua vontade.

— Não me parece muito seguro — disse ela com uma voz frouxa.

— Se eu não sou um homem de palavra, então nada está seguro. Por muitas promessas que me obrigues a fazer, continuarás a não ter garantias nenhumas.

— Retiro o que disse — murmurou Zeke. — Não ficaste com o charme todo da família, maninho. Até eu conseguia fazer melhor do que isso.

Hank tapou o bocal com a mão.

— Calas-te ou não?

— O quê? — perguntou Carly com uma voz de surpresa.

— Não é para ti — assegurou-lhe rapidamente Hank. — O meu irmão está aqui e não pára de se meter na conversa.

— Ele está a ouvir?

«Merda.» Hank levou a mão à testa. Por falar em dores de cabeça motivadas pelo stress...

— Ele está na sala. Não está propriamente a ouvir. Mentiroso, mentiroso.

— Desculpa — Zeke recuou, encolhendo os ombros.

— Onde é que nós íamos? — perguntou Hank a Carly.

— Estavas a dizer que não havia garantias.

— Só se a minha palavra não valer de nada. Por outro lado, se ela for o vínculo que nos une, estarás tão segura concordando com a minha versão como eu estaria concordando com a tua.

Hank esperou que ela respondesse. Nada. Começou a temer que ela pudesse ter desligado. Na pior das hipóteses, a coisa mais importante é que ela tinha concordado em casar com ele. Talvez, achou, devesse aceitar a sua regra de nada de sexo e preocupar-se em fazer com que ela mudasse de opinião noutra altura.

Estava prestes a dizer-lhe isso quando ela interveio, proferindo num tom de voz abatido:

— Acho que é verdade.

Ao aperceber-se da sua falta de esperança, Hank sentiu uma sensação estranha e dolorosa no fundo da garganta. Desejava estar ao lado dela. Porquê, não sabia. Duvidava que a sua presença a pudesse confortar assim tanto.

— Carly, tens de confiar em mim — disse ele suavemente. — Juro, por Deus, que não te vais arrepender.

— Espero bem que não.

— Isso significa que chegámos a um acordo?

— Não tenho outra alternativa. — Ele ouviu-a a engolir em seco e a suster a respiração. — Se me levares a tribunal, o que é que o juiz vai pensar? Uma mulher grávida, possivelmente a ficar cega, forçada a pedir esmola e sem qualquer esperança de arranjar emprego? Não posso brincar com a custódia do meu filho.

Hank desejava profundamente não ter sido forçado a jogar aquela cartada. A verdade era que nunca pensara tirar-lhe a criança. O facto de ela ter optado por ficar com a criança, independentemente do custo que isso acarretaria para ela própria, era suficiente para saber que seria uma mãe dedicada e querida.

— Estou cansada — disse ela, arrastando a voz na última palavra. — Cansada de lutar contigo, cansada de lutar com a Bess. Desde que possa ficar com o meu filho, nada mais me interessa. Poderei sobreviver a tudo durante dois anos.

Hank não sabia lá muito bem o que sentir em relação a esta última declaração. Iria conseguir sobreviver a tudo? O que é que ela achava que ele ia fazer, saltar para cima dela assim que a visse com o anel no dedo?

— Quero tudo por escrito — acrescentou ela.

Ele pestanejou e concentrou-se de novo na conversa.

— O que é que queres por escrito, que não te vou pressionar a fazer sexo?

— Que não vais processar-me para tentares obter a custódia, depois do divórcio.

— Oh. Claro. Não tenho qualquer problema em assinar uma coisa dessas.

— Isso significa que terias problema em assinar um papel que dissesse que não me irias pressionar a fazer sexo?

Sem saber porquê, Hank sentiu vontade de sorrir. «Sexo, um destino pior do que a morte.» Só que não era assim tão divertido quando se punha a pensar no assunto. Era por culpa dele que ela se sentia assim.

— Não, claro que não. Queres por escrito, eu escrevo.

— Muito bem. Fico contente. — Silêncio. Depois, com uma voz cansada, perguntou: — Tratas disso?

Hank pensou no assunto. De certo modo, não se conseguia ver a arranjar um advogado para preparar um documento desses.

— Sim, trato.

Ela suspirou, denotando uma certa exaustão. Assim que resolvessem toda esta trapalhada, ele poderia velar para que tudo lhe corresse de feição, com tudo mais calmo na vida dela, as dores de cabeça poderiam desaparecer e os enjoos matinais diminuir de intensidade.

— E agora? — perguntou ela de súbito. — Vamos, hmm, casar dentro em breve?

— O meu seguro tem um período de carência de três meses para condições preexistentes. Quanto mais depressa ficares sob a sua alçada, melhor.

Se alguma coisa correr mal antes disso, haverá logo uma co-participação adicional de vinte por cento e os teus prémios mensais ficarão igualmente mais dispendiosos. — Fez um esforço para organizar os seus pensamentos — A primeira coisa a fazer é pedir a certidão de casamento. Teremos de ir à conservatória para preencher os papéis. Estava a pensar numa cerimónia civil. Não te importas, pois não? Mas também podemos casar pela igreja, se preferires.

— Não, não quero uma cerimónia espiritual. Isso pareceria um compromisso para toda a vida. É apenas um acordo provisório, bem vistas as coisas. Além disso, os casamentos pela igreja ficam sempre mais caros. Se não contivermos as despesas, terei de passar o resto da minha vida em dívida para contigo.

Alerta vermelho. Hank não estava com disposição para começar a contar os tostões e a cortar em tudo só porque ela não queria ficar com uma grande dívida. Estava quase para abrir a boca, mas lembrou-se da teoria dos obstáculos de Bess, e conteve a língua. Seria um assunto a discutir depois.

— Muito bem. Nada de exageros. Mas precisamos de arranjar testemunhas.

— Tens alguém em vista?

— Acho que a minha família quererá estar presente. Importas-te?

— Vou ter que os conhecer, mais cedo ou mais tarde. Poderei passar por isso.

Hank tentou imaginar os seus pais e irmãos a apertarem-lhe a mão com toda a formalidade, depois do casamento, para a seguir desaparecerem da fotografia. Isso não ia acontecer. Os Coulters dariam grande importância ao casamento, mesmo que fosse uma cerimónia civil, e passariam a considerar Carly como membro da família no preciso momento em que Hank pusesse o anel no dedo. Não ia haver nada do tipo «passar por isso», pelo menos com eles.

— Estás a pensar em convidar a Bess? — perguntou ele.

— Eu, hmm... sim, se não te importares. — Ela continuava a demonstrar um certo nervosismo e hesitação. Hank desejava ter algo para dizer que a pudesse relaxar um pouco. — A Bess é como uma irmã para mim. Neste momento, estou um pouco zangada com ela, mas não poderei excluí-la.

— E o teu pai?

— O meu pai não tem dinheiro para poder comprar um bilhete de avião. O casamento não lhe dirá nada. Não vejo qualquer razão para convidá-lo e fazer com que se sinta obrigado a vir. Falarei com ele depois do casamento.

Um casamento que não dizia nada? Isso ia contra tudo o que havia regido a educação de Hank. O problema era seu, e por ele criado. Fora ele quem concebera esta loucura de plano.

— Muito bem. Ele deverá querer visitar-te quando o bebé nascer. Assim, não terá de suportar duas vezes o custo da viagem.

— Exactamente. E sentir-me-ei mais confortável se não houver muita confusão.

Hank apenas esperava conseguir convencer a sua mãe disso. Mary Coulter adorava dar festas e iria insistir certamente numa recepção.

— Tentarei saber, na segunda-feira, o que é preciso fazer — disse ele. — Depois entro em contacto contigo.

— Eu... Está bem. Fico então à espera. Segunda-feira, achas que consegues?

Hank não fazia a mínima ideia de quanto tempo é que iria demorar até ter tudo pronto, mas podia certamente mantê-la informada.

— Claro. Segunda-feira.

Ela terminou a chamada sem dizer adeus. Hank voltou a prender o telefone no cinto. Zeke estava atrás do bar, a misturar uma bebida para cada um.

— Então?

Hank atravessou a sala para se ir sentar num banco alto.

— Ela concordou em casar.

— Não me parece que estejas muito contente com o facto.

Hank pegou no copo que o irmão lhe estendera. Passou com o dedo pela condensação que entretanto se formara.

— Forcei-a a fazê-lo. Portei-me como um sacana.

— Por vezes, maninho, a vida não nos dá outra alternativa. Se uma mulher precisasse alguma vez de ajuda, eu nunca a negaria.

— Ela está preocupada com o facto de eu me poder vir a transformar num Romeu assim que ela disser «Quero».

— És humano.

Hank quase que sufocava com o uísque com Coca-Cola.

— Nunca me impus sobre uma mulher na vida. Não é agora que tenciono fazê-lo.

— Eu sei que nunca a forçarias, Hank. Mas o sexo é importante para um homem. O que vais fazer durante dois, talvez três anos? Dar umas curvas por aí?

Hank fungou.

— Não forçosamente. Serei um homem casado. Zeke acenou num gesto afirmativo.

— Exactamente. Não faz parte dos teus hábitos. O que te deixa de mãos atadas a não ser que ela aceite.

— Não vou entrar nisto com uma série de expectativas atrás das costas. Dei-lhe a minha palavra que não a iria pressionar a fazer sexo, e vou mantê-la.

— Claro que vais. Mas um homem tem necessidades físicas, quer queiramos quer não. Quando não são satisfeitas durante um longo período de tempo, até mesmo um tipo mais contido, o que não é o teu caso, tem dificuldades em passar por essa provação.

— Não sou displicente — retorquiu Hank.

— Também não és nenhum santo. Vivendo com uma mulher, estando perto dela o tempo todo, poderá ser terrível e dificultar a relação.

— Tentarei lidar com a situação da melhor maneira. — Hank rodou o copo entre as mãos. — Se os duches frios não funcionarem, irei até ao estábulo e ficarei a trabalhar até cair para o lado antes de me aproximar dela. Ela já sofreu o suficiente por causa de mim.

Zeke olhou para ele de forma incisiva.

— Estás a desenvolver sentimentos por essa rapariga?

— Sentimentos? Não propriamente. Ela deixaria qualquer santo frustrado.

— Estou a ver.

— Duvido. — Hank riu-se com alegria. — Ela é diferente de todas as mulheres que já conheci: difícil, irascível e... — Hank ficou sem palavras.

— E o quê?

— Doce — murmurou Hank. — Tão doce que devia ser chicoteado por ter chegado a pôr as mãos em cima dela.

— Doce? — Zeke sorriu, com o seu rosto magro a formar grandes rugas nos cantos da boca. — Bem, bem.

Ao aperceber-se do ar de gozo do irmão, Hank fez uma cara de ofendido e perguntou:

— O que queres dizer com isso? Levantando o copo, Zeke disse:

— Saúde, Romeu. És um homem perdido.


Capítulo Dez

Carly tinha acabado de dar um gole no chá de ervas, faltava um quarto para as onze de segunda-feira, quando o telefone tocou. Sabendo que seria provavelmente Hank, levantou-se da mesa de cozinha de um salto, como se alguém lhe tivesse espetado o corpo com um pionés. Depois, deixou-se ficar de pé, esfregando as calças de ganga com as mãos, relutante em atender. Ao quinto toque, encontrou coragem.

— Estou?

— Olá. — A voz profunda de Hank soou-lhe acolhedora e quase que conseguia ver o seu sorriso arrastado. A imagem provocou-lhe alguma irritação. Sem se dar ao trabalho de se identificar, ele perguntou: — Como vai a barriga esta manhã?

Normalmente, Carly não teria ficado perturbada com o facto de alguém querer saber da sua saúde, mas vinda da parte de Hank, a questão parecia intrusiva e pessoal, para já não dizer possessiva. Eira o seu aparelho digestivo, bem vistas as coisas.

— Bem — mentiu ela.

— Nada de náuseas? São boas notícias. Como vai a cabeça?

Ter dores de cabeça parecia agora quase normal. Só quando a dor se tornava excruciante é que ela se deitava.

— A cabeça também vai bem.

— Óptimo, óptimo. — Ouviu o som de algo a bater. Imaginava-o a tamborilar com uma caneta sobre uma superfície dura. — Acabei de falar para a conservatória. Já não é necessário fazer testes sanguíneos ou físicos no Oregon. Basta ir buscar uma licença, hoje ou amanhã, e marcar um encontro com o funcionário que vai realizar a cerimónia. Que tal marcar para sexta-feira à tarde?

— Para o casamento, queres tu dizer? — Carly não esperava que fosse tudo tão rápido. — Oh, já... Qual era a pressa?... É, hmm, já daqui a quatro dias.

— Eu sei, mas não há razão nenhuma para esperarmos. Podemos ficar já com tudo despachado.

«Despachado?» Carly despachava a roupa, as tarefas da casa. Unir-se legalmente a um homem que ela mal conhecia não se encaixava propriamente na mesma categoria.

— Estás bem? — perguntou ele.

— Sim — insistiu, embora não estivesse. Na verdade, estava horrivelmente nervosa, daquele tipo de nervosismo que fazia o seu coração bater a cem à hora e sentir a pele virada do avesso. «Sexta-feira?» Lembrou-se da forma urgente como ele tirara as roupas e espalhara o sémen pelas suas coxas, como a possuíra de forma tão ardente que nem conseguira atingir correctamente o alvo. Lá estava ele outra vez a correr para ultrapassar a meta. Que garantias é que ela tinha que ele ia manter as suas promessas depois do casamento? — Estou apenas... feliz.

Ele não disse nada durante algum tempo.

— Tenta não te preocupares muito com esta história do casamento. Está bem? Não quero que fiques com dores de cabeça por causa do stress. Pensa nisso como um aspecto técnico.

Como é que ele sabia acerca das dores de cabeça, para já não falar do facto de poderem ser provocadas pelo stress? «Bess.» E com quem é que ele achava que estava a brincar, ao dizer que devia pensar na cerimónia como um aspecto técnico? Ela ia casar com ele, não ia? Confinada a um rancho qualquer, não se sabe a quantos quilómetros da cidade, e sem poder conduzir. Ficaria totalmente dependente de Hank Coulter para tudo. O pensamento fê-la sentir-se um pouco incomodada. Estava acostumada a fazer tudo sozinha. Agora teria de abdicar de todo e qualquer controlo. Não haveria transporte público para o rancho, lojas por perto. Estaria isolada do mundo. Nem sequer sabia se teria acesso a um telefone.

— Já arranjei o tal papel, a propósito. Voltou a concentrar-se na conversa.

— O meu irmão Zeke testemunhou a minha assinatura. Nada de sexo contra a tua vontade. Nada de lutar pela custódia depois do divórcio. Também acrescentei uma cláusula acerca do capital inicial que prometi dar-te. Se houver mais alguma coisa que queiras ver incluída, diz-me. É fácil fazer alterações num computador e não há qualquer problema em voltar a assinar.

Só o facto de ele se mostrar tão disposto a acrescentar outras cláusulas foi suficiente para que Carly começasse a desconfiar. Se ele acreditava realmente que o documento era para ter efeitos legais, não devia mostrar-se relutante em incluir outras coisas para além das que tinham acordado?

— Por falar em acordo, qual seria a tua solução para esse problema?

— A minha solução para que problema?

Cerrou os dentes, indagando se ele estaria a ser deliberadamente obtuso.

— Ficar celibatário durante dois ou três aros. — A tensão fez com que o seu estômago começasse a andar às voltas. — Tencionas... bem, deves saber, continuar a fazer a mesma vida?

— Sair todos os fins-de-semana?

Era uma forma delicada de pôr a questão.

— Sim. É isso que tencionas fazer?

— Serei um homem casado — retorquiu ele, como se isso dissesse tudo. — Não vou desviar-me. Estaria a quebrar os meus votos de matrimónio.

Excelente. Ele seria todo dela, privado sexualmente e tudo isso.

— O que tencionas fazer então?

Outro silêncio, seguido por um suspiro de cansaço.

— O problema é meu, Carly. Confia em mim para dar a volta à questão. Não, o problema era dela. E ela não poria as mãos no fogo por ele. De acordo com a sua experiência, as pessoas que costumavam recorrer a tácticas secretas em determinadas situações tinham tendência para se comportarem de forma desonesta na primeira oportunidade.

Como se adivinhasse os seus pensamentos, ele disse:

— Carly, prometi-te que seria um casamento de fachada até tu quereres o contrário. Elaborei um documento, garantindo tudo por escrito. Que mais posso fazer para te fazer sentir melhor? Diz, que eu faço.

— Desculpa ter falado sobre isso — disse ela vagamente. — Estava só a... esquece. Esquece o que eu disse.

Sexta-feira. E se ele tivesse um temperamento vil? E se ele fosse um alcoólico? E se ele batesse nas mulheres? A lista de possibilidades era enorme. Naquela noite, no Chaps, parecera ser bom tipo, e Bess parecia confiar nele agora. Mas o que é que elas sabiam acerca de Hank Coulter? Nada. Se ele se embebedasse todas as noites da semana, ela só iria descobrir isso depois de ter casado com ele.

Ele interrompeu as suas reflexões, perguntando:

— Estás livre esta tarde, por acaso?

O seu coração começou novamente a bater.

— Livre para fazer o quê?

— Existe um período de espera, depois de se obter a certidão de casamento. Três dias, segundo me parece. Precisamos de tratar da papelada, hoje ou amanhã, para podermos casar na sexta-feira.

— Oh. — Carly puxou pela t-shirt velha e levou a mão ao cabelo, todo desgrenhado do sono. — A que horas esta tarde?

— Pode ser às duas?

Isso dava-lhe cerca de quatro horas.

— Se estás realmente com vontade de fazer isto, acho que às duas está bem.

— Vontade não me falta — disse ele com firmeza. — Poderei sentar-me ao teu lado para darmos uma vista de olhos sobre a minha situação financeira.

— Isso não será necessário.

— Tens a certeza? Poderás sentir-te melhor ao ver toda a situação e ficares a saber que não temos outra hipótese.

Carly duvidava que alguma coisa a pudesse fazê-la sentir-se melhor. Não tinha bem a certeza de estar a pensar racionalmente. Bess não parecia pensar assim. Talvez as suas hormonas estivessem num período crítico e ela estivesse a ser irrazoavelmente difícil.

— Tenho a certeza — conseguiu assegurar-lhe.

— Então às duas. Será que antes de desligares podíamos experimentar unia coisa?

— O quê?

— Podíamos tentar dizer adeus desta vez, como pessoas normais. Até agora, todas as nossas conversas ao telefone terminaram sempre contigo a desligar-me o aparelho na cara.

O tom jocoso que deixou transparecer na sua voz apanhou-a de surpresa, e por pouco que não sorria. Depois recompôs-se e firmou os lábios. Não se ia deixar enfeitiçar por ele outra vez. Ficar desprotegida perante Hank Coulter era perigoso.

— Gosto de desligar o telefone na cara. Dá-me uma satisfação perversa. Breve silêncio. Havia outro sorriso na sua voz quando ele disse:

— Sempre gostei de satisfazer as senhoras. De dar tudo por tudo. Carly sorriu, contrariamente ao seu desejo, enquanto pousava o auscultador no descanso sem se despedir dele.

Hank chegou à porta de Carly às duas horas em ponto. Bateu, três toques espaçados com o nó dos dedos, e depois limpou as botas no tapete, esperando que ela respondesse. Ouviu os sons de algo a bater no interior, depois aquilo que lhe pareceu serem pés descalços sobre a alcatifa.

Quando a porta finalmente se abriu, Carly deixou-se ficar na soleira, com três camisas na mão penduradas em cabides. Envergava uma t-shirt muito grande sobre uma saia azul com um padrão floral vermelho e cor-de-rosa. Hank reparou nos dedos pequenos e delicados dos seus pés descalços, nos tornozelos graciosos e numa pequena porção de pernas muito bem torneadas, antes de olhá-la no rosto. «Qualquer um podia arranjar pior num casamento por conveniência», pensou. Muito pior.

— Peço desculpa — disse ela. — Queria já estar pronta. — Afastou o seu belo cabelo. — Estou com um pequeno problema e, como a Bess não está cá, pensei que me podias ajudar.

— Que tipo de problema?

— Sou muito má a conjugar roupa. — Ergueu as camisas para ele as poder inspeccionar. — Qual delas fica melhor com a minha saia?

Uma das camisas era de um tom cor de laranja muito vivo com riscas roxas e verdes. Hank não queria acreditar que ela tivesse pensado em usá-la com uma saia florida. Apontando para a sua escolha, disse:

— Não sou nenhum perito em moda, mas se fosse a ti, usava a branca. Ela deu uma volta e retirou-se.

— Estou pronta dentro de dois segundos. Ele entrou e fechou a porta.

— Não te apresses por minha causa.

Assim que entrou no quarto, começou logo a tirar a t-shirt. Hank ainda obteve um vislumbre tentador de umas costas nuas e um braço esguio. Depois a porta do quarto fechou-se, impedindo-o de ver mais alguma coisa. Sentou-se no sofá à espera.

Dois minutos mais tarde, ela emergiu do quarto. Hank olhou para cima e suprimiu a custo um sorriso de apreciação. Carly esfregou a ponta do nariz, fazendo com que este adquirisse um bonito tom rosado.

— Obrigada pela ajuda. Estou bem assim?

Ela tinha um ar fabuloso. E parecia tão doce e insegura de si própria que ele desejava inundá-la de elogios. Não era uma boa ideia.

— Estás óptima. — Ele pôs-se de pé. — Se soubesse que a roupa era assim tão importante teria mudado de camisa.

Ela levou uma mão esguia ao peito. Depois recuou um passo.

— Tens razão. A saia dá um ar muito aperaltado. As calças ficavam melhor. É só mais um minuto para eu...

Hank estendeu uma mão para a agarrar pelo pulso.

— Estás muito bem assim — assegurou-lhe ele. — Estava apenas a brincar.

Ela ficou hirta com o toque. Hank libertou rapidamente a mão. Silêncio. Tentou pensar noutra coisa para dizer. Não lhe ocorreu nada de brilhante e por isso contentou-se com, «Bem, vamos?»

Carly esfregou o pulso que ele acabara de tocar como se tivesse ficado contaminado.

— Prontíssima.

— Precisas de levar a tua carteira.

— Claro. Tenho de levar o BI. Também preciso da certidão de nascimento?

— Não é necessário. Basta o cartão com fotografia.

Entrou na cozinha e regressou pouco tempo depois com uma pequena bolsa preta onde mal cabia uma carteira. Hank estava acostumado a ver mulheres envergando malas muito maiores. Tanto quanto lhe era dado a observar, ela não usava maquilhagem. Talvez isso explicasse o facto.

— Não levas muita coisa.

— O quê?

Ele abanou a cabeça.

— Nada. Vamos lá despachar isto.

Uma vez lá fora, ela fez um esforço para fechar a porta. Hank lembrava-se da teoria dos obstáculos de Bess e evitou oferecer-lhe ajuda. Enquanto permanecia no local, não pôde deixar de reparar nas mãos dela a tremer. Calculou que fossem nervos. Facto que o perturbou, pois sabia que era tudo por causa dele. Tentou lembrar-se daquela noite — mais especificamente do fim. As imagens que pairavam na sua cabeça eram vagas e extremamente confusas, culminando numa mancha negra. Infelizmente, a prova de que um doce é bom faz-se comendo-o, como o seu pai gostava de dizer. Quer se lembrasse quer não, ele fizera decididamente algo que fazia com que esta rapariga tivesse imenso medo dele.

O pensamento deixou-o sobressaltado. «Rapariga?» Ela tinha vinte e oito anos, bolas, e ele estava a ser parvo. Mesmo assim, enquanto permanecia ali inquieto, vendo-a a tentar fechar a porta à chave, não conseguiu pôr de lado o pensamento de que ela era tímida e hesitante como uma adolescente.

Ao fim de três tentativas, lá conseguiu finalmente enfiar a chave no buraco. Segundos mais tarde, quando ele tentou ajudá-la a entrar na carrinha, ela evitou as mãos dele e conseguiu fazer tudo sozinha. Depois de sentada, Hank fechou a porta e deixou que ela prendesse o cinto. Quando se sentou do lado do volante, reparou que ela estava tão hirta como uma tábua de engomar. Durante uns breves instantes, Hank não conseguiu imaginar o que poderia ter aumentado o seu nível de ansiedade para uns furos acima. Depois lembrou-se de que acontecera entre eles da última vez que ela tinha estado no veículo.

Enquanto avançava pelo trânsito, sentiu as mãos a transpirarem ao volante, fazendo com que o plástico se tornasse escorregadio. Olhou furtivamente para ela, desejando que ela dissesse alguma coisa.

Ela finalmente quebrou o silêncio com, «Que dia tão bonito!»

Grato por ter algo sobre o qual pudessem falar, Hank aproveitou a deixa para iniciar a conversa com um alívio absurdo.

— É o que Crystal Falls tem de bom. Imenso sol. Mais de trezentos dias por ano, em média.

— A sério? Que interessante. Em Portland está sempre a chover. Hank esteve quase para repetir, «A sério?», mas conseguiu controlar-se a tempo da troca de palavras não resvalar do absurdo para o ridículo.

— Sabes o que dizem acerca dos habitantes do Oregon? Nós não nos bronzeamos, nós tostamos.

Ela riu-se com uma voz estridente.

— Não é o que se passa aqui, no entanto.

— Não. Aqui ficamos com bronzeados genuínos e cancro de pele como todos os outros.

Hank parou num semáforo. Ainda extremamente tensa, mas tentando fingir o contrário, ela olhou para fora pela janela do passageiro.

— Adoro o céu aqui — disse ela. — É de um azul maravilhoso! Foi uma das primeiras coisas bonitas que vi, o céu do Oregon Central.

— Já estavas aqui quando fizeste a primeira cirurgia?

— Mudámo-nos para o apartamento, uma semana antes, e depois voltámos a Portland para a operação. Foi tudo feito um bocado à pressa, mas a Bess tinha de se fixar aqui para poder começar a ir às entrevistas o mais rapidamente possível. Ela espera vir a trabalhar a tempo inteiro, durante o resto tio Verão, e depois continuar a tempo parcial, logo que as aulas comecem.

Hank estava contente pelo facto de a sua amizade ainda estar intacta. Preocupara-se com o facto de a deserção de Bess poder ter provocado uma fractura permanente. Mas Carly perdoara a sua amiga pela traição e isso dizia-lhe mais acerca dela do que ela imaginava.

Alguns minutos mais tarde, depois de Hank ter encontrado um lugar de estacionamento para a sua longa carrinha na rua principal, Carly começou a dirigir-se à conservatória sem esperar por ele. Ele apressou-se a ir ter com ela. Depois agarrou-a pelos ombros e apontou para a esquerda, colocando-a entre ele e a frente da loja.

Perante o seu olhar inquiridor, ele disse:

— Desculpa. Um homem deve caminhar sempre pela parte de fora. As regras. do comportamento cavalheiresco, segundo o meu pai.

— Ele não ouviu falar do movimento feminista?

— O quê?

Ela revirou os olhos e recompensou-o com um sorriso que rivalizava com a luz do Sol.

Julguei que estava numa zona rural em comparação com Portland, mas não pode estar assim tão afastada da realidade.

— Depende das pessoas com quem nos damos. O meu pai era um rancheiro de terceira geração. Nós, rancheiros, temos a nossa maneira de pensar, especialmente acerca de mulheres.

— Oh?

Hank dispersou-se verbalmente para clarificar a afirmação.

— É um facto pouco conhecido, mas as mulheres rancheiras reclamam que foram elas a iniciar o movimento feminista.

— A sério? — Os seus olhos brilharam de entusiasmo. — Como é que elas sabem?

— Elas nunca precisaram de fazer piquetes para obterem direitos iguais. Ganharam-nos com o suor do rosto há um século. Vê a minha mãe, por exemplo. É difícil imaginar uma senhora mais distinta, mas ela safou-se como mulher de um rancheiro, tomando conta de nós e da casa, e indo ter com o marido sempre que ele precisava da sua ajuda. Vi-a lidar com touros, juntar o feno ao lado dos homens, cuidar de nós ao mesmo tempo e ainda alimentar vinte empregados ao final do dia. O meu pai diz que ela é uma grande mulher, e tem razão. Ela safou-o tantas vezes que nunca o ouvirás dizer que era o seu rancho ou o seu dinheiro. Cada um deles tem o seu próprio papel, claro, mas o pai vai para o campo, põe um avental e ajuda na cozinha tão depressa como ela põe as calças e as botas para ir lá para fora com ele. «O dever em primeiro lugar» era o seu lema, e distribuíam entre si toda a carga de trabalho.

— Parecem ser umas pessoas maravilhosas.

— Sim. A minha mãe é uma doçura de pessoa, e o meu pai, bem, irás conhecê-lo dentro de dias. É uma mistura curiosa de pensamento moderno e cortesia tradicional. Ele defende as mulheres independentes, mas ai do homem que as trate mal enquanto tentam subir na vida.

Quando chegaram aos degraus da conservatória ela disse:

— Estou tão nervosa que até sinto uma impressão na barriga.

— Por causa de uma certidão de casamento?

Carly passou a sua pequena bolsa de uma mão para a outra.

— Desejava, desejava realmente que houvesse outra solução.

Hank levantou a pala do chapéu para ver melhor o rosto dela. Quando ela olhou para ele outra vez, ele sorriu gentilmente.

— Vai tudo correr bem, prometo. Ela acenou e endireitou os ombros.

— Pois é. É a maneira mais prática de fazer as coisas. Estou certa disso. Ele só desejava que ela conseguisse relaxar minimamente. Apontou para os degraus largos.

Carly virou-se e começou a subir. Hank reparou na sua expressão concentrada, o que lhe pareceu ser um pormenor indicativo de que as subidas eram uma coisa difícil para ela.

— É o meu córtex visual — explicou ela, quando reparou que ele estava a olhar. — Tenho dificuldades a nível da percepção da profundidade e não consigo ver as depressões ou as extremidades.

— Ah.

Uma vez no patamar, abriu as portas duplas e deixou que ela entrasse primeiro. Depois agarrou-a por um cotovelo para a guiar até ao elevador.

— Podemos usar as escadas — protestou ela.

— Tive uma manhã difícil — mentiu ele.

No momento em que as portas do elevador se fecharam atrás deles, Hank carregou no botão para o terceiro andar. Depois encostou-se ao corrimão com os braços envolvendo a cintura. Carly deixou-se ficar no centro, durante toda a subida, mexendo com nervosismo na mala e no cabelo. Hank reparou que ela tinha as mãos a tremer.

— Não é nada do outro mundo. Em cinco minutos, estará tudo acabado. Ela acenou com a cabeça. Depois brindou-o com um sorriso hesitante.

Hank sentiu novamente o sol a espreitar por detrás de uma nuvem. A boca dela era uma das coisas mais bonitas que ele alguma vez vira, com o lábio superior arqueado de uma forma perfeita, o inferior cheio e macio.

— Parece tão estranho — disse ela. — Nunca casei antes. Não conseguiu evitar uma risada.

— Eu também não, pensando bem.

O elevador parou e a porta abriu-se. Conduziu-a até ao gabinete do funcionário, abriu a porta e fez um gesto para que ela entrasse primeiro. Minutos depois estavam a tentar preencher o formulário exigido. Para conseguir ler tudo o que estava lá escrito, Carly aproximou o papel do nariz. Porquê, Hank não sabia. Ela tinha de examinar todas as letras para conseguir ler a palavra.

— Porque é que há tantas fontes diferentes? — perguntou ela irritada. — Umas vezes os A têm arabescos, outras vezes não. É uma coisa que me põe louca.

Hank observou as palavras e, no processo, começou a compreender. Carly estava a ver as letras pela primeira vez e a tentar correlacioná-las com as formas imutáveis que memorizara pelo toque.

Para poupá-la a uma frustração desnecessária, começou a ler-lhe as frases em voz alta, o que motivou um franzir de sobrolho por parte do funcionário. Ele não queria saber. Não queria estar ali três horas.

— É apenas um formulário padrão — murmurou ele. — É necessário ler tudo o que está lá escrito?

— Quero saber o que estou a assinar.

Hank não sabia explicar o que lhe passou pela cabeça, mas, assim que começou a ler a frase seguinte, alterou as palavras.

— Declaro por minha honra que a partir do dia, espaço em branco — entoou ele suavemente —, serei a escrava sexual legítima do meu marido, sem levantar objecções, e que lhe obedecerei em todas as circunstâncias, mesmo que ele proceda de forma abusiva e irracional.

Ela abriu muito os olhos.

— O quê? — Tirou-lhe o papel das mãos. Durante uns segundos horríveis, Hank receou que pudesse ter cometido um grande erro ao gozar com ela. Mas, depois, ela desatou a rir e revirou os olhos. — És impossível. Não está aqui nada disso.

— Era o que eu te estava a querer dizer. É apenas um formulário padrão. Ela suspirou.

— Oh, está bem. Mostra-me apenas onde devo assinar.

Ele apontou e depois cometeu o erro de desviar o olhar. Quando olhou de novo, viu que ela tinha assinado no espaço reservado à testemunha. Ups. Hank fez sinal ao funcionário.

— Peço desculpa. Podia dar-me outra folha? Carly olhou para a sua assinatura.

— O que foi? Enganei-me nalguma coisa?

— Não tem importância. — Hank pôs-lhe o novo formulário debaixo do nariz, colocou o dedo na linha correcta e disse: — Assina aqui.

Pondo a língua de fora, mordeu os lábios num gesto de concentração e agarrou com tanta força na caneta que partiu o plástico enquanto fazia a assinatura. Hank esqueceu-se do formulário. «Aquela boca.» Prescindiria de boa vontade da sua parte do Lazy J. para a beijar de novo.

Quando ela acabou, murmurou:

— Escrevi fora da linha? Um pouco.

— Escreveste tudo direitinho — disse ele, acrescentando rapidamente a sua assinatura. Pronto. Já tinha a sua pequena escrava do sexo devidamente embrulhada e atada com um laço.

Minutos depois, mostraram ao funcionário os seus bilhetes de identidade e o processo foi dado como encerrado. Carly encheu as bochechas de ar enquanto se dirigiam para o elevador.

— Ainda bem que esta parte acabou.

Hank também se sentia aliviado. Porquê, não sabia. Fora só preencher uma papelada. Carly permaneceu silenciosa enquanto voltavam para a carrinha. Hank não fez qualquer menção de a ajudar a entrar desta vez. Antes de pôr o motor a trabalhar, olhou para ela.

— Queres ir almoçar ou tomar qualquer coisa? Ela olhou surpreendida com a sugestão.

— Já comi.

— Um café, então? — Ele achou que era importante passarem algum tempo juntos, antes do casamento, esperando que ela se sentisse menos nervosa se o conhecesse melhor.

— Não, obrigada — disse ela com um sorriso, a fim de aliviar a carga negativa da recusa. — Não posso beber café agora. Pode fazer mal ao bebé.

Hank pensou em todas as bebidas servidas nos restaurantes que não fizessem mal ao bebé, mas achou que era melhor deixar cair a sugestão. Ela não estava obviamente interessada.

A viagem de regresso até ao apartamento decorreu em silêncio. Assim que Hank estacionou junto ao passeio, desligou a ignição.

— Bem, vemo-nos então na sexta-feira?

Ela acenou num gesto afirmativo. Passou nervosamente com os dedos pelos botões da camisa.

— Podias passar por minha casa a caminho da conservatória? A Bess foi hoje chamada para uma segunda entrevista num consultório de dentista. É um bom sinal. Se conseguir o emprego, vai ter de trabalhar nessa tarde.

— Com certeza — assegurou-lhe Hank. — Pode ser às três e meia?

— Sim. — Ela permaneceu sentada, procurando claramente algo para dizer. Depois suspirou.

— Bem, é melhor ir. Até sexta-feira, então.

— Até sexta-feira.

Hank sentiu-se incomodado com o facto de permanecer ali sentado enquanto ela saía do veículo. Estava acostumado a ser cortês para com as senhoras. Mas resistiu ao impulso.

Antes de fechar a porta do passageiro, ela esboçou um sorriso delicado e disse:

— Adeus.

Hank ficou a olhar para ela enquanto a via desaparecer pelo caminho que conduzia ao apartamento. Sexta-feira. Dentro de quatro dias, seria um homem casado. Por mais inquietante que tudo isto pudesse parecer, sabia que deveria ser ainda mais perturbador para Carly. Desejava poder fazer alguma coisa para a ajudar a lidar com a situação.

Mas não sabia o quê.


Capítulo Onze

Nessa noite, Hank foi visitar os pais. Apesar de estar habituado à sua casa suburbana, sentiu-se num ambiente surreal quando se sentou à mesa oval da cozinha. A mãe sentou-se à sua frente. O pai puxou pela cadeira que tinha a direita.

— De certeza que não queres nada? — perguntou Mary. — É num instante enquanto preparo um chá, e o café ainda está fresco.

Os nervos de Hank já estavam em franja. Não precisava de uma dose extra da cafeína para ficar ainda mais tenso. Encostou-se para trás na cadeira cie carvalho.

— Não, obrigado. Estou bem assim.

Mary bebeu um gole de chá servido numa chávena elegante de rebordo dourado e aflautado.

— Ainda bem que passaste por cá. Não nos temos visto com muita frequência ultimamente.

— É um período muito complicado do ano. Eu e o Jake ainda estamos a fazer o imprinting das crias da Primavera e temos quatro cavalos novos que nos trouxeram esta semana para alteração de comportamento. — O olhar de Hank desviou-se para a secção de parede ao lado da janela onde havia seis mãos gravadas numa placa de gesso envelhecido: as seis mãos da prole Coulter. Olhando para as suas, Hank achou difícil acreditar que tivesse sido assim tão pequeno. Ocorreu-lhe que, dentro em breve, também ele poderia ter a marca da mão do seu filho estampada na cozinha. — Daqui a nada estará tudo mais calmo.

— Espero bem que sim. Tu e o Jake trabalham demasiado.

Hank tentou pensar numa maneira gentil de dar a novidade aos pais. Enquanto descartava uma ideia atrás da outra, o velho relógio em forma de bule que decorava a parede atrás dele parecia bater com mais força à passagem de cada segundo.

— Tenho uma coisa para vos contar. Preparem-se para um choque. Mary sentou-se mais direita. Harv fez uma expressão carrancuda, olhando para Hank com aqueles seus olhos perscrutadores azul-laser, que o punham nervoso quando era miúdo.

— Não sei como dizer isto, por isso o melhor é ir direito ao assunto. — Hank esperou um pouco, depois revelou-lhes: — Vou casar na sexta-feira.

Os pais de Hank olharam para ele com um ar incrédulo. A mãe, uma mulher pequena e rechonchuda de cabelo escuro com alguns laivos de grisalho, colocou cuidadosamente a chávena no pires, olhou para o marido e sorriu insegura.

— Desculpa — disse ela com uma gargalhada. — Os meus ouvidos estão a ficar uma desgraça. Iria jurar que disseste que ias casar.

Hank acenou afirmativamente.

— É isso mesmo.

— Não sabia que andavas com alguém em especial.

Hank não mentia aos pais desde a infância e não era agora que o ia fazer.

— Estas coisas acontecem quando menos se espera.

— Na sexta-feira, disseste? — Mary levou uma mão ao pescoço, e os seus olhos ficaram suaves e brilhantes. — É tudo tão repentino.

— Eu sei que pode parecer assim. Peço desculpa por não os ter avisado antes.

Harv apalpou o bolso da camisa à procura dos cigarros que tinha deixado de fumar há quatro anos.

— Há quanto tempo conheces essa mulher, filho?

— Há tempo suficiente — respondeu Hank evasivamente.

— Gostas dela? — perguntou a mãe. Depois riu-se. — Pergunta estúpida. Não casarias com ela se não gostasses.

Se eles soubessem. Hank estava grato pelo facto de a sua mãe ter respondido à sua própria pergunta. Tanto quanto possível, preferia não entrar em detalhes acerca da sua relação com Carly.

Mary franziu as sobrancelhas.

— Sexta-feira, disseste? Esta sexta-feira? — Perante o aceno de concordância de Hank, observou: — Valha-me Deus, é já daqui a três dias.

— Vai ser tudo muito simples, mãe. Ela não tem família aqui. É apenas uma cerimónia civil sem grandes adereços.

Mary olhou com um ar desapontado.

— De certeza que não te importas que dê uma pequena recepção. Pode ser aqui. Não há casamento sem celebração.

— Eu e a Carly não estávamos a contar com isso. É tudo, hmm... digamos, muito em cima da hora, e queremos evitar confusões e...

O pai de Hank interrompeu-o:

— Os casamentos não são apenas para a noiva e o noivo. São também para a família. Se a tua mãe quer dar uma recepção, não vejo razão para a impedir.

Determinado a ganhar o debate, Hank tentou pensar num argumento que fosse do agrado dos pais. Nada. Depois cometeu o erro de olhar para a mãe. Ela tinha os olhos cobertos de lágrimas.

— Só se casa uma vez — disse ela a tremer.

Não necessariamente. Mas Hank preferia não ir por esse caminho.

— Quero fazer algo de especial para comemorar a ocasião. És o nosso filho.

Como é que um tipo podia manter-se firme quando via a sua mãe prestes a chorar? Hank tirou o chapéu e colocou-o na cadeira ao lado dele. «Bolas.» Não tinha problemas em lidar com os homens. O mesmo não poderia dizer em relação às mulheres, e agora tinha duas a quem agradar.

— Já não é muito bom ser uma cerimónia civil — prosseguiu Mary, com a sua voz a ficar cada vez mais tensa. — Mas nem sequer celebrar com uma recepção? Ficar sem fotografias, ou qualquer outra recordação maravilhosa para partilhar em família?

Debaixo da mesa, o pai de Hank deu-lhe um encontrão com a bota. Hank sabia que estava de mãos atadas e levantou uma mão.

— Mãe? — Mary continuava a falar. — Mãe? Pára. Posso falar? Mary calou-se, com uma expressão acusatória. Ele ganhara claramente a honra de ser o único filho a despedaçar-lhe o coração.

— Se eu disser que sim à recepção, juras que será uma coisa muito, muito simples?

Mary acenou com a cabeça.

— Simples, não há problema. Posso fazer as coisas simples.

— Muito bem, então — cedeu Hank. — Mas tem de ser uma coisa pequena, só com os membros da família. De acordo?

O rosto de Mary iluminou-se imediatamente.

— Pequeno mas bom. Posso fazer isso. — Afastou as lágrimas e limpou o rosto. — Será uma coisa mais íntima. — Fungou e esfregou o rosto debaixo do outro olho. — Desculpa. Não é todos os dias que um filho nosso casa! Não consigo imaginar que possa ser um dia como outro qualquer.

Hank já percebera isso de forma clara. Desde que a sua mãe fizesse tudo muito simples, a recepção não seria muito má.

— Carly, foi o que disseste? É um nome amoroso. — Mary fungou outra vez. — Quando é que a conhecemos?

Hank esfregou o queixo.

— Ela vai estar muito ocupada toda a semana, a arrumar as coisas e a aprontar-se para a cerimónia. Se calhar vão ter de esperar até lá. Só a vão conhecer no próprio dia do casamento.

— Que pena.

Hank concordou, mas ele não queria sobrecarregar Carly nesta altura. Teriam muito tempo, depois das núpcias, para ficarem a conhecê-la.

Hank brincou com o mosaico que compunha o centro da mesa. Fizera-o no Dia da Mãe, há um rol de anos. O pai cobrira-o com uma resina de fibra de vidro para proteger o desenho, um galo estrábico e torto feito com arroz integral. A pobre ave parecia que tinha levado com um martelo em cima.

— Como é que ela é? — perguntou Mary. Hank pensou durante alguns instantes.

— Loira, bonita. — Sentiu o olhar do pai a aguçar-se. — Mas sem ser do tipo espampanante. O cabelo dela tem um tom natural, loiro-mel com madeixas escuras. Não usa maquilhagem, tanto quanto me foi dado a observar. Se a pudesse descrever, em poucas palavras, diria que é mais do tipo angelical, como aqueles anjos que vemos pintados nos tectos das capelas.

Harv relaxou. Mary sorriu de alegria.

— Parece ser uma pessoa adorável.

Tirou uma caneta e uma folha de papel do sítio onde estava o telefone e começou a tomar notas. Olhando para Hank, disse:

— Temos de convidar os Kendricks.

Hank imaginou a sala de estar da casa dos pais cheia de gente.

— Tirando o Ryan, os Kendricks não são propriamente família, mãe.

— Quase. A tua irmã, Bethany, é uma Kendrick agora. Eles ficarão a saber do casamento através do Ryan. — Começou a elaborar uma lista que foi crescendo de tamanho enquanto Hank observava. — E não podemos excluir os pais da Molly.

Hank lançou um olhar implorativo ao pai. Harv fez um esgar com a boca.

— A mãe e o padrasto da Molly são capazes de não poder vir, querida. Teriam de vir directamente de Portland, e não temos estado muito com eles.

Hank rezou para que o seu pai estivesse certo. Se cinquenta pessoas aparecessem para a cerimónia, como é que iria explicar isso a Carly?

— Acho que seria melhor incluir apenas a família mais próxima. Tenho quatro irmãos e uma irmã, dois deles casados e com filhos. O gabinete da conservatória não tem espaço para nós todos, quanto mais para os parentes mais afastados.

— Não te preocupes com nada — disse Mary. — Deixa os pormenores comigo.

Era isso que preocupava Hank, os pormenores. Porque é que as mulheres tinham de complicar sempre tudo? Mary olhou para o marido.

— Não podemos excluir o Sly e a Helen. Harv virou o olhar para Hank.

— Acho que vamos ter de o fazer. Mary fez uma covinha numa bochecha.

— O nosso Hank vai casar. Acreditas, Harv? Quando ele disse que tinha uma novidade para nos dar, era a última coisa de que eu estava à espera.

— Foi uma autêntica surpresa, não foi? — Harv levantou-se da mesa da cozinha. — Hank, enquanto a tua mãe se entretém com a lista, importas-te de vir comigo à garagem num instante? Quero mostrar-te uma coisa.

Hank sabia o que isso significava e preparou-se para passar por um interrogatório, enquanto seguia o seu pai até lá fora. Harv não o desiludiu. Assim que a porta de incêndio se fechou atrás deles, baixou o tom de voz e perguntou:

— O que é que se passa?

— Não se passa nada, pai. Vou só dar o nó e é tudo.

— Tanto quanto sei, não tens tido nenhuma namorada fixa. Agora entras aqui, como quem não quer a coisa, e anuncias que te vais casar?

— Bem, pai...

— Guarda essa história para a tua mãe. Ela compra-a. Quero os factos como são.

Hank revelou a verdade dos factos, contando ao pai toda a história, incluindo como forçara Carly a casar com ele. A conversa ia a meio quando Harv se afundou numa bilha de leite, um dos projectos de pintura decorativa que Bethany tinha em mãos. Perto do final, o músculo maxilar do velhote começara a tremer, sinal seguro de que estava a cerrar os dentes. Os seus olhos azuis faiscavam de raiva.

— Desculpa, pai — disse Hank, quando contou tudo ao pai. — Sei que te desapontei.

— Não é o meu momento mais orgulhoso enquanto pai. Dei-te educação suficiente para não fazeres isto.

— Aprendi uma grande lição, se é que isso pode servir de consolação. A mãe avisou-me sempre que, mais cedo ou mais tarde, alguém iria ficar magoado. Ela tinha razão, só que não fui eu. Independentemente de como as coisas vierem a decorrer entre mim e a Carly, nunca mais voltarei à cena dos bares.

— É assim que chamam agora? — O seu pai sentou-se muito direito. — A cena dos bares? Parece-me um termo muito pomposo para a actividade de beber, festejar e apalpar maminhas no banco de trás das carrinhas.

Hank não conseguia pensar numa única palavra para dizer em seu abono. Sentiu os olhos a arder quando estes se cruzaram com o olhar contundente do pai.

— Sabes o que é pior nisto tudo?

— Não, o quê? — perguntou Harv. Hank sentiu um aperto na garganta.

— Ela é tudo o que eu teria escolhido numa mulher se tivesse tido tino para me pôr à procura. É doce, bonita e gentil, com o estimulante necessário para me deixar curioso. — Suspirou e pontapeou uma folha seca que ali ficara desde o último Outono. — De todas as vezes que olho para ela, ponho-me a pensar como é que a pude tomar por uma miúda igual às outras. Como não sabia que ela era virgem, não me preocupei em ter um cuidado especial. Magoei-a, tenho a certeza. Ela tem medo de mim agora.

— Hábil como és a lidar com éguas jovens e nervosas, não estou muito preocupado nesse aspecto. Arranjarás maneira de acalmá-la.

Hank não estava tão seguro disso.

— Talvez.

Harv pôs-se de pé com um ar fatigado. Hank continuava à espera de o ouvir dizer, «Bem te avisei», ou falar alto e ficar enfurecido durante algum tempo. Em vez disso, Harv bateu nos ombros de Hank, olhou para ele, olhos nos olhos, e sorriu apesar do seu ar triste.

— Quem me dera que nunca tivesses posto a pobre rapariga nesta situação. Não quero fingir o contrário. Mas, atendendo ao sucedido, orgulho-me de ti por teres assumido as tuas responsabilidades.

Era a última coisa que Hank esperava que ele dissesse.

— É o meu filho, pai. Não podia fazer outra coisa. Esta gravidez iria arruinar a vida dela se eu não me interpusesse.

— Muitos homens optariam por fugir que nem ratos.

— Ensinaram-me que isso não se faz. Harv acenou afirmativamente.

— Normalmente, nunca iria aprovar o facto de a teres forçado a casar, mas nada nesta história me parece normal.

Isso era uma meia verdade, se é que Hank ouvira alguma vez uma. Harv suspirou. Depois bateu no ombro de Hank.

— Ela vai ter muita gente da família a apoiá-la, a partir de agora. Hank olhou para a porta que dava para a cozinha.

— Sim, muita família.

Num passado não muito distante, Hank ressentira-se do clã fortemente unido dos Coulter. Mas agora estava contente por isso. A mãe colocaria Carly sob a sua protecção e seria maravilhosa para com ela. Também podia contar com Jake e Molly para a receberem de braços abertos no rancho. Carly poderia sentir-se um pouco atarantada de início, mas Hank estava convencido de que, dentro em breve, iria adorar a família quase tanto como ele.

— Ela também vai ter um bom marido ao lado dela — disse Harv suavemente.

O comentário surpreendeu Hank. Olhou com um ar inquiridor para o pai.

Harv inclinou a cabeça e aproveitou para pontapear a folha.

— Ao criar os filhos, um homem tem tendência para se pintar melhor do que é, esforçando-se ao máximo para dar um bom exemplo. Cometi

alguns erros, coisas que nunca disse à vossa frente. — Ele olhou para cima, parecendo envergonhado. — Levantei uma série de saias, fiz coisas muito estúpidas. Não queria casar. Não me conseguia imaginar com uma data de miudagem a meu cargo. Tudo menos isso. Até que conheci a tua mãe. — Piscou o olho. — Apaixonei-me por ela à primeira vista e passei os meses seguintes a tomar duches frios. Ela era uma rapariga impecável, não daquelas de permitir que lhe levantassem as saias sem um anel no dedo. Acabei por casar com ela. O pai dela teve acessos de raiva. Disse que eu era um patife sem valor, que lhe iria fazer mal. Não nos queria dar a sua bênção. Ficou completamente desvairado quando fugimos e acabámos por casar.

— O avô McBride não gostava de ti? — perguntou Hank incrédulo. Harv desatou a rir.

— Não podia gostar. Ele tinha razão; eu era um patife sem valor. — Tocou no peito de Hank com um dedo rígido. — Foi preciso amar uma boa mulher para me endireitar e, desde então, ela tem-me mantido sob as suas rédeas. O teu avô McBride começou a respeitar-me. Quando o Jake apareceu, eu e ele já nos dávamos bem. Isso durou até ele morrer. — A boca de Harv contorceu-se. — As suas últimas palavras foram, «Trata bem da minha Mary, ou juro-te, filho, que me erguerei da sepultura para te dar um pontapé no cu».

Hank riu-se, com dificuldades em acreditar que o seu pai fora um perseguidor de saias.

Harv franziu os olhos.

— Como o pai da Carly não vai estar aqui para o fazer, terei de ser eu. Trata-a bem. Se não o fizeres, prepara-te para levares um pontapé no cu.

— Não te preocupes, pai. Os meus dias de vagabundagem acabaram. Dentro em breve, estarei a cuidar de uma criança e a pintar-me também melhor do que sou.

— Sei que o farás — anuiu Harv com um aceno de cabeça. — Criei-te, não te criei?

Quando Harv se virou para voltar para casa, Hank deteve-o com:

— Pai? Há mais uma coisa.

Harv virou-se.

— Se são más notícias, poupa-me. Já ouvi que cheguem esta noite.

— Não é nada de grave.

Hank esfregou a nuca, pensando cuidadosamente antes de falar.

— Detesto ter de pedir isto. Sei que não gostas de guardar segredos da mãe. Mas, neste caso, importas-te de não revelar nada acerca da gravidez da Carly?

Harv franziu as sobrancelhas.

— Preferia não o fazer.

— Eu sei, compreendo. A sério. Só que..., bem, se contares à mãe, ela irá logo dizer à Bethany. Num ápice, toda a família ficará a saber. Não quero que ninguém se descuide e diga algo que possa humilhar a Carly no dia do casamento.

Harv aquiesceu finalmente.

— Está bem, filho, vou guardar o segredo. No entanto, não poderás demorar muito tempo a contar à tua mãe. Dou-te uma semana, e é tudo. Eu e ela não guardamos segredos um do outro.

— Nem sequer vou esperar uma semana — prometeu Hank. — Apenas alguns dias. Para bem da Carly, não meu. Ela poderá ficar um pouco tensa. Há imensas mulheres que engravidam antes de casar, hoje em dia. Mas, por outro lado, poderá não... A experiência que tem da vida não tem sido normal.

Harv esfregou o queixo, passando com os dedos pela barba de um dia que era agora mais grisalha do que escura.

— A tua mãe ficará muito contente com o bebé. Ela não costuma julgar as pessoas por coisas deste tipo.

Hank encheu as bochechas de ar.

— Não estou preocupado com isso, nem por sombras. Só que a Carly não vos conhece. Precisará de algum tempo para se recompor, antes de a mãe começar a emocionar-se e a presenteá-la com coisas para o bebé.

Harv riu-se e deu um empurrão a Hank na direcção da porta.

— É melhor entrares, não vá ela convidar a cidade inteira para o teu casamento.

Hank gostaria de pensar que o seu pai estava a brincar, mas quando reentrou na cozinha, Mary já estava ao telefone com a sua irmã Bethany, conversando animadamente.

— Sim — disse Mary com uma gargalhada. — Sexta-feira às quatro! Não disse nada. Ele diz que ela se chama Carly. Sim, bem, conheces o teu irmão. Ele nunca gatinhou. Levantou-se e começou a andar aos sete meses. Não mudou nada desde então.

Hank ouviu um som desmaiado da voz de Bethany, do outro lado da linha. Imaginou a irmã, sentada ao telefone na sofisticada cadeira de rodas que o marido, Ryan, encomendara de propósito, com os seus olhos castanhos brilhando de excitação.

Mary riu-se com algo que a filha lhe disse e passou o telefone a Hank.

— Ela quer saber todos os pormenores de viva voz.

Na sexta-feira, às três em ponto, Hank tocou à campainha de Carly. Enquanto esperava que ela respondesse, verificou a sua gravata de cordão com pontas de metal, encolheu os ombros para endireitar o casaco de tweed com um corte western, e depois passou com os dedos pela fivela do cinto para se certificar de que estava centrada. Sentia-se nervoso. Tinha o corpo coberto por uma camada fina de suor, que intensificava o aroma da água-de-colónia. Não era todos os dias que um homem se casava.

Quando o puxador da porta deu sinal de vida, preparou-se para o momento, tirando o ramo de noiva de trás das costas e pondo aquilo que esperava ser um sorriso cordial. Quando a porta se abriu, o sorriso esmoreceu-lhe nos lábios e ficou especado a olhar. O seu anjo da igreja passara por uma transformação surpreendente que só podia ser descrita como Debbie Does Dallas 6.

Carly envergava um vestido justo de um branco metálico, com um decote que redefinia totalmente a noção de profundo. O tecido brilhante realçava todas as curvas deliciosas do seu corpo e a saia tinha uma racha que ia até a meio da coxa, deixando antever, na sua quase totalidade, uma perna bem delineada. A maquilhagem parecia que tinha sido espalhada com uma espátula de paleta. E o cabelo sobressaía de cada lado da cabeça numa amálgama indomável de caracóis loiros suficientemente firmes para segurarem os ornamentos de uma árvore de Natal.

— Olá — disse ela, com um ar sobressaltado. Hank estava sem palavras.

Ela pôs uma mão na anca.

— A Bess arranjou-me um vestido, mas soltou-se um botão. Tentei cosê-lo, mas piquei-me e manchei o corpete de sangue. — A sua voz adquiriu um tom mais agudo. — É o único vestido branco que tenho. Este é dela. Encontrei-o no fundo do seu roupeiro. Não sou muito boa a escolher roupas. Achas que estou bem?

Seria o sonho molhado de qualquer homem se ela tivesse posto uns saltos de quinze centímetros. Em vez disso, calçara outra vez aquelas sandálias brancas simples, que bem poderiam funcionar como anticlímax.

Ainda atónito, Hank entrou no apartamento e fechou a porta atrás de si. Não conseguia deixar de olhar para as meias luas verdes invertidas por cima dos seus belos olhos — ou para as grossas camadas de rímel preto nas suas pestanas.

— Puseste maquilhagem — foi tudo o que ele conseguiu dizer. Ela tocou no rosto.

— Posso usá-la agora. Liguei para o doutor Merrick e pude confirmar. — Ela olhou para ele com uns olhos inseguros, praticamente eclipsados pela sombra que tinha nos olhos. — Não costumo usar maquilhagem. Tive de recomeçar tudo de novo por três vezes.

Perdera imenso tempo a maquilhar-se. Para uma primeira tentativa, não havia muita superfície esborratada ou grumosa. A avaliar pelo batom que lhe cobria de vermelho-vivo os contornos suaves da boca, Hank achou que ela devia ter usado as coisas de Bess. As sombras eram muito mais adequadas para uma morena.

Nesse momento, recuou à noite da festa de formatura da sua irmã mais velha. A mãe deles fora chamada de emergência ao estábulo, no momento em que Bethany se estava a aprontar para o baile. Hank fora o único membro da família que ficara em casa, esperando que o veterinário voltasse a ligar. Bethany aparecera vinda da casa de banho, tal como Carly estava agora, com o rosto transbordando de cores garridas, o cabelo num pesadelo de caracóis mal feitos e demasiada laca, só com a diferença de Bethany se ter apercebido do estado horrível em que se encontrava.

O que não acontecera obviamente com Carly.

Hank pensou em esquivar-se como um cobarde. Odiava ferir sentimentos. Por outro lado, não podia ficar sem dizer nada e permitir que ela aparecesse assim no casamento, com este aspecto. Mais tarde, quando ela se apercebesse do carácter inapropriado do vestido e da maquilhagem que pusera para a ocasião, sentir-se-ia humilhada sempre que se lembrasse do dia de casamento.

É evidente que os seus pensamentos se fizeram logo notar pela sua expressão. Ela levou uma mão ao peito e disse:

— Estou horrível, não estou?

— Nunca estás horrível. — Pousou o pequeno ramo no sofá e virou-se para observá-la melhor. — Só que o vestido é demasiado vistoso para um casamento, o teu cabelo fica muito melhor ao natural e puseste demasiada maquilhagem.

Ela pareceu apavorada.

— Meu Deus. — Virou-se como se pretendesse fazer qualquer coisa, depois voltou atrás para olhar para ele com uns olhos implorativos. — Podias ajudar-me a escolher um vestido melhor?

Hank tencionava fazer mais do que isso. Tirou o casaco e enrolou as mangas da camisa enquanto a seguia até ao quarto. Havia imensas caixas empilhadas por cima da cama, o que significava que ela já tinha estado a aprontar as coisas para a mudança para a casa de madeira. Felizmente, deixara alguma roupa nos cabides. Quando abriu o roupeiro, o seu olhar recaiu imediatamente sobre um vestido azul-claro de corte simples.

— Este serve lindamente — disse ele, tirando-o.

— E o cabelo e a maquilhagem?

— Percebo um pouco de cabelo e maquilhagem. Costumava ajudar a minha irmã Bethany a aprontar-se para as festas. — Olhou para o relógio, confirmando o facto de já não irem chegar a horas ao casamento. Não havia volta a dar. — Podes tirar esse vestido, pôr um roupão e ir ter comigo à casa de banho?

Instantes depois, quando Carly apareceu à porta da casa de banho, Hank já tinha aberto a torneira do lavatório e estava a ajustar a temperatura da água. Ela olhou-o com um certo nervosismo quando o viu avançar na sua direcção com uma toalha de lavar humedecida. Com a ajuda de um pouco de creme para o frio que encontrara, Hank conseguiu retirar-lhe toda a maquilhagem. Carly deu um grito de espanto quando ele a fez aproximar-se do lavatório, empurrando-lhe gentilmente a cabeça para baixo e começando a lavar-lhe a cabeça.

— Esta é uma das experiências mais humilhantes da minha vida— murmurou.

— Não tens culpa de não teres jeito para o cabelo e a maquilhagem, ou que não consigas ver as lantejoulas num vestido.

Ele pôs o champô no cabelo, tendo cuidado para que a espuma não fosse parar aos olhos. Depois enxaguou-o rapidamente. Sentiu as nádegas dela de encontro à braguilha das suas calças. O contacto fez-lhe lembrar o acordo «nada de sexo» e reavivou a sua determinação em fazê-la mudar de opinião no que toca a essa cláusula.

— Pronto — disse ele, enquanto lhe envolvia o cabelo com uma toalha.

— Onde está a maquilhagem?

Ela apontou para uma pequena bolsa pousada na parte de cima do lavatório. Hank abriu-a e deu uma vista de olhos pelo conteúdo, escolhendo apenas três itens: algum rímel, um pouco de blush e um batom cor-de-rosa leve. Carly ficou de pé à sua frente, com os olhos muito abertos e tensos, enquanto ele lhe mexia na cara. Na sua opinião, tinha um rosto que não necessitava realmente de cosméticos, mas compreendia o desejo que ela tinha de se apresentar da melhor maneira possível quando se encontrasse com a sua família. Um pouco de maquilhagem não fazia mal e ajudava-a a aumentar a sua autoconfiança.

— Regra geral para lidar com a maquilhagem: quanto menos melhor — explicou ele enquanto aplicava um toque de rímel nas suas pestanas longas e sedosas. — A ideia é parecer natural.

— Desculpa por nos estarmos a atrasar — murmurou ela.

A parte da frente do roupão abriu-se ligeiramente, revelando a copa arrendada do sutiã e a saliência dos seus seios. Hank olhou apenas uma vez, depois desviou o olhar para o rosto dela, um desafio que o ajudou a testar até onde podia ir o seu autocontrole.

— Não é por tua causa. Devia ter vindo mais cedo.

— Os teus pais vão ficar zangados?

Ele pôs-lhe um pouco de cor nos lábios.

— Não creio. — Piscou-lhe o olho. — Se ficarem chateados com a espera, depressa se esquecerão ao verem a sua linda nora.

Quando ele lhe retirou a toalha da cabeça, o cabelo delicado escorregou-lhe sobre os ombros em pequenos anéis humedecidos. Hank penteou-os um pouco com os dedos, radiante com o facto de ela ser tão bonita.

— Já está tudo — disse ele. — Agora despacha-te com o vestido, e estaremos prontos para partir.

Ela olhou para o espelho com um ar preocupado.

— Preciso de secar o cabelo. Não posso ir assim.

— Já estará quase seco quando chegarmos lá — assegurou-lhe. — E terá um aspecto fabuloso. — Perante o seu olhar duvidoso, acrescentou: — Não te esqueças de que não passo de um reles frequentador de bares. Confia em mim.

Ela passou por ele para regressar ao quarto. Quando emergiu, alguns minutos depois, muito bonita no seu vestido simples e sandálias brancas, Hank já fora buscar o ramo de flores.

— Estás perfeita — disse ele, e no momento em que as palavras lhe saíram da boca, ela sabia que estava a dizê-las do fundo do coração. Ela era perfeita, doce e nervosa, hesitante e insegura. — Serei o homem mais orgulhoso à face da terra quando entrar contigo de braço dado na conservatória.

Ele deu-lhe as flores para a mão.

— Sei que querias uma coisa simples, mas pensei que podias pelo menos ter um ramo de flores.

Os seus olhos brilharam enquanto aceitava o pequeno ramo.

— Oh, Hank, não devias ter feito isto. São lindas. — Enfiou o nariz nos botões e aspirou profundamente o perfume. — Cravos? São as minhas flores favoritas.

Hank apercebeu-se de que ela precisava de identificar as flores pelo cheiro. Quando ela gentilmente tocou noutro botão, ele disse:

— É uma margarida. — Pedira à florista para fazer um arranjo com flores silvestres e ela fizera tudo muito rapidamente usando o que tinha à mão. Tocou numa pétala delicada cor de lavanda. — Estas são orquídeas selvagens. — Mudando para uma pequeno botão de violeta, disse: — E estas são campainhas. As roxas com os centros em amarelo e preto são apenas amores-perfeitos de jardim.

— Apenas? Muito obrigada. Só recebi flores uma vez, quando me enviaste as rosas. — Mesmo com o blush a disfarçar-lhe o tom natural da pele, ele reparou no rosto dela a ficar enrubescido de prazer. — As flores sempre foram as minhas coisas favoritas na terra: acho que é por causa do seu cheiro tão maravilhoso. Mesmo quando não as conseguia ver, era capaz de apreciá-las.

Hank tomou nota mental para se certificar de que, a partir de agora, ela receberia flores com frequência. Enfiou a mão no bolso.

— Eu, hmm, também escolhi as alianças. Ela olhou para ele com uma cara de espanto.

— Temos de ter as alianças para a cerimónia. Quando fui à joalharia, era só para comprar uns aros em ouro. Mas quando vi todos os modelos que tinham, não consegui resistir.

Ele abriu a caixa de veludo azul que tinha na mão.

— Não sabia bem do que é que ias gostar, por isso escolhi algo que me fizesse recordar de ti. — Ergueu o anel de noivado, que ostentava um enroscado elegante de lascas de diamante em torno de uma pedra central brilhante. Enquanto o enfiava no dedo esguio de Carly, congratulou-se pela escolha. Parecia perfeito na sua mão ossuda, nem muito ostensivo nem muito pequeno, e o design delicado assentava-lhe muito bem. — Tive de calcular o tamanho. Ainda bem que te serve.

Carly levantou a mão, com uma expressão inquieta.

— Não devias ter feito isto, Hank. Deve ter custado uma fortuna.

— Não foi assim tanto. — Observando-a, Hank viu-se a desejar... bolas, não tinha bem a certeza daquilo que desejava. Que as coisas fossem diferentes entre eles? Que ele podia fazer a proposta de um modo mais convencional, e que ela podia aceitar? — Se vamos em frente com isto, temos que fazer tudo como deve ser. Se as coisas derem para o torto, poderás dá-lo ao teu filho ou à tua filha, um dia mais tarde.

Ela olhou para ele de forma cautelosa.

— Se as coisas derem para o torto?

Má escolha de palavras. Ele olhou para o relógio.

— Já estamos muito atrasados. É melhor apressarmo-nos.

— É um anel muito bonito, Hank. Obrigada.

Ela não parecia lá muito contente com o facto de o ter de usar. Hank calculou que ela se sentisse perturbada com o seu significado simbólico. Tradicionalmente, um anel de noivado era uma promessa para toda a vida, e uma aliança selava esse compromisso. Um homem também reivindicava alguma coisa para si quando punha um anel no dedo de uma mulher.

Era assim que as coisas funcionavam para Hank. Ele não sabia como era com ela, mas o facto é que ela o tocava como nenhuma outra mulher o fizera.


Capítulo Doze

Hank e Carly estavam atrasados para o seu próprio casamento. Não mais do que trinta e cinco minutos, mas, para aqueles que apareceram a horas, era muito tempo de espera. O que implicava muitos membros da família — a família dele — acotovelados num espaço excessivamente pequeno, transpirando na sua roupa domingueira e começando a ficar nervosos e impacientes. Também significava que o funcionário estava a ficar aborrecido. Permanecia ao lado de uma pequena mesa, junto à parede do fundo, com os olhos tão cáusticos e censuradores com os do juiz Roy Bean 7.

No momento em que Hank empurrava a porta, Carly aproximou-se dele, com uma mão a segurar-lhe no casaco, a outra agarrada ao ramo de flores. Ele ainda pensou dizer-lhe que não havia necessidade de ela estar tão nervosa, mas assim que viu os seus pais, achou que deviam ser eles a transmitir-lhe essa mensagem. Se havia alguma coisa com que Hank podia sempre contar era com a bondade do pai e da mãe.

Carly deslocou-se ao lado dele como um robô com transmissões deficientes. Hank pôs-lhe instintivamente o braço em torno dos ombros e aproximou-a mais de si, enquanto a conduzia pela sala e fechava a porta. Afagou-lhe o ombro, tentando transmitir-lhe sem palavras que se tratavam de pessoas amigas que a iriam receber de braços abertos.

O olhar do funcionário tornou claro que estava ansioso por começar a cerimónia, mas Hank recusou-se a apressar Carly a proferir o «sim» antes de ser apresentada, pelo menos, às pessoas que iriam testemunhar as núpcias. Compensaria o funcionário mais tarde com uma gratificação generosa.

— Mãe, pai, esta é a Carly. Carly, gostaria que conhecesses os meus pais, Mary e Harv Coulter.

Hank nunca estivera mais orgulhoso de ser um Coulter do que naquele momento. A mãe sorriu de forma ampla e aproximou-se com os seus braços abertos.

— Chamo-me Mary, querida, mas espero que me trates por mãe. Ainda bem que finalmente te conheci!

Apesar do nervosismo, a postura natural de Carly deu logo nas vistas. Sorriu de forma radiante como fizera naquela noite fatídica no Chaps.

— Também fico muito contente por conhecê-la! O Hank disse-me muito bem si.

Mary irradiou de prazer. Hank olhou por cima da mãe e viu Bess a emergir do emaranhado de corpos. Esta esboçou um sorriso, mas deixou-se ficar onde estava não querendo interromper. Harv sorriu largamente enquanto abraçava Carly. Por cima da sua cabeleira loira, captou o olhar de Hank, transmitindo com a sua expressão que premiava vivamente o filho pelo seu bom gosto.

— É tão parecido com o Hank! — observou Carly, maravilhada, no momento em que Harv a libertava do abraço.

Harv desatou a rir.

— A marca dos Coulter. Os meus filhos estão todos amaldiçoados. Mary aproximou-se para dar um abraço a Hank.

— Ela é linda, querido. Verdadeiramente linda.

— Obrigada, mãe. Ela é mesmo uma dama muito especial.

Neste momento, já não havia ninguém do clã Coulter que não estivesse a par da doença que Carly tinha nos olhos e dos consequentes problemas de visão. Fiel à sua palavra, Harv não dissera nada acerca da gravidez, mas não sentiu qualquer remorso quanto ao facto de partilhar a outra informação que Hank lhe dera.

— Ela é extraordinária — murmurou Mary. — Só de olhar, ninguém diria que ainda há bem pouco tempo era cega.

Hank estava prestes a deslocar-se para o pé de Carly quando o pai a entregou a Zeke, que lhe deu um abraço, beijou o rosto e a passou aos seus irmãos gémeos Isaiah e Tucker. Hank apressou-se a abrir caminho por entre os presentes para se juntar a Carly a tempo de fazer as apresentações. Quando a abraçou pela cintura, ela saltou como se tivesse sido tocada por uma brasa quente.

Hank manteve o abraço, captou o olhar de Tucker, e disse:

— Querida, gostaria de te apresentar o meu irmão Tucker. Tucker, esta é a Carly Adams.

Carly pestanejou e aproximou-se para olhar para os gémeos.

— Oh, meu Deus — murmurou incrédula. — Comecei a ver em duplicado.

Tucker atirou para trás o seu cabelo escuro e desatou à gargalhada. Isaiah, o mais silencioso e reservado dos dois, limitou-se a sorrir.

— Não estás a ver em duplicado, querida. Isaiah e Tucker são gémeos idênticos — explicou Hank. — Até eu tenho às vezes dificuldades em distingui-los.

— A sério? — Carly observou cada um deles com uma curiosidade divertida. — Ouvi falar de gémeos idênticos, claro, mas nunca vira nenhuns. -Olhou para cima para Hank. — São muito parecidos contigo.

— Tal como o pai diz, somos todos muito parecidos. Tucker e Hank trocaram um olhar divertido.

— Fala-nos de ti, Carly — disse, com uma expressão entusiasta quando desviou o olhar para o rosto erguido de Carly. — A mãe disse qualquer coisa acerca de seres professora.

— Oh, sim. Pedi uma licença sabática para tirar uma pós-graduação. Este era um tema que interessava sobremaneira a Tucker a ponto de o envolver de imediato na conversa.

— A sério? — observou ele. — Vais tirar uma pós-graduação em quê? Sem saber que toda a gente na família de Hank estava já a par da sua cegueira, Carly explicou acerca da distrofia lattice.

— Por ter crescido cega e saber de antemão quão difícil pode ser para as crianças cegas frequentarem as escolas públicas, gostaria de dedicar-me à educação especial e trabalhar com estudantes com deficiências visuais.

— Isso é fantástico — referiu Tucker. — Aposto que há poucos professores nessa área.

— Pelo menos dos bons — anuiu Carly. — Melhor para mim. Será muito mais fácil encontrar um trabalho, depois de ter terminado a pós-graduação. Só com a licenciatura seria difícil encontrar um emprego fixo. Estive a fazer uma substituição, durante um ano, e acabei por ter sorte, mas só porque uma professora ficou doente e teve de se reformar. A facilidade em encontrar um emprego não foi a razão que me levou a frequentar uma pós-graduação e a centrar-me na educação especial. Por ter nascido cega, sinto, honestamente, que estou em condições de poder oferecer algo de especial.

A conversa continuou durante alguns minutos e depois Tucker conduziu Carly até junto da irmã deles, Bethany, que abrira recentemente uma academia para crianças deficientes. Isso dava às duas mulheres algo em comum. Olhando para a futura mulher e para os irmãos gémeos, Hank deu um suspiro de alívio ao ver que estava tudo a correr normalmente. Ainda antes de o dia terminar, de certeza que Carly já adoraria todos os membros da sua enorme família, quer quisesse quer não.

Confiante de que ela estaria bem com Tucker ao seu lado, Hank aproveitou a oportunidade para tratar dos últimos pormenores com o funcionário.

Mas, contrariamente ao que Hank pensava, Carly não estava bem. Esperara ver apenas algumas pessoas na cerimónia. Ao invés, havia pelo menos umas vinte, possivelmente mais, e o mar de rostos não familiares estava a deixá-la um pouco zonza. Nunca se iria recordar de todos os seus nomes. Pior ainda, os parentes e amigos de Hank acreditavam claramente que ia ser um casamento verdadeiro, com o «para sempre» incluído no pacote. Sabendo que não se tratava de nada disso, Carly sentia-se horrivelmente culpada.

Ela não acreditava na mentira, e isto era a maior mentira da sua vida, fingir amar um homem que ela mal conhecia. A única coisa que ela e Hank tinham em comum era o bebé. Dentro de dois ou três anos, divorciar-se-iam e cada um iria para o seu lado. Como é que ela podia olhar para estas pessoas nos olhos, sorrir e fingir que era o dia mais feliz da sua vida?

Não podia fazer isso. Uma coisa era assinar os papéis e casar por razões financeiras. Outra coisa era passar por isto, como se fosse um casamento verdadeiro, e deixar que as pessoas a recebessem no seio da família com tanta sinceridade. Bethany foi tão simpática e mostrou-se tão interessada que Carly gostou logo dela à primeira vista. Ryan Kendrick, o marido, era muito parecido com Hank, e podia perfeitamente fazer parte da família — um vaqueiro alto e moreno com uns olhos azuis brilhantes e um sorriso agradável. Na verdade, eram todos tão simpáticos que Carly se viu a recuar, não querendo gostar deles, ou encorajá-los a gostarem dela, só porque sabia que o seu casamento era uma farsa.

Depois de ter estado tempo suficiente com Bethany, Carly virou-se e olhou desesperadamente à procura de Hank, que não se via em lado nenhum. Como se tivesse pressentido a sua mudança de coração, Zeke apareceu subitamente ao lado dela, envolvendo-lhe a cintura com um braço firme.

— Estás a sentir-te perdida?

Carly olhou para ele com um ar aflito.

— Muito perdida.

— O Hank foi por ali — disse ele, enquanto a encaminhava pelo meio da multidão. — Toda a gente fica nervosa. É normal. Dentro de cinco minutos, estará tudo acabado.

Na opinião de Carly, dentro de cinco minutos iria começar tudo. Como sabia que Zeke tinha estado presente, na última sexta-feira à noite, quando ela falara ao telefone com Hank e concordara com esta ideia louca, não teve problemas em dizer:

— Não posso desiludir as pessoas desta maneira. Devem achar que é um casamento verdadeiro. — Pegou-lhe na mão. — Tira-me daqui, Zeke. Por favor? Não estou a conseguir levar isto por diante.

Ele olhou para baixo de forma apreensiva. Depois, agarrando-lhe na mão com força, gritou:

— Hank? Eh, Hank! — Acenou para chamar a atenção do irmão mais novo. — Toca a reunir. A tua noiva precisa de ti.

Carly queria morrer. Agora tinha toda a gente na sala a olhar para ela. Zeke apertou-lhe os dedos para lhe dar confiança.

— Não te preocupes. Ninguém sabe porque é que precisas de falar com ele.

Carly apercebeu-se de que ele lhe estava a segurar na mão como se ela fosse uma criança perdida, mas quando a tentou libertar, ele apertou-a ainda mais.

— Não a largues — murmurou Zeke, com a sua voz profunda tão parecida com a de Hank que até arrepiava. — O Hank vem já aí. Pelo menos, fala com ele antes de fugires.

Um casaco de tweed apareceu subitamente diante dos olhos de Carly.

— O que se passa, querida?

A voz de Hank. Carly encostou-se a ele, aliviada por Zeke lhe ter largado a mão.

— Acho que não vou poder fazer isto — disse com uma voz fraca. — É tudo uma mentira. Uma grande e horrível mentira. Não posso fazer isto.

Hank abraçou-a pelos ombros. Senti-lo, ser abraçada por ele, funcionou como um bálsamo relaxante para os nervos de Carly, o que a levou a pensar que se tratava da maior das insanidades.

— Eh — disse ele. — Não mudou nada. É apenas um aspecto técnico.

— Não para a tua mãe. Ela pediu-me para a tratar por mãe. Ele afagou-lhe o ombro.

— Ela é muito maternal por natureza. Até os miúdos nossos vizinhos a tratam por mãe ou avó. Acalma-te, querida. Lembra-te das nossas razões para fazemos isto.

Carly anuiu com uma certa indiferença.

— Temos de pensar no nosso filho, não é verdade?

Aquiesceu de novo, interrogando-se porque é que parecia sempre tão sensato quando ele falava sobre isso e tão insano quando ela ficava a sós com os pensamentos a bailarem-lhe no interior do cérebro.

— Dentro de dias — assegurou-lhe Hank —, estaremos em condições de podermos revelar-lhes todos os nossos planos. Está bem?

— Nessa altura, irão desprezar-me por me ter servido de ti.

— Não, não vão. Continuarão a pensar que és uma jovem maravilhosa e corajosa que está a fazer o melhor que pode pelo seu neto.

Bess juntou-se a eles nesse momento. Hank explicou rapidamente que Carly estava a ficar um pouco indecisa.

— Não podes recuar agora — insistiu Bess. — Chegaste até aqui, Carly. Vai em frente. Esquece tudo o resto e pensa só no bebé.

O funcionário pediu silêncio, nesse momento, e perguntou quem é que levava a noiva. Bess levantou a mão.

— Eu! — gritou ela.

Todas as cabeças na sala se viraram na sua direcção.

— O pai de Carly não está presente — explicou Bess com um encolher de ombros. — Somos grandes amigas desde a mais tenra idade. Devo ser eu a levá-la.

A declaração foi recebida com uma risada. Bess ignorou-a e endireitou as flores no ramo de Carly, falando suavemente enquanto ajeitava cuidadosamente cada botão.

— Tens de fazer isto, Carly. Não penses duas vezes. Deixa-te ficar ao lado de Hank e diz o que tem de ser dito. As palavras não significam nada.

— Desde quando?

— Desde que tu e o Hank concordaram que não significavam nada.

A multidão abriu alas. Hank foi-se colocar à esquerda do funcionário. Endireitou os ombros, olhando para Zeke ao longe. O estômago de Carly dava voltas e mais voltas e temeu que começasse a ficar agoniada. Era tudo o que faltava agora, que a noiva começasse a vomitar. Ao longe, não conseguia distinguir um irmão do outro. Não é que isso interessasse. Zeke, Hank. Não podia dizer, honestamente, que tivesse alguma preferência. Não queria saber com quem ia casar, desde que arranjasse um marido para pagar as contas. Era horroroso. Era um sacrilégio e uma afronta a tudo o que era sagrado. Não queria acreditar que descera tão baixo.

— Não seria correcto desiludires a família e os amigos desta maneira.

— O coração de Carly começou a bater a toda a velocidade entre as costelas.

— Eles são todos muito simpáticos, e foram tão gentis.

Bess mexeu noutra flor e sorriu.

— E não estás contente por isso? Esta gente compreende porque é que estás a fazer isto, e sentem-se reconhecidos.

Foi então que viu uma cabeça escura, mesmo ao nível dos seus olhos. Carly sobressaltou-se. Zeke. Ele colocou-lhe uma mão por cima do ombro.

— A tua amiga está absolutamente certa. O meu sobrinho ou sobrinha é a primeira preocupação neste momento. Não te preocupes com mais nada. Se não quiserem compreender a necessidade deste casamento, descansa que eu intervirei.

Bess sorriu e disse:

— Ups. Não me apercebi de que tínhamos um coscuvilheiro entre nós. Zeke sorriu.

— Tenho uma tendência para escutar as coisas que não devo. — Olhou para Carly de forma amigável, e a expressão desta suavizou-se. — Com toda a sinceridade, querida, não tens outra alternativa senão fazer isto. E não vejas as coisas como uma grande decepção. Quando se trata do bem-estar de uma criança nada mais interessa.

Carly levou esse pensamento com ela até à parte da frente da sala, onde ficou ao lado de um homem que ela mal conhecia para se tornar numa mulher oficialmente casada.

Hank foi o primeiro a pronunciar os votos. Virou-lhe as palmas da mão para cima, conforme pedido, segurou-as nas suas e repetiu as palavras perante o funcionário da conservatória.

— Estas mãos serão tuas, daqui para a frente, tuas em tempos de aflição para te poderem confortar, tuas em tempos difíceis para te poderem sustentar, tuas em tempo de perigo para te poderem proteger. Com a tua ajuda, farão com que os nossos sonhos se tornem realidade. Dar-te-ão força quando fraquejares. Dar-te-ão coragem quando sentires medo. E juro, perante Deus e todas as testemunhas aqui presentes, que nunca serão erguidas contra ti.

Carly ficou com a visão enevoada de lágrimas, o que não era lá muito bom porque assim deixava de o ver. As suas mãos estavam lá, no entanto, segurando nas suas, tendo já cumprindo duas das promessas que acabara de fazer, dando-lhe força quando começava a fraquejar e coragem quando sentia medo. Os outros votos entraram-lhe no cérebro e ressoaram de forma a criar um conjunto de palavras desconexas.

Depois, o funcionário disse:

— Carly Jane Adams, por favor, repita depois de mim. — Ele prosseguiu, proferindo frases curtas para ela repetir, palavra por palavra, prometendo amar e honrar Hank Coulter até que a morte os separasse. Ela não ouviu a palavra obedecer nos votos que lhe pediram para repetir, mas ficou muito triste e nervosa, pois, tanto quanto sabia, acabara de recitar o «Gettysburg Address» 8.

De uma maneira ou de outra, lá conseguiu passar por toda a cerimónia, permitindo que Hank lhe pusesse a aliança no dedo, para depois ser a vez dela, com a sua ajuda, de lhe colocar o anel no dedo. Quando o funcionário os declarou marido e mulher, as pernas de Carly começaram a tremer, mas o braço de Hank estava lá, forte e firme em torno da sua cintura, para a amparar. Quando lhe disseram que ele podia beijar a noiva, deu-lhe um beijo leve e impessoal, um ligeiro toque nos lábios que era mais um sonho do que realidade.

Estava feito. Carly e Hank viraram-se para enfrentar os convidados. O funcionário apresentou-os como o senhor e a senhora Hank Coulter. Toda a gente se aproximou para os felicitar.

Depois disso, Carly procedeu com as formalidades, assinando o seu nome num papel que mal conseguia ver, depois dando o braço a Hank para sair da conservatória. A viagem para a casa dos pais dele decorreu sem que ela desse por isso e, assim que chegaram, Carly procedeu mais uma vez com as formalidades, sentindo-se como se estivesse presa numa armadilha. As vozes soavam à sua volta — um barulho de fundo que lhe penetrava os tímpanos, enchia a cabeça e não ficava registado. Iria conseguir passar por isto. Teria de passar por isto.

Hank nunca largou Carly. Embora ela se mostrasse tensa de todas as vezes que ele lhe tocava, envolvia-a amiúde com um braço, sentido necessidade de a reconfortar.

Depois de ter circundado a sala para conversar com toda a gente, Bess juntou-se a Hank e a Carly junto à lareira.

— É uma bonita recepção — observou ela. Não acredito que a Mary tenha conseguido tratar de tudo isto em tão pouco tempo.

— A minha mãe é uma pessoa extraordinária — respondeu Hank. — E adora receber, provavelmente porque tem um talento inato para isso.

— Está tudo perfeito — acrescentou Carly. — Quando penso no trabalho que ela teve, sinto-me horrível. Não estava previsto ser assim.

Hank já pedira desculpa pela dimensão da recepção e pelo facto de a sua mãe ter insistido no facto. Mary começou a circular pela sala nessa altura, com uma bandeja repleta de entradas. Quando chegou ao pé de Hank e Carly, esta pegou com gentileza num pequeno prato e, respeitosamente, seleccionou vários acepipes.

— Nham! — disse Bess, depois de ter provado um cogumelo estufado. — Que delícia!

Depois de se ter servido, Hank congratulou a mãe pelos preparativos e agradeceu-lhe de novo todo o trabalho que teve.

— Não foi nada! — protestou Mary. — Conheces-me. Adoro fazer estas coisas. — Esboçou um sorriso para Carly. — É um dia muito especial.

Mary afastou-se e, de cada vez que observava a sala para se certificar de que todos os convidados eram servidos, o seu olhar recaía de novo sobre Hank e Carly.

— Se não gostas dos aperitivos, não és obrigada a comê-los — murmurou Hank à noiva. — Sei que tens andado com o estômago muito sensível.

Carly sorriu e abanou a cabeça.

— Estava tão nervosa, esta manhã, que me esqueci de almoçar. Convinha pôr alguma coisa no estômago. Tendo a ficar mais enjoada quando não como.

Conseguiu engolir três crackers barradas com queijos seleccionados e enfeitadas com azeitonas verdes. Hank reparou nela a comer sem apetite.

— Demasiado calórico? — perguntou.

Ela acenou de forma quase imperceptível. Hank esvaziou rapidamente o seu prato e trocou-o com o dela. Ela lançou-lhe um olhar de gratidão.

— Obrigada, Hank. Não quero ferir os sentimentos da tua mãe não comendo nada.

Hank já reparara nisso — o que o fez pensar na doçura e gentileza do seu ser. Alguns minutos depois, confirmou essa opinião ao vê-la comentar com apreço o bolo que Mary fizera e decorara.

— Está tudo uma maravilha — disse Carly, tocando com toda a deferência nos bonitos guardanapos personalizados. — A recepção não podia estar mais bonita, Mary. Muito obrigada por se ter dado ao trabalho.

— Deves tratar-me por mãe — lembrou-lhe Mary —, e não me deu trabalho nenhum. Fi-lo com todo o gosto.

Quando Hank e Carly foram até à mesa para cortarem o bolo e brindarem com champanhe, Hank hesitou. As mulheres grávidas não deviam tocar no álcool.

— Não faz mal — murmurou Zeke ao ouvido de Hank. — Esvaziei uma garrafa e enchia-a com sidra espumante.

Hank queria abraçar o irmão.

— Obrigado, Zeke. Devo-te esta. Zeke olhou para Carly.

— Que tal? — perguntou com um sorriso malandro. — Somos um grupo bastante ruidoso. Já te sentes abalada por isso?

Carly riu-se.

— Têm uma grande família. Mas são todos tão simpáticos que não me sinto nada abalada.

Isso era verdade, até um certo ponto. Carly gostava da família de Hank. Como é que poderia não gostar? Mas isso não significava que se sentisse à vontade. Desde a cerimónia do casamento que Hank passara a tocá-la com mais frequência, de uma maneira que ela achava um pouco possessiva. De cada vez que ele a envolvia com um braço, ficava com o coração aos pulos, e era tudo o que podia fazer para conseguir respirar normalmente quando ele lhe punha a mão sobre as costelas, com os dedos a aproximarem-se perigosamente da parte inferior do peito. E se ele mudasse de opinião acerca do seu acordo pré-nupcial? Até agora, ainda não lhe entregara nada por escrito, conforme prometera.

Carly não tinha tempo para se pôr a pensar muito no assunto, na medida em que a festa estava a decorrer, mas a preocupação continuava presente na parte mais recôndita da sua mente, pronta para passar para primeiro plano de cada vez que o marido lhe tocava de uma forma que ela achava possessiva.

Hank encheu as taças de champanhe, com uma fita a decorar as suas hastes, depois enlaçaram as mãos e brindaram ao futuro. Enquanto engolia a sidra espumante, não pôde deixar de olhar para a sua noiva com um orgulho crescente. Por mais difícil que a situação fosse para ela, comportara-se com extrema graciosidade durante toda a tarde. Hank já nem se lembrava do número de vezes que os seus parentes e amigos o tinham congratulado pela sorte que tivera em arranjar um partido daqueles, e ele concordava inteiramente com eles. Como conseguira arranjar alguém como Carly num bar daqueles, não sabia.

Ele pegou-lhe na mão para cortar o bolo. Toda a gente aplaudiu. Serviu uma fatia num pequeno prato de papel decorado com fitas e flores prateadas. Carly deu-lhe a provar o primeiro pedaço, tendo o cuidado de não lhe sujar a boca com a cobertura. Depois disso, coube-lhe a ele colocar uma pequena quantidade no seu próprio garfo e levá-lo à boca dela.

Toda a gente aplaudiu e brindou à felicidade do casal. Hank manteve um braço sobre os ombros da mulher, enquanto os brindes se sucediam. Harv foi o primeiro, dizendo que ele e Mary estavam muito contentes por receberem Carly no seio da família e que desejavam toda a felicidade aos recém-casados.

Depois de ter voltado a encher os copos de toda a gente, Jake, o mais velho dos irmãos Coulter, interveio:

— Parece-me estranho estar aqui — disse ele. — Vi o meu irmão a crescer, assoei-lhe o nariz, pus-lhe pensos rápidos nos joelhos esfolados e defendi-o sempre na adolescência quando se metia em brigas. Ao longo do tempo, comecei a pensar que seria para sempre o meu irmão mais novo, que nada iria mudar. — Com os olhos a brilhar, Jake ergueu a taça. — Bem-vinda à nossa família, Carly. Parabéns, maninho. Desejo tudo o que há de melhor para vocês os dois.

Zeke falou a seguir.

— Não acredito que o meu irmão mais novo já esteja casado. Enquanto o via a dar o nó, hoje, agradeci a Deus, durante toda a cerimónia, por não ser eu. — Toda a gente se riu. Zeke olhou para Carly. — Quase toda, para ser mais preciso. Devo confessar que houve momentos, enquanto olhava para a noiva do meu irmão, que me senti roído de inveja. Ele acertou em cheio. É a noiva mais bonita que alguma vez vi.

As mulheres arrulharam, «Oh, que simpático», e os homens exclamaram, «Aqui, aqui!»

Zeke bebeu um gole de champanhe, depois virou a sua atenção para os recém-casados.

— Agora interrogo-me porque é que ainda aqui estás, maninho. Se eu tivesse uma noiva tão bonita, estaria ansioso por metê-la dentro da carrinha e começar a lua-de-mel. O que é que vos detém?

Mary gritou, aflita:

— Ainda não comemos o bolo, e eles nem sequer abriram os presentes! Hank desejava ardentemente sair dali o mais cedo possível. Não sabia até que ponto Carly conseguiria levar isto até ao fim da forma mais graciosa. Por um lado, apreciava o facto de tanto o pai como Zeke, que sabia que o casamento era só temporário, não terem dado com a língua nos dentes. Por outro, também compreendia que devia ser difícil para Carly suportar tantos votos de felicidades, para já não falar das pistas de que Hank podia estar desejoso de se ir embora para consumar a união.

Estava contente por ver Carly a comer uma fatia inteira de bolo. Terminada a parte da recepção destinada aos comes e bebes, toda a gente se dirigiu para sala de estar para ver os recém-casados a abrirem os presentes. Hank nunca vira tantos pequenos electrodomésticos juntos, e depressa perdeu o fio à meada em relação a quem tinha dado o quê. Ficou aliviado por ver que a sua cunhada Molly fizera uma lista e tomou nota mental para não se esquecer de lhe agradecer.

Depois de todos os presentes abertos, Hank agarrou na mulher pelo braço para fazer uma ronda e agradecer a presença de todos os convidados. Carly apertou gentilmente a mão aos homens e devolveu os abraços das mulheres. Foi especialmente simpática e mostrou-se bastante reconhecida quando agradeceu à mãe de Hank.

Hank podia ter passado sem o arroz e o atirar do ramo, mas Mary Coulter tratara de todos os pormenores. Debaixo de uma chuva de arroz, ele apressou a noiva a entrar na carrinha, estacionada na rua. No passeio, Carly virou-se para atirar o ramo.

— Aqui! — gritou Bess. — Se eu o apanhar, talvez tenha sorte! Carly riu-se.

— Aqui vai! — anunciou ela.

O ramo partiu a voar, mas não na direcção de Bess, como era intenção de Carly. Ao invés, o ramo de flores guinou para a esquerda e atingiu Zeke no meio do peito. Ele reagiu instintivamente, agarrando no ramo para evitar que caísse no chão. Depois sorriu, o que fez toda a gente desatar à gargalhada.

— Nem pensar — disse Zeke. — Não sou o próximo. Quero continuar solteiro.

Tentou entregar as flores a Bess, mas esta abanou a cabeça.

— Não. Foste tu que as apanhaste. Não te podes safar.

Ainda estavam todos a rir quando Hank ajudou a mulher a entrar na carrinha. Sem pensar, debruçara-se sobre o colo de Carly para prender o cinto de segurança e ajustar-lhe a parte de cima sobre o peito da forma mais correcta. No processo, tocou-lhe nos seios com os nós dos dedos. Ela respirou fundo. Ele deteve-se. Por uns instantes, cheios de tensão, ficaram a olhar um para o outro, com Hank perfeitamente consciente da forma como o seu mamilo endurecera ao mais simples toque.

Recompôs-se rapidamente e fechou a porta do passageiro. Quando circundou a parte da frente do carro para se sentar ao volante, viu Carly encostada à porta, com os braços muito apertados em torno da cintura esguia. A sua postura gritava, «Não me toques.»

«Que maneira mais estranha de começar um casamento», pensou Hank enquanto carregava no acelerador para se afastarem dali.


Capítulo Treze

Enquanto Hank conduzia pelos terrenos do Lazy J. na direcção da casa de madeira junto ao riacho, as luzes da carrinha projectavam um feixe dourado através dos grossos troncos de pinheiros, com os ramos balouçantes a criarem um teatro de sombras pretas dançando entre os troncos como bailarinas loucas. Para além das luzes, a floresta escondia-se num mar de escuridão.

Carly encostou-se à porta do passageiro. Sentia-se vagamente nauseada e só esperava que não se pusesse a vomitar. Olhou para o mundo enevoado do outro lado das janelas, desejando estar a deslocar-se para o seu apartamento a fim de dormir na sua própria cama. Os acontecimentos do dia haviam-na esgotado. O rosto doía-lhe de sorrir tanto.

— Estás bem? — perguntou Hank.

Fantástica. Ela estava casada com um homem que mal conhecia, e esta era a sua noite de núpcias. Queria acreditar que Hank manteria a sua promessa, mas dado o facto de ele não lhe ter chegado a entregar o acordo assinado, como prometido, temia que mudasse de opinião. Desejava agora ter-lhe pedido o documento, mas fora um dia tão louco e agitado, que se esquecera de o fazer.

— Estou bem — respondeu ela. — Apenas cansada.

— Eu também. Foi uma tarde muito cansativa.

Ela duvidava seriamente que o fim da tarde pudesse ser muito melhor. Casada. De todas as vezes que pensava no assunto, tinha dificuldades em respirar.

Hank parou o veículo junto a uma estrutura atarracada e sombria, e desligou as luzes e o motor.

— Lar, doce lar — disse ele. — É apenas uma pequena casa de maneira, com dois quartos, nada por aí além. Mas podemos dar-lhe um jeito. Pensei que te sentirias mais confortável aqui do que na casa principal. Assim poderás ter mais privacidade.

Nesse momento, Carly não estava nada interessada em saber como era o lugar. A única coisa que queria era deitar-se numa superfície razoavelmente limpa, preferencialmente sozinha, e dormir.

— Deixa-te estar aí — instruiu ele. — Já volto. Está muito escuro lá fora e o terreno é irregular.

Inclinou-se sobre o assento para retirar a mala dela. Quando ele abriu a porta, a luz do tecto brilhou, com a claridade a dilacerar-lhe os olhos doridos. O ar fresco da noite entrou dentro do veículo, fazendo com que os seus braços se arrepiassem. Sentiu-se aliviada, quando ele fechou a porta, mergulhando-a de novo na escuridão.

Pouco tempo depois, ele bateu no vidro da janela. Perante o aviso, Carly endireitou-se e desapertou o cinto de segurança enquanto ele abria a porta. Quando este lhe tocou no cotovelo, ela virou-se, pensando que ele lhe estava a oferecer uma mão firme para sair do veículo. Em vez disso, agarrou-a pela cintura e pô-la facilmente no chão. Durante este contacto breve, Carly sentiu a força dos ombros e braços de Hank — camadas de músculo vibrante que se comprimiam sob o casaco de lã...

Ele envolveu-a pela cintura com um braço, amparando-a com a sua grande mão espalmada.

— Peço desculpa pelos buracos. Como a casa está quase sempre vazia, não temos mantido o terreno à volta. Cuidado. — Segurou-a com maior firmeza enquanto se inclinava para pegar na mala que colocara no pára-choques da frente. — Alguns destes buracos são bastante fundos.

Carly ficou aliviada quando chegaram ao alpendre. Ele libertou-a para abrir a porta, depois recuou para a deixar entrar. No momento em que mergulhava na escuridão interior, tremeu, apesar do aconchego que sentiu à volta dela. Hank ligou um candeeiro de mesa para banhar a sala de uma luz fraca e dourada.

— A Bess disse que a luz fere os teus olhos — disse ele —, por isso pus umas lâmpadas de quarenta watts. Espero que ajude.

Ajudava imenso, o brilho fraco e dourado em vez da luz ofuscante. Nem queria acreditar que ele tivesse sido tão cuidadoso.

— Óptimo, Hank. Obrigada por teres pensado nisso.

— Não mexi nas luzes da cozinha e da casa de banho. Se forem muito fortes, diz, que eu substituo.

Fechou a porta, depois tirou o casaco e atirou-o para cima de uma cadeira de cabedal castanho com um ar muito confortável. Ainda a tremer, Carly esfregou os braços enquanto avançava na pequena sala de estar. Uma lareira feita com seixos rolados decorava uma parede à sua direita. Um sofá de cabedal e umas tantas cadeiras jaziam dispostos em frente da lareira, o que a fez pensar em noites de Inverno frias passadas junto ao borralho acolhedor. Do outro lado do sofá, viu uma velha mesa de madeira com cadeiras.

— Tenho a lareira preparada — assegurou-lhe ele. — Queres pôr o meu casaco até a sala ficar mais quente?

A sala não estava na verdade assim tão fria. Carly desconfiava que os seus arrepios se deviam mais ao nervosismo.

— Estou bem assim.

Ele deslocou-se até à lareira. Ao longe, as feições do seu rosto escuro pareciam-lhe vagas, o contorno da sua estrutura imponente indistinto, mas isso não contribuiu para lhe diminuir o tamanho. Era claramente mais alto do que candeeiro de pé alto que havia ao lado dela, e a sua camisa branca enchia-lhe a visão, tornando-o ainda mais largo na zona do peito e dos ombros.

Ele agachou-se para acender a lareira. As chamas cor de âmbar saltaram e crepitaram, iluminando de dourado o seu corpo delgado. Carly sentiu o coração a palpitar. A respiração tornou-se mais rápida e superficial. Era uma loucura pôr-se a pensar na noite em que se haviam conhecido, mas não podia evitar que isso acontecesse. Os beijos que fizeram os seus corpos fundirem-se, o calor perturbante que irradiava das suas mãos grandes e as palavras doces que ele pronunciara. Como sempre, sentiu um aperto no estômago quando se lembrou da dor que se seguira.

Relembrando-se da força que sentira nos seus braços e ombros quando ele a retirara da carrinha, sabia que não poderia fazer nada para o impedir de levar por diante os seus privilégios maritais, se assim o desejasse. A possibilidade fez com que os seus nervos ficassem à flor da pele, o que veio piorar ainda mais a sua náusea.

— Não tardará a ficar quente aqui — ouviu-o dizer.

Ele pôs-se de pé e virou-se na sua direcção. Mesmo ao longe, o azul dos seus olhos era intenso e perturbador. Carly tentou fazer com que a sua mente se esvaziasse — mas os pensamentos traidores não se iam embora. Agora, desse por onde desse, estava prestes a descobrir se Hank Coulter era um homem de palavra.

Viu-o a atravessar lentamente a sala, de mãos na cintura, os seus movimentos uma ondulação puramente masculina de ancas esguias e pernas longas e bem musculadas. Quando ele surgiu à sua frente, sorriu, parecendo tão tenso quanto ela. A sua expressão não enganava ninguém.

— Queres ver a casa?

— Oh, claro. É uma boa ideia.

Ele contornou a parede que dividia a cozinha da pequena sala de estar.

— Aqui é a cozinha. — Uma risada iluminou-lhe os olhos no momento em que o seu olhar se cruzou com o dela. Com um aceno de mão, indicou a mesa. — Completa com uma zona de refeições não-muito-bonita, com a característica adicional de poder servir de sala de jogos, canto do pequeno-almoço ou escritório. — Indicou a porta que ficava do outro lado. — É o quarto das traseiras. Tenho as minhas coisas lá. — Inclinando a cabeça, acrescentou: — O quarto da frente fica... bem, na parte da frente.

Carly riu-se nervosamente enquanto ele a conduzia até à porta aberta e se inclinava para acender a luz do tecto. A iluminação suave veio confirmar que ele diminuíra a intensidade das lâmpadas no candeeiro. Hesitou antes de o seguir até ao quarto. Depois recriminou-se por estar a ser tão pateta. Se ele renegasse a sua promessa e a pressionasse a fazer sexo, ela sobreviveria. Até agora, não dera por ele ser um homem cruel, apenas impulsivo e egoísta.

— Tal como disse, não é nada por aí além, e não é muito grande — desculpou-se no momento em que ela entrava no pequeno quarto.

— Que cama tão bonita. É de latão? Ele acenou num gesto afirmativo.

— A Molly diz que vale muito porque é antiga. Está na família há anos. Não é lá muito grande, pois as pessoas dantes eram mais pequenas do que agora. Os meus pés ficam de fora.

Carly tentou imaginá-lo a dormir ali, com as longas pernas saindo para fora do colchão, os pés a espreitarem por entre as extremidades de latão. Só os seus ombros ocupavam metade do colchão.

— Vai ser o meu quarto?

— Sim. A mulher-a-dias fez uma limpeza a fundo. Lavou todas as gavetas e prateleiras. Não tem muita arrumação, mas deves conseguir guardar todas as tuas coisas.

— Não tenho assim tanta roupa. — Inclinou-se para apalpar o colchão. — Como era cega, nunca liguei muito à moda.

Ele esfregou o queixo.

— Se estás a pedir desculpa por não dares muita importância à roupa, não o faças. Vou ter de pagar as tuas coisas, por uns tempos, pelo que não vais ouvir queixas da minha parte. — Ele recuou. — Não é que me importe que compres roupa nova.

Carly não gostava da ideia de ficar tão dependente dele para tudo.

— Não, claro que não. Não pensei que estivesses a implicar isso.

— A casa de banho fica logo à esquerda, à saída do quarto. Se quiseres tomar um duche, tens toalhas lavadas no armário da roupa em frente do lavatório.

— Parece-me uma boa ideia.

Dirigiu-se à sala de estar para lhe ir buscar a bagagem.

— Estás com fome? — perguntou ele, enquanto lhe passava a mala para as mãos.

Carly sentiu o estômago a dar uma reviravolta só de ouvir falar em comida.

— Não, não. Não consigo comer nada.

Ele passou com uma mão pelo cabelo. Depois aclarou a garganta.

— Bem. — Sorriu levemente. — Por falar em comida... Acho que vou fritar um pouco de bacon com ovos. Não queres fazer-me companhia? As entradas e o bolo da mãe há muito que marcharam.

Carly abanou a cabeça.

— Não, obrigada. Vai tu. Acho que vou refrescar-me e preparar-me para ir para a cama.

Ficou aliviada quando ele finalmente a deixou. Agarrando depressa na mala, foi até à casa de banho, esperando enfiar-se debaixo do duche e ir logo para a cama, fingindo estar a dormir quando ele acabasse de cozinhar.

Quando ligou a luz da casa de banho, o brilho do candeeiro do tecto cegou-a momentaneamente. Vacilou enquanto fechava a porta. Problema. Não havia chave. Sentia-se pouco à vontade a tomar duche sem saber se Hank iria ou não ter com ela. Mas não havia maneira de contornar a questão. Ela não podia viver ali sem ter por vezes de tomar banho quando ele estava em casa.

A porcelana branca da casa de banho brilhava sob a luz intensa. Pousou a bolsa de cosméticos na caixa do autoclismo e franziu os seus olhos sensíveis para os proteger da luz enquanto ligava a ventoinha do tecto e começava a tirar a roupa.

Minutos depois de ter ligado o chuveiro e entrado na banheira, um cheiro enjoativo invadiu por completo as narinas de Carly. «Bacon.» Sempre consciente do colesterol, Bess evitava comer carne de porco e, desde que ficara grávida, Carly tomava sempre um pequeno-almoço pouco convencional. Há semanas que não se expunha ao cheiro do bacon frito.

«O que era uma bênção», pensou, enquanto o odor se intensificava. O próprio ar estava saturado de gordura, empestando-lhe a língua e a garganta de todas as vezes que respirava. A ventoinha no tecto da casa de banho parecia aspirar o cheiro da carne a fritar que entrava por debaixo da porta. Ouvira falar de mulheres grávidas que ficavam terrivelmente enjoadas só com o cheiro da gordura, mas nunca imaginara que fosse assim tão horrível. Sentiu o estômago a dar uma reviravolta. Engoliu apressadamente, tentando evitar o vómito. A sensação de náusea passou de ligeira a profunda em poucos segundos. Vomitar, ela ia vomitar.

Carly mal conseguiu apanhar o cabelo antes de o vómito surgir em ondas violentas. Atirou para trás as cortinas, saltou da banheira e só teve tempo de pegar numa toalha antes de o seu estômago se revoltar por completo.

Hank libertara-se rapidamente da sua roupa de casamento enquanto o bacon fritava. Com a camisa de trabalho ainda por abotoar, estava prestes a partir um ovo na frigideira quando ouviu um som estranho. Inclinou a cabeça para ouvir. Parecia que Carly estava a vomitar. Desligou o bico do gás e gritou:

— Carly, está tudo bem?

Ela parecia não estar bem. Pôs a mão no puxador. Ouviu o som de vomitar outra vez. Quando já não podia esperar mais, abriu a porta. Envolvida numa toalha, estava de joelhos junto ao lavatório, com os seus braços esguios agarrados à borda do lavatório para apoiar a parte de cima do corpo. Olhou e entrou. Ela viu-o do canto do olho e largou as mãos do lavatório para puxar a toalha turca para cima.

— Vai-te embora. Não estou vestida. — Um espasmo violento abanou-lhe o corpo. Quando passou, gemeu e disse:

— Sai daqui. Por favor. Preciso de privacidade.

Nem pensar. Hank agarrou numa toalha de lavar limpa, que encontrou junto ao lavatório, e molhou-a com água fria. Depois ajoelhou-se atrás dela.

— Apoia-te, querida — disse ele, enquanto lhe punha um braço em torno da cintura.

As mãos dela cerraram-se em torno do pulso e antebraços de Hank. A toalha começou a escorregar e ela choramingou de aflição.

— Pronto, pronto. — Hank desfez-se da toalha de lavar e agarrou no roupão que ela tirara da mala e deixara em cima da bancada do lavatório. — Não faz mal, querida. Eu visto-te.

Por baixo do seu pulso, sentiu os músculos do estômago de Carly a contraírem-se. Seguidamente, o corpo dela contorceu-se no momento em que lhe sobreveio outra onda de náusea. Não saiu nada. Quando ele bebia grandes quantidades de álcool, tinha por vezes vómitos secos e sabia como eram dolorosos. Também se lembrava de quão exausto costumava ficar.

Depois dos espasmos terem passado, suportou o peso dela com um braço enquanto tentava enfiar-lhe a camisa de dormir pela cabeça. Quando agarrou numa das mãos para a enfiar dentro da manga, ela resistiu, agarrando-se freneticamente à toalha.

— Não vou deixar a toalha escorregar. Pronto. Dá-me a tua mão. — Actuando por partes, conseguiu finalmente vestir-lhe a camisa de noite. — Estás a ver? — As amplas pregas de algodão rodeavam-na a ela e à toalha. — Já estás completamente tapada.

O coração de Hank sobressaltou-se quando ela deixou cair a cabeça em cima do seu ombro. Sentiu o frio do cabelo molhado em contacto com o seu peito nu. Tirou a toalha que ficara debaixo da camisa de noite e secou-lhe o cabelo com uma mão para evitar que a roupa se molhasse. Ela manteve-se ligeiramente encostada ao corpo dele enquanto ele fazia o trabalho.

— Fiquei enjoada, tão enjoada — murmurou ela. — O bacon. O cheiro.

— Meu Deus, desculpa. — Hank lembrava-se de a sua mãe lhe ter contado como ficava sempre enjoada quando estava grávida. — Não pensei nisso.

— Eu também não — disse ela debilmente. — Não sabia que me fazia vomitar.

Hank desejava poder trocar de lugar com ela. O esforço de vomitar deixara-a totalmente exausta. Conseguia sentir o corpo dela a tremer.

— Estou aqui contigo, querida. Não estou habituado a tratar de mulheres grávidas, mas vou aprendendo.

Atirou a toalha para um canto e agarrou na toalha de lavar outra vez. Abriu a torneira, refrescou a toalha com água fria e passou-lhe com ela sobre o rosto. Enquanto esfregava por baixo dos olhos, viu-a a franzir o nariz e as sobrancelhas. O seu rosto pequeno era um mapa de listras pretas, resultado do rímel que aplicara de manhã nas pestanas. Depois de ter esfregado o rosto, pegou-lhe no queixo para olhar para a sua expressão pálida. Perfeito. Mesmo com o cabelo pendendo em canudos molhados sobre os ombros, era linda — um anjo de igreja, tal como a descrevera ao seu pai. Só que ela era maravilhosamente real, e uma perfeita doçura — uma mulher impossivelmente bonita que vivera numa redoma toda a vida, até ele aparecer para a tirar de lá.

— Espero que a frescura te alivie um pouco. Eu fico sempre melhor.

— Mmm — murmurou ela, transferindo ainda mais o seu peso para cima dele.

Hank passou-lhe com a toalha de lavar pelo pescoço arqueado. Ela suspirou, com as suas suaves nádegas roçando-lhe pela parte de cima da coxa. Uma certa parte do seu corpo endureceu, e ele cerrou os dentes, odiando-se a si próprio por estar a reagir ao contacto. Ela não iria perceber que um homem não consegue ter controlo sobre estas coisas. Ele não a queria alarmar.

— Quando isto passar, meto-te na cama. Talvez consigas adormecer. Sem aviso prévio, os vómitos assolaram-na de novo. Hank agarrou-lhe nos ombros até a náusea abrandar. A violência dos vómitos preocupava-o. Temia que pudessem fazer mal a ela ou ao bebé. Depois disso, pressionou-lhe de novo a toalha molhada sobre o pescoço convulsivo. A frieza parecia ajudar, e ela suspirou a tremer.

— Isto é tão humilhante. Por mim, morria já.

O coração de Hank sobressaltou-se perante a resignação sem esperança da sua voz. Pousou o queixo em cima da cabeça dela.

— Não sejas tola. Toda a gente vomita de vez em quando.

Ela estremeceu e engoliu em seco. Ele segurou-a durante algum tempo. Depois recolheu-a nos braços, endireitou-se com alguma dificuldade e transportou-a até ao quarto. Sentiu o calor e a humidade que se desprendiam da parte de trás das coxas nuas de Carly no interior do seu antebraço direito. Para a poder deitar teve de passar para o outro lado da cama.

Ela gemeu quando tocou com a cabeça na almofada. Depois puxou a bainha da camisa de noite para baixo, procurando cobrir as pernas. Hank ajudou-a, endireitando o tecido no sítio onde se encontrava preso sob o peso do corpo. Sentiu os nós dos dedos em contacto com a superfície suave da carne e vieram-lhe à mente recordações daquela noite, do contacto com a sua pele macia e sedosa ao puxar-lhe as calças de ganga para baixo.

— Não posso sair da casa de banho — protestou ela. — Vou vomitar outra vez, de certeza.

Hank voltou à casa de banho para ir buscar um caixote do lixo com uma nova cobertura de plástico. Assim que o depositou nas suas mãos, ela virou-se, agarrou-o com um braço e apoiou o queixo na borda. Ele sentou-se ao lado dela e tirou-lhe o cabelo do rosto, desejando saber o que fazer.

— Tirando o pouco que comeste em casa da minha mãe, não ingeriste mais nada desde o pequeno-almoço, pois não?

Ela anuiu com a cabeça quase imperceptivelmente.

Hank olhou para o relógio. Eram nove da noite. Se ela tivesse comido às oito da manhã, não pusera nada de substancial no estômago durante treze horas. Ficar muitas horas sem comer fazia-o sentir-se ligeiramente agoniado, por vezes, e ele não estava na situação dela. Tapou-lhe as pernas com o lençol.

Pouco tempo depois, o corpo de Carly estremecia com violência, fazendo com que os seus joelhos batessem nas ancas de Hank. As suas feições delicadas contorceram-se. Com a ajuda da luz que vinha da casa de banho, ele conseguiu detectar pequenas manchas vermelhas sobre as suas pálpebras. Ela estava a fazer tanta força que tinha os capilares quase a rebentar. O que não podia ser bom nem para ela nem para o bebé.

Molhou outra toalha de lavar e colocou-a junto ao pescoço de Carly. Depois foi até à cozinha para telefonar à mãe. Se alguém o poderia ajudar era Mary Coulter. Dera à luz seis filhos.

Mary estava a rir-se quando atendeu o telefone. Hank calculou que a festa de casamento ainda estivesse muito animada.

— Mãe, sou eu, o Hank. A Carly está muito mal disposta. Vómitos secos. Estou a ficar um pouco preocupado.

Mary mordeu a língua.

— A gripe que anda por aí é muito chata. Tens alguma coisa para aliviar o estômago?

Hank suspirou de cansaço.

— Não é da gripe, mãe. Ela está grávida. Não lhe posso dar qualquer coisa, pois pode fazer mal ao bebé.

Longo silêncio. Depois Mary disse:

— Oh, estou a ver.

Hank desejava ter sido capaz de dar a notícia de uma forma mais suave. «Os planos mais elaborados.» Ouviu Carly a vomitar de novo e passou com uma mão trémula pelo cabelo.

— A situação está a ficar complicada. Não sei o que fazer.

— Bolachas de água e sal e Seven-Up aliviavam sempre o meu estômago quando estava grávida.

— Duvido que ela consiga aguentar uma coisa dessas. — Olhou para o quarto de novo. Carly sossegara agora. — Temo que todo este esforço lhe possa provocar um aborto ou algo de grave.

— Costumava ficar tão agoniada que julgava que ia morrer, mas não morri, nem os meus filhos. Precisas de lhe introduzir qualquer coisa no estômago se ela está com vómitos secos. Tens bolachas de água e sal?

— Não, mas posso ir ver se há na casa principal ou então comprar.

— E Seven-Up — acrescentou Mary. — À temperatura ambiente é o melhor. Deixa o gás dissipar-se um pouco. Pequenos bocadinhos de bolacha e um pouco de gasosa de cada vez. Muito e depressa só a fará vomitar outra vez. Se isto não funcionar, então aconselho-te a ligares para os serviços de urgência para ver se é necessário levá-la até lá. Não sou médica.

— Obrigado, mãe. Mary suspirou.

— Não tens de quê, Hank. Liga-me amanhã de manhã para me dizeres como é que ela e o meu neto estão.

Hank conhecia aquele tom de voz.

— Peço desculpa por te ter dado a notícia desta maneira. Tencionava dizê-lo dentro em breve. Só não queria dizer nada antes do casamento.

— Um filho, Hank? Como é que isso aconteceu?

Hank começou a responder, mas depois, não conseguiu pensar de todo no que dizer. Durante anos, a ingenuidade da mãe fora sempre motivo de troça na família. Contara a todos os filhos que a cegonha os tinha deixado ao lado da cama dentro da bota do pai. Nenhum deles acreditara nisso, claro, mas Mary parecia tão certa dos factos que eles achavam que ela estava convencida de que era verdade. Agora que era adulto, Hank já tinha mais experiência, mas continuava a achar difícil discutir estas coisas com ela.

— Aconteceu, mãe — começou por dizer. Mary mordeu a língua.

— Bem, que agradável surpresa! E nós que estamos sem champanhe. É decididamente uma razão para celebrar. Temos um novo Coulter a caminho.

Hank apertou a cana do nariz. A sua mãe iria dar a novidade a toda a gente, assim que desligasse o telefone, a não ser que o pai conseguisse detê-la. Muito bem. Como se este segredo pudesse manter-se por muito tempo. Ela poupar-lhe-ia o trabalho de ter de contar a toda a gente. Seria menos embaraçoso para Carly desta maneira.

— Adoro-te, mãe.

— Também te adoro. — Ela fez uma pausa. — Podemos ter uma conversa de mãe para filho?

— Acerca do quê? — perguntou com uma certa cautela.

— Não quero ver a tua bonita mulher a ter filhos uns atrás dos outros, com pouco tempo de intervalo entre eles. Precisas de planear essas coisas.

Esta mulher tivera seis filhos como uma metralhadora Gatling disparando ininterruptamente e estava a dar-lhe um sermão?

— Eu sei.

— Sim, bem. Depois disto, tenta fazê-lo ao som de uma música com um bom ritmo. Ouvi dizer que ajuda.

Música? Hank ficou com a ponta das orelhas a arder.

— Essa é nova.

— Não propriamente. Já anda a circular há muito tempo. É chamado o método do ritmo.

Começou a sentir um latejar abafado nas suas têmporas. Estava a suster a respiração para não se desmanchar a rir. Boa piada, se é que ela estava a brincar. Terreno perigoso se não tivesse.

— Hmm.

— E se isso não funcionar tenta usar as tuas meias. A imagem que lhe veio à cabeça fê-lo recuar.

— As minhas meias?

— Sim, querido. — Mary riu-se. — Quando tirares as botas, põe as meias lá dentro. Dessa maneira, a cegonha não consegue fazer a entrega e desloca-se para a porta do vizinho.

Hank ainda estava de pé, sorrindo como um idiota, quando a sua mãe cortou a ligação.

Minutos depois, quando reentrou no quarto de Carly, viu que ela estava a descansar. Odiava ter de a incomodar, mas não queria que ela acordasse sem saber onde ele estava.

Tocou-lhe no ombro.

— Vou tentar arranjar umas coisas para te acalmar o estômago. — Quando ela se mexeu, acrescentou: — Não te queria deixar aqui assim. Se eu tiver que ir a uma loja, importas-te de ficar sozinha durante trinta minutos?

Ela produziu um som ininteligível. Hank puxou a roupa da cama para cima para que ela não arrefecesse.

— Vou num pulo e venho noutro. Está bem?

Ela acenou afirmativamente.

Hank não queria deixá-la, mas não tinha outra opção. Sexta-feira à noite, os empregados iam todos à cidade. Molly e Jake estavam em casa dos pais. Se não houvesse bolachas de água e sal ou Seven-Up na casa principal, teria de ir comprar a algum lado. Lembrando-se da forma como a luz lhe feria os olhos, desligou o candeeiro do tecto quando saiu do quarto.

Carly tentou dormir, mas os fluxos de náusea vinham com tanta frequência que era impossível passar pelas brasas. Tentou deitar-se de costas. Nada feito. O estômago reclamava, de uma maneira ou de outra. «Meu Deus.» Sentia-se tão agoniada que pensou que ia morrer. Quando outra onda de náusea sobreveio, quase desejou que isso acontecesse.

Depois disso, deixou-se ficar com a cabeça apoiada na borda do caixote de lixo, olhando com a vista desfocada para a cobertura de plástico branco que compunha um ninho em torno do seu rosto. Indagou o que é que Hank teria ido arranjar. Esperava que a ajudasse, o que quer que fosse, e fosse seguro para o bebé. Não fazia a mínima ideia das horas que eram, mas calculava que fosse tarde. Não queria acreditar que ele se tivesse vestido e saído de casa só para lhe ir buscar uma coisa para acalmar o estômago. Fora muito simpático da parte dele. Talvez, matutou vagamente, ele não fosse assim tão egoísta como ela pensava.

Como se os seus pensamentos o tivessem atraído, detectou o barulho da carrinha. Instantes depois, a luz dos faróis inundou o quarto. Ouviu o motor a parar. Depois uma porta a bater e o som de botas no alpendre. Ele tinha uma forma de andar inconfundível, uma passada decidida mas relaxada, com um calcanhar a marcar o passo seguinte. Perita em identificar as pessoas pelo andar, registou essa informação. Se a sua vista falhasse por completo, poderia precisar de identificar o som do seu andar.

Ele entrou em casa com um cuidado extremo, reduzindo ao mínimo o barulho. Carly apercebeu-se de que ele julgava que ela estava a dormir. Oh, como desejava que isso tivesse acontecido. De olhos fechados, ouviu-o a aproximar-se da cama.

— Estou acordada — disse-lhe ela, como a sua voz tão rouca que nem parecia a dela.

— Como é que vai a barriguinha? — Uma preocupação nobre engrossou-lhe a voz.

— Na mesma.

— Receava isso. Volto já. Está bem?

Saiu do quarto, sem grandes preocupações agora para evitar o barulho. Ela ouviu o barulho de sacos de papel a serem remexidos, depois o som de passos na direcção da cozinha. Quando ele regressou ao quarto, um minuto depois, disse:

— Aqui tens a cura Coulter para os enjoos matinais: bolachas de água e sal e Seven-Up.

Ela agarrou-se ao caixote de lixo.

— Não consigo. Só vai fazer com que vomite mais.

O copo tilintou quando ele o colocou em cima da mesa. Um suave brilho de âmbar invadiu o quarto assim que ele acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. O colchão afundou-se mal ele se sentou ao lado dela. A luz suave inundou-lhe as feições bem delineadas para que ela o pudesse ver com nitidez.

— Não tens nada no estômago. É por isso que tens vómitos secos. — O papel fez barulho quando ele abriu o pacote de bolachas. — Pequenas quantidades. — Tirou-lhe o caixote de lixo das mãos e colocou-o no chão. — Vamos experimentar a bebida primeiro. A tua boca deve estar demasiado seca para engolires.

— Não consigo — insistiu Carly.

Pôs-lhe um braço por cima dos ombros para a segurar pela nuca com a sua mão grande. Levando-lhe o copo aos lábios, disse:

— Só um pouco, querida.

Carly estava demasiado fraca para discutir com ele. Bebeu um pequeno gole. Para sua surpresa, soube-lhe bem. Hank elevou mais o copo para lhe dar um pouco mais. Depois baixou-lhe a cabeça até à almofada, dando-lhe uma bolacha e obrigando-a a comer um pouco.

— Mantém-na na língua até começar a dissolver-se — aconselhou. — Assim entrará alguma comida no teu estômago. Que tal? Talvez o teu estômago nem sequer repare.

O argumento escapava-lhe, mas ele estava determinado. Ela mordiscou um canto da bolacha e manteve-a na língua até começar a ficar mole. Depois engoliu. Ela esperava que o estômago se revoltasse, mas, em vez disso, limitou-se a fazer um barulho surdo.

Hank desatou a rir.

— Estás a ver? — Ele olhou para o relógio. — Três minutos. Depois comes outra vez.

O silêncio abateu-se sobre eles. Carly não sabia quanto tempo tinha passado. Só sabia que ele lhe dera cinco goles de gasosa, presumivelmente em intervalos de três minutos, e estava a começar a sentir-se melhor quando, de repente, ele disse:

— Precisamos de conversar. Duvido que te apeteça falar, por isso cabe-me a mim a vez. — Pousou os braços em cima dos joelhos. — É a primeira vez que o faço, não sei bem o que dizer. — Ele olhou-a de esguelha com um ar brincalhão. — Talvez seja do ambiente. Da maior parte das vezes, quando levo uma mulher para a cama, conversar é a última coisa que me vem à cabeça.

Carly não sabia com reagir. Ele distraiu-a com um estalar de dedos.

— Lembrei-me de uma coisa. — Pôs a mão no bolso e tirou de lá um papel. — O nosso acordo — explicou ele. — O documento negando qualquer processo de custódia ou obtenção de prazeres da minha parte.

Colocou-o em cima da mesa, a uma distância segura do copo de gasosa.

— Peço desculpa por não to ter dado no apartamento. Tencionava fazê-lo, juntamente com o ramo e o anel, mas depois abriste a porta e... — Deteve-se,

agarrou no lóbulo da orelha e sorriu. — Isto acabou por nos passar ao lado.

— Permaneceu calado durante algum tempo. — No meio daquela confusão toda, espero não te ter magoado ao insistir para que mudasses de vestido e tudo o mais. Estavas linda. A sério. Só que era demasiado vistoso para um casamento à tarde.

Carly olhou para a janela banhada pelo luar. Receber cumprimentos da parte dele era algo embaraçoso, um lembrete brutal da forma estúpida como ela se comportara na noite em que se haviam encontrado. Ele não achava que ela fosse bonita, nunca pensara dessa maneira, e ela fora uma idiota ao resolver entrar para a carrinha com ele.

Ele surpreendeu-a ao tocar-lhe no cabelo. Olhou para ele com um ar desconfiado e viu-o a examiná-la com um sobrolho erguido.

— Estou a ver que disse alguma coisa que te entristeceu.

— Não é nada. — «Nada de importante, para todos os efeitos.» Ela não iria deixar que assim fosse.

Ele arqueou uma sobrancelha escura.

— Tenho de retirar tudo o que disse, ponto por ponto, e descobrir sozinho?

— Não é importante.

— Estou a ver. — O seu tom indicava que ele não estava convencido. Levantou a mão da almofada para lhe dar outro gole de gasosa. Depois estendeu-lhe outra bolacha. Enquanto ela permanecia ali deitada, mastigando um bocado de bolacha que pusera na língua, ele começou a repetir tudo o que lhe dissera:

— Eu disse que lamentava não te ter dado o papel esta tarde. — Parou para lhe observar o rosto. — Não, não foi isso. — Sorriu e tentou de novo.

— Depois mencionei o ramo e o anel. — Olhou-a de perto enquanto falava.

— Estou a ficar em desvantagem. Mais uma tentativa e fico de fora. Depois disso, disse...

Ela engoliu o pedaço de bolacha.

— Paras? Isto é uma parvoíce.

O seu sobrolho ergueu-se outra vez.

— Já sei. Estás triste porque eu te disse que estavas linda.

Carly passou com os dedos trémulos pela colcha de felpa. Desejava que ele não estivesse a olhar para ela daquela maneira.»

— Não gosto quando me elogias. É tudo.

— Estou a ver. — O silêncio abateu-se de novo sobre eles, situação que ele acabou por quebrar perguntando:

— Importas-te de me dizer porquê? — Quando ela não respondeu, disparou uma segunda pergunta. — Ficas nervosa, sabendo que eu acho que és muito bonita?

Ela não queria discutir isto, mas estava a ver que ele não ia desistir.

— Sinto-me desconfortável quando dizes coisas que eu sei que não correspondem à verdade.

— O que te leva a pensar que não correspondem à verdade?

O ar no quarto ficou subitamente demasiado fino para se poder respirar. Como é que ela podia responder àquela pergunta? Preferia não lhe dizer que, antes de ele ter aparecido, nenhum homem olhara para ela duas vezes. Carly sentou-se, sentindo uma necessidade urgente de se afastar dele. A cabeça começou a andar-lhe à roda.

— Ui! — Hank segurou-a pelos ombros. — Se não ficares deitada quieta, vais ter de enfiar de novo a tua linda cabecinha no caixote de lixo.

— Paras? — gritou ela, no momento em que ele a forçava a encostar-se à almofada.

— O que é que eu disse agora?

— A minha «linda cabecinha». Para já não é pequena e também não creio que seja bonita. Eu não sou bonita. Nunca fui bonita. Não quero que me digam que sou bonita. Faço-me entender?

Hank manteve as mãos em cima dos ombros dela, para evitar que ela se sentasse outra vez.

— Acalma-te. Não quero que fiques mal disposta. — Segurou-a com menos força e começou a massajar-lhe ligeiramente a pele através da camisa de noite de mangas compridas. — É obviamente um ponto de atrito. Peço desculpa pelo facto. Discutimos isso depois. Está bem?

— Não quero discutir depois. Não o digas. — Olhando para o seu rosto escuro, lembrou-se de o ter ouvido perguntar, «Já te disse que eras linda?» E, meu Deus, ela acreditara nele. Ela não sabia porque é que isso a magoava tanto, apenas que magoava, como facas rombas dilacerando-lhe o coração. — Não o digas.

Ele libertou-a e recuou um pouco, passando com uma mão pelo cabelo, que ficara amachucado com o chapéu e lhe caía agora sobre a testa em madeixas desgrenhadas. Ela esperava que ele se pusesse a discutir, fazendo confissões sinceras de que ela era a mulher mais bonita que alguma vez conhecera, o que ela achava que era uma mentira. Em vez disso, sorriu e perguntou:

— Estamos a ter a nossa primeira discussão? A pergunta apanhou-a de surpresa.

— O quê?

— Outra vez uma barreira de linguagem? «Discussão». Em inglês citadino, isso traduz-se por briga, bulha, discórdia, desaguisado, luta, conflito. Usam o termo altercação em Portland?

Ele fez com que lhe apetecesse sorrir, o que a irritou ainda mais.

— Altercação não é um termo que usemos com frequência em Portland, mas sei perfeitamente qual é o significado de discussão.

— Óptimo. Se é isso que vai acontecer, convém que tenhas presente a sua definição.

— Não tenciono discutir contigo.

— Estás a começar a querer impor-me o que devo dizer e vamos ter de discutir o assunto, querida. Não há volta a dar.

— Não estou a querer impor-te o que deves dizer.

— Não estás?

— Não. Não aprecio que digas coisas que eu sei que não são verdade, e tenho a certeza de que não achas que eu sou bonita.

— Bem, que diabos! — Coçou a cara ao lado do nariz. — Agora estás a dizer-me o que eu posso pensar? Será que casei com uma mulher autoritária?

Carly tapou os olhos com um braço. Sentia o coração a doer-lhe quando olhava para ele. Como é que era possível sentir-se daquela forma e querer rir ao mesmo tempo?

— Vai-te embora. Quero dormir agora.

— Eu sou o teu fornecedor oficial de gasosa e bolachas. Não vou a lado nenhum enquanto cinco destas bolachas não estiverem no teu estômago.

Ela estendeu-lhe a mão para pegar nas bolachas restantes.

— Muito bem. Dá-mas, que eu como-as. Não preciso que estejas ao pé de mim.

— A minha mãe diz que as tens de comer lentamente. Fico se também quiseres que eu fique.

— Não quero que fiques. Quero que te vás embora.

— Isso não está no nosso contrato. Ela baixou o braço para olhar para ele.

— No nosso quê?

Ele apontou para a folha dobrada na mesa-de-cabeceira.

— No nosso contrato. Está lá escrito que não te pressionarei para fazer sexo, que não mudarei de opinião e te processarei para obter a custódia do nosso filho. Mas não está lá nada sobre o facto de poderes dizer-me o que fazer. — Ele sorriu lentamente. — Confia em mim. Se essa tivesse sido uma das tuas cláusulas nunca teria assinado o papel. Sei exactamente para onde é que me mandarias. — Fez uma pausa. — Não estou a dizer que te culpo por isso.

Carly sorriu contra a sua vontade. Depois sentiu um arrepio quando ele lhe tocou com um dedo no canto da boca.

— Lá está ele outra vez, esse sorriso fabuloso. Repara que eu não disse bonito. Estou a ser cooperativo.

— Quero dormir agora.

— Não me parece. Ainda só comeste um pedaço da terceira bolacha.

— És impossível.

— Também não me parece. Acho que temos de mudar de tema de conversa. Que tal falarmos acerca do rancho?

Ele não esperou pelo seu consentimento para iniciar um monólogo tranquilizador, descrevendo o Lazy J. Começou por lhe falar acerca do incêndio que destruíra a casa principal, pouco tempo depois do casamento de Molly. Depois passou para o processo de reconstrução, explicando a forma como ele e Jake haviam usado madeira da sua própria propriedade para edificar a casa de dois pisos onde Jake e Molly viviam agora.

— Pensei que os troncos tinham de estar secos antes de poderem ser usados — disse ela sonolenta.

— Deviam estar. Arranjámos um dispositivo para secar os nossos no forno. Interrompeu para lhe dar outro gole de gasosa, instigou-a a comer mais um pouco de bolacha e depois começou a falar de novo, contando-lhe acerca da enorme extensão de terra que compreendia o Lazy J.

Carly começou a ficar cada vez mais ensonada, enquanto ele falava, acalmando-a com o timbre profundo e sedoso da sua voz. Ele contou-lhe acerca dos empregados, Shorty, um homem baixo e atarracado, com cabelo cor de areia, cujo melhor amigo no mundo era um rafeiro horroroso chamado Bart que mordera a mão que o alimentava. Depois contou-lhe acerca de Levi, um tipo forte, com uns olhos verdes brilhantes, um forte sotaque sulista e uma velha carrinha toda escaqueirada, denominada Mandy, que ele mantinha em funcionamento à custa de cabides e arame.

No meio da descrição, levantou-lhe a cabeça para lhe dar mais uns goles de gasosa e empurrar-lhe as bolachas para dentro. Não demorou para que as cinco bolachas desaparecessem e ela se sentisse tão ensonada a ponto de já não conseguir manter os olhos abertos.

— Gostas muito deles, não gostas? — perguntou ela meio zonza.

— Dos biscoitos?

Fazendo um esforço para manter os olhos abertos, ela riu-se suavemente e disse:

— Não. Do Shorty e do Levi.

— Oh, eles. — Encolheu os ombros e massajou a nuca. — Amor é uma palavra forte. O Shorty é um pouco briguento e o Levi, bem, tem uns modos tão peculiares que se torna irritante, mas são extremamente leais.

Prosseguiu falando de Danno, um jovem magro de cabeleira ruiva e com mais sardas do que miolos, e um apetite tão voraz que era capaz de morder a ponta sul de um burro virado para norte.

— A ponta sul de um quê? — perguntou ela, balbuciando as palavras. Ele sorriu.

— Desculpa. Preciso de polir a minha linguagem, agora que estou casado. Um burro macho. — Perante o seu olhar de espanto, sorriu abertamente. — Se um burro está virado para norte e lhe mordemos a ponta sul, em que parte é que lhe cravamos os dentes?

Carly abanou a cabeça.

— No traseiro, presumo. Tens de me perdoar por ser lenta nessas coisas. É uma coisa visual. Nunca vi um burro, quanto mais a ponta sul.

— Não? — Os seus olhos encheram-se de brilho. — Parece-me, querida, que vais ter de aprender mais coisas acerca de burros. — O seu sorriso desvaneceu-se e começou a brincar com a roupa da cama. Depois mudou de assunto, perguntando:

— Como vai a barriga?

Carly ainda estava a cismar na história do «burro». Ele estava obviamente a referir-se a ele próprio, levando-a a acreditar que lamentava o seu comportamento naquela noite no Chaps. Contudo, tanto quanto se lembrava, ele ainda não lhe pedira propriamente desculpa, a não ser para dizer que desejava voltar com tudo atrás para fazer as coisas como devia ser.

— Estou a sentir-me melhor — respondeu ela finalmente.

— Isso é bom. O remédio Coulter deve estar a surtir efeito.

Ele estendeu-lhe outra bolacha e começou a contar histórias sobre a vida quotidiana no rancho. Por muito interessada que Carly estivesse, estava a tornar-se cada vez mais difícil manter os olhos abertos. Pouco a pouco, o zumbindo profundo e rouco da voz de Hank foi-se distanciando cada vez mais, e ela acabou por entrar num sono profundo de exaustão.

Hank calou-se e ficou a observar a sua esposa adormecida. O cabelo secara-lhe em leque na almofada. À luz mortiça, as farripas onduladas brilhavam como ouro fundido com lampejos de prata. As suas longas pestanas projectavam fios de aranha no seu rosto pálido. A sua boca suave pedia tentadoramente um beijo.

Não era linda? Meu Deus, quando é que ele dissera ou fizera algo para fazer com que ela acreditasse nisso? Engravidá-la tinha sido uma ofensa terrível. Ao não conseguir confortá-la, depois disso, merecia ser chicoteado antes de ficar com uma bala alojada no cérebro. Mas fazê-la acreditar que era tudo menos perfeita?

Isso era imperdoável.

Ela era um quebra-cabeças. Nunca conhecera uma mulher assim, apesar de não ter razões para se lamentar. Só que não sabia como lidar com a situação. Passara metade do tempo a analisar todas as palavras que dizia, com medo de ofendê-la ou assustá-la. A outra metade do tempo, a tentar deitar cá para fora tudo o que sentia.

Suspirou e flectiu os ombros, suficientemente cansado para também se querer ir deitar. Pensou saudosamente na cama que esperava por ele no quarto das traseiras. Queria lá saber que fosse demasiado pequeno e os seus pés ficassem de fora da cama. Qualquer coisa servia agora. Apenas hesitou em deixar Carly, com medo de que ela viesse a precisar dele. As paredes interiores da casa eram feitas de troncos, o que absorvia o som. Ao dormir no quarto das traseiras, podia não ouvir se ela chamasse.

Decidiu estender-se ao seu lado por cima da colcha. O calor da lareira mantê-lo-ia quente, e ele estaria a jeito se ela acordasse. «Só durante algum tempo», disse para si mesmo, desligando a luz. Enquanto se deitava ao lado dela, enfiou as botas pelas aberturas dos pés da cama para poder esticar as pernas. «Não tinha importância.» Já dormira em estábulos vezes suficientes para não se incomodar com coisas destas.

Adormeceu, mal pousou a cabeça na almofada.

Algum tempo depois, Carly acordou e viu Hank ao lado dela. O quarto estava frio e ele rolara na sua direcção. Sob o feixe de luar que entrava pela janela, o seu rosto escuro tinha um ar infantil, com a sua boca firme relaxada, os contornos salientes da sua face não mais em evidência.

Carly não tinha a certeza de como se sentia a partilhar uma cama com ele. E se ele ficasse demasiado afável durante o sono? Pensou em dar-lhe uma cotovelada. Mas era tarde e ela não queria acordá-lo. Com um suspiro, pôs a sua parte da colcha por cima dele. Enquanto enfiava o tecido debaixo do seu queixo, ele murmurou qualquer coisa e mexeu-se. Depois olhou vagamente para ela durante alguns segundos.

Quando a reconheceu, sorriu ensonado e disse:

— Olá, Charlie. — Depois adormeceu de novo.

Carly agarrou-se à almofada, olhando para o rosto dele. Charlie. Ele não lhe tinha estado a mentir, ao fim e ao cabo. Naquela noite, no bar, ele não fixara realmente o seu nome, apesar de ela o ter corrigido várias vezes. Quando ele lhe contou que tinha andado feito um louco à procura dela, não acreditara realmente nele. Agora tinha razões para se interrogar se ele não tinha dito a verdade.

Não alterava nada. Continuava a ser mais uma de uma longa lista de conquistas — apenas outra mulher a quem dera uma queca numa sexta-feira à noite. Mas, curiosamente, isso fazia-a sentir-se melhor, saber que ele não se esquecera dela imediatamente a seguir.

Enquanto adormecia de novo, Carly arquivou essa ideia no seu coração.


Capítulo Catorze

Na manhã seguinte, Hank ergueu-se da cama assim que o Sol raiou, tomou um duche e, silenciosamente, saiu da casa de banho. Penteando o seu cabelo humedecido, deixou-se ficar ao pé da cama a olhar para Carly. Ela dormia profundamente, com o rosto ainda pálido dos estragos provocados pela náusea da noite anterior. Mesmo assim, ela era bonita, com uma mão elegantemente espalmada na almofada. Tinha vontade de inclinar-se e acordá-la com um beijo.

Loucura. Ela ainda não estava pronta para isso e, até lá, jurara comportar-se de acordo com um estrita política do não me toques. Esgueirando-se do quarto, foi até à cozinha para fazer café. Minutos depois, deixou a casa com uma caneca fumegante na mão, bebendo apenas o seu primeiro gole depois de ter saído do alpendre. «Ah.» Olhou para o rancho, apreciando a tonalidade rosada que banhava a paisagem. Não demoraria para que o Sol se erguesse por completo e os feixes dourados da sua luz iluminassem as árvores gigantes que bordejavam os campos.

Hank partiu para os estábulos. Depois das tarefas matinais, iria até à cidade para recuperar as coisas de Carly. Antes do casamento, ela encaixotara tudo, e as caixas aguardavam agora no apartamento à espera de transporte.

Como estivera tão doente, ontem à noite, não quisera obrigá-la a ir com ele hoje. Iria sozinho. Se Bess já tivesse saído para o trabalho, quando ele lá chegasse, poderia entrar com a chave de Carly. Esperava estar de volta ainda antes de Carly ter acordado para o pequeno-almoço.

Hank regressou a casa às oito e vinte. Acabara de pôr a primeira caixa na sala de estar quando Carly emergiu da casa de banho, envolvida numa toalha branca.

— Oh! — guinchou, e enfiou-se de novo na casa de banho, batendo com a porta com um sonoro pum.

— Vou buscar outra caixa. Podes dirigir-te para o quarto enquanto eu estiver lá fora.

A porta abriu-se e um olho azul espreitou. Ainda a sorrir, Hank saiu de casa. Quando regressou com outra carga, decidiu parar com o transporte das caixas para lhe ir preparar o pequeno-almoço.

Quando ela emergiu, minutos depois, muito bonita com as suas calças de ganga e top cor-de-rosa, Hank estava sentado à mesa, saboreando a sua caneca de café.

— O pequeno-almoço está pronto.

— Oh. Eu, hmm... não costumo comer comida regular a esta hora. Ele debruçou-se sobre a mesa.

— Confia em mim, querida, nada neste pequeno-almoço é regular. Chucrute directamente do frasco, couves-de-bruxelas e leite com chocolate. Que tal a minha memória?

Ela espreitou para dentro das taças, sorrindo de forma hesitante.

— Não precisavas de preparar tudo isto. Hank puxou uma cadeira com a bota.

— Pois é, enfim, já está feito, por isso, senta-te e come.

Enquanto ela se sentava, ele reparou que ela apanhara o cabelo num rabo-de-cavalo. Gostava mais de o ver para baixo. Parecia pecado esconder todos aqueles caracóis tão bonitos. Encostou-se para trás para a observar melhor. Toda a sua vida ouvira a frase, «compleição de marfim imaculada», mas nunca vira nenhuma. Tirando os capilares que lhe manchavam as pálpebras, o semblante oval de Carly era perfeito, com a sua pele tão branca e macia como as natas acabadas de bater.

Ele nunca se cansava de olhar para ela. Tinha um nariz pequeno e direito, os ossos do rosto frágeis e as sobrancelhas cor de mel suavemente arqueadas sobre os grandes olhos expressivos. «Não era bonita?» Sempre que se lembrava de a ouvir dizer isso, ficava com uma dor no coração. Normalmente, aceitaria esse tipo de comentários com um certo cepticismo, partindo do princípio que a mulher estava à procura de um elogio. A maior parte das mulheres sabia se era bonita ou não. Mas Carly era diferente. Quando olhava para o espelho, podia não ver o que toda a gente via — uma jovem delicadamente bonita com olhos capazes de provocarem a perdição de qualquer homem.

Esperava vê-la a devorar a comida. Em vez disso, ela colocou o guardanapo de papel no colo, depois serviu-se um pouco, com um ar tão desconfortável que ele pensou em sair da mesa. Mas achou que era melhor não. Quanto mais depressa ela aprendesse a relaxar à sua beira, melhor. Não lhe estaria a fazer favor nenhum se começasse a afastar-se consecutivamente dela.

— Não acrescentei manteiga ou sal às couves — avisou ele. Ela espetou um garfo.

— Óptimo. Não ponho nada nas couves.

De início, quando começou a comer, levava apenas pequenos pedaços à boca, limpando frequentemente os lábios com o guardanapo. Ao fim de um minuto, no entanto, o apetite intensificou-se e começou a enfiar grandes quantidades de chucrute na boca, emitindo sons suaves de prazer enquanto mastigava.

Hank viu-se a desejar que ela o desejasse daquela maneira. Depois lembrou-se que já o fizera uma vez — e ele estragara tudo.

Ela parou de mastigar subitamente e olhou para ele com os seus grandes e brilhantes olhos azuis.

— O que é? — perguntou ela.

Ele empurrou o chapéu para trás.

— Nada. Fazes com que isso pareça muito bom.

Ela espetou uma couve com um garfo e ofereceu-lhe um pouco.

— Não, obrigado. De manhã, fico-me pelas ofertas de Gema Mole e Ovo Mexido.

— Perdão?

— As nossas galinhas. Têm nome de pratos com ovos. Ovo Mexido, Ovo Estrelado, Merengue. — Encolheu os ombros. — Estúpido, não é? A Molly é uma boa alma. Quando as galinhas deixam de pôr, são levadas a pastar como se fossem cavalos. A única vez que posso comer galinha frita é quando alguma cai para o lado com uma doença coronária.

Ela olhou para ele com um ar espantado.

— Não lhes torcem os pescoços?

— Só se estiverem na lista. De vez em quando, bato os braços e aceno com o chapéu, tentando pregar-lhes um susto de morte. Nunca funciona.

Ela meteu a couve na boca. Uma expressão de extrema felicidade cobriu-lhe o rosto enquanto mastigava e engolia. Seguiram-se vários goles de leite com chocolate. Limpou o bigode do lábio superior e proferiu:

— É fabuloso. Muito obrigada por teres pensado em tudo. É a minha cura matinal para os enjoos.

— A tua cura? — Hank balançou a cadeira para trás e pôs uma bota em cima do joelho. — Tens a certeza de que não é a causa?

Tinha já a bochecha atafulhada com outra couve.

— Nham.

Ele riu-se e bebeu outro gole de café. Normalmente, tomava o pequeno-almoço na casa principal com alimentos mais convencionais. Molly tinha dúvidas em relação à forma como a nova cozinheira alimentava o pessoal, convencida de que o colesterol de toda a gente iria subir vertiginosamente. Se isso fosse verdade, Hank morreria feliz.

— Não és muito entusiasta da comida saudável, pois não, Carly? — não resistiu a perguntar.

Ela olhou para ele com um ar envergonhado.

— Gosto de comer alimentos saudáveis, mas não sou fanática. Tendo em conta o pequeno-almoço que ela estava a tomar, interrogou-se se a noção que ela tinha de «fanática» era a mesma do que a sua. A mulher de Jake, Molly, era uma entusiasta dos produtos saudáveis e quase que matara todos à fome quando Jake a contratou para cozinheira do rancho. Hank nunca ansiara tanto por carne na sua vida.

— És vegetariana?

— Claro que não.

— Assim já estamos entendidos. — Hank estava quase a deixar o assunto morrer, mas, depois, sobreveio-lhe outra preocupação. Da última vez que visitara Portland, jantara em restaurantes e ficara abismado com a quantidade de pratos pelos quais os habitantes da cidade não se importavam de pagar uma fortuna. — Gostas de salada com mistura de vegetais?

— Nham. Adoro. Uh-oh.

— Comes dentes-de-leão?

— As flores não, apesar de ter ouvido dizer que dão um excelente vinho. Hank achou que se podia dar por muito feliz por ela comer carne.

— Diz-me — inquiriu quando o frenesim alimentar de Carly pareceu amainar — A que se deve esta combinação particular de alimentos que te apaziguam o estômago? Alguma ideia?

Ela bebeu outro gole de leite.

— Não, não estou a ver. A única coisa que sei é que anseio loucamente por eles.

— Eram os teus alimentos preferidos antes de engravidares? — «Por favor, diz que não.»

Ela franziu o nariz.

— Gostava de comer salsichas e chucrute, de tempos a tempos, e, por vezes, comia couves-de-bruxelas. Mas era raro.

Hank sentiu-se aliviado ao ouvir isso. E intrigado.

— Então, uma manhã acordaste e soubeste que o chucrute, as couves-de-bruxelas e o leite com chocolate eram aquilo de que precisavas?

— Não propriamente. Despachei primeiro um frasco de pickles de pepino de quatro litros.

«Quatro litros?» Hank suprimiu um arrepio.

— Tudo de uma só vez?

— Oh, não. Demorei alguns dias.

Mesmo assim, ela comera uma enorme quantidade de pickles num espaço de tempo muito curto.

— Se isso apazigua o teu estômago, tudo bem para mim. — Enquanto ela se inclinava para trás na cadeira, com um ar saciado, ele perguntou:

— Como é que te sentes agora?

— Bem. — Deixou escapar um arroto meio contido e corou. — Perdão. Hank não pôde deixar de sorrir.

— Não te contenhas por minha causa. Deixa sair.

As suas faces ficaram ainda mais coradas. Começou a reunir os pratos.

— Obrigada, mais uma vez. Foi muito simpático da tua parte teres-te lembrado de mim.

«Simpático.» Registou a seu favor. Mas havia algo no tom da sua voz que o perturbava. Ela fez uma pausa antes de ir para a cozinha.

— Obrigada igualmente pelas bolachas e pelo Seven-Up de ontem à noite. Não estava à espera que te vestisses e te dispusesses a ir comprar essas coisas àquela hora.

— Serviu, não serviu? É o que interessa. Ela sorriu de forma hesitante.

— Sim, é verdade. Mas não deixa de ser muito simpático da tua parte. Dois pontos a seu favor. Hank observou-a durante alguns instantes enquanto ela lavava os pratos. Jake ajudara-o recentemente a instalar torneiras de cozinha regulares, mas a velha bomba manual no extremo do lava-loiça ainda estava operacional. Quando Carly tocou no manípulo, ele disse:

— É antigo. Vem directamente de uma nascente. A água é fria como o carago. — Ela olhou para ele com um ar espantado. Hank apercebeu-se do que dissera e quis morder a língua. — A água é mais fria do que sei lá o quê. — Que tal assim?

Ela experimentou o manípulo várias vezes e depois recuou quando a água surgiu de rompante.

— Nunca tinha visto uma bomba de água.

Ocorreu-lhe que havia uma data de coisas que ela nunca tinha visto. Tal facto entristeceu-o. Imaginava que ela tivesse desejado experimentar imensas coisas novas depois da cirurgia. Agora ela estava prestes a ficar cega outra vez. É óbvio que ela ainda não sabia a que ritmo é que isso iria acontecer. E ele não tinha a certeza se isso era uma coisa boa. Gostaria de estar certo disso para poder tirar o máximo de partido de todos os momentos.

Enquanto ela acabava de arrumar a cozinha, ele dirigiu-se ao exterior para ir buscar mais caixas. Quando entrou com o último carregamento, ela olhou por cima de uma caixa de cartão que acabara de abrir.

— Onde é que arrumo as minhas coisas? Hank pousou o volume no chão.

— Onde quiseres. A casa também é tua agora. — Viu-a a erguer uma pequena almofada e a passar com os dedos pela superfície com os olhos fechados. O sorriso que viu esboçado na sua boca fê-lo querer sorrir também.

— É especial? — perguntou ele. Ela acenou afirmativamente.

— Foi a minha mãe que a fez quando eu era pequena. Bordou a palavra «Amo-te» com uma linha grossa para eu poder distinguir o traçado das letras.

Hank tentou imaginar uma rapariguinha a ler aquelas palavras com os dedos. Até agora, nunca pensara na vida diferente que um cego levava. Debruçou-se para abrir outra caixa.

— E se eu puser as coisas no sofá e depois tu arrumas? — sugeriu ele. — Assim ficarás a saber onde está tudo.

Ela acenou num gesto de concordância e deitaram ambos as mãos ao trabalho. Num instante, Hank esvaziou as caixas. Depois disso, ajudou-a a arrumar as coisas, perguntando-lhe sempre primeiro onde é que as queria pôr. Enquanto trabalhavam, o refrão de uma canção antiga não lhe saía da cabeça: «Estou a começar a conhecer-te.»

Apercebeu-se de todos os movimentos e expressões que lhe eram próprios: a forma como acariciou a almofada por mais de uma vez; a forma como se deteve a olhar para um pequeno urso de orelhas esfarrapadas que o seu pai lhe dera há uns anos. Os seus tesouros, as coisas que lhe eram verdadeiramente preciosas, eram tudo coisas que uma pessoa podia tocar ou segurar.

— Não tens fotografias — observou ele.

— Pois não. — Ela olhou em volta para o monte de roupas e objectos. — Talvez o meu pai me possa enviar algumas. Gostaria de ver como era a minha mãe. E ele, claro.

Nunca vira os pais? Hank interrompeu o que estava a fazer para olhar para ela. «É claro que nunca os poderia ter visto», apercebeu-se. Só há um mês é que deixara de ser cega.

— Parece-te estranho? O facto de eu não saber como é que são os meus pais, quero dizer.

Agachado junto ao sofá, Hank apoiou-se nos calcanhares, fazendo pressão sobre os tacões.

— Não propriamente. Para além da minha compreensão, creio. Teoricamente, sei que as pessoas cegas não conseguem ver. Só que nunca pensei muito sobre a forma como as coisas decorrem no dia-a-dia. Nunca teres visto o rosto da tua mãe. É uma coisa que não consigo imaginar.

Carly sentiu os olhos a ficarem brilhantes e afastou rapidamente o olhar.

— Eu vi-a. Só que não era da mesma maneira dos outros. Ela costumava segurar-me no colo e deixar-me tocar-lhe no rosto. — A sua boca curvou-se nos cantos. — Ela era linda.

A avaliar pelo tremor na sua voz, dava para ver a forma dolorosa como sentia a falta da mãe. Sem saber o que dizer, voltou a arrumar as coisas.

Algum tempo depois, deparou-se com uma velha fita esfarrapada atada em círculo com três nós.

— Queres isto, ou posso deitar fora?

Confusa, observou com atenção a fita de seda esfarrapada. Depois um sorriso radiante iluminou-lhe a cara.

— Oh, é o meu anel de amizade. Põe junto à minha roupa. Depois arranjo um lugar especial para ele.

— O que é um anel de amizade? — Hank não resistiu a perguntar.

— O círculo simboliza a eternidade. Os nós somos nós três: eu, a Cricket e a Bess, e servem para lembrar que seremos sempre amigas. Foi a Cricket que mo fez, antes de eu partir para a universidade. Era a primeira vez que me afastava da família e dos amigos. — Pôs-se de pé e aproximou-se de Hank para recuperar a fita. Fechou os olhos e percorreu os nós com os dedos. Depois passou com a seda deteriorada pelo rosto. — Sempre que sentia saudades de casa, nos meses iniciais, ficava logo mais reconfortada depois de tocar nela.

— Elas têm sido boas amigas, não têm?

Carly anuiu com a cabeça e colocou gentilmente a fita em cima de um monte de roupa.

— São como irmãs. Somos um trio indomável. A Cricket e a Bess foram sempre os meus segundos olhos.

Ele riu-se.

— Os teus segundos olhos?

— Sem eles, nunca teria sobrevivido à infância. — O seu rosto fez uma covinha. — Eu era um ás em cima da prancha de skate, com elas a darem-me indicações.

Hank sentiu um aperto no estômago só de imaginar a situação.

— A Bess mencionou que andavas de bicicleta e coisas do género. O que ó que os teus pais tinham a dizer sobre isso?

— Que eu era uma criança normal, em todos os aspectos, só que não conseguia ver.

— Andavas realmente de skate? Não tinhas medo?

— De quê?

— Ir de encontro às coisas. Saltar de um cais. Bem, não sei. De tudo, creio.

Ela riu-se.

— Isso é uma perspectiva de uma pessoa que vê. Nasci cega, lembra-te. Nunca vi um cais. Não conseguia ver as coisas à minha frente. Posso ter medo agora, mas não era o que acontecia na altura. — Inclinou a cabeça e fechou os olhos. — Adorava a sensação de velocidade, de sentir o vento a bater-me no rosto. Era maravilhoso. — Quando olhou para ele de novo, acrescentou:

— A outra coisa parecida foi fazer queda livre com a Cricket antes de entrar para a universidade.

— Queda livre? Saltaste de um avião?

— Não tinha o conceito de altura. Não era coisa que me assustasse. Hank sentiu um arrepio só de pensar nisso.

— Costuma haver muito vento lá em cima. Ela olhou para ele com um ar inquiridor.

— Já saltaste?

— Já, e ou se tem um desejo de morte ou somos malucos. E se o vento tivesse levado a sua voz e tu não conseguisses puxar a corda a tempo?

— Não saltei sozinha. Saltei com um instrutor.

Ele ficou aliviado ao ouvir isto. Mas não tão aliviado a ponto de pensar no assunto sem lhe querer dar um abanão.

— É um desporto perigoso.

— Também o salto de queda livre com corda, mas as pessoas fazem isso.

— Não fizeste, pois não?

— Não. Era de uma ponte. Tinha medo que a corda se partisse, e de cair na água.

Hank reparou na expressão tensa que lhe cobriu o rosto.

— Tinhas medo de cair na água, mas não tinhas medo de cair em terra quando saltaste do avião?

Ela inclinou a cabeça e fingiu-se estar interessada nas meias que estava a enrolar.

— A água é uma coisa aterradora para mim. Entra nos meus ouvidos, dificultando-me a audição, e perco todo o sentido de orientação. Quando mergulho, não sei bem como vir ao de cima. E quando venho à superfície não consigo perceber para que lado é a margem. Nadei com a Bess e a Cricket, algumas vezes, mas nunca gostei muito.

Dirigiu-se para o quarto com o intuito de arrumar uma pilha de meias. Alguns minutos depois, Hank olhou para cima e viu-a a olhar pela janela na direcção dos currais. Quando ele se aproximou por detrás, ela esfregou os braços e disse:

— Os cavalos são muito maiores do que eu pensava.

— Nunca tinhas visto um cavalo?

— Só em fotografias. No canal western não me parecem tão grandes. Ele não conseguia imaginar o que era viver uma vida inteira sem ter visto um cavalo. De vez em quando, durante o decorrer da conversa, pensava que já tinha começado a compreender o que era ser-se cego. Depois, ela dizia qualquer coisa que o fazia inteirar-se de que não fazia a mínima ideia. Viver numa escuridão constante, nunca ter visto a aurora, nunca ter visto o Sol a pôr-se.

Olhando para ela, fez o melhor que pôde para adivinhar o que teria sido para ela viver a vida assim. Só que era impossível. Tudo o que a rodeava era novo para ela.

Encostando o ombro à ombreira da janela, Hank virou-se para ela e perguntou:

— Como tem sido para ti, estar a ver pela primeira vez na vida? Carly passou com os dedos nervosos pelo vidro da janela. Ele apercebeu-se da forma como ela se deslocou ligeiramente para colocar alguma distância entre os dois.

— Confuso. — Bateu no vidro com um dedo. — Sei que o vidro está aqui, mas não consigo vê-lo. A Bess diz que a luz do Sol e as imagens reflectem-se da superfície se olharmos bem, mas não reparo nessas coisas.

Hank observou o vidro. Em tempos, quando era criança, esbarrara numa porta que havia no pátio e quase partira o nariz.

— As janelas podem ser um obstáculo para toda a gente.

— Creio que sim. — Suspirou e franziu as sobrancelhas com um ar pensativo. — Algumas coisas parecem-me estar ao contrário. Estou a ter algumas dificuldades em lidar com o problema porque o meu médico nunca me alertou para isso.

— O que é que te parece estar ao contrário?

— Coisas estúpidas. — Encolheu os ombros. — Coisas que eu memorizei pelo toque há muitos anos e que agora me parecem todas erradas.

— Como por exemplo?

— As teclas de um telefone, as torneiras de água quente e fria, as letras e os números. É como... — Abanou a cabeça. — Na minha mente, conseguia ver as coisas, mas vi-as do meu lado da escuridão. Isso faz algum sentido?

Não fazia, mas ele acenou na mesma, não querendo que ela interrompesse o que estava a dizer.

— Agora que consigo ver, as coisas estão no exterior, olhando para mim.

Hank continuava a não perceber, mas sorriu para não a desencorajar. A sua expressão ficou mais carrancuda.

— Quando digito um número, por exemplo. Se fechar os olhos, tudo bem. Mas se abrir os olhos, fico toda confusa, carregando no três quando quero carregar no um. Acontece o mesmo com as letras. — Passou com os dedos pelo vidro. — Quando se lê em Braille, detectamos pequenas saliências. Imagina a letra a viajar pelo braço e a entrar no teu cérebro, onde a armazenas na escuridão que tens dentro de ti. Não a vês. Ela está dentro de ti. Depois, subitamente, ela está cá fora, e, para mim, é como se estivesse virada ao contrário, do lado errado. Não sei se outras pessoas passam ou não pelo mesmo. Talvez eu seja um pouco estranha.

— Parece-me ser dislexia. Tens problemas em interpretar as relações espaciais.

— É, não é? É mesmo do que eu preciso agora, de uma desordem de aprendizagem para tornar as coisas ainda mais difíceis.

Hank riu-se.

— Duvido que sejas disléxica, querida. Sabes de que é que me lembrei ao ouvir-te? Da forma como as letras aparecem reflectidas no espelho. Surgem sempre ao contrário. Atendendo à maneira com o olho funciona, é natural que possas vir a ter alguns problemas durante uns tempos. A retina tem camadas reflectivas, tal como um espelho, que conduzem os impulsos de imagens ao cérebro. Talvez os teus impulsos estejam baralhados, neste momento, e as imagens se atropelem pelo caminho.

— Achas? — perguntou Carly com alguma esperança.

Hank sabia que não devia tocá-la, mas a tentação foi mais forte do que ele. Deu um ligeiro piparote na ponta daquele nariz tão pequeno e engraçado.

— Sim — assegurou-lhe. — Deixa de te preocupares. Mesmo que sejas disléxica, coisa que duvido seriamente, não é um grande problema agora.

Ela não parecia muito segura disso.

Nessa noite, enquanto o jantar apurava em lume brando, Hank sugeriu a Carly que devia contactar o pai. Ela respondeu, dizendo:

— Não quero que gastes dinheiro com uma chamada de longa distância. Ele tirou o telemóvel do cinto e estendeu-lho.

— Tenho um pacote que cobre as chamadas de longa distância. Algo como trezentos minutos por mês, e nunca gasto mais de metade. Podes falar de graça.

Ela deu uma olhada para o telefone, depois devolveu-lho.

— É muito pequeno e confuso. Importas-te de ser tu a fazer a ligação? Ela disse o número e Hank ligou. Depois foi até à sala de estar e ligou a televisão, fingindo estar a ver o noticiário enquanto ela falava com o pai, uma conversa que começou com um trémulo, «Pai?» Depois pôs-se a falar, explicando a Art Adams o seu casamento temporário com Hank.

— Ele quis ajudar-me — disse ela, de forma hesitante. — No final, foi tão convincente que não pude dizer que não. Gostaria de te ter convidado, mas não fazia sentido gastar dinheiro numa passagem de avião, tratando-se de uma pequena formalidade.

«Convincente?» Ele obrigara-a a dizer que sim.

— Eu sei — disse Carly suavemente. — Tenho muita sorte em tê-lo ao pé de mim. — Uma pausa longa. — Não, pai. Não é nada disso. Nós, hmm, temos um acordo. Ele não levantou problemas. — Outra pausa. — Não vou deixar que ele me magoe, pai. É só um casamento por conveniência, algo que ele se dispôs a fazer por mim e pelo bebé. Nenhum de nós tem quaisquer expectativas e, assim que eu for capaz de fazer tudo sozinha, dissolvemos o casamento.

Quando a conversa mudou do tópico principal para outro de carácter mais geral, Carly depressa se desmanchou a rir.

— Dançaste o jitterbug? Deve ser uma mulher e peras por te ter convencido a dançar. — Um suspiro. — O que é o jitterbug, afinal? — A resposta do pai proporcionou-lhe uma grande gargalhada. — Estou muito feliz por ti. É bom saber que te estás a divertir por aí.

Hank estava igualmente contente por saber que ela era muito chegada ao pai. Tinha mais a ver com a sua ideia de família. Mais depressa do que ele desejaria, Carly disse ao pai que estava na altura de se despedir.

— Não devia estar a gastar tantos minutos do Hank — explicou ela. — Estou a falar do telemóvel dele.

Hank quase que a interrompeu para lhe dizer que podia usar todos os minutos que quisesse, mas isso seria revelador de que estivera a ouvir a conversa. Achou que ela tinha focado todos os assuntos importantes. Podia tratar da questão dos minutos a que tinha direito depois.

— Obrigada, Hank — disse ela suavemente, quando lhe devolveu o telefone. — Foi bom falar com ele.

Dava para ver que ela gostara da conversa pelo calor do seu sorriso e pela luz que irradiava dos seus olhos deslumbrantes.

— Como é que ele é?

— Divertido. — Encolheu os ombros. — Maravilhoso. Tem sido sempre a minha âncora.

Hank ressentiu-se sem razão para isso. Ele queria ser a pessoa em quem ela podia confiar. Mas de onde é que vinha essa ideia? Convinha ter presente que Carly não tinha qualquer intenção de manter o casamento. Se ele começasse a pensar em termos de eternidade, estaria a preparar-se para um grande desapontamento.

Para se desviar do assunto, resolveu levar Carly até aos estábulos para lhe apresentar os cavalos. Durante todo o caminho, ela não parava de dizer:

— Não sei se estou preparada para isto. Hank riu-se.

— Andaste em cima de uma prancha de skate. Confia em mim, os meus cavalos são muito mais seguros.

— Isso é o que tu dizes.

À entrada do estábulo, ela parou e ficou a olhar para uma égua com a cabeça enfiada na porta.

— Não faz mal — disse Hank para a confortar.

Ela permitiu com alguma relutância que ele a levasse até perto do animal. Nesse momento, Hank não tinha a certeza daquilo que a faria mais feliz, se ele ou o cavalo.

— Ele é enorme.

— Não é ele, é ela. — Hank coçou atrás das orelhas do cavalo. — Chama-se Sugar. É uma alazã.

— Pensei que criavas cavalos da raça quarter horse.

— Alazã é uma cor, não uma raça. — Ele apontou para o fundo do corredor onde se encontrava um cavalo castrado com um açaime no focinho. — Aquele ali é um baio diluído. Desatou a morder recentemente e a sua dona trouxe-o até aqui para um ajuste de personalidade. No outro estábulo, a égua castanho-arruivada com a crina preta é uma baia.

Ela abanou a cabeça.

— Ainda tenho dificuldades em aprender todas as tonalidades de rosa. Nunca irei distinguir as cores dos cavalos.

— Os cavalos não querem saber disso. — Pegou na mão dela para a aproximar mais da égua. — A Sugar é segura. — «E eu também.» — Não faz mal. Ela não morde.

Ela estendeu a mão, depois recolheu-a.

— Ela não tem dentes?

— É claro que tem. Mas não morde.

— Tens a certeza?

Ele pôs a mão no focinho da égua. Sugar esperava um doce e resfolegou, passando com os lábios pela mão de Hank.

— Estás a ver? Ainda tenho a minha mão. — Agarrou no pulso de Carly e colocou os seus dedos esguios debaixo do nariz da égua. — Não tenhas medo.

— Meu Deus. — Extremamente hirta, fechou os olhos, esperando, claramente, ficar sem metade do braço. Ao fim de algum tempo, ergueu as pálpebras e riu-se com a sensação de cócegas produzida pelos lábios do cavalo em contacto com a sua pele. Hank desejava poder ser ele a mordiscá-la. — Ela é tão suave — murmurou ela.

— Como veludo — concordou ele, lembrando-se da suavidade das pernas dela na noite anterior. Libertou-lhe a mão. — Faz-lhe festinhas. Ela é uma doçura. — Quando Carly hesitou, riu-se — Nunca pediria para fazeres uma coisa que te pudesse deixar magoada. Este cavalo é tão gentil que até poderia pôr um recém-nascido ao pé dele.

Carly aproximou-se. Dentro em breve, estava a tocar nas orelhas de Sugar e a passar com a sua mão esguia pela crina da égua.

— Oh — não parava de dizer. — És tão simpática.

O sentimento parecia ser mútuo. Sugar deve ter achado que ela era uma alma gentil, pois começou a relinchar e a pedir mais festinhas a Carly.

— Acho que ela gosta de mim — disse Carly com uma risada. Como é que podia não gostar? Hank também gostava. Talvez mais do que seria aconselhável. Sem saber o que fazer com as emoções que começavam a despoletar dentro de si, afastou-se.

— Este é o Sonora Sunset, o garanhão da Molly — disse, no estábulo seguinte. — Pobrezinho, foi chicoteado até dizer chega. A Molly apareceu aqui um dia, num Toyota, puxando um enorme reboque para dois cavalos. O Sunset estava lá dentro, relinchando e dando coices com sei lá o quê. Foi assim que a Molly conheceu o Jake.

Carly aproximou-se da porta do estábulo, impressionada com as cicatrizes no dorso do garanhão.

— Que coisa horrível — disse ela suavemente. — Quem é que lhe fez isto?

— O ex de Molly, Rodney Wells. É um cabrão de todo o tamanho. — Hank apercebeu-se do que dissera e coçou o queixo. — Desculpa. Tenho de ter mais cuidado com a linguagem.

Carly suprimiu um sorriso.

— A tua linguagem não me ofende, Hank. Já ouvi muito pior.

— Da parte de quem? Vai ter de aprender boas maneiras.

— Estive na universidade, não te esqueças, numa escola especial para cegos no primeiro ano, mas depois entrei para as turmas normais da Universidade de Portland. Num campus, as pessoas usam todo o tipo de expletivas. — Ela fixou a atenção no cavalo outra vez. — Porque é que a Molly trouxe um garanhão ferido ao Jake? O Tucker é que é o veterinário.

— O Isaiah também é. Começaram a praticar juntos. — Pôs um braço em volta do pescoço robusto do garanhão. — A Molly não estava à procura de um veterinário. Ela precisava de um psicólogo de cavalos. O Sunset estava maluco de tanto abuso.

— O Jake é psicólogo de cavalos?

— Eu e ele temos uma forma especial de lidar com os cavalos. Há quem pense que somos encantadores de cavalos. A Molly ouvira falar do Jake, através de um treinador, e trouxe o Sunset até aqui na esperança de que o Jake pudesse evitar que ele fosse abatido.

A avaliar pela forma como Hank se mantinha ao lado do garanhão, dava para ver que tinha uma forma especial de lidar com os animais.

— És? — perguntou ela.

Ele olhou para ela de forma inquiridora.

— Sou o quê?

— Um encantador?

Os seus dentes brancos brilharam num sorriso provocador.

— Posso murmurar ao teu ouvido, se quiseres.

Carly lembrava-se bem dos arrepios que sentira na espinha quando ele o fizera. Pôs as mãos na cintura.

— Dispenso, obrigada.

— Já estava à espera que dissesses isso. — O seu sorriso alargou-se e fez um sinal com o olho.

— Respondendo à tua questão, não, não sou nenhum encantador de cavalos. Será que isso existe mesmo?

— Não sei. Existe?

— Duvido. Sou bom com cavalos, é tudo. Não é um grande mistério. Eles são como pessoas, com medos e fobias, gostos e ódios. Alguns treinadores são da velha escola. Usam métodos agressivos para produzirem os resultados esperados. Outros optam por uma abordagem mais gentil, mas têm uma forma fixa de fazer as coisas, independentemente do animal. Eu e o Jake seguimos os nossos instintos e demoramos o tempo que for necessário, nunca esquecendo que os cavalos são todos diferentes e poderão precisar de tratamentos diferentes. — Uma piscadela provocadora iluminou os seus olhos azuis da cor do céu. — São como as mulheres nesse aspecto.

Carly esfregou os braços.

— Estás com frio?

— Não. — Estava, na verdade, mas hesitou em dizê-lo. Ele não tinha casaco e podia oferecer-se para partilhar o calor do seu corpo. Tocou com cuidado no nariz do garanhão.

— Ele é um amor, tal como a Sugar — assegurou-lhe Hank. — Não costumava ser, mas a Molly conseguiu dar-lhe a volta. É muito gentil agora, para um garanhão.

Carly afastou a mão.

— O que é que isso quer dizer?

Hank sorriu e virou-se para se dirigir para o fundo do estábulo. Seguindo-o, Carly admirou a harmonia graciosa dos seus movimentos. As suas pernas compridas dobravam-se ligeiramente na zona dos joelhos, uma característica que reparara no pai dele e em todos os irmãos. Partiu do princípio que devia estar relacionado com o facto de passarem o tempo todo montados numa sela. Fosse como fosse, era uma coisa atraente, dando-lhe um certo ar rude que combinava bem com o torso estreito e os ombros largos.

Ele parou junto de todas as boxes abertas para apresentar os seus ocupantes. Carly sabia que iria esquecer-se de todos os nomes.

— As boxes fechadas estão vazias? — quis saber.

— Não. Mães e filhos, deitados para a noite. — No final do corredor, apontou para duas boxes que eram maiores do que todos as outras. — A nossa versão de maternidade — explicou ele. — São maiores para que a égua se possa deitar confortavelmente e estender as pernas. Também fazemos imprinting.

— Marcam os cavalos a fogo? — Carly sempre achara a prática cruel, e não conseguiu esconder a sua desaprovação.

Imprinting não é marcar a fogo. A maior parte das pessoas já não faz isso. — Observou a sua expressão indignada, durante um momento, depois riu-se e coçou a cabeça debaixo do chapéu. — Em vez de marcarem a fogo, muitas pessoas optam por perfurar as orelhas: é como furar as orelhas a uma senhora. Os cavalos mais caros recebem chips de identificação, pequenos cristais com informação que são inseridos debaixo da pele, ou tatuamos o interior de uma orelha. Não dói.

— Oh. — Ela ficou aliviada. — O que é o imprinting, então?

— Treino de poldros, basicamente. Mostro-te qualquer dia, ou melhor, vais-me ajudar. É divertido. O imprinting é basicamente uma situação condicional que começa logo após o nascimento e continua durante os primeiros meses de vida. É habituar um poldro a todas as coisas que poderão assustá-lo na fase adulta. O imprinting dá muito trabalho, mas, no final, o cavalo fica melhor. Muitas vezes, temos de amarrar um cavalo destes e, mais raramente, usar um aziar. Em resumo, os cavalos treinados desta maneira ficam mais bem preparados, são animais mais felizes e é um prazer trabalhar com eles.

— O que é um aziar? Ele esfregou o queixo.

— É um aparelho para apertar o focinho, um dos pontos mais sensíveis no corpo de um cavalo. Prendemos o aziar com tensão suficiente para fazer doer. Se o cavalo se mexe, magoa ainda mais.

— Isso é horrível.

— É necessário quando um cavalo se recusa a ficar quieto, quando lhe queremos dar uma injecção ou tratar de uma ferida. Eles são criaturas grandes e fortes. Não podemos lutar contra eles. Experimenta e vais ver como são elas. — A sua boca esboçou um sorriso ligeiro. — Agora consegues compreender porque é que fazemos isto aos nossos poldros. Não gostamos de infligir dor a um cavalo. Muitas vezes, os animais que passam pelas nossas mãos têm de ser subjugados à força. Submetemos os poldros a todas as experiências concebíveis, repetidamente, até não sentirem nada. Quando adultos, comportam-se que nem passarinhos sempre que forem ferrados, vacinados ou medicados. Pouco lhes incomoda.

— Tudo o que for para os salvar de um aziar tem o meu voto. Ele olhou para o relógio.

— É melhor regressarmos a casa. O guisado já deve estar pronto. Enquanto Hank se afastava dos estábulos, não pôde deixar de se recordar de todas as namoradas que trouxera ao rancho ao longo dos anos. A maior parte delas misturava-se com os animais como azeite em água. Carly nem sequer parecera reparar na bosta de cavalo, um facto que prendeu a atenção de Hank quando ela pisou num monte fresco.

— Uh-oh. — Abanou a perna, tentando desalojar o excremento mal cheiroso. — Oh, que nojo. É o que eu estou a pensar que é? — Olhou com ar míope para o pé.

— Se estás a pensar que é bosta de cavalo, acertaste em cheio — disse ele, recuando para lhe segurar no cotovelo.

Hank esperava vê-la chateada com o estado em que se encontrava o sapato. Em vez disso, ela riu-se e olhou em volta, parecendo alguém que acabara de passar por um campo minado.

Ele guiou-a por entre as bombas, enquanto abandonavam o edifício, sorrindo com a forma como ela abanava o pé a cada passada. Uma vez lá fora, ela deteve-se para esfregar o sapato na relva. Só conseguiu desprender umas pequenas partículas. Acocorando-se, Hank agarrou-lhe no tornozelo para lhe virar o pé. Ela saltou aquando do contacto e quase que ia caindo para trás.

— Ui! — Ele agarrou-a pela presilha das calças para a poder segurar melhor. Quando a viu recuperar o equilíbrio, concentrou-se de novo no pé dela. — Agora abana — instruiu ele.

Quando a sua sapatilha ficou limpa, ele endireitou-se. Ela esfregou o nariz e sorriu-lhe.

— Um dos perigos de um córtex visual não treinado. Não consigo detectar irregularidades numa superfície. Não fazia a mínima ideia de que isto estava lá até ficar esborrachado debaixo do meu pé.

A forma como ela disse «esborrachado» fez com que Hank desatasse novamente a rir.

Hank estava deitado de costas, com os braços cruzados sob a cabeça, os pés fora do colchão. O luar decorava o tecto de cedro do quarto das traseiras, com os padrões sombreados a mudarem de posição de cada vez que o vento da noite balançava as árvores no exterior. Não conseguia dormir só de pensar em Carly: como começara por fazer festas tímidas aos cavalos, para depois afagá-los com mais confiança; como rira com a bosta no sapato; como ficara surpreendida quando sentira o toque da mão dele no tornozelo; e como ficara desconfortavelmente nervosa de regresso a casa.

Ela era tão bonita que doía só de olhar para ela. Desejava poder dizer-lhe isso, mas se o fizesse, ela iria pensar que era outra das suas frases feitas. Facto que cia dera a entender de forma bastante clara, na última noite.

Era óbvio que ele estava a nadar contra a corrente, ao lado dela, e o melhor que podia almejar era obter a sua amizade. Era uma coisa que o deixava frustrado. Esperara, talvez estupidamente, que poderiam fazer com que este casamento resultasse. Mas quanto mais tempo permanecia ao lado dela, mais convencido ficava que tinha desbaratado todas as hipóteses devido ao seu comportamento. Algumas coisas não podiam ser remendadas, ponto final, e ela fizera asneira da grossa. Ela estava ciente de que uma segunda ronda com ele seria uma coisa horrorosa, e ele não sabia como tirar-lhe isso da cabeça.

Por conseguinte... pouco mais lhe restava senão esperar pela sua amizade. Sempre era melhor do que nada. Quando ela preenchesse os papéis do divórcio e se fosse embora, poderiam manter-se em contacto e assumir juntos o papel de progenitores, tornando as coisas mais fáceis para o filho deles.

Hank suspirou e fechou os olhos. «Amizade.» Conseguia pensar em formas mais gratificantes de passar dois anos ao lado de uma mulher lindíssima, mas um homem nem sempre tinha o que queria.


Capítulo Quinze

Nos dias que se seguiram, fazer amizade com Carly tornou-se no grande objectivo de Hank. Para conseguir isso, precisava de pô-la à vontade com ele. Para tal, começou a ligar-lhe várias vezes ao dia, só para dizer olá. Apanhava-a invariavelmente ocupada, tentando treinar o seu córtex visual. Uma tarde, encontrou-a a passar revista a todas as gavetas da cozinha, identificando os utensílios pelo toque.

— Está aqui uma coisa — informou-o. — Tem pegas que se apertam e uma pequena caixa no extremo com uma série de buracos. Não sei o que é.

Hank pensou durante um momento.

— Um espremedor de alho?

— Como? — disse ela com uma seriedade cómica. — Estou a perguntar-te a ti.

Ele riu-se.

— Só pode ser um espremedor de alho. — Explicou como os dentes de alho descascados eram empurrados através dos buracos. — Escorrega como coco de coruja.

— Que comparação tão nojenta. — Um espremedor de alho. — Hmm. Vai para a lista de novas coisas a experimentar. Quando é que podemos espremer alho?

Hank deixou de sorrir. A maior parte das pessoas sentir-se-ia estúpida por não reconhecer um espremedor de alho, mas Carly levava tudo muito a sério, determinada a aprender o máximo que pudesse no mais curto espaço de tempo.

Outras vezes, quando Hank telefonava, interrompia-a no seu regime de exercícios oculares diários. O especialista dera-lhe uns quadros para prender na parede. Um tinha as cores básicas e, em baixo um diagrama, mostrando todas as tonalidades que podiam ser criadas misturando os tons básicos. O outro era um quadro com formas e símbolos: quadrados, triângulos, oitos e coisas do género. Carly passava horas a treinar o seu córtex visual para os reconhecer à vista desarmada. Uma manhã, Hank entrou em casa e viu-a a tentar fazer aquilo que parecia ser um puzzle infantil. Carly apressou-se a colocar as peças na caixa e a escondê-la debaixo do sofá, claramente embaraçada com o facto de ele ter ficado a saber que estava a fazer um esforço enorme para dominar uma actividade que uma criança de cinco anos não teria qualquer problema em resolver. A descoberta fez com que Hank ficasse a compreender melhor a batalha que ela estava a travar. Era horrivelmente difícil para ela encaixar certas formas, algo que a maioria das pessoas se habituara a fazer durante a vida.

Para poder passar mais tempo com ela, Hank começou a tomar todas as suas refeições em casa. Comia ovos escalfados com tostas ao pequeno-almoço, porque o cheiro a fritos a fazia enjoar, ficava-se por umas sanduíches ao almoço e punha um avental à noite para a ajudar a preparar o jantar.

Depois da cozinha arrumada, aproveitava o momento que antecedia a ida para a cama para a levar até à casa principal e visitar Jake e Molly, ou para se sentar com ela na sala de estar a ver televisão ou a conversar. O tempo que passavam sozinhos era sempre tenso. De todas as vezes que iam passear, ela mantinha um braço de distância entre os dois e não falava muito. Em casa, sentava-se do outro lado da sala, longe dele, e entretinha-se a mexer na sua roupa ou nas franjas de uma almofada. Dava as boas-noites relativamente cedo, com a desculpa de estar exausta.

De todos os irmãos, Hank sabia que era o que tinha mais charme. Tentou tirar partido disso junto de Carly, mas acabou por ser ele a ficar sob o efeito do seu charme.

Se havia um traço de personalidade que ele mais admirava nela era a sua coragem, e Carly provou ser a pessoa mais determinada e corajosa que ele alguma vez conhecera. Embora suspeitasse que a sua visão estava a piorar, ela nunca deu a entender que estava preocupada ou a ter problemas.

Quando ele regressava a casa para ver se estava tudo bem, várias vezes ao dia, encontrava-a, com frequência, observando atentamente os livros que trouxera do apartamento. Umas vezes, observava um tomo intitulado O Que É o Quê, um glossário visual de objectos de uso quotidiano. Outras vezes, tentava reconhecer as letras do alfabeto. A letra tinha uma dimensão reduzida, forçando-a a aproximar o nariz da página e, reiteradamente, punha um cotovelo na mesa, esfregando distraidamente as têmporas como se estivesse com dores de cabeça.

Hank queria perguntar porque é que se torturava tanto. Ela não seria capaz de ver uma letra, dentro em breve, quanto mais reconhecê-la. Porquê ficar com dores de cabeça sem necessidade? A sua determinação em treinar o córtex visual preocupava-o também. Porque é que ela ignorava o óbvio e agarrava-se à falsa esperança de que não iria perder a visão durante a gravidez?

Na quarta-feira à tarde, cinco dias depois do casamento, Hank regressou a casa inesperadamente para mudar de camisa. Quando viu Carly com o nariz enfiado noutro livro, não se conteve.

— Querida, não podes usar o teu tempo de forma mais proveitosa? Ela olhou para ele com um ar espantado.

— Porque estás a dizer isso? «Cuidado, Hank.»

— Segundo o teu médico, é possível que percas a visão antes de o bebé nascer. Se isso acontecer, de que é que interessa reconheceres as letras?

Hank estava à espera que ela ficasse aborrecida. Se fosse ele que estivesse prestes a ficar cego não gostaria que lhe lembrassem do facto. Mas Carly limitou-se a sorrir.

— Alguns doentes de lattice passam pela gravidez sem problemas.

— A tua visão tem-se mantido estável?

— Não propriamente.

«Ah, é?» Se a sua visão estava a deteriorar-se, era óbvio que ela não iria passar incólume.

— Isso não é bom sinal, pois não? — perguntou ele cautelosamente.

— Não. — O seu sorriso esmoreceu. Mas, depois, iluminou-se de novo. — A lattice é imprevisível. Todos os doentes são diferentes e todas as gravidezes são diferentes. A doença poderá provocar danos rapidamente, deixando-me cega que nem um morcego dentro de alguns meses, ou poderá expandir-se e depois abrandar. Prefiro pensar de forma positiva.

Hank acreditava no pensamento positivo. Só não queria que ela ficasse desapontada. Dentro de meses? Embora ela tivesse reparado na deterioração da sua visão, era óbvio que não enfrentara ainda a realidade, ou seja, que podia ficar cega dentro de pouco tempo.

— Conheci pessoas com lattice que nunca chegaram a ficar totalmente cegas — disse ela. — São oficialmente cegas, claro, mas conseguem ver alguma coisa durante anos e anos. Quem é que pode saber ao certo o grau de gravidade da minha lattice?

Ela fora totalmente cega, não fora? Até que ponto poderia piorar?

— Juntamente com a lattice, nasci com cataratas congénitas — explicou. — Qual foi a condição que causou a minha cegueira? Toda a gente parte do princípio de que foi devido às duas, mas se não foi? Talvez a lattice não fosse assim tão má quando nasci, mas tivesse piorado com o tempo, e a cegueira inicial fosse provocada pelas cataratas.

Sem saber o que dizer, Hank afundou-se numa cadeira para lhe observar o rosto pequeno. Por um lado, conseguia compreender o seu raciocínio e a sua enorme esperança de que a lattice por si só não viesse a roubar-lhe a visão tão depressa. Por outro, tinha provas de que a sua visão se tinha deteriorado a um ritmo veloz. Se isso não lhe tinha escapado, como é que podia ter escapado a Carly?

«Talvez», pensou, «ela tivesse reparado» — e estava apenas a optar por ser optimista até a vida lhe dar com os pés de novo. Observando o seu sorriso gracioso e determinado, quis chorar por ela.

— Bem, vamos esperar para ver. Talvez sejas uma das sortudas. Ela acenou afirmativamente.

— Por favor, não penses que tenho a cabeça enterrada na areia. Sei que as esperanças são reduzidas. — Pousou o queixo na mão e franziu ligeiramente os seus olhos deslumbrantes para conseguir captar a expressão dele. — Pareces preocupado. Não há razão para isso.

Hank coçou a cara junto ao nariz. Preocupado? Ele estava deprimido.

— Sou uma rapariga crescida, Hank. Se o pior acontecer, saberei lidar com a situação.

Como é que ela podia estar ali sentada com aquele ar tão calmo. Nada de lágrimas, nada de sofrimento, nada de acusar Deus. Nunca a vira actuar de um modo deprimido. Em vez disso, parecia em paz consigo própria. Ao olhar para a sua expressão, sabia que ela estava verdadeiramente consciente da situação e que aceitaria o seu destino. O pensamento de se ver mergulhado na escuridão durante meses a fio aterrorizava-o. Carly podia não estar muito contente com a possibilidade, mas também não estava amedrontada.

— Dá para ver que tens os olhos doridos de tanto olhar para os livros.

— Estou habituada a ter os olhos doridos.

Ele não queria que ela passasse por qualquer tipo de dor.

— Porque é que não gozas a tua vida de outra maneira e deixas o treino do córtex visual para depois da próxima cirurgia? É provável que fiques a ver melhor depois, e será mais fácil para ti.

Ela fechou o livro e foi até à cozinha para ir buscar um copo de água.

— Podia esperar, mas estaria a desperdiçar o presente.

— Tens muitos dias pela frente. É apenas um revés temporário. No próximo Verão, farás a cirurgia e poderás ficar a ver para sempre.

— Tens a certeza? — Virou-se, imobilizando o copo a meio caminho.

— Se todas as minhas cirurgias tiverem sucesso e cada intervenção durar o tempo previsto, serei capaz de ver durante vinte ou talvez trinta anos, antes de começar a rejeitar os transplantes. Mas se cada intervenção correr mal?

Hank sentiu um aperto na barriga.

— O que queres dizer com isso?

Ela passou com os dedos pelo copo, retirando as pequenas gotas de água. Depois limpou a mão às calças.

— Não há garantias. O doutor Merrick não está em condições de me prometer nada. Há imensas coisas que podem, e costumam, correr mal. Uma coisa tão simples como uma gripe, ou um vírus, ou outra variável qualquer, poderá fazer aumentar a lattice ou provocar a rejeição. E, nalguns casos, as cirurgias não produzem qualquer efeito.

Ele engoliu em seco e, de repente, só lhe apetecia dar um murro. O que é que ela estava para ali a dizer: que as coisas podiam correr mal e talvez nunca mais voltasse a ver?

— Mesmo que tudo corra na perfeição, os meus dias de visão completa serão sempre limitados. Se as coisas correrem mal... — Os seus olhos cobriram-se de sombras. — Não é possível prever. Poderei ter quinze anos de visão, ou apenas cinco, ou nada. Posto isto, se estivesses no meu caso, porquê perder um único dia?

Hank deu graças a Deus por estar sentado. Ou nada?

— Não — admitiu. — Não creio que isso venha a acontecer.

— Exactamente. Cada minuto de visão é uma dádiva preciosa. — Bebeu um grande gole de água, depois colocou o copo vazio na bancada.

— O córtex visual é como um banco de dados. Tudo o que vejo hoje, tudo o que consigo gerir visualmente, ficará registado na minha memória. Se a cirurgia que fizer no próximo Verão correr bem, poderei levar alguns dias a orientar-me, mas depois tudo o que aprendi até agora aparecerá facilmente. Estarei a um passo de poder ler com proficiência e será mais fácil para mim fazer as coisas, como carregar nas teclas de um telefone ou manusear o livro de cheques. Terei feito progressos, se usar este tempo convenientemente, e estarei mais bem preparada para tirar o máximo de partido da vida como uma pessoa cega que recuperou a visão, depois da cirurgia que vou fazer.

Hank sentiu as paredes da garganta a ficarem coladas. Uma necessidade incrível de a proteger apoderou-se dele. Queria abraçá-la, escudá-la. Infelizmente, a distrofia lattice era um vilão contra o qual não poderia combater.

Olhou pela janela para a luz do Sol filtrada através dos pinheiros. Ela tinha tido o dia de hoje. Era algo que ele não tinha realmente compreendido até agora. Hoje. Se estivesse na situação dela, teria ficado lá fora, tentando absorver tudo o que o rodeava — as flores, a relva e a forma como o vento agitava as árvores. Não ficaria de certeza em casa com o nariz enfiado num livro.

— Parece uma maneira muito limitada de ganhar o dia. Ela riu-se de espanto.

— O que sugeres?

— Não há mais nada que gostasses de fazer?

Ela fez uma covinha no rosto e suspirou, com os olhos sonhadores.

— Montes de coisas. Mas porquê sonhar e desejar quando não é possível concretizá-las?

— Se pudesses fazer tudo o que quisesses, o que farias?

— Uma coisa que sempre quis foi aprender a conduzir. — Encolheu os ombros. — Mesmo agora, a minha visão ao longe não é suficientemente boa para poder experimentar. Talvez um dia.

— E? — Esperou um pouco. — Que mais?

— Se fosse rica, o que não é o caso, gostaria de viajar.

— Onde?

— Para todo o lado. — O olhar sonhador dos seus olhos tornou-se mais pronunciado. — Veria tudo o que pudesse antes de perder a visão: a Torre Eiffel, as pirâmides do Egipto, o deserto do Sara, o monte Evereste. — Riu-se ligeiramente, com o som a espalhar a sua musicalidade no ar. — Adoraria ver um camelo.

— Um camelo? — Eram as criaturas mais horríveis que Hank alguma vez vira.

— Oh, sim. E uma zebra. Talvez até um tigre, se conseguisse fazê-lo sem ser comida. Deves achar que é uma parvoíce.

Nesse momento, ele pensou que ela era o ser mais extraordinário que alguma vez conhecera. Adorava a forma como o rosto dela brilhava quando sonhava. Uma sensação de ardor invadiu-lhe os olhos.

— Se tivesse dinheiro, levava-te a todos esses lugares. Faríamos as malas e partíamos.

A sua expressão nublou-se.

— Não queria que te sentisses dessa forma. Já fazes muita coisa, mais do que devias, na verdade, e estou muito grata por isso.

Ele não queria que ela estivesse grata, raios. Tudo o que ele queria era fazê-la feliz. Se tivesse dinheiro, poria o mundo inteiro aos seus pés.

Um pensativo repentino ocorreu-lhe. Talvez não lhe pudesse dar o Egipto e Paris, mas poderia proporcionar-lhe umas lições de condução e umas criaturas exóticas.

— Quando é que vais fazer o checkup ao especialista da córnea?

— Era para ser no dia sete de Julho, mas, na semana passada, remarquei para a segunda-feira seguinte.

— Porquê? Podia levar-te lá no dia sete.

— Não sabia bem quais eram os teus planos para o fim-de-semana. Hank esquecera-se de que o quatro de Julho era já na sexta-feira.

— Vamos reunir a família aqui. Nessa noite, talvez levemos os miúdos a ver o fogo-de-artifício.

— Fogo-de-artifício? — Os seus olhos brilharam de excitação. Hank apercebeu-se de que ela nunca vira uma demonstração de fogo-de-artifício.

— Adoro fogo-de-artifício — assegurou-lhe ele. — Não o perderia por nada neste mundo.

Havia tanta coisa que ela nunca vira — e tanto que ela nunca veria. Não interessava quantas vezes ele fizera as coisas. Gostaria de as fazer na mesma porque tudo era novo para ela.

Só esperava que a visão dela se mantivesse estável até à consulta com o Dr. Merrick no dia catorze. Fazendo mentalmente figas, sorriu e disse:

— Quando chegar o dia do teu checkup, conta com uma noite na cidade.

— Porquê? São só três, talvez quatro horas até Portland. A minha consulta é às duas. Podemos voltar sem problemas no mesmo dia.

— Nem pensar. Depois da consulta, vamos dar um passeio. Podemos começar pelo desfiladeiro do rio Colúmbia e, se tivermos tempo, talvez o monte de Santa Helena.

— Não podemos gastar...

— Não comeces a discutir com o teu marido. Quando regressarmos a Portland, nessa noite, iremos ver a cidade: jantar num restaurante de cinco estrelas e ficar num hotel todo à maneira. Mandarei vir uma salada mista com dentes-de-leão. — Piscou-lhe o olho. — Até podes pedir essa coisa de morango que as pessoas de palato fino tanto apreciam.

— Vinagrete de morango?

— Isso. E vamos passar a terça-feira toda a divertir-nos.

— Não é necessário. Os jantares e hotéis finos custam uma fortuna, especialmente quando são precisos dois quartos.

A senhora estava sempre a pensar. Hank conteve uma risada.

— Não te preocupes com as finanças. Está bem? Gostaria de levar-te ao zoo de Portland na terça-feira, e não quero fazer tudo a correr.

Os seus olhos alargaram-se.

— Ao zoo?

Hank riu-se e pôs-se de pé.

— Agora sou eu que estou a usar a tua linguagem. Camelos, zebras, girafas, elefantes, quiçá um tigre. Já lá não vou há imenso tempo. Não sei o que têm agora.

Um sorriso de prazer inundou-lhe lentamente o rosto.

— O zoo? — Ele não teria ficado nada surpreendido se ela se tivesse posto aos saltos, tamanho era o entusiasmo. Em vez disso, correu pela sala e agarrou-se às mangas da sua camisa, com os olhos a cintilarem-lhe. — Oh, Hank, vai ser tão divertido! Uma zebra? Vou ver uma zebra verdadeira.

— Talvez, talvez. — Deus, como ele desejava que ela tivesse prolongado o contacto e posto os braços em torno do seu pescoço. Tinha de concordar que não estivera muito longe. — Poderão não ter.

Como se não tivesse ouvido, disse:

— E um camelo!

Afastou-se a rodopiar, agitando os braços e rindo. O seu equilíbrio não era o melhor e Hank teve de encaixar os polegares no cinto para conter o impulso de a agarrar.

— O zoo. Que ideia fabulosa. Mal posso esperar.

Quando Hank a deixou, alguns minutos depois, ela ainda estava a nomear todas as criaturas que poderia ver. Dada a sua profissão, a última coisa que Hank queria era passar o dia com um punhado de animais repulsivos, mas deu por si a sorrir que nem um louco no momento em que pôs os pés no alpendre. Parou para olhar para trás para a casa. Dêem diamantes a uma rapariga, que receberão em troca um sorriso hesitante e um agradecimento educado. Ofereçam-lhe camelos e zebras, que ela quase vos cai nos braços.

Raios. Talvez tivesse estado a preparar o anzol com o isco errado.

Algumas horas depois, Carly estava a trabalhar outra vez nas suas letras quando ouviu um veículo a parar à frente de casa. Fechou o livro, indagando quem seria. O Ford diesel de Hank costumava fazer um som parecido com pedras a chocalhar dentro de um balde.

Foi até à janela da frente e espreitou. Uma velha carrinha cinzenta estava estacionada perto do alpendre. Carly não conseguiu descortinar o condutor até que este abriu a porta e saiu. Afinal era Hank.

Ele encurtou a passada com um salto, acenou para ela através da janela e abriu a porta da frente para espreitar com a cabeça.

— Estás ocupada, meu anjo?

— Eu, hmm... não propriamente. Ele fez um sorriso largo.

— Óptimo. Vamos.

— Onde?

— Dar um passeio. — Franziu-lhe um olho. — Anda. Não fiques tão desconfiada. Este reles frequentador de bares viu o erro do seu comportamento.

Carly deu um jeito ao cabelo.

— Alguém vai ver-me? Estou um pouco desarranjada.

— Só eu e acho que estás linda.

Estupefacta, Carly seguiu-o até à carrinha. A sua perplexidade aumentou quando o viu dar uma volta e sentar-se do lado do passageiro. Aproximou-se do veículo e espreitou pela janela aberta do condutor.

— Porque é que estás aí?

Ele tirou uma garrafa de cerveja de um pacote de seis que tinha ao seu lado no assento.

— Porque vais conduzir. Entra.

O coração de Carly sobressaltou-se.

— O quê?

Ele piscou o olho, tirou a tampa da garrafa e mandou-a pela janela fora.

— Lições de condução. Lembras-te? Uma das coisas que adorarias fazer enquanto pudesses ver. Pára de olhar para mim e entra.

— Não posso guiar! A minha visão ao longe é terrível.

— Confia em mim, querida. — Deu um grande gole na garrafa e assobiou quando parou para respirar. — Vamos.

Carly confiara nele uma vez, quando se pusera a beber, e deu no que deu.

— Estás a beber.

— Andei a trabalhar ao sol todo o dia. Estou apenas a molhar a goela, não a beber.

— Há alguma diferença?

— Há. Confia em mim. Entras?

— Não posso guiar. Perdeste o juízo?

— Onde é que está a rapariga audaciosa que andava de skate e saltava de aviões quando era cega?

— Essa rapariga ganhou mais juízo.

Ele olhou para ela com um brilho nos olhos.

— Estás com medo? — Enfiou a mão livre debaixo do sovaco e bateu com o cotovelo como se fosse uma asa. — Cacaracacá-cacá-cacá!

Carly nunca fora acusada de galinha medrosa na sua vida. Abriu a porta do condutor, entrou e pôs-se ao volante.

— Se matar alguém, é por tua culpa.

— Isso não vai acontecer. — Apontou com a garrafa de cerveja. — Estradas de terra batida, campos abertos. Sem grandes obstáculos pela frente. Vai ser divertido. Aprendi a conduzir nesta mesma pista quando tinha dez anos. O meu pai entregou-me as chaves e deixou-me à vontade. Era baixo, mal conseguia ver por cima do volante.

Carly respirou fundo e olhou para o tabliê empoeirado. Não era nada parecido como aquele que ele tinha no Ford — não havia praticamente instrumentos ou botões.

— O que é que eu faço?

Ele disse-lhe para carregar na embraiagem, depois passou algum tempo a mostrar-lhe como pôr as mudanças.

— Se calhar não vais precisar de sair da segunda neste terreno difícil, mas assim que conseguires dominar as duas primeiras mudanças, não tens problemas. Agora carrega a fundo no acelerador e põe-me essa tipa a trabalhar.

— Porque é que estás a tratar o veículo como se fosse do sexo feminino? — perguntou, procurando ganhar tempo.

A sua boca contorceu-se.

— Porque é de manutenção elevada e totalmente imprevisível.

— Isso não é nada simpático. Ele sorriu.

— Na verdade, fui até bastante cortês e deixei de fora a parte da condução confortável. Avanças com isso ou vamos ficar aqui sentados a falar toda a noite?

Carly fez como ele disse e gemeu de terror quando o motor entrou em acção.

— Meu Deus!

— Relaxa. Desde que mantenhas o pé na embraiagem, tens controlo absoluto. Isso mesmo. Agora carrega no acelerador para teres a sensação de aceleração.

Minutos depois, quando Hank achou que ela estava pronta, Carly largou o pedal de embraiagem. A carrinha projectou-se violentamente para a frente, depois o motor engasgou-se e foi-se abaixo.

— O que é que eu fiz de errado? — Carly estava tão nervosa que mal conseguia respirar. As suas pernas começavam a tremer de cada vez que pressionava nos pedais.

— Não é uma boa ideia. Aprecio o gesto, Hank. A sério, mas...

— Paras com isso? Estavas a ir muito bem. Toda a gente deixa o carro ir abaixo da primeira vez. Tens de sincronizar os pedais, largar a embraiagem enquanto carregas no acelerador. Requer um pouco de prática.

«Um pouco?» Carly pôs a carrinha de novo a trabalhar. A segunda tentativa, o veículo lançou-se de novo para a frente, mas o motor não se foi abaixo. Agarrou no volante com as mãos.

— Estamos a andar! — gritou ela, com uma voz fina de pânico. — E agora? Diz-me o que devo fazer! — Viu uma árvore à frente. — Meu Deus! Uma árvore, Hank! O que é que eu faço?

— Conduz. — Ele agarrou no volante, ajudou-a a contornar a árvore e depois deu-lhe uma pancadinha no braço. — Pronto, estás a ver? É facílimo. — Apontou para uma estrada cheia de sulcos à direita. — Vai por ali. O caminho dá a volta por uma zona de pasto com uma rotunda grande e jeitosa.

Carly virou de forma brusca e depois corrigiu em demasia, mas conseguiu finalmente colocar a carrinha na estrada. A velha carrinha saltou sobre os sulcos a um ritmo lento, permitindo-lhe algum tempo de reacção enquanto se agarrava ao volante. Minutos depois, começou a relaxar.

— Estou a conduzir — disse ela. — Estou mesmo a conduzir. Hank sorriu e encostou-se ao assento para beber a cerveja.

— É claro que estás, e a sair-te muito bem. Que tal?

— É como se fosse dona do mundo. — Carly tocou a buzina. — É ainda melhor do que fazer queda livre! Obrigada, Hank. Não acredito que tenhas confiado a tua carrinha nas minhas mãos.

— Querida, esta traquitana é indestrutível. Uma Vintage Ford, 1949, e feita para ser maltratada. É a nossa carrinha do rancho. Usamo-la para todo o trabalho pesado. Já sofreu cornadas, coices e toques em árvores e rochas. Se acrescentares uma nova amolgadela, ninguém dará por isso.

Minutos mais tarde, chegaram à rotunda. Hank inclinou a cabeça para o pára-brisas.

— Cuidado com a vedação.

O sol incidia através do pára-brisas, sujo nessa altura. Carly pestanejou, tentando ver.

— Qual vedação?

Hank endireitou-se no assento.

— Aquela vedação. Pára. Põe o pé no travão.

Carly baixou o pé. Só que carregou no pedal do acelerador. Perante a aceleração repentina, o motor da carrinha rugiu, o veículo precipitou-se para a frente e ela viu finalmente a vedação — e avançou sobre ela.

— Valha-nos Deus! — gritou Hank. — Cuidado com as vacas!

— Vacas?

Antes de Carly conseguir vê-las, quanto mais evitá-las, a carrinha embateu num monte de terra junto a um canal de irrigação e voou pelos ares. Segundos depois, aterravam no meio do pasto, com as vacas a fugirem em todas as direcções, lançando fortes e roucos mugidos de descontentamento.

Os bovinos escaparam e seguiu-se um súbito silêncio. O motor da carrinha fora-se abaixo. Carly deixou-se ficar quieta, com as mãos agarradas ao volante. Hank ainda tinha a garrafa na mão, cujo conteúdo se derramara na parte da frente da camisa.

— Valha-me Deus — murmurou ele. — Devia ter dito, «condução excitante». Carly não conseguia respirar e só lhe apetecia gritar.

— Estás bem? — perguntou Hank.

Ela acenou afirmativamente. A seguir, depois de lutar para recuperar a voz, conseguiu dizer.

— Oh, Hank, peço imensa desculpa. O sol incidiu no pára-brisas e deixei de ver. As vacas estão bem, o que é que achas?

— Coalhaste-lhes o leite, de certeza. — Havia uma certa estranheza e tensão na sua voz. — Viste a expressão na cara delas?

— Não. Só consegui ver os seus traseiros.

Ele fungou. Depois desatou a rir — não apenas risadas, mas grandes e enormes gargalhadas de fazer estremecer o corpo. Riu-se até a garrafa vazia lhe escorregar da mão e cair no chão. Riu-se até ficar com o corpo dorido. Riu-se até as lágrimas lhes escorrerem dos olhos.

Quando finalmente se calou, Carly disse:

— Não consegui perceber a piada.

Por razões que a ultrapassavam, tal só veio contribuir para que ele se pusesse a rir de novo.

— Estás louco. Isto não tem piada nenhuma. Destruí a vedação, dei cabo da carrinha e quase que matava as vacas!

Com o ataque de riso em vias de esmorecer, ele disse:

— A vedação tem conserto, a carrinha não tem importância e as vacas estão apenas um pouco assustadas. Desde a Bethany que não viam uma mulher a conduzir. — Suspirou e levou as mãos à barriga. — Puxa, há imenso tempo que não me ria assim. — Sorriu ligeiramente para ela. — Retiro o que disse. Consegues andar suficientemente depressa para teres um acidente nestas paragens. Não é qualquer um.

Endireitou-se, respirou fundo e expeliu lentamente o ar.

— Bem — disse ela, apontando com a cabeça para a ignição —, toca a pôr essa donzela de novo a trabalhar.

— Oh, não. Não vou conduzir de volta.

— É claro que vais. Pusemo-nos aqui num ápice, não pusemos? Tirou outra garrafa do pacote. Mal abriu a tampa, a cerveja jorrou do gargalo, atingindo-o directamente no rosto. A espuma ficou pendurada nas suas sobrancelhas escuras. O líquido escorria-lhe em fio pela cara.

— Gaita para isto. Carly falou entre risos.

— Acho que não foram só as vacas que ficaram agitadas. Ele olhou de uma forma contundente.

— Não percebo onde está o humor.

Ela levou uma mão à boca para abafar o riso. Desta vez, foi Carly quem começou a rir-se às bandeiras despregadas.

Depois do jantar, nessa noite, Hank foi buscar o jogo de damas que trouxera para casa ao final do dia.

— Sabes jogar? — perguntou a Carly.

Ela aproximou-se da mesa, olhando curiosamente para a caixa.

— Jogar o quê?

Hank não parara para pensar que ela nunca vira um tabuleiro de damas.

— Às damas, um jogo de tabuleiro.

— Damas? — Puxou de uma cadeira para se sentar, fincou a ponta dos cotovelos em cima da mesa e pôs-se a observar fascinada, enquanto ele abria o tabuleiro e começava a dispor as peças. — A Bess e a Cricket costumavam jogar. Eu limitava-me a ouvir.

— Bem, esta noite, querida, vais jogar.

— É complicado?

Era tão fácil que até entediava, mas não lhe disse isso.

— Não é muito complicado. — Ergueu duas peças. — Queres as brancas ou as pretas?

— Brancas. — Balançou-se na cadeira e sentou-se mais direita. — Quais são as regras?

Hank explicou o jogo. Minutos depois, Carly estava a jogar muito a sério, ficando por vezes tão entusiasmada que quase caía da cadeira. «Ganhei-te desta vez!», gritava. «Sou boa nisto, não sou?»

À medida que ia ficando cada vez mais perita no jogo, ao longo da noite, começou a confundir sistematicamente as cores e a mexer nas próprias peças de Hank. Da primeira vez que isto aconteceu, ele esteve vai-não-vai para lhe chamar a atenção, mas depois olhou para cima e viu o sorriso de orgulho que ela tinha no rosto. Era óbvio que não iria dizer uma única palavra.

Hank levou toda a sua vida a jogar para ganhar. Haviam-lhe dito, mais do que uma vez, que ele era demasiado competitivo. Ganhar não é tudo, diziam-lhe os membros da família. O que contava era jogar bem. Ele nunca compreendera essa filosofia. Porquê jogar se não fosse para ganhar?

Isso era uma pergunta à qual nunca ninguém lhe tinha respondido de forma clara. E Carly acabara por fazê-lo, inadvertidamente. Observando-a, ouvindo as suas risadas, compreendeu que vencer não era realmente o mais importante. Por vezes, era mais compensador aceitar a derrota e receber em troca o sorriso radiante do vencedor.

No final da noite, Hank aguardava pelo momento de tomar um duche e lavar os dentes quando ouviu Carly a sair do chuveiro. Depois, envergando apenas as calças de ganga, caminhou descalço pela casa. Quando chegou à casa de banho, a porta abriu-se e Carly, envolvida apenas numa toalha, saiu de rompante.

— Oh! — gritou ela, embatendo-lhe no peito.

— Ups. — Hank agarrou-lhe nos ombros nus para a impedir de cair. — Desculpa. Pensei que já tinhas acabado.

— Não, eu...

Carly interrompeu o que ia a dizer e olhou para cima. Os seus olhares entrecruzaram-se. Hank tentou libertar-se dela, mas, de certo modo, parecia que as suas mãos não estavam conectadas com o cérebro. Ela tinha um ar deslumbrante, com o cabelo apanhado no topo da cabeça, e o contacto com a sua pele — macia, limpa e humedecida do duche — era ainda melhor. O ligeiro aroma a rosas que se desprendia do seu corpo fê-lo querer aproximar-se mais. E, meu Deus, como lhe apetecia loucamente beijá-la.

Ela ficou a olhar durante um tempo infinitamente longo para o seu peito. Quando finalmente desviou o olhar para o rosto dele, Hank reparou na pulsação acelerada, visível na parte inferior da garganta, sinal revelador de que ela se sentia atraída por ele da mesma forma que ele se sentia por ela. As suas pestanas grossas cor de mel baixaram-se para lhe encobrir os olhos e, conscientemente ou não, os seus lábios suaves abriram-se num sinal de convite.

Parecia-lhe que o próprio ar estava carregado de electricidade. Sentia a presença dela em cada poro da sua pele. A toalha era apenas uma barreira ténue separando os seus corpos. Imaginou a toalha a cair no chão, e viu-se a passar com as mãos pela sua pele sedosa.

Talvez ele se tenha inclinado sobre ela. Ou talvez ela tivesse interpretado esta sua intenção através dos olhos. O facto é que ela tentou afastar-se, com os olhos brilhando de recriminação.

— Não — murmurou ela. — Por favor, não.

Sentiu-a a tremer, debaixo das suas mãos. O ímpeto necessário para que ele a largasse.

— Carly, eu...

Ela prendeu a toalha no peito e afastou-se da porta da casa de banho.

— Nunca mais. Fizeste troça de mim uma vez. Não te chega? Enfiou-se no quarto e bateu com a porta. O coração de Hank batia a toda a velocidade. Encostou-se debilmente à ombreira da porta, sem sequer se importar com o facto de a saliência de madeira lhe estar a magoar as costas. Ele fizera troça dela? A que propósito é que ela vinha com isto?

Hank aproximou-se da porta do quarto e pousou a mão no puxador. Não havia qualquer tipo de tranca. Resistiu à tentação de entrar.

— Carly, podemos falar sobre isto? — perguntou ele.

— Não! Não há nada para falar. E se começares a beijar-me outra vez, saio.

Apoiou uma mão na grossa tábua de madeira que os separava.

— Tanto quanto me lembro, gostaste de me beijar naquela noite. Poderei não estar muito ciente do que aconteceu a seguir, mas lembro-me muito bem dessa parte. — Nenhuma resposta. — Estou errado? Gostaste ou não?

— Gostei. Satisfeito? Fui estúpida. Afasta-te! Deixa-me em paz.

Apoiou a testa na porta.

— Se gostaste, Carly, porque é que o pensamento de me beijares de novo te aterroriza tanto?

— Porque sim!

«Porque sim?» Aqui estava uma resposta evasiva, se é que podia ser considerada como tal.

— Isso não me diz nada.

— É pena. É tudo o que tens.

— Querida, por favor, não podemos...?

— Não, não podemos! Se queres um corpo disponível, vai à procura dele na cidade. Não seria a primeira vez. Já te tinha avisado, nada de sexo. Estou a falar a sério.

Ele percebera a mensagem claramente. Começava também a suspeitar de que a sua repulsa tinha por base algo que ultrapassava a simples dor física que ele lhe provocara. Um corpo disponível? Hank quis discutir este ponto — dizer-lhe que o seu encontro significara mais para ele do que isso — mas as palavras não lhe saíam da boca. Se ele não tivesse engatado Carly, teria sido outra qualquer. Um pouco de intimidade sem sentido teria sido o entretenimento do fim-de-semana.

«Não me digas que sou bonita», implorara-lhe na noite de núpcias. «Não sentes o que dizes.» Agora compreendia muito bem. Ela sabia que o seu encontro não significara nada para ele e, por extensão, que ela não significava nada. O conhecimento do facto ferira-a de uma forma que talvez nunca viesse a sarar.

Hank afastou-se da porta para se encostar à parede. E agora? Ele estava a perder o coração por aquela rapariga — a apaixonar-se perdidamente por ela. E ela estremecera só de pensar em deixar que ele lhe tocasse.

Foi-se deitar com a ideia na cabeça, deixando-se martirizar por ela durante uma boa parte da noite, sem conseguir relaxar. Por fim, já perto da aurora, lá conseguiu sossegar a tempo de ver os primeiros raios de luz a tocarem no céu. «Um novo começo», pensou, desejando que ele e Carly pudessem recomeçar mais ou menos da mesma forma, pondo a escuridão para trás e só com o céu azul pela frente.

Mas como? Não podia apagar o que tinha acontecido naquela noite. A vida não era um quadro preto. Os erros não podiam ser eliminados. Só lhe restava lamentar-se e pedir-lhe perdão.

No momento em que esse pensamento entrou na mente de Hank, este ficou hirto. Na carta que escrevera a Carly expressara-lhe as mais sinceras desculpas, pedindo para que ela o perdoasse. E se ela não tivesse lido a maldita carta? Sentou-se direito na cama. Mesmo que ela tivesse tentado lê-la, a sua caligrafia não era a melhor. Devia ter tido imensa dificuldade a decifrar as letras, quanto mais a sua escrita inclinada. É óbvio que não a lera. Era um idiota se pensasse que ela o tinha feito.

Hank saiu da cama e agarrou nas calças. Nada de desculpas. «Meu Deus.» Lembrava-se de lhe ter dito como lamentava o sucedido, uma noite ao telefone, mas não detalhadamente ou do fundo do coração. Desde então, a única vez que estivera lá perto fora na noite de núpcias, quando se referira a si próprio de forma inoportuna como um burro.

As palavras verdadeiras nunca chegaram a ser pronunciadas. Ele era um burro.


Capítulo Dezasseis

— Acorda, princesa. Tenho uma surpresa para ti.

Carly fez um esforço para acordar e tentar focar o rosto escuro que tinha pela frente — uns olhos azuis da cor do céu, um queixo bem delineado, uma boca firme mas instável, que se abriu lentamente num sorriso que deixava transparecer uns dentes brancos e fortes. Hank. Endireitou-se e ficou subitamente acordada, lembrando-se do encontro na noite anterior com um sentimento desagradável de ressentimento.

Erguendo-se num cotovelo, disse:

— Já são horas de almoço?

— Ainda não. — Alargando o sorriso, ele ergueu um saco de plástico com umas letras vermelhas na parte da frente. — Passei por uma série de lojas esta manhã e vê o presente que trouxe para ti.

Ela tentou ver através do saco semitransparente.

— O que é?

— Uma surpresa. — Pousou o saco na velha mesa do centro. — Estás a sentir-te fraca esta manhã, querida?

— Estou melhor agora. Deixei-me dormir, comi tarde e senti-me agoniada quando acordei pela primeira vez.

— Tomaste a tua cura matinal para os enjoos? Ela anuiu com a cabeça.

— Vou buscar-te Seven-Up e umas bolachas de água e sal — disse-lhe enquanto se deslocava na direcção da cozinha.

Carly estava sentada quando ele regressou. Depois do que tinha acontecido na noite anterior, não se sentia lá muito à vontade vestida apenas com uma camisa de noite.

Como se tivesse adivinhado os seus pensamentos, ele disse:

— Estás muito bem assim. — Os seus lábios estreitaram-se com um humor sarcástico. — Nunca vi coisa mais recatada. Estás tapada dos pés à cabeça.

Encostou-se numa almofada ao lado dela, pousou a garrafa de gasosa, passou-lhe o pacote de bolachas para a mão e pegou no saco.

— Não é um presente muito excitante, creio. Mas pensei que poderia ajudar-te a reconheceres as letras. — Tirou duas caixas dos invólucros de plástico. — Consegui dois estilos diferentes, um com a escrita modificada e o outro com a fonte padrão. — Piscou-lhe o olho. — Cartões com letras, querida, um com arabescos, outro sem.

Quando ele abriu a primeira caixa, Carly ficou surpreendida. Sem se aproximar, conseguia ver a letra preta e gorda no topo.

— Oh. — Uma sensação pungente inundou-lhe os olhos. — Que presente maravilhoso.

Ele olhou, viu as suas lágrimas, e disse:

— Puxa, querida, não chores. São apenas cartões, não um colar de diamantes.

Era a intenção que estava por trás que contava — saber que tivera uma ideia daquelas e passara metade do dia de loja em loja.

Ele colocou o conjunto de cartões na sua grande mão tisnada. Segurando num, disse:

— É giro, não é? Já não precisas de franzir os olhos. Aprenderás a reconhecer as letras num instante.

Carly acenou com a cabeça, sentindo um aperto tão grande na garganta que duvidava que conseguisse falar. Ontem à noite, quisera bater nele por quase a ter beijado. Agora queria abraçá-lo por ter sido tão simpático. A instabilidade das suas emoções preocupava-a. Quando Hank se mostrava determinado, era muito difícil resistir-lhe.

Pôs de lado as bolachas e pegou na Seven-Up.

— Vamos observá-los primeiro por ordem alfabética — disse-lhe ele, enquanto pegava no primeiro cartão. — Ficarás assim com um ponto de referência para aprenderes a reconhecer as letras. — Arqueou as sobrancelhas escuras e grossas. — E a primeira é?

— Posso examiná-las sozinha, Hank. — Ela tinha uma licenciatura de quatro aros, e ele queria ensinar-lhe o alfabeto? — Isto é humilhante. Parece que tenho cinco anos.

Ele riu-se.

— O teu córtex visual não é muito velho, e os cartões funcionam melhor quando é alguém a mostrá-los. Dificultarei um pouco mais as coisas por se tratar de uma senhora crescida. Que tal?

Com o cartão do A na mão, pôs-se de pé, tirou a fralda da camisa para fora e expôs a barriga.

— A, de «abs» — disse, apertando os músculos abdominais para mostrar os seus contornos. Carly estava eufórica. Os pêlos pretos do peito estreitavam-se na zona abaixo das costelas, transformando-se numa linha fina junto ao cós das calças.

Quando mostrou o cartão seguinte, piscou o olho e disse:

— B, de «bíceps».

Tirou a camisa para mostrar os braços. Carly sentiu a força que deles emanava. Não ficou surpreendida ao ver tantas protuberâncias e ondulações. Concentrara-se de tal maneira no peito, na noite anterior, que mal reparara nos braços.

— Posso continuar assim?

Receando que ele parasse, assentiu estupidamente.

— C, de «chest».

Estirou-se e flexionou os músculos do peito. Ela desejou poder pôr uma mão sobre uma das saliências e senti-la a mover-se debaixo dos seus dedos. A sua pele era tão escura como a velha mesa de carvalho da cozinha — de um castanho profundo, muito mais escuro do que o dela. O seu estômago fez um barulho estranho. Interrogou-se se iria ficar agoniada.

Não demorou muito para que ele a pusesse a rir com a imitação de Popeye, mas, apesar da exultação, Carly não conseguia parar de olhar. O seu torso apresentava-se magnificamente esculpido. Até agora, nunca vira um peito tão bem musculado ou uns braços que irradiassem tanta força. Era uma experiência perturbadora, no mínimo.

Para descontentamento de Carly, ele levantou um dos últimos cartões.

— X, de «X-rated», só para adultos — disse com um sorriso preguiçoso. — Não é que seja lá muito bem dotado, fisicamente, mas é o que se encontra à mão.

Hank Coulter não precisava sequer de mostrar. O olhar de Carly incidiu sobre a fivela do cinto prateada. Depois apercebeu-se para onde estava a olhar e corou até à raiz dos cabelos. Os olhos azuis de Hank escureceram, com o brilho da sua risada a transformar-se num calor de derreter. Durante um momento, que pareceu enorme, os seus olhares entrecruzaram-se. Hank mostrou rapidamente os cartões restantes, pousou-os na mesa do centro e voltou a vestir a camisa.

Carly reprimiu um suspiro.

— Obrigada, Hank. A tua versão do alfabeto é muito mais divertida do que a minha.

— Não agradeças — disse ele, enquanto se voltava a sentar. — Ainda não terminei. Vamos voltar a fazer tudo do princípio.

Carly não tinha a certeza se o seu coração conseguiria aguentar tanta excitação. O sorriso de Hank desvaneceu-se enquanto voltava a mostrar os cartões para outra ronda. Quando mostrou o A, a sua expressão adquiriu um ar perfeitamente solene. Os seus belos olhos azuis ficaram de um tom azul-acinzentado, a puxar para o escuro, fazendo-lhe lembrar o aspecto do céu nocturno, há algumas semanas, antes de uma tempestade.

Com uma voz baixa e rouca, disse:

— A, de «ass», imbecil. Gostarias de pôr uma etiqueta na minha testa? Lembrei-me, ontem à noite, de que ainda não te tinha dito como me sinto arrependido do meu comportamento naquela noite no Chaps. Não há volta a dar. Fui um grandessíssimo idiota.

Apanhada desprevenida, Carly não sabia o que dizer. Ele mostrou outro cartão.

— B, de «bastard», ou seja, de um patife de todo o tamanho. Mandarei gravar a palavra na fivela do meu cinto, se quiseres, e procurarei usá-lo todos os dias, durante o resto da minha vida. Enganei-te e roubei-te um ano ou mais de visão. — O brilho nos seus olhos transformou-se numa humidade cintilante. A voz aprofundou-se ainda mais, com os tendões do seu rosto magro a assinalarem cada movimento dos maxilares. — Não posso desfazer isso, ou até tentar remediar. Quando ficares cega, será por minha culpa. Daria o meu braço direito para emendar fosse o que fosse, mas não há como voltar atrás, nenhuma maneira de reparar os danos.

Carly acreditara em tempos que este homem não passava de um playboy egoísta de chapéu e calças de ganga, apenas preocupado consigo próprio. Agora estava a vê-lo de lágrimas nos olhos.

Ela não queria isto. A sua maneira, ele fizera emendas, e, ao longo dos próximos anos, continuaria a fazê-las.

— Oh, Hank, não. Por favor.

— C, de «Casanova», depravado e alcoólatra, prosseguiu com azedume. — O meu passatempo de fim-de-semana, andar atrás de mulheres. Tu foste apanhada e eu caí em cima de ti sem pensar duas vezes. — Mostrou o cartão seguinte. — D, de «dickhead», se perdoares a minha linguagem para designar os parvalhões. E também de outras coisas que tenham que ver com sacanas miseráveis, desprezíveis e sem valor.

Atirou os cartões para cima da mesa. Quando olhou para ela, a sua expressão transmitia muito mais do que aquilo que parecia capaz de dizer com palavras. Finalmente, disse:

— Contei-te como estava arrependido naquela carta que te escrevi. Ocorreu-me, ontem à noite, que se calhar nunca a chegaste a ler.

Carly desejava ter pelo menos tentado.

— Não estou a dizer que esteja arrependido em relação ao bebé — prosseguiu. — Não me parece correcto para qualquer pai dizer uma coisa dessas. Mas estou mais arrependido do que tu pensas em relação ao que aconteceu. — Tocou-lhe ao de leve e com cautela no cabelo, fazendo com que ela se inteirasse de que ele estava realmente entristecido com a situação. — Merecias melhor e, se estivesse sóbrio, teria feito por isso.

— Oh, Hank, aonde queres chegar?

— Ouve o que eu tenho para dizer. — A sua garganta movia-se de cada vez que engolia. — Só ontem à noite é que me apercebi da forma como te magoei. Agora tens medo de desenvolver qualquer intimidade com um homem. — Tocou-lhe no cabelo com maior firmeza, enfiando os seus longos dedos por entre as madeixas para lhe afagar o couro cabeludo. — Não me importaria assim tanto se fosse só a mim que quisesses evitar, mas tenho a sensação de que não é esse o caso. Tenho pena que isso possa vir a acontecer com outra pessoa qualquer.

Carly fechou os olhos.

— Não é sempre horrível, querida. Quando estás com a pessoa certa, o sexo pode ser maravilhoso. Mágico, glorioso e doce, para além de tudo o que possas imaginar.

Carly levantou as pálpebras. Continuava a não saber o que dizer. A única coisa que sabia é que não suportava aquele aspecto horrível nos seus olhos.

— Também queria que soubesses que és muito bonita. Estava bêbedo naquela noite, confesso. Mas sei reconhecer uma mulher bonita quando a vejo. Estava na pista de dança com outra mulher e reparei em ti. Foi isso que me chamou a atenção. Não olhei para mais ninguém nesse maldito bar, a partir desse instante.

Ela nunca esperara, verdadeiramente, que ele pedisse desculpa, e muito menos desta forma. Nada de desculpas, nenhuma tentativa de se fazer passar por bonzinho. Estas palavras vinham do seu coração e não abonavam em seu favor. Isso era notório.

— Algum dia, algum homem vai olhar para ti e apaixonar-se. — Segurou-lhe o queixo com as mãos, passando com o polegar pela parte côncava do rosto. — Quando isso acontecer, não deixes que as recordações daquilo que te fiz te arruínem a vida. Tem fé. Confia nele. Tenta agarrar a magia com as duas mãos. Se não o fizeres, estarei a caminho do céu, um dia, carregado de culpa.

— Hank, eu...

— Ouve. Por favor. — Deixou de segurar no seu queixo e levou uma mão aos olhos. — Não me consigo lembrar de tudo o que fiz. Só sei que me portei male magoei-te, e peço desculpa por aquilo que fiz. — Respirou fundo. — Não avalies todos os homens em função de mim. Se cometeres esse erro, perderás uma das melhores coisas que a vida tem para oferecer.

Carly acenou com a cabeça. As palavras ultrapassavam-na. Ele pôs-se de pé.

— Só mais uma coisa.

Ela olhou para cima, indagando que mais é que ele poderia dizer.

— Depois do que aconteceu, ontem à noite, comecei a entender um pouco melhor o constrangimento que poderás sentir em relação ao facto de estares aqui a viver comigo. Sei que poderás não estar muito inclinada a acreditar naquilo que estou a dizer, mas tinha de o fazer. Não precisas de te preocupar. Recusei-me a ficar agarrado a promessas quando tu me pediste para o fazer. Vou fazê-lo agora. Nada de sexo, ponto, para sempre. Se isso fizer com que estes dois anos se tornem mais fáceis para ti, querida, tens a minha palavra.

Agarrou no chapéu e saiu de casa. Carly ficou a olhar para ele, ainda atordoada, sem querer acreditar que ele se atrevera a pedir desculpa de uma forma tão sentida, convencida, no entanto, de que ele fora absolutamente sincero. Não mudava nada, é certo, mas para Carly mudava tudo.

Cobriu o rosto com as mãos. Pela primeira vez, desde essa noite, permitiu que os seus pensamentos recuassem no tempo, lembrando-se de pequenos detalhes sobre os quais se recusara a pensar. De início, lembrou-se das coisas como queriam que fossem lembradas, pondo-se no papel de vítima miserável. Mas as desculpas de Hank, expostas minutos antes, deixavam-na envergonhada, obrigando-a a olhar com outros olhos para a sequência de acontecimentos: não como queria lembrar-se, mas como tinham realmente acontecido. Como o seu corpo tremera quando ele a arrastou para a pista. Como tinham rido juntos, enquanto ele tentava ensinar-lhe os passos. Como ele não fizera caso da sua falta de jeito e a pusera à vontade, mesmo quando ela tropeçou nos seus próprios pés. Como ela adorara falar com ele à mesa, como a ouvira atentamente.

Até agora, culpara Hank por tudo, sem aceitar qualquer responsabilidade da parte dela. Mas, na verdade, por muito bêbedo que ele estivesse, não deixara de se portar como um cavalheiro. Talvez, se quisesse ser brutalmente honesta consigo própria, tivesse mais culpas por aquilo que aconteceu do que ele.

Mais do que uma vez, durante a noite, pensara em falar acerca da sua cegueira, mas, à última hora, desistira, com medo que estragasse as coisas, que ele a largasse como peixe podre. E ela não protestara quando ele mandou vir uma bebida de mistura. Ela sabia, lá no fundo, que não era aconselhável beber em demasia quando se estava a tomar medicamentos. Mas não fizera caso de todas essas precauções e consumira o álcool.

A sua vez. Encontrá-lo, estar ao lado dele. Parecera tudo tão mágico. Seria mesmo culpa de Hank o facto de ela se ter posto a caminhar nas nuvens? Seria mesmo culpa de Hank que ela estivesse a sonhar e a desejar um final feliz? Ele não a forçara a ficar lá fora com ele. Ela devolvera-lhe o beijo, sem problemas, e não protestara quando ele a levou para a carrinha.

A partir desse momento, quem era verdadeiramente responsável por aquilo que acontecera? De novo, pusera de lado todas as precauções, querendo agarrar a experiência e gozar todos os segundos. A qualquer momento poderia ter-lhe dito que nunca estivera com um homem. Conhecendo Hank como conhecia agora, Carly acreditava que ele teria parado. Foi precisamente isso que aconteceu quando ela gritou de dor.

Olhou para os cartões que ele tinha posto em cima da mesa. B, de «bastard”. Não podia deixar as coisas assim. Ele não devia sentir-se culpado para o resto da vida por causa de um erro que tinha sido tanto dele como dela.

Hank acabara de ligar a perna dianteira de um cavalo castrado e estava a sair do estábulo quando ouviu uma voz feminina e ténue. Olhou por cima do ombro e viu a silhueta de Carly junto à entrada, rodeada por um nimbo de luz dourada.

— Olá — disse, colocando o rolo de fita na prateleira. — O que te traz por aqui?

Ela riu-se e entrou. Não estava tão nervosa como da primeira vez que fora ao estábulo, mas viu que olhava nervosamente para o cavalo à sua direita. Percorrendo os botões da sua camisa azul com os dedos trémulos, disse:

— Eu, hmm, preciso de falar contigo. Podes dar-me alguns minutos?

— Claro.

Levi emergiu do escritório do estábulo nesse preciso momento. Cumprimentou Carly com um olá amigável. Ela sorriu e trocou algumas palavras. Depois olhou para Hank com um ar implorativo.

— Prometo que não te vou roubar muito tempo. Mas gostaria de falar a sós contigo.

Hank tirou o chapéu de um gancho que havia junto à entrada do escritório.

— Não há problema. Nunca estou assim tão ocupado a ponto de não poder dispensar uns minutos para falar com uma senhora bonita. Vamos até ao riacho.

Ela ajustou o passo de modo a abeirar-se dele enquanto abandonavam o edifício. Hank não pôde deixar de reparar na forma tensa como ela agarrava a cintura com os braços. Depois de ter trabalhado com cavalos perturbados, durante tanto tempo, começara a ter alguma experiência em ler a linguagem corporal. A dela assinalava pouco à vontade.

Hank estava preocupado com aquilo sobre o qual ela queria conversar. Quando chegaram ao riacho, levou-a até perto de um monte relvado e fez sinal para que ela se sentasse. Ainda abraçada à cintura, ela declinou, preferindo ficar de pé, com os olhos postos no chão. Dando sequência ao seu gesto, transferiu o peso das pernas, cruzou os braços e esperou que ela dissesse alguma coisa.

— Eu, hmm, não sei por onde começar — disse com uma voz trémula. O coração de Hank começou a ficar agitado. Tinha o pressentimento de que ela lhe ia dizer que já não queria viver com ele.

— Começa pelo princípio, querida. Se for difícil começar, podes sempre voltar atrás e tentar de novo.

Ela aquiesceu. Depois olhou para cima. As lágrimas enchiam-lhe os olhos e a boca tremia-lhe nos cantos.

— É realmente diferente ser uma adolescente cega.

De onde isso vinha, ele não sabia. Mas tinha a sensação de que havia qualquer coisa que ela precisava de dizer.

— No liceu, costumava sonhar com a possibilidade de um rapaz ligar-me a convidar para a festa de formatura. Com uma pequena risada sem humor, apressou-se a acrescentar:

— O rapaz mais popular da escola, claro. Se vamos sonhar, porque não sonhar em grande? Não tinha a ver com ter um fraquinho por alguém. Esse tipo de coisas deixava-me um pouco perplexa. Enquanto a Bess e a Cricket se punham a cochichar e a dar risadinhas sempre que falavam de rapazes giros, eu fazia um esforço enorme para conseguir imaginar na minha mente o aspecto que eles teriam.

Hank desenhou um grande arco com o pé, aplanando a relva com a bota.

— O que eram bíceps, indagava — prosseguiu ela, hesitante. — E onde estavam eles? Conseguia ver apenas pelo toque e nenhum rapaz se oferecia para que eu pudesse explorar os seus corpos. As descrições verbais deixavam-me bastante confusa. O meu único ponto de referência acerca das relações eram histórias, quase sempre contos de fadas, que a minha mãe me lia, daí o meu sonho de que o príncipe da escola iria apaixonar-se perdidamente por mim. Eu era o patinho feio... a rapariga cega que todos os rapazes evitavam.

Hank continuava a não saber até onde é que ela queria chegar, mas ouvia calmamente, com o seu coração a sentir a dor que via estampada no rosto dela.

— Permaneci ignorante em relação ao sexo na vida adulta. Quando estava a estudar para ser professora, especializando-me em alunos com deficiências visuais, soube que isso era normal para os cegos. Enquanto a maior parte das crianças consegue ter uma noção do que é o sexo, as crianças cegas não sabem o que isso é. Não há nada de visual para estimulá-las nesse sentido e elas não amadurecem sexualmente da mesma forma que as outras pessoas.

— Compreendo — disse ele finalmente. Ela pareceu aliviada.

— Compreendes? Deve ser muito difícil para uma pessoa que vê conseguir imaginar isto. Podia tocar no meu próprio corpo e ficar com uma ideia geral do meu aspecto, mas os rapazes eram para mim um mistério. Fiquei tão maravilhada naquela noite no Chaps, quando vieste até à minha mesa. Além de todas as outras diferenças físicas em que eu já reparara, enquanto te observava, custava-me a acreditar que fosses tão alto. Muito mais alto do que eu, e maior também.

Hank sorriu contra a vontade.

— Estiveste a observar-me?

— Sim, estive. Bem, eu... — O seu rosto ficou ruborizado de embaraço. — Não sei explicar o que é que me atraiu em ti, mas a verdade é que captaste a minha atenção. Mal reparei nos outros homens. — Respirou fundo e expirou com uma risada de escárnio. — Enfim, como deves calcular, o meu príncipe nunca apareceu na escola.

Ela ficou a olhar para o vazio, durante um tempo demasiado longo, dando a impressão a Hank de que houvera pelo menos um sapo no passado. Não conseguia eliminar a sensação de que ela estava a deixar qualquer coisa de muito importante de fora. Os seus olhos reflectiam uma imensa dor, mas ele esqueceu-se disso quando ela começou a falar outra vez.

— Na universidade, foi o mesmo. Nenhum príncipe apareceu. Deixei de pensar que isso pudesse vir a acontecer.

Quando ela olhou para Hank de novo, os seus olhos estavam a brilhar.

— Depois fui ao Chaps com a Bess — disse ela suavemente — e, de repente, lá estava ele, sorrindo para mim e convidando-me para dançar. Tal e qual como sonhara, só que melhor, porque podia finalmente ver o porquê de tanto sussurro e risadas. Ele disse tudo aquilo com que eu sempre sonhara, que eu era bonita, que ele tinha estado toda a vida à minha espera. Ele fez-me sentir como se eu fosse a única mulher na sala.

— Ah, Carly, desculpa. Daria tudo para voltar atrás no tempo e ser o príncipe que merecias.

Ela abanou a cabeça.

— Não, não compreendes. Eu sabia que já disseras todas essas coisas a uma série de mulheres, que eram apenas frases de engate. Ser cego não significa ser estúpido, vendo bem as coisas, e uma mulher não vive até aos vinte e oito anos sem ganhar alguma experiência de como são as coisas. Preferi acreditar em ti, Hank. Compreendes? Era o meu momento, depois de tantos anos de espera, estava finalmente a acontecer-me. Não queria estragá-lo fazendo alusão à minha cegueira. Tinha medo que olhasses para mim de modo diferente, ou te fosses embora. Também não queria que soubesses que nunca estivera com ninguém. Por um momento, por uma noite, queria ser como todos os outros.

«Concretizei o meu desejo — murmurou ela. — Trataste-me da mesma maneira que tratarias qualquer outra mulher que conhecesses num bar. Contaste com o teu charme. Disseste todas as coisas que eu queria ouvir. Dançaste comigo. Ofereceste-me uma bebida. Uma coisa levou à outra e, antes de a noite terminar, enfiaste-me dentro da carrinha. A dada altura, podia ter dito alguma coisa. Partiste do princípio de que a culpa era toda tua, por aquilo que aconteceu naquela noite, e, até agora, regozijei-me com isso. Mas a verdade é que me deixei levar de olhos bem abertos, quer em termos figurativos quer em termos literais. Não foi por tua culpa que fingi ser alguém que não era, ou que tenha perdido o controlo das coisas.»

— Como todos os outros? — repetiu ele.

Por alguma razão, aquilo que ela disse perturbou Hank de modo mais profundo do que seria de esperar. Esquecendo-se, por momentos, da sua política de mãos atrás das costas, puxou-a para junto de si. Por uns instantes, ela ficou hirta. Mas depois relaxou.

Enterrando o rosto no cabelo dela, deixou-se ficar, absorvendo a sensação de toda a sua suavidade e pensando nas implicações daquilo que ela dissera. Quando pensou em todas as mulheres que conhecera em bares, os seus rostos apareceram-lhe indistintos na mente. Mas nunca se esqueceria do de Carly — o ar maravilhado dos seus olhos, os contornos suaves da sua boca quando sorriu, ou a forma como parecia irradiar bondade.

Deus nos livre que ela passasse a ser como todos os outros. Era uma pessoa muito especial. Quanto mais Hank a conhecia, mais especial achava que ela era.

Não sabia o que lhe dizer, depois de ter ouvido tudo isto. O que o perturbava mais era o facto de ele ter podido arranjar uma desculpa qualquer e ter-se afastado, se tivesse sabido acerca da sua cegueira. Nunca desflorara uma virgem antes. De certeza que se teria afastado. E se isso tivesse acontecido? Carly podia ter regressado à sua mesa e ido para casa com Bess, sem ter passado pela experiência. Ou outro homem poderia ter vindo buscá-la, logo depois dele se ter afastado.

Em face deste pensamento, Hank passou-lhe com a mão pelo cabelo, imbuído por um forte sentimento de posse que o levava a querer abraçá-la e nunca mais a deixar escapar. Tremia só de pensar em alguém a tocar-lhe.

Por muita coisa errada que ele pudesse ter feito — e por muito que ela lamentasse os erros por ele cometidos — não podia lamentar o facto de ela estar agora ao seu lado. Talvez, apenas talvez, ela pudesse vir a gostar dele com o tempo — como ele passara a gostar dela — e concedesse uma segunda oportunidade ao seu coração.

Nesse momento, Hank sabia que se apaixonara completa e definitivamente por ela. Aquilo que decidira inicialmente fazer sem qualquer sentido de obrigação transformara-se numa coisa mais profunda. Só quando se viu confrontado com ele é que conseguiu reconhecer o desejo do seu coração.

Agora não conseguia suportar a ideia de perdê-la. Sabia que não tinha sido fácil para ela revelar-lhe os seus sentimentos mais profundos — ou admitir que tencionara deliberadamente ser algo que não era naquela noite no bar. O seu sentido de justiça era também outra coisa que apreciava nela.

Por fim, lá conseguiu libertá-la do seu abraço. Pegando-lhe na mão, apontou para o monte relvado.

— Anda sentar-te ali comigo — insistiu ele, com a voz tão rouca como a de um sapo.

Ela olhou para o estábulo.

— Já te ocupei muito tempo.

— Por favor. Quero que compreendas uma coisa, Carly, e vai demorar algum tempo a explicar.

Ela procurou o seu olhar. Hank não fazia a mínima ideia do que ela conseguiu ler nos seus olhos, mas nos dela viu unicamente o seu coração a brilhar. E que coração tão gentil era o dela. Ficaram ali, durante vários segundos, perdidos no atoleiro que eram as suas emoções, com os dedos entrelaçados e as mãos unidas.

Finalmente, ela deu o seu aval e Hank levou-a até ao monte. Sentaram-se lado a lado, ela com os braços em volta dos joelhos, ele com uma perna dobrada, a outra estendida.

— A minha infância não foi tão difícil como a tua, mas também teve os seus problemas — disse-lhe, com a sua visão a ficar obscurecida enquanto recuava uma série de anos. — Não no sentido geral, com os meus pais sempre a discutirem ou a ouvir do meu pai. Só que é difícil ser-se filho de um rancheiro. O comércio da carne teve uma grande quebra nos anos setenta. Éramos pequenos produtores de gado em comparação com as grandes cooperativas. Quando eu era criança, o meu pai viu-se com a corda na garganta e teve de prescindir dos seus colaboradores. Foi obrigado a contar só com ele e, por extensão, com o resto da família, para manter este lugar. Levantava-me com os meus irmãos de madrugada, e trabalhava até serem horas de ir para a escola e, quando chegava a casa, ia logo para o campo, continuando a trabalhar no duro.

«As coisas recompuseram-se quando éramos mais velhos, mas o meu pai contraíra uma série de dívidas para se poder manter, por isso o rendimento extra não dava para luxos. Ia todo para os empréstimos. Sendo o mais novo, fui também o último a sair de casa, e, quando os meus irmãos partiram para a Universidade, o trabalho começou a recair em maior quantidade sobre mim.»

Hank esfregou a cara com uma mão e suspirou. Sentia Carly a observá-lo, mas não conseguia olhar para ela.

— Fiquei muito contente quando concluí o secundário. Mais um Verão de trabalho árduo, pensava eu, e depois ficaria livre. — Sorriu sem humor.

Olhando para trás, sinto vergonha por esses sentimentos agora. O meu pai precisava de mim e eu estava desejoso de dar o salto. Logo depois de ter acabado o secundário, ele pediu-me para adiar a entrada na universidade por um ano. Lembro-me de ter ficado todo chateado. Os tipos tinham posto os meus outros irmãos na universidade com uma bolsa de estudos. Sempre pensei que aconteceria o mesmo comigo, e ali estava ele a dizer que não havia muito dinheiro. Não olhei para isso de forma racional, de uma perspectiva de adulto. Senti-me apenas posto de lado. Apesar de tudo, fiquei mais um ano a trabalhar no duro sem ganhar nada. Pelo menos, era assim que eu via as coisas. Ele não estava em condições de poder pagar-me e eu não via a história da mesa, cama e roupa lavada como uma forma de compensação.

— Se conseguiste licenciar-te, é porque foste para a universidade.

— Sim, no ano a seguir. Quando chegou o Verão, estava ansioso para que este terminasse. Mal podia esperar para fazer as malas e partir. Pensei que seria muito mais divertido, viver num campus, estudar o suficiente para passar de ano, mas, sobretudo, namorar com raparigas bonitas e ir a festas. Mas não foi isso que aconteceu.

— O que foi então?

Hank tirou o chapéu e recompôs o cabelo.

— Conheceste a minha irmã Bethany. Três meses antes de chegar a minha hora de partir finalmente para a universidade, ela lesionou-se numa prova de barrel racing, nesse Junho, e ficou paralisada da cintura para baixo.

Os meus pais tinham seguro, mas, tal como o teu, não cobria tudo. E os médicos eram da opinião de que a cirurgia poderia permitir que ela andasse. O meu pai não se importaria de dar tudo o que tinha, e ficar na bancarrota, para que tal ocorresse, e no ano e meio seguinte, foi precisamente isso que aconteceu. Pediu dinheiro emprestado e deixou o rancho por gerir para estar ao seu lado em Portland. Nesse Junho, logo depois do acidente, eu ainda era jovem, centrado unicamente naquilo que eu queria. Poderia ter dito, «que se lixe a universidade», e ficado em casa para ajudar, mas chegara finalmente a minha vez de deixar o ninho e já tinha esperado um ano. Pensei que um dos meus irmãos pudesse vir para casa e gerir as coisas durante algum tempo, se fosse necessário.

Ele sorriu tristemente.

— Era a minha vez. Não és a única que se sentiu alguma vez assim, Carly. Eu adorava os meus pais, e adorava a minha irmã, mas também estava desejoso de partir. Como puto inexperiente, não tinha maturidade suficiente para entender os problemas financeiros. Só sabia que era a minha vez, e estava um ano atrasado. A justiça tinha de ser feita. — Encolheu os ombros e passou com a mão pelo cabelo. — Este rancho era um espinho atravessado na minha garganta, um pedaço de terra ressequida que sugara por completo o meu pai. Eu ia dar tudo por tudo, arranjar um lugar melhor, ser alguém. Nessa altura, não pensei muito no meu pai: um pobre rancheiro esforçado, com meia dúzia de pilecas no estábulo, equipamento obsoleto e montes de contas por pagar.

Carly compreendia como é que ele se devia ter sentido. Com dezoito anos, a maioria dos jovens era muito egoísta.

— Depois do acidente da Bethany, o meu pai ficou de tal forma de mãos atadas que teve de declarar a bancarrota. — Hank olhou para os terrenos de pastagem na floresta. — Ele perdeu o rancho, perdeu tudo. Tive de arranjar dois trabalhos a tempo inteiro para poder ficar na universidade. Escusado será dizer que vida no campus não era a festa permanente que eu julgava que ia ser. E quando finalmente obtive o meu diploma, não tinha para onde ir. O Lazy pertencia a outra pessoa. Os meus pais não tinham onde cair mortos.

Carly seguiu o seu olhar, franzindo os olhos para conseguir ver ao longe.

— Se este lugar pertencia a outra pessoa, como é que o recuperaram?

— É uma longa história, com um final feliz. Cresci alguma coisa durante o tempo que estive na universidade. Meti a minha cabeça em ordem. Ou, pelo menos, pensei que a tinha metido. Eu e o Jake resolvemos abrir uma sociedade e comprar o nosso próprio quinhão de terra. Assim que me formei na Universidade de Oregon regressei e arranjei trabalho em todos os ranchos que me quiseram, poupando todos os cêntimos que ganhava para poder começar num lado qualquer. Trabalho, trabalho e mais trabalho. Nunca tive muito tempo para me divertir. A verdade é que o tipo que comprara o Lazy J. não conseguiu sobreviver e eu e o Jake conseguimos reaver o rancho por um preço irrisório.

Hank sorriu, lembrando-se:

— Ambos víramos o nosso pai a tentar a sua sorte como vaqueiro. Sabíamos que precisávamos de uma margem de progressão. Éramos muito bons com cavalos, pelo que decidimos criar a nossa própria linhagem e começar um programa de treino como fonte adicional de rendimento. Pensámos, inicialmente, que seria uma actividade secundária que nos daria um pouco mais de dinheiro para nos mantermos. Mas, um ano depois de o programa ter começado, estávamos a fazer muito mais do que faríamos só a criar gado.

— Aonde queres chegar, Hank?

— Segue o meu raciocínio. Estou quase a chegar lá. — Arrancou um pedaço de relva e enfiou-o entre os dentes. — Quando começámos a fazer bom dinheiro, as coisas mudaram para mim. Pela primeira vez, na minha vida, tinha tempo para me divertir, bem como dinheiro suficiente para comprar alguns brinquedos: uma carrinha toda artilhada, uma sela feita à mão, e outras coisas que nunca tinha podido comprar antes. Também podia fazer o que me apetecesse, sempre que quisesse, e andei um pouco ao deus-dará durante algum tempo.

Fez um esforço para olhar para ela.

— Fui criado no seio de um conjunto de valores, mas, durante algum tempo, esqueci-me de tudo o que os meus pais me haviam ensinado. — Cuspiu o pedaço de relva. — Em vez de permanecer dentro dos limites e tentar equilibrar as coisas, optei por quebrar todas as regras. Disse para mim próprio que não estava a magoar ninguém, muito menos a mim próprio. Acreditava piamente que era o mesmo velho Hank e que só estava a divertir-me um pouco para variar. Que mal havia nisso?

«Só que já não era o mesmo velho Hank. Lentamente, insidiosamente, o estilo de vida e as pessoas a quem chamava de amigos começaram a mudar-me. — Hank sentiu uma sensação de aperto no peito. — Não me apercebi de quanto mudara até acordar na carrinha, uma manhã, no exterior do Chaps, com uma dor de cabeça monstra e a recordação ténue de uma pequena loira giríssima que conhecera no bar na noite anterior.»

Entrelaçou os dedos e estalou os nós.

— Quando acordei, não conseguia lembrar-me do rosto dela. Mas assim que o meu cérebro começou a funcionar outra vez, fui-me lembrando aos poucos: como a descobrira e me preparara para o ataque, sem querer saber dos seus sentimentos. Ela era um objecto do meu desejo, nada mais, e estava determinado a obter aquilo que queria. Na minha mente, ela não era uma pessoa, apenas um corpo. E lá parti para o ataque, recorrendo a todas as frases feitas, oferecendo-lhe uma bebida para relaxar e desfazer as suas inibições.

Hank parou e respirou fundo, com dificuldades em prosseguir. Mas fez um esforço para soltar as palavras, contando a Carly como se sentira enojado assim que vira o sangue no assento da carrinha.

— Apercebi-me, como uma luz explodindo no cérebro, de que mudara mais do que conseguia compreender, e que não gostava ou respeitava o homem em que me transformara. Nem sequer me dei ao trabalho de fixar o teu apelido. Não era importante para mim. Não tencionava voltar a ver-te.

Ela afastou rapidamente o olhar.

— Já sabia que não tinha qualquer significado para ti.

— Estás errada, Carly. Na manhã seguinte, significavas mais para mim do que podes imaginar. Quando é que eu tinha ultrapassado essa linha, transformando-me no homem que já não respeitava os sentimentos dos outros?

Em que ponto é que me deixara de preocupar em saber mais alguma coisa sobre as mulheres com quem fazia sexo? A única coisa que me interessava era garantir que o sexo fosse seguro, e contigo, nem sequer me preocupei com isso. Ela pousou o queixo nos joelhos levantados.

— Já nada disso interessa. Já pediste desculpa. Eu já pedi desculpa. Não podemos voltar atrás e mudar o que aconteceu. Só nos resta partir para a frente.

Ele abanou a cabeça.

— Se não aprendemos com os nossos erros, não crescemos. O que fiz naquela noite foi uma terrível chamada de atenção. Queria encontrar-te a todo o custo e não conseguia. Tinha pesadelos e acordei inundado em suor, interrogando-me se estarias bem, se estarias grávida. Continuava a lembrar-me do teu rosto suave e dos teus grandes olhos azuis. Nunca me senti tão envergonhado na minha vida. Podes pensar que não fizeste nada para me dares a entender que a cena do bar, e tudo o mais, era uma coisa nova para ti, mas a verdade é que me deste várias pistas. Só que eu estava demasiado bêbedo para me aperceber delas.

— A escolha foi minha. As pessoas podem deitar as culpas do seu comportamento para cima do álcool, mas a questão é que eu estava na posse de todas as minhas faculdades quando tomei a primeira bebida. Sabia exactamente como queria que a noite acabasse e o que aconteceu mais tarde foi culpa minha, não tua. Dizes que mergulhaste de cabeça? Na minha opinião, uma senhora, com ou sem experiência sexual, não deve preocupar-se com a profundidade da água, desde que o homem valha a pena.

A voz dele tremeu com a intensidade das suas emoções, e os olhos imploravam por uma compreensão da parte dela. Carly não conseguia pensar no que dizer, por isso começou por lhe tocar na mão.

Sorrindo com um ar triste, ele observou-lhe o rosto.

— Aprendi a lição. Nunca mais irei actuar segundo essas regras, dizendo a uma mulher tudo aquilo que ela quer ouvir só para a seduzir. Posto isto, gostaria de esclarecer duas ou três coisas.

— O quê? — perguntou ela, com uma voz sufocada.

— Eras realmente a rapariga mais bonita que estava no bar naquela noite. Bêbedo ou sóbrio sei distinguir o que é bonito. E, quando te vi, indaguei, sinceramente, onde é que terias estado escondida durante toda a vida. Nem tudo o que disse naquela noite era uma frase feita.

O calor inundou o rosto de Carly. As emoções que conseguiu ler nos olhos de Hank alarmaram-na, fazendo-a ansiar por coisas que nunca poderiam vir a acontecer. A sua vez. Ela sabia que Hank estava a pensar que eles podiam começar do zero, fazendo tudo como devia ser desta vez. Mas ela era uma mulher para todo o sempre, embrulhada num pacote temporário. Se ela se deixasse levar por aquilo que vira nos olhos dele, só podia terminar num desgosto para os dois. Este rancho não era lugar para uma mulher cega, e ela acabaria por ser precisamente isso, uma mulher cega sem esperança de voltar a ver.

Na cidade, seria mais fácil lidar com a cegueira. Havia passeios, semáforos e transportes públicos. Podia ter a casa organizada por profissionais para que ela pudesse encontrar tudo o que precisasse com facilidade. Mais importante, podia ir e vir livremente sem ajuda, mantendo um emprego e fazendo as coisas do seu dia-a-dia, como ir às compras e às consultas médicas.

Hank vivia num rancho enorme, a quilómetros de distância da cidade, cheio de perigos para uma mulher cega. Estaria sempre dependente dele, de todas as vezes que se aventurasse a sair de casa, e ele não tinha noção da dificuldade que seria manter o interior daquela casa organizado só em função dela.

Carly receava igualmente que os sentimentos que ele desenvolvera por ela derivassem de outras emoções que não o amor. Ela estava grávida do filho dele e, sendo ele um homem de palavra, sentia-se no dever de cumprir com a sua obrigação. Também temia que ele viesse a ter pena dela. Ela não queria ser objecto da piedade de ninguém, muito menos dele. Quando, e se, deixasse que outro homem a amasse, seria pelas razões certas, não pelas erradas.

— Obrigada, Hank — respondeu ela finalmente. — É bom saber que não foi tudo um jogo sem sentido.

Ele estirou-se para lhe afastar os cabelos dos olhos, com um sorriso de tal maneira carinhoso que lhe prendeu o coração.

— Existe alguma possibilidade, mesmo remota, de me dares outra hipótese? Não te vais arrepender, juro. Não vou cometer os mesmos erros duas vezes. Da próxima vez, prometo-te, Carly, procurarei fazer tudo na perfeição.

Oh, como ela desejava poder dizer que sim.

— Acho que seria melhor se fôssemos apenas amigos — proferiu com alguma dificuldade. Apontando para o ambiente em volta, acrescentou: — Não fui talhada para a vida no rancho. Se forjarmos laços emocionais, as coisas ficarão mais difíceis quando chegar a altura de partir.

Ele ficou silencioso durante algum tempo. Depois acenou num gesto de concordância.

— Está bem. Amigos, seja. Mas fica a saber que a oferta se mantém aberta, caso mudes de opinião.

Da forma como Carly via as coisas, ela não tinha opções. Pôs-se rapidamente de pé. Passando com as mãos pela parte de trás das calças, esboçou aquilo que esperava ser um sorriso despreocupado.

— Bem, temos de ir trabalhar. Eu preciso de estudar e tu tens coisas para fazer.


Capítulo Dezassete

Há um mês, Hank teria desatado a rir se alguém lhe dissesse que não tardaria a estar casado e muito contente por isso. Mas, de todas as vezes que olhava para Carly, era assim que se sentia. «Perfeito para ele.» O pensamento assolava-lhe a mente, repetidamente.

No dia quatro, o clã Coulter e toda a gente relacionada com a família, por casamento ou emprego, juntaram-se no pátio da casa principal do Lazy J para um piquenique. Hank tinha assim uma oportunidade para ver como é que a sua mulher iria interagir com os membros da família, os vários amigos e todos os trabalhadores do rancho. Os seus irmãos adoravam-na e ele dava-se bem com todos os outros, incluindo o cão briguento de Shorty, Bart.

Com trinta minutos de atraso, a mãe de Hank apareceu carregada com presentes para o bebé — um conjunto de malha em vários tons de amarelo, azul e cor-de-rosa, e um par de rocas festivamente engalanadas com as pegas em tons de rosa e azul. Quando Carly viu os presentes, o seu rosto enrubesceu de uma forma alarmante.

Hank não a culpava por se sentir embaraçada. Estavam casados há exactamente uma semana, ela não fazia a mínima ideia de que já todos sabiam acerca do bebé e o terreno em redor estava cheio de pessoas que ela mal conhecia.

Caminhou através do relvado, furioso com a sua mãe por ter sido tão insensível. Felizmente, Carly já tinha recuperado a compostura quando Hank chegou ao pé dela, e neutralizou a situação abraçando Mary e agradecendo-lhe.

— A minha mãe fazia croché — disse ela. — Fiquei um pouco triste quando soube do bebé, porque sabia que ele não ia poder ter aquelas camisolas e botinhas muito bonitas feitas pela avó. Agora, vejam só! Apareceu outra avó para lhe fazer umas coisinhas muito bonitinhas.

Atendendo a que Carly nunca deveria ter visto uma camisola de bebé, Hank duvidava seriamente que ela tivesse alguma vez desejado uma. Mas, verdade ou não, a resposta viera precisamente ao encontro daquilo que a sua mãe queria ouvir. Mary ficou com os olhos marejados de lágrimas, esboçou um grande sorriso e apressou-se a tirar uma manta de lã por acabar da sua mala.

— Estou quase a acabar isto para completar o conjunto.

Carly proferiu novamente os sons correctos, dando ar de uma pessoa extremamente agradecida.

Alguns minutos depois, Hank puxou-a de lado.

— Peço desculpa pelo facto de a minha mãe ter feito isto. Ela às vezes perde a noção das coisas.

— Fiquei embaraçada de início, mas depois achei que estava a ser palerma. Estas coisas acontecem, e toda a gente iria ficar a saber, mais cedo ou mais tarde. Assim, já está tudo esclarecido.

— Só me apetecia torcer-lhe o pescoço. — Hank olhou para o terreno em volta. Além da sua família, todo o clã Hendrick viera, juntamente com o capataz do rancho Rocking K, Sly Glass, que estava casado com Helen, a cunhada de Rafe Kendrick. — Ela não queria embaraçar-te. Ficou tão radiante com a história do bebé que não parou para pensar.

— Ela é maravilhosa. E é bom saber que está contente por ir ter um neto. Desde que soube que estava grávida que tenho sentido muitas saudades da minha mãe. Ela era a primeira pessoa a quem eu queria ligar quando o teste deu positivo. Agora tenho a tua mãe. Ela é uma excelente substituta.

Hank ficou aliviado por saber que era isso que ela sentia.

Alguns minutos depois, o seu pai chamou-o à parte sob o pretexto de querer ver os poldros que haviam nascido nesse ano. A caminho das pastagens, Harv colocou uma mão sobre o ombro de Hank e disse:

— Por falar em sorte. Aquela rapariga é extremamente bonita e gentil. Hank aquiesceu.

— Vais tomar conta dela, não vais?

— Estou apaixonado por ela, pai. — Hank aproximou-se da cerca. Depois de prender um tacão na parte inferior e pousar os braços no topo olhou para o vazio. — Eu sei que foi tudo muito rápido. Estou tão envolvido nisto que até tenho medo.

— Isso significa que ela não corresponde aos teus sentimentos? Hank abanou a cabeça.

— Ela só quer ser minha amiga. É um passo em frente, mas muito longe daquilo que eu gostaria que fôssemos.

Harv pôs-se ao lado dele.

— A amizade funciona. Vais conseguir. Hank não estava assim tão certo disso.

— Tivemos uma grande conversa ontem, e ela está um pouco mais relaxada comigo agora. Mas é o único sinal encorajador.

— O tempo está do teu lado.

— Lá isso é verdade. Ela ainda está inclinada a dissolver o casamento, no entanto. Diz que não está talhada para a vida de rancho.

— Lá isso é verdade — cedeu Harv. — Mas não é obrigatório que esteja. Vê o caso da Molly. Ela é perita em finanças. A primeira vista, ela e o Jake não parecem ter nada em comum. Não podiam ser mais diferentes se tentassem, na verdade. Mas não consigo imaginar um casal mais feliz.

— A Carly é professora. Ela quer trabalhar com miúdos cegos.

— Ela trabalha com crianças, tu trabalhas com cavalos. Têm algo em comum.

— Não me tinha apercebido de que eras assim tão optimista. Ela é uma rapariga da cidade, eu sou um rapaz do campo. Ela nunca tinha visto um cavalo até há uma semana.

Harv pensou no assunto.

— Quando se trata de amor, acho que sou optimista. Olha para a tua mãe. Apaixonei-me por ela assim que a vi. Não podia ter encontrado uma mulher mais diferente do que eu.

— Parecem-me perfeitos um para o outro.

— Éramos como a noite e o dia, ao princípio. Eu bebia e adorava festas. Ela ia à igreja três vezes por semana, lia a Bíblia com frequência e jurava a pés juntos que nunca tocaria em álcool. Acho que a rapariga engomava as cuecas.

Hank deu uma gargalhada.

— Eu praguejava como um marinheiro — prosseguiu Harv. — Ela nunca dizia «merda» quando estava irritada. Durante os primeiros seis meses de casados, nunca a vi nua. De todas as vezes que lhe piscava o olho, ela desligava as luzes e escondia-se debaixo dos cobertores.

— Já chega, pai. Estou convencido de que a minha mãe ainda é virgem. Não me desiludas.

Harv esfregou o queixo.

— Pois é. A tua mãe é pura como a neve acabada de cair. — A sua boca torceu-se nos cantos. — O meu ponto é este: diferente nem sempre é mau. A tua mãe introduziu coisas boas na minha vida, acrescentou-lhe alguma «beleza», estás a ver, e com isso conseguiu endireitar-me. Deixou-me uma vez, logo de início. Durante quase uma semana, segundo me recordo. Pensei que podia continuar a beber e fazer o mesmo tipo de vida, independentemente de estar ou não casado. Não andei a enganá-la. Nunca fiz isso. Mas ela não estava tão certa disso.

— Não sabia que a mãe te tinha deixado.

— Sim. Grávida do Jake, nessa altura. Tinha uma barriga deste tamanho. — Fez um gesto com a mão. — Não foi fácil, fazê-la sair outra vez de casa do pai. Ela não pesava mais de quarenta e cinco quilos, completamente vestida e ensopada, mas tive de pegar nela com cuidado para não a magoar e foi difícil lidar com ela, sempre a gritar e a espernear, determinada a não se deixar levar.

Hank olhou incrédulo para o pai.

— Tiraste à força a minha mãe da casa do avô McBride?

— Ela não vinha de outra maneira. — Harv esfregou uma sobrancelha. — A tua mãe é teimosa, se é que ainda não reparaste. Não dava ouvidos ao que eu tinha para lhe dizer. Quando me deixou, pela primeira vez, fiquei possesso e disse para mim mesmo que não queria saber, mas assim que a minha raiva abrandou, comecei a sentir imensa falta dela. O que me obrigou a confrontar-me com a realidade. Não podia viver sem ela. Não tinha outra solução senão ir atrás dela. O diabretezinho pôs-me um olho negro, antes de conseguir agarrá-la.

— A mãe bateu-te?

— Fez-me ver as estrelas. Atingiu-me em cheio no olho.

— Nunca imaginaria uma coisa dessas. Não me parece que a mãe seja do tipo violento.

— E não o é, regra geral. Mas ela estava bastante chateada, nessa tarde. Acho que me teria derrubado por completo, se me tivesse dado o soco com um pouco mais de equilíbrio.

— Por isso é que o avô tinha alguns problemas contigo. Harv riu-se.

— Nessa altura, o teu avô já sabia como eu a amava, filho. Quando apareci, pronto para lutar e trazê-la de volta, ele já tinha as malas dela alinhadas no alpendre. Enquanto me ajudava a pô-las na carrinha, disse que todos os recém-casados passavam por um período de ajustamento, e se eu quisesse manter a minha Mary teria de começar a fazer uma série de ajustes.

— Por outras palavras, terias de ser tu a modificar-te. Harv acenou com a cabeça.

— No entanto, apesar de todas as mudanças, eu e a tua mãe éramos muito diferentes. Ela aproximou-se um pouco do meu modo de ser; eu aproximei-me muito do modo de ser dela. Encontrámo-nos algures no meio. Até hoje, ainda não consegui compreender como é que funciona a sua mente; e é natural que ela diga o mesmo de mim. A vida é cheia de surpresas. Gosto das coisas assim, e ela também.

Hank suspirou.

— É estranho, ouvir essas histórias. Não me consigo lembrar de ter visto qualquer briga entre os dois.

— No meu caso, terias voltado a lutar com ela?

Hank pensou no assunto. O pai pesava duas vezes mais do que a mãe e podia tê-la derrubado com um soco.

— Não, acho que não. Não me parece que ela tenha actuado com lealdade.

Mantiveram-se calados durante algum tempo, com um sorriso tímido entre os lábios. Finalmente, Harv perguntou:

— Onde é que eu ia? Perdi-me completamente.

— Acho que estavas a tentar dizer-me que algumas mudanças poderiam mudar o voto a meu favor. Normalmente, isso poderia resultar, mas a Carly tem o problema de eu ser rancheiro. Não é possível mudar o pacote básico.

— Não. Mas podes embrulhá-lo de uma forma mais vistosa. — Harv bateu no ombro de Hank e afastou-se da cerca. — Tens de moldá-la à tua forma de pensar, filho. És um Coulter, não és?

Por muito que Carly estivesse a gostar do piquenique do quatro de Julho, sentia-se já cansada ao início da noite e mais do que pronta para uma viagem relaxada até à cidade para assistirem ao fogo-de-artifício. Passada uma hora depois da confusão do piquenique, quase todos os que haviam estado na festa encontravam-se agora estacionados ao longo das margens do lago, com a traseira dos veículos voltada para a água para poderem ver melhor.

— A versão Kendrick/Coulter de uma festa de carrinhas — observou Hank. Carly sentou-se com Hank na caixa aberta da carrinha, com as costas apoiadas na cabina. Ele trouxera dois cobertores militares: um para fazer de assento, o outro para estenderem sobre as pernas e assim se protegerem do frio que, a estas altitudes, aparecia sempre quando o Sol se punha. A sua direita, Rafe e Maggie Kendrick, o cunhado de Bethany e a sua mulher, esperavam do mesmo modo pelo espectáculo, enquanto as duas crianças dormiam no interior do veículo. À esquerda de Carly e Hank, Bethany e o marido, Ryan, permaneciam empoleirados na caixa aberta da sua Dodge, com o filho Sly a dormir nos braços de Ryan.

— Como é que o Ryan e a Bethany foram capazes de dar ao filho o nome de um capataz do rancho? — perguntou Carly.

Hank sorriu.

— O Sylvester Glass é um tipo porreiro. O Ryan trata-o como um segundo pai e Bethany apaixonou-se pelo velhote, logo depois de ter casado com o Ryan. Acho que queriam prestar-lhe uma homenagem.

— Ah. — Carly apreciava o facto de os opulentos Kendricks não serem sobranceiros a ponto de negligenciarem os seus empregados. — Que simpático. — Suspirou e acrescentou — É divertido, conhecer toda a gente que está estacionada à nossa beira.

Hank franziu o olhar para o seu irmão Jake e para a sua cunhada Molly, que tinham posto um cobertor no chão, mesmo ao pé da água, com o filho Garret a dormir profundamente ao lado deles.

— Se isso começar a aquecer, bem que podiam mudar de ideias. Carly franziu os olhos para ver. Depois desatou a rir. Por mais turva que fosse a sua visão ao longe, dava para ver que o irmão mais velho de Hank estava a beijar apaixonadamente a mulher.

— Uh-oh.

Hank sorriu. Depois gritou:

— Jake! Isso não se faz em público.

Jake limitou-se a baixar a borda do chapéu para que Hank não visse. Não querendo intrometer-se na privacidade do casal, Carly desviou o olhar e viu que Rafe e Maggie estavam também a partilhar um beijo prolongado.

— Minha nossa senhora. Hank deu uma gargalhada.

— Se te sentires embaraçada por estares ao pé deles, é só dizer. Posso emprestar-te o meu chapéu.

Ela olhou para o chapéu dele.

— De que é que isso serviria?

— Podes puxá-lo para baixo para que ninguém te veja.

— Nem pensar. Daqui a nada começa o fogo-de-artifício.

— Creio que eles já puxaram o deles. — Ergueu um joelho. — Estás confortável?

Ela mexeu-se.

— O problema é esta saliência de metal que me está a magoar as omoplatas. Ele olhou para o metal atrás dela.

— Bolas. Está mesmo encaixada nas tuas omoplatas. Eu sou mais alto. Não me incomoda. — Afastou o cobertor e dobrou-se de joelhos. — Senta-te entre as minhas pernas. Eu sirvo de apoio.

Carly olhou para a braguilha das calças de ganga de Hank.

— Estou bem aqui.

— Não sejas tonta. Anda.

Ela não achava que fosse uma boa ideia. Mas ele continuava a insistir e ela não queria que ele pensasse que ela tinha medo de estar ao pé dele. Assim que se colocou no meio dos seus joelhos, ele rodeou-a de imediato pela cintura, com um braço firme, o que a fez dar um pulo. Sentiu o peito dele a saltar de tanto riso.

— Relaxa. Estamos rodeados de gente. — Ele levou a mão ao peito. — Se quisesse avançar, achas que o faria aqui?

Tanto quanto se lembrava, não fora a presença de estranhos que o haviam impedido antes. O seu temor aumentou ligeiramente quando ele puxou o cobertor para cima, tapando o corpo dela e a mão dele.

— Nada de gracinhas. Prometo — assegurou-lhe.

Como medida de precaução, Carly prendeu-lhe o pulso com uma mão, o que o fez desatar a rir outra vez.

— Não confias em mim nem por nada.

— Não é uma questão de confiar em ti — respondeu ela.

No momento em que as palavras saíram da boca de Carly, ela sabia que correspondiam à verdade. Começara a confiar em Hank. Mas não estava propriamente segura de poder confiar em si. Naquela noite, no exterior do bar, respondera-lhe com um abandono sem limites, com as suas inibições varridas pelos sentimentos que ele evocava dentro dela. Agora que haviam falado e resolvido tantas questões entre eles, que garantia é que ela tinha que não responderia da mesma forma?

Hank tirou o chapéu e apoiou o queixo no cabelo dela. A sua respiração infiltrou-se por entre os cabelos, chegando ao ouvido de Carly. Ela baixou as pálpebras e deixou-se envolver por uma languidez deliciosa. Era adorável ser-se envolvida por ele. Mesmo com a escuridão a cair e a encerrar-se à sua volta, sentia-se absolutamente segura.

Ouviu Bethany a rir-se. Depois o timbre profundo da voz de Ryan cruzando a noite. Bethany riu-se de novo.

— Ryan, pára. E se o Sly acorda?

— Devíamos ter estacionado ao pé dos meus pais — disse Hank com um suspiro de contrariedade. — Esquece. Se calhar também estão a divertir-se.

Carly pensou que era adorável ver as pessoas casadas ainda apaixonadas umas pelas outras. Pareciam todas muito felizes, o que tinha o efeito perverso de fazer com que Carly se sentisse triste. Será que iria viver um amor daqueles, ou algo ainda mais forte?

— Estás bem? — perguntou Hank.

— Muito bem — disse ela alegremente.

— O espectáculo não deve tardar, agora que escureceu.

A voz dele ressoou-lhe no peito, fazendo com que as suas omoplatas estremecessem com a sensação de pequenos choques. Debaixo do cobertor, ele cingiu-a ainda mais. Depois, com a sua mão livre, passou com os dedos pelo braço dela, procurando os pontos sensíveis de que ela não se apercebera que tinha. Quando ele atingiu a dobra do cotovelo e começou a desenhar pequenos círculos nessa zona sensível da pele, ela arrepiou-se toda e quase que gemia de prazer. A sua mente viu-se invadida por pensamentos perigosos — pensamentos das mãos dele tocando-lhe daquela maneira em todas as partes do corpo.

Ela estava prestes a pedir-lhe para parar quando ouviu um estrondo ao longe, idêntico ao disparo de um canhão. A respiração de Hank abanou-lhe o cabelo enquanto dizia:

— Pronto. Cá está ele, querida. Banqueteia os teus olhos neste teu primeiro encontro com o fogo-de-artifício.

O céu iluminou-se com fogachos de luz coloridos, com a pulverização patriótica de vermelho, branco e azul tão brilhante que Carly esqueceu tudo acerca da forma como ele lhe estava a tocar.

— Oh, minha nossa senhora! A nossa bandeira! Oh, que lindo! Que forma tão perfeita de começar. Por vezes, esqueço-me de que o dia quatro é o Dia da Independência. Devíamos estar todos a pensar nos sacrifícios que tornaram a nossa liberdade possível. — Uma nova explosão de cores patrióticas iluminou o céu. — Oh, Hank! Olha para aquilo.

— Gostas, não gostas? — Carly sentiu os lábios dele a curvarem-se num sorriso no seu cabelo. — É lindo, não é? Fico sempre surpreendido com aquilo que conseguem fazer.

— Outra bandeira. Nem dá para acreditar — murmurou, no momento em que a figura começava a desintegrar-se.

Ele puxou-a mais para si, fazendo deslocar ligeiramente a sua mão sobre as costelas dela, mas sem se mexer. Carly relaxou, com o olhar fixo no céu até os últimos fogachos de luz desaparecerem.

Seguiu-se outro som forte.

— Aqui vem outro.

Carly descansou a cabeça no ombro dele. Quando o terceiro lançamento encheu o céu, ficou maravilhada com as cores e o brilho que se espalharam na escuridão. «Não era apenas o seu primeiro fogo-de-artifício», pensou, «mas a primeira vez que vivia o quatro de Julho da mesma maneira que os outros.»

— Vou lembrar-me desta noite para o resto da minha vida — disse suavemente a Hank.

— Eu também — murmurou ele. — Eu também.

Ao longo do fim-de-semana festivo, Hank começou a temer que a visão de Carly estivesse a piorar a um ritmo muito mais rápido do que ela queria admitir. No sábado, ao almoço, tentou pegar no copo e entornou-o. Mais tarde, nesse dia, ele apanhou-a a espreitar para as coisas como se estivesse a tentar descobrir o que eram. No sábado à noite, quando passava pela porta aberta do quarto, viu-a a estender o braço e a ficar a olhar para a sua mão espalmada. Não conseguia imaginar quão terrível devia ser para ela, saber que a escuridão poderia regressar brevemente.

Perturbado com o pensamento, Hank foi até à casa principal na manhã seguinte para poder ligar o computador e navegar na Internet, e, durante a tarde, passou algum tempo na biblioteca de Crystal Falls. Depois de ter efectuado algumas pesquisas sobre a distrofia lattice e os cegos que recuperavam a visão, ficou com mais conhecimentos para poder compreender a doença de Carly, as intervenções cirúrgicas que iriam esperançadamente recuperar-lhe visão e os problemas que ela estava a ter com o seu córtex visual.

Mas aquilo que o surpreendeu mais foi o facto de a distrofia lattice poder ser extremamente dolorosa, fazendo com que os olhos doessem de uma forma quase sistemática, sobretudo quando expostos à luz forte. Bess falara-lhe acerca disso, e ele tentara de início ter isso em consideração, mas como Carly nunca lhe falava de dores oculares, foi-se esquecendo com o tempo. Hank lembrava-se da forma extasiada como ela observara o fogo-de-artifício junto ao lago, mal tirando os olhos do céu com medo de perder alguma coisa. Desconfiava que os jactos de luz lhe tivessem provocado alguma dor, mas ela não se desviara ou fechara os olhos para evitar o desconforto. «Nunca esquecerei esta noite», murmurara.

Sem garantias. Outro facto que Hank registara enquanto investigava sobre a doença. A segunda cirurgia poderia recuperar a visão, mas, por outro lado, tal poderia não acontecer. Havia muita coisa que podia correr mal e era bem possível que Carly pudesse não voltar a ver outro espectáculo de fogo-de-artifício. Por isso é que ela suportara os fogachos luminosos e olhara sem pestanejar para o céu. Cada dia a mais de visão era sem dúvida uma dádiva preciosa.

Hank tencionava levá-la ao zoo de Portland na terça-feira, dia 15, mas ainda faltava uma semana. Entretanto, não queria que ela se metesse em casa com o nariz enfiado num livro. Ela precisava de ir a lugares diferentes, ver coisas diferentes, registar memórias, e não perder o seu tempo precioso a tentar treinar um córtex visual que não sabia se viria a ser capaz de usar.

Hank aproximou-se de Jake, no estábulo, na terça-feira de manhã.

— Preciso de uns dias de folga — disse ao irmão.

Jake interrompeu o trabalho com um poldro. Depois de fechar a porta do estábulo, disse:

— É a altura mais complicada do ano, Hank. Não preciso de te dizer isso. Hank tirou o chapéu e bateu com ele na perna.

— Sei que é uma altura muito complicada para te deixar pendurado, mas não tenho outra alternativa. Farei tudo o que for preciso, Jake, mas preciso de algum tempo livre.

Da forma mais resumida possível, Jake explicou as suas razões.

— Tirando Portland e um passeio pela região do lago Crater, aproveitaremos sobretudo para viajar ao longo do dia. Gostaria que ela visse o máximo que pudesse antes de ficar às escuras. Estás a entender? Até mesmo alguns passeios diários serão melhor do que nada. É provável que ela nunca tenha visto uma queda d'água ou o Sol a pôr-se nas Cascatas 9. Gostaria que ela ficasse com isso registado para sempre.

Com uma expressão solene, Jake acabou por anuir.

— Está bem, eu cubro-te.

— Aprecio o teu empenho. Sei que estou a pôr-te numa posição ingrata. Mas é uma coisa que tenho de fazer. Por esta altura, na próxima semana, ela já poderá estar cega. Não há qualquer hipótese de saber.

— Vai. Eu falo com o pai para lhe pedir uma ajuda. Ele irá gostar de trabalhar com os cavalos. Cá nos arranjaremos.

Hank recuou um passo.

— Obrigada, mano grande. Devo-te esta.

Carly estava a beber água quando ouviu a porta da frente a abrir-se. Reconheceu o ritmo distintivo da passada de Hank quando este atravessou a sala de estar.

— Carly? — chamou ele. — Onde estás, querida?

— Aqui. — Ela apareceu vinda da cozinha. — Passa-se alguma coisa? Ele esboçou aquele sorriso lento e preguiçoso que conseguia fazer sempre com que algo se agitasse dentro dela.

— Não, Mistress Coulter, está tudo bem. — Apontou para as sandálias dela. — Vai pôr uns ténis. Vamos passear.

— Onde?

— Ainda não sei. A um sítio especial.

A expressão travessa no rosto dele fê-la sorrir.

— Não sabes, mas é um sítio especial? Que sentido é que isso faz?

— Não faz muito sentido. Vou tirar uns dias para podermos passear. Carly compreendeu então, e saber o que ele tinha em mente fez o seu coração bater com mais força.

— Não podes abandonar o trabalho. Temos tantas despesas pela frente.

— Quantas vezes é que te tenho de dizer que não vale a pena preocupares-te com as finanças? Vai mudar de sapatos. Pega numa camisola também, não vá regressarmos mais tarde. Não quero que te constipes.

Carly correu para o quarto, excitada por ir sair. Iam passear! Sim. Ela duvidava que houvesse assim tanta coisa para ver em redor de Crystal Falls, mas iria ser divertido passear.

Nessa tarde, Hank levou-a ao planalto desértico. Depois de estacionar a carrinha numa velha estrada de terra, Carly olhou para a extensão árida de terra plana, indagando porque é que ele tinha parado. Só via camadas de folhas e terra.

— Não é lindo? — perguntou ele suavemente.

Carly apercebeu-se de que ele estava a olhar para o horizonte. Seguiu o seu olhar e não viu nada a não ser uma mancha vermelha indistinta. «Meu Deus.» Ele largara o trabalho, palmilhara quilómetros e gastara gasolina para que ela pudesse ver uma coisa bonita e não era isso que tinham pela frente.

Carly esteve prestes a dizer-lhe isso. Só que não o conseguiu fazer. Esta era a sua dádiva para com ela. Não interessava se ela conseguia apreciar. O que contava era a intenção que estava por detrás.

— Oh, sim — disse ela. — É lindíssimo, Hank.

— O campo não é assim tão bonito, mas as formações rochosas são fantásticas.

— Não tenho a menor dúvida.

— Aquela ali chama-se o Velho.

— Ah. Estou a ver porquê — disse ela. Ela sentiu-o a observá-la.

— Consegues distinguir claramente os contornos da sua face?

— Hmm. — Ela forçou um sorriso e acenou com a cabeça. — Sim, estou a ver a face.

Observando-a, Hank sabia que ela estava a mentir, não porque não tivesse conseguido dizê-lo com convicção, mas porque não estava a corar até à raiz dos cabelos. O Velho, a formação que tinham pela frente, parecia-se realmente com um velho deitado de costas. Era fácil detectar o contorno da sua face num dos extremos, bem como os dedos dos pés a espreitarem no outro e, no meio, uma certa parte da sua anatomia exposta de uma forma proeminente.

Só para se certificar de que ele não estava a interpretar mal a situação, disse:

— A Mãe Natureza é mesmo fantástica. Diria que é um homem que está ali. Até consigo ver-lhe a fivela do cinto.

Quando ela acenou e esboçou outro sorriso, o coração de Hank afundou-se.

— Tens razão! — exclamou ela. — Estou a ver a fivela do cinto.

— Carly?

— Hmm?

Ela virou os seus magníficos olhos azuis na direcção dele. Olhando para eles, Hank não conseguia acreditar que tinham problemas. Eram tão claros como piscinas profundas de água azul.

— Não consegues ver a rocha, pois não? — perguntou ele.

Uma expressão de desalento cobriu-lhe o rosto. Mordeu o lábio inferior e, lentamente, abanou a cabeça com os olhos a brilharem de lágrimas.

— Desculpa. Vieste até aqui e perdeste um dia de trabalho. Desculpa. Eh estava a pedir desculpa? Era ela que estava a ficar cega, não ele. «Porquê?» Não era justo. Duvidava que alguma vez ela tivesse feito mal a alguém.

— Precisamos de falar — disse ele firmemente. — Não me tens dado informações sobre tudo o que se está a passar com os teus olhos. Se a tua visão está a ficar assim tão má, porque é que não me avisaste?

Ela olhou distraidamente para o pára-brisas, com o rosto tenso e pálido. Hank indagou até onde é que ela conseguiria ver.

— Tenho estado, não sei, a iludir-me a mim própria, creio. — Colocou as mãos nas coxas e cerrou os punhos. — Na esperança de que pudesse parar, tentando convencer-me de que a situação ainda não era assim tão má. Quanto à razão pela qual não te disse nada... — Parou e engoliu convulsivamente. — Quando dizemos as coisas em voz alta, parecem-nos mais reais, não apenas medos secretos. Não queria que fossem verdade, por isso não disse nada, esperando que a situação melhorasse.

Hank desejava poder abraçá-la.

Ela inclinou a cabeça, esfregou as mãos nas calças e depois pôs-se a mexer na ganga como se pretendesse remover os pequenos pedaços de algodão.

— E sinto-me extremamente culpada.

— Culpada? De quê? Voltou a olhar pela janela.

— Sabia desde o início que podia ficar cega durante a gravidez, mas nunca pensei que viesse a acontecer assim tão depressa. Dentro de alguns meses, creio, e, mesmo nessa altura, espero não ficar totalmente cega. Algumas grávidas têm sorte, e eu queria fazer parte desse grupo.

Hank conseguia entender perfeitamente a esperança que ela tinha. Quem não teria? Mas continuava a não ter bem a noção daquilo que a fazia sentir-se culpada.

— Não me parece que venha a ser esse o caso — disse ela. — Tudo aponta para que fique cega rapidamente. Sobrecarregar-te com uma mulher cega durante alguns meses era uma coisa, mas pelo andar da carruagem parece-me que irás ficar sobrecarregado durante um ano ou mais. Disse-te, uma vez, que iria ser muito difícil, atendendo às necessidades especiais de uma pessoa cega. Disseste que ia correr tudo bem. Mas não creio que tenhas compreendido em que é te meteste.

— Sentes-te culpada por teres medo de vires a ser um fardo para mim? — perguntou com incredulidade.

Ela acenou afirmativamente.

— Se eu soubesse que iria ser tudo assim tão rápido, nunca teria...

— Espera aí. — Hank esticou-se para lhe agarrar no queixo e fazer com que ela olhasse para ele. — Não vás por aí, querida. Meti-me nisto perfeitamente consciente do que poderia acontecer.

— Como é que isso é possível? Não sonhavas que poderia acontecer tudo tão depressa, e nem fazes ideia daquilo onde te meteste. — Esquivou-se do seu contacto. — Os armários da cozinha, por exemplo. Neste momento, estão arrumados como do costume, e não tens problemas em pôr coisas atrás desde que haja espaço. Quando eu ficar cega, nada poderá estar fora do lugar. Nada. E isso é apenas uma pequena parte. Atiras com as tuas roupas para o chão. Largas as tuas botas por tudo quanto é sítio. Puxas as cadeiras para trás e não as voltas a arrumar. Quando eu ficar sem ver, não poderei viver assim.

Hank nunca pensara na quantidade de coisas que teria de mudar para fazer com que tudo funcionasse.

— Não vais ter de viver assim — assegurou-lhe. — Passarei a ter um cuidado louco com as arrumações. — Ela riu-se convulsivamente, o que significava que estava quase a desfazer-se em lágrimas.

— Tu? Um cuidado louco com as arrumações?

— Não sou um burro velho. Ainda posso aprender algumas coisas. Será apenas uma questão de organizar tudo para que possas encontrar as coisas e mudar os meus hábitos.

— A minha intenção não era obrigar-te a viver assim meses a fio.

— Que alternativa havia? Tanto quanto me lembro, não te dei mais nenhuma opção.

— Devia ter-me mantido firme e recusado casar-me contigo. Nunca me irias roubar o filho, Hank. Agora que te conheço melhor, sinto-me idiota por ter acreditado que isso podia acontecer.

Hank sorriu com tristeza.

— Então, agora já sabes como eu sou, não sabes?

— Sim, tal como aquelas galinhas doidas que não se deixam abater quando tu as persegues. És uma ternura, como a Sugar e o Sonora Sunset. E depois de te ter conhecido sinto-me ainda pior. Uma coisa é fazer com que uma pessoa-não-muito-simpática se sinta miserável. Outra é reconhecer que ela passou a ser a pessoa mais maravilhosa à face da terra.

O facto de ela agora o ter em tão grande estima significava mais para Hank do que ele era capaz de reproduzir por palavras.

— Obrigado por isso — disse ele com uma voz rouca. — Foi uma das coisas mais bonitas que alguém me disse até hoje.

— Tenho tanta pena de te estar a fazer isto — murmurou.

— Nem tudo corre bem. Gostaria imenso que pudesses continuar a ver durante toda a gravidez, mas não me parece que venha a ser esse o caso.

— Pois não — concordou ela, com a palavra a tremer-lhe dos lábios num suspiro de exaustão.

— Por conseguinte, vamos assentar umas coisas. Por mais difícil que seja viver com uma pessoa cega — sorriu e piscou o olho para amenizar aquelas palavras —, não tomo isso como um fardo. Sabia desde o início que poderias perder a vista muito depressa. Rezo a Deus para que não fiques cega durante um ano, mas, se isso acontecer, haveremos de lidar com a situação.

— Não vai ser fácil.

Nada era fácil.

— Isso significa que não vai ser monótono? Odeio coisas monótonas. Ela riu-se profusamente.

— Não. Não vai ser nada monótono.

— Óptimo.

Calaram-se e ficaram a olhar um para o outro durante um longo período de tempo. Depois, ela disse:

— Acho que é importante manter uma atitude positiva. A mente sobre a matéria, e coisas assim.

Hank achava muito bem que ela mantivesse uma atitude positiva. Se havia alguém com força suficiente para lutar contra a adversidade era ela.

— Exactamente. Se a lattice recuar subitamente, poderás voltar a ver daqui a nove meses. — Piscou-lhe o olho outra vez. — Tudo menos os dedos dos pés, claro. Sei de uma fonte credível, a minha cunhada Molly, que as grávidas não conseguem ver os dedos dos pés nos últimos três meses.

Ela riu-se.

— Ser capaz de ver os dedos dos pés é o que menos me preocupa.

— Eu sei. — Ele apertou-lhe a mão. — Chega de tanta preocupação. Se a tua visão desaparecer, organizaremos a casa. Bastarão alguns dias.

— Não devíamos começar já?

— Não. Ainda temos uns passeios para dar. Ela apontou para o horizonte.

— Não consigo contemplar nada, Hank. Ele ligou a ignição.

— Isso significa que tenho de me aproximar mais.

Quando ele se enfiou pelo campo aberto, Carly agarrou-se à parte da frente do veículo.

— Não há estrada! — disse ela com uma risada.

— É a vantagem de um carro com tracção às quatros rodas, querida. Não precisamos de estrada. — Sorriu-lhe. — Irei devagar. Se te sentires muito incomodada com as irregularidades, diz.

Carly estava aos pulos no lugar, mas o forro almofadado providenciava -lhe uma aterragem suave. Mesmo que isso não acontecesse, ela nunca lhe iria pedir para parar. Ia ver a formação rochosa, para todos os efeitos.

Alguns minutos mais tarde, conseguiu finalmente descortinar o imponente rochedo vermelho, sobressaindo no meio de um céu azul-pálido.

— Oh! — gritou ela, com um espanto verdadeiro. — Que bonito! E parece-se mesmo com um velho deitado de costas.

Hank riu-se.

— É verdade.

Ela fixou o olhar na formação de novo.

— Consigo ver os dedos dos pés espetados. E os joelhos. — A sua voz desvaneceu-se e o seu rosto ficou enrubescido. — Parece-se mesmo com um homem deitado. Não parece?

— Sim, todas as partes. Agora sei que consegues vê-lo. Estás a corar.

A partir dali, Hank dirigiu-se para leste. Carly conseguiu ver um grupo de veados ao longo da estrada, o que era extraordinário. Mais tarde, passaram por uma manada de antílopes, suficientemente perto para que ela pudesse vê-los com pormenor. Depois, quando ela pensava que já tinha visto tudo, Hank travou a fundo e apontou para o cimo de um poste.

— Uma águia-de-cabeça-branca — disse ele. Carly inclinou-se para a frente para ver.

— Oh, meu Deus! Não é linda? — Olhou para Hank com um ar estupefacto. — Afinal não é careca. Julgava que não tinham penas no cimo da cabeça.

Ele desatou a rir.

Ao anoitecer, Hank parou num café à beira da estrada e comprou umas sanduíches. Pouco tempo depois, comiam enquanto viam o Sol a pôr-se sobre o deserto. Carly vira poucas coisas tão espectaculares. À medida que o Sol se ia pondo, os feixes de luz branca que dele se desprendiam irradiavam por entre o algodão branco das nuvens reunidas no horizonte. A seguir, todo o céu adquiriu um belo tom rosa-velho.

Colocando um pouco de comida na boca, disse:

— Obrigada por me teres trazido até aqui, Hank. Isto é magnificente.

— Aprecia o momento — disse ele suavemente. — Não vai demorar muito.

Ele tinha razão; o pôr-do-sol não demorou muito. Mas ela sabia que ia ficar com ele registado para toda a vida.

No momento em que a noite caía, Hank encostou-se para trás no assento e perguntou:

— Que tal?

A sua voz era tão áspera e transmitia tanta tristeza que Carly soube imediatamente a que é que ele se estava a referir.

— Ainda não está muito mal, é como se estivesse a ver através de uma janela com os vidros ligeiramente embaciados ou de um ligeiro nevoeiro.

Ele não disse nada, limitando-se a ficar ali sentado, uma forma negra na escuridão.

— Vou ficar bem, Hank. Sei o que é ser cega.

— Eu sei que vais ficar bem, querida. Só desejo que Deus nos proporcione um milagre.

— Talvez isso aconteça. Caso contrário, acho que será mais fácil desta vez. Antes, nunca tinha visto o céu ou as estrelas. Quando as pessoas falavam de um belo pôr-do-sol, não conseguia imaginar o que seria. Como é que era o cor-de-rosa? Como é que era o azul? Não fazia a mínima ideia. Agora que já vi uma data de coisas tenho todas essas imagens gravadas na minha mente.

Hank queria ter a certeza de que ela veria muito mais coisas antes de a sua visão desaparecer. «Imagens na minha mente.» Aquelas palavras ficaram a pairar-lhe na mente a caminho de casa. Não fazia a mínima ideia de quanto tempo mais ela iria poder ver. Só sabia que iria fazer com que todos os segundos contassem.


Capítulo Dezoito

Nos dias da semana que se seguiram, e durante todo o fim-de-semana, Carly começou a sentir-se com uma veraneante com poucos dias de férias pela frente. Hank levou-a a passear por toda a região — rios, picos cobertos de neve, lagos no meio de florestas altas e estâncias pitorescas. Faziam piqueniques em prados, pontuados por dentes-de-leão e manchas de trevos, dormitando a seguir em cima do cobertor de lã militar que ele mantinha sempre na carrinha. Outras vezes, jantavam em restaurantes com uma vista única para os riachos e lagos para que ela pudesse apreciar a vista enquanto comia. Quando ela não conseguia ver claramente, Hank procurava aproximar-se o mais que podia do local.

Para Carly, era um momento mágico antes do cair da noite — um tempo para travessuras, risadas e namoro inofensivo com um homem incrivelmente bonito que nunca a pressionava por mais. De mãos dadas. Guerreando-se e brincando à apanhada. Caminhando pela floresta quando a terra transbordava de luz. Dançando ao som do vento.

Por vezes, em zonas com uma vista panorâmica particularmente bonita, encontravam um lugar confortável para se sentarem e ficarem durante uma hora ou mais a apreciarem a vista. Durante estas paragens, Hank apontava para as coisas que Carly poderia não ter reparado — as manchas num veado, um esquilo saltando para um ramo, ou as nuvens com forma de animais. Durante esses momentos tranquilos, ele dava-lhe por vezes a mão e brincava com os dedos dela. Outras vezes, punha-lhe um braço por cima dos ombros, acariciando-lhe ligeiramente a pele com a mão sobre a camisa.

Nesses três primeiros dias, Carly registou uma série de memórias do mundo que a rodeava. Viu um dos maiores filões de obsidiana do mundo, uma cama de lava que se estendia até perder de vista e uma vista espectacular do Oregon Central do topo do pico Shoshone. Ela não conseguia ver tão longe quanto queria, mas tudo o que via era belo. Teria de se regozijar com isso.

Depois de terem passeado por toda a área envolvente, aventuraram-se mais longe, viajando pela cénica Highway até ao Norte da Califórnia para verem o Parque Nacional Redwood. A partir dali, foram até ao lago Crater, onde passaram um dia a percorrer as pistas de terra à procura dos melhores pontos de observação e fizeram uma visita guiada de barco para que Carly pudesse ver claramente a ilha Wizard.

Com todos estes momentos idílicos pela frente, Carly começou a aperceber-se, para agravo seu, da presença de Hank em termos físicos — da sua estatura e largura, da forma como os músculos das suas costas e braços sobressaíam por baixo da camisa sempre que se deslocava, do menear preguiçoso e extremamente fluido das suas ancas esguias enquanto caminhava. Viu-se a recordar aquela manhã em que ele tirara a camisa e posara para ela — e desejou poder vê-lo daquela maneira mais uma vez.

Depois do lago Crater, atravessaram para o lago Lemolo, alugaram um pequeno chalé junto à água e passaram a noite no pitoresco bar da estância jantando hambúrgueres, bebendo Seven-Up e dançando até tarde ao som da música de uma juke-box.

Carly quase se esquecera do encanto que Hank podia ser numa pista de dança, com a música a soar de forma a ficar com todos os sentidos exacerbados. Durante as baladas favoritas de Hank, este punha-se a cantar em simultâneo, com a sua voz tão melada e profunda que parecia deslocar-se dentro dela. Adorava sentir-se envolvida pelos seus braços fortes — sentir o calor dele à sua volta. Adorava o contacto daquela mão grande sobre a sua cintura ou as suas costas, enquanto rodopiavam ao som da música. Melodias lentas, ritmos rápidos. Ela adorava tudo.

À medida que as horas iam passando, viu-se a desejar encerrar a noite numa cápsula e fazê-la durar para sempre — poder fazer o que Hank lhe sugerira em tempos e agarrar a magia com ambas as mãos.

— Daria um cêntimo para saber em que estás a pensar — murmurou ele, com os seus olhos azuis cravados nos dela.

— O que te leva a pensar que eu me venderia por tão pouco?

— Cinco cêntimos então. Porquê esse ar tão solene? Deves estar a pensar nalguma coisa.

Ela estava a pensar em coisas perigosas — coisas que ela não se atrevia a partilhar com ele. Ao longo dos últimos dias, começara a baixar a guarda e o impensável acontecera. Apaixonara-se perdidamente por ele.

— Estou apenas cansada.

Ele fê-la girar num círculo lento.

— Bem, isso não pode acontecer, minha menina.

Quando a música terminou, pagou a conta, pôs-lhe a camisola por cima dos ombros e levou-a para fora do edifício. Um vento fresco soprava do lago, com o ar a transportar o aroma da água e dos pinheiros. Quando passaram por baixo de um pinheiro com ramos baixos, Carly inclinou a cabeça para obrigá-lo a parar.

Só desta vez, queria partilhar um beijo apaixonado ao luar — e observar o homem bonito que a beijara.

— O que foi? — perguntou ele.

O pedido estava lá, debaixo da sua língua. «Beijas-me, Hank? Só desta vez. Um beijo profundo, apaixonado e fascinante. Como algo para o caminho.» Só quando olhou para ele é que se apercebeu de que as coisas não poderiam ficar por ali. Ela queria muito mais, precisava de muito mais — e se abrisse essa porta, poderia não ser capaz de voltar a fechá-la.

Por isso, em vez de lhe pedir para a beijar, disse:

— Ouve. Não é um som maravilhoso? Ele inclinou a cabeça.

— O vento nocturno, murmurando nas árvores — disse ele, com os seus lábios firmes brilhando ao luar. — Sempre adorei este som.

Ela acenou com a cabeça, olhando esfomeada para a boca dele, lembrando-se dos sentimentos que ele evocara dentro dela da última vez que se tinham beijado.

— Estás bem? — perguntou ele.

— Óptima — disse ela com um suspiro. Inclinou a cabeça para trás para olhar para o céu. — Uh-oh. Espero que não chova. Não estou a ver estrelas.

Hank juntou-se a ela na observação atenta do zénite azul-escuro que pairava por cima deles. Os céus estavam cheios de estrelas brilhantes. Carly não conseguia vê-las.

— São só algumas nuvens — mentiu ele. — Vão passar.

— Oh, espero bem que sim. Hoje foi tão divertido. Se chover, vai estragar tudo.

Hank reparou na hesitação dela assim que largaram o asfalto e se aventuraram por terrenos mais irregulares. Como tinham estado a dançar há pouco, não hesitou em envolver-lhe a cintura com um braço.

— Tem cuidado. O terreno aqui é bastante pedregoso.

Ela encostou-se mais a ele. Ao luar, Hank conseguia vê-la a olhar atentamente para a frente, com os olhos bem abertos. Ele sabia que ela não conseguia ver muito bem no escuro. Amanhã, o Sol voltaria a inundar o mundo de luz, e ela seria capaz de ver mais uma vez. Talvez não claramente, mas, ainda assim, seria capaz de ver. Dentro em breve, no entanto, muito em breve mesmo, nem sequer a luz do Sol lhe valeria.

Chegados ao chalé, Carly deixou-se ficar no centro da pequena sala de estar, olhando para ele com uns olhos cheios de interrogações. Se fosse outra mulher, Hank poderia pensar que estava a fazer um convite silencioso.

— O que foi? — perguntou ele.

Ela pôs as mãos na cintura, sorriu debilmente e abanou a cabeça.

— Nada.

Ela era realmente bonita. Envergando umas calças de ganga e uma camisa branca simples, com o cabelo todo emaranhado do vento da noite, ela era, pura e simplesmente, a coisa mais bonita que ele alguma vez vira.

— Posso dizer-te uma coisa? — perguntou ele. O seu rosto abriu-se num sorriso.

— Depende. Se for mau, não quero ouvir. Porquê arruinar um dia tão perfeito?

Ele riu-se e inclinou a cabeça para baixo. Quando olhou para cima outra vez, ela estava a observá-lo expectante.

— És muito bonita. Não estou a mentir, querida, é um facto. Ela revirou os olhos e corou.

— Não, a sério. — Hank diminuiu progressivamente a distância entre eles. — Tens de saber que não estou apenas a dizer isto por dizer. — Segurou-lhe no queixo com um dedo e levantou-lhe o rosto. — Nada de frases feitas. Temos um acordo. Não o vou quebrar. Só quero que saibas. És muito bonita.

Os olhos dela ficaram brilhantes de lágrimas.

— Obrigada. Também não és feio.

Ele já recebera galanteios mais lisonjeiros, mas nenhum deles lhe interessava agora. Só queria saber o que ela pensava.

— Obrigado — disse ele com uma voz rouca. Ela observou-lhe o rosto.

— Não sou nenhuma perita, não te esqueças. Mas és o homem mais bonito que eu já vi na minha vida.

Ele riu-se. Foi mais forte do que ele.

— E quantos vistes?

— Não muitos, em comparação com a maioria das mulheres. Sou perita em auras, no entanto.

— Em quê?

— Auras. — A sua boca curvou-se num sorriso travesso. — É a essência de uma pessoa. Gera um campo à volta dela.

— A sério? — Normalmente, Hank teria avaliado isso como uma parvoíce, mas Carly fora cega durante toda a vida. Era inteiramente possível que tivesse apurado todos os outros sentidos para compensar a sua falta de visão. — Como é a minha aura?

Ela cobriu-lhe a cara com uma mão.

— Gentil. Quente. Senti-me segura contigo naquela noite. Mesmo quando estávamos a dançar, enviaste sinais bastante positivos.

— E agora?

Ela acenou com a cabeça. Depois, passando ligeiramente com os dedos pela boca dele, murmurou:

— Ainda continuas a enviá-los.

Hank permaneceu onde estava, tentando decifrar o significado de tudo aquilo, enquanto ela abandonava a sala. Olhou para ela, convencido de que ela lhe acabara de dar a proverbial luz verde, mas também indagando se ele não teria perdido o juízo. Se ela quisesse que as coisas corressem dessa maneira, não teria fugido tão depressa.

Dirigiu-se para o piso de cima, despindo a camisa enquanto caminhava. «Sinais positivos.» O que é que isso significava?

Carly ouviu Hank a ir lá para cima. Depois enfiou rapidamente a camisa de dormir e meteu-se dentro da cama. O chalé estava equipado com várias camas. Ele dera-lhe o quarto de baixo, onde só havia uma cama de casal, uma monstruosidade que a fazia sentir-se horrivelmente pequena e só, como um selo de correio colado no canto superior direito de um envelope comercial. Esticou a mão para examinar o lençol ao lado dela, inteirando-se da frieza do tecido. Passar tanto tempo com Hank havia enfraquecido a sua decisão. Desejava tê-lo ao seu lado — para poder sentir o perfume e o aroma masculino almiscarado que se desprendia da sua pele, para poder sentir o seu calor em torno dela novamente.

Esses pensamentos fizeram-na indagar se teria ultrapassado o limite. «Não», pensou. Ela estava completamente sã — talvez mais sã do que estivera em toda a sua vida. «Era a sua vez.» Ao fim de tanto tempo de espera, encontrara finalmente um verdadeiro príncipe, e, como uma perfeita parva, estava a desperdiçar a oportunidade de estar com ele. «Agora ou nunca», uma pequena voz zombeteira murmurava na sua mente. «Quando fizeres amor pela primeira vez, não seria bom ainda poderes ver enquanto o fazes?»

«Porquê», interrogou-se, «teria de haver um futuro implícito?» «Agarra a magia», dissera-lhe Hank. Bem, não podia ficar mais mágico do que isto. O que é que a detinha? Ao longo destes últimos dias, ele tentara desesperadamente encher-lhe a cabeça de recordações, negligenciando todavia a recordação mais preciosa de todas.

E se ela nunca viesse a encontrar o Sr. Certo na cidade? E se a próxima intervenção cirúrgica não resultasse, e nenhum homem voltasse a olhar duas vezes para ela só porque era cega? Quando se visse confrontada com a cegueira permanente de novo, gostaria de ter pelo menos algumas memórias para enfrentar a velhice, nomeadamente como era estar nos braços de um homem e experimentar o êxtase.

O que havia de errado nisso? Já eram casados. Não teria de se preocupar com a possibilidade de ficar grávida. Porque não deixar-se levar e passar por isso tudo? Se ela e Hank sabiam que um dia acabariam por dissolver o casamento, porquê não tirar o máximo partido das coisas?

Carly afastou a roupa da cama, levantou-se e depois ficou de pé no escuro a tremer. «Cobarde.» O que poderia ele dizer a não ser não? Caminhou para fora do quarto. No fundo das escadas, hesitou, avassalada, mais uma vez, por uma série de dúvidas. Mas, depois, encontrou coragem, fechou os olhos para não vacilar e subiu até ao segundo andar.

Quase a dormir, Hank ouviu qualquer coisa e virou-se de lado para espreitar através do luar. Carly estava de pé, na zona central do andar superior, um quarto enorme com o tecto inclinado e várias camas individuais encostadas à parede. Tinha os punhos cerrados estendidos de cada lado do corpo e o pequeno queixo projectado para fora, como se estivesse preparada para iniciar uma batalha.

— Hank?

Ele pestanejou para afastar o sono dos olhos.

— Sim?

Ela moveu-se rapidamente para poder olhar de frente para ele, levando uma mão ao peito.

— Oh! Estás aqui. Pregaste-me um susto de morte!

Ele sentou-se, pensando que ela poderia estar agoniada e agradeceu a Deus por estar de boxers.

— Estás enjoada, querida?

— Não, sinto-me perfeitamente bem. Não consigo dormir.

Ele esfregou a cara com a mão. «Leite quente.» Isso podia fazê-la adormecer.

— Vamos até lá baixo — disse, com uma voz entaramelada. — Vou arranjar-te qualquer coisa.

— Não quero que me arranjes nada.

— Oh. — Ele pestanejou para poder ver mais claramente. — O que queres então?

— Sexo.

Hank não tinha nada disso no frigorífico.

— Pode ser leite com chocolate?

— O quê?

— Não tive oportunidade de... — Por pouco não dizia «sexo», até que o seu cérebro entrou finalmente em funcionamento. Pestanejou de novo e olhou para ela. Pensou que estava a sonhar. Uma mulher tímida, cuidadosa e inexperiente como Carly não invadia o quarto de um homem a pedir sexo. Era como... bem, uma daquelas coisas que nunca costumam acontecer. Aclarou a garganta e coçou uma das têmporas. — O que disseste?

— Quando?

— O que disseste que querias?

— Sexo.

Ele anuiu. «Está bem.» Tocou no lóbulo da orelha, indagando se entrara água para os ouvidos enquanto estivera a tomar duche essa manhã.

— Importas-te de repetir?

Ela fez um ligeiro som de frustração, rodopiou e dirigiu-se para as escadas.

— Esquece. Má ideia. Não sabia em que é que estava a pensar.

Ela parou para se agarrar com firmeza ao corrimão antes de começar a descer. Hank estava sentado, a olhar estupidamente para ela. Ela dissera sexo? Tentou pensar noutras palavras semelhantes. Mex, Tex, hex. Nenhuma delas fazia sentido. «Merda.» Ela disse sexo.

Estava já fora da cama e a meio caminho das escadas, quando se apercebeu de que tinha apenas as boxers vestidas. Voltou a subir as escadas. Onde estavam as suas calças? Tropeçou nas botas. Encontrou a camisa. «Bolas.» A sua mão agarrou finalmente na ganga. Enfiou uma perna, depois saltitou, tentando encontrar o outro buraco. Gaita para isto. Olhou para o fundo das escadas com a outra metade das calças ainda por vestir.

— Carly? Querida?

«Sexo.» Ela disse que queria sexo. «Senhor, ajudai-me!» Conseguiu finalmente enfiar um pé na perna das calças, depois quase que dava um mortal a descer as escadas. No último minuto, agarrou-se ao corrimão para se equilibrar até acabar de vestir as calças. Conseguiu apertá-las enquanto completava a descida. Tinha os testículos e as boxers enfaixados num dos lados da braguilha.

Quando chegou ao quarto dela, parou para sacudir uma perna e ajeitar-se melhor no interior das calças.

— Carly?

— Vai-te embora.

Por nada neste mundo. Hank empurrou a porta. Ela estava toda aconchegada dentro da cama. Entrou cautelosamente no quarto.

— Desculpa. Nunca consigo pensar como deve ser quando acordo. — «Sexo.» Não estava enganado. Ela dissera definitivamente sexo. Ela não se mexeu, nem olhou para ele. Ele aproximou-se.

— Carly?

— O que foi? — Franziu o sobrolho, depois sentou-se, cobrindo o peito com o lençol.

— Disseste o que penso que disseste? — perguntou ele.

Os seus olhos pareciam enormes, como esferas luminosas sob o feixe de luar que entrava pela janela.

— E se eu disser que sim?

«Prepara-te para o que der e vier.» Hank passou novamente com uma mão pelo rosto, tentando escolher cuidadosamente as palavras, tarefa um tanto ou quanto difícil por ter o cérebro feito num oito.

— Eu, hmm... Diria que sim. — Contraiu os músculos. — Quero dizer, bem, sim.

— Só isso? Bem, sim.

Sentou-se na beira da cama. Respirou fundo. Ainda sentia o coração a palpitar-lhe no peito, depois de ter visto a morte por perto quando descia as escadas.

— Podemos recuar e começar tudo de novo?

— Preferia não o fazer. Não foi um dos meus melhores momentos. Hank tinha vontade de rir.

— Também não foi um dos meus melhores momentos.

Ela passou com os dedos trémulos pelo cabelo. Depois suspirou, e os seus ombros descaíram.

— Não sei no que é que estava a pensar. Estava só a... pensar na possibilidade e, logo a seguir, estava já lá em cima.

— Que possibilidades, exactamente?

— Eu e tu. Divertimo-nos tanto nestes últimos dias. Parece-me um desperdício não aproveitar plenamente este período em que vamos estar juntos.

Numa escala de um a dez, excedia claramente tudo o que pudesse estar relacionado com desperdícios pecaminosos. Ela era tão bonita que até lhe doíam os dentes.

— Nada permanente, claro — apressou-se a acrescentar. — Continuaremos a ser apenas amigos. Nada de misturar o lado emocional. Apenas... bem... estás a ver... sexo.

Agora que ele compreendia exactamente o que ela queria, sentiu o coração a afundar-se. De certo modo, sem o lado emocional à mistura, a oferta não se enquadrava muito bem com a dama em questão. Carly não era mulher para aceitar fazer as coisas sem compromisso. Nunca o fora. Ele não ia cometer esse erro outra vez.

— É tudo o que queres? — perguntou ele suavemente. — Apenas sexo? Ela acenou afirmativamente.

— Gostaria que fosse uma coisa romântica, é claro. Consegues fazer com que seja romântico?

Só o facto de ela querer que fosse uma coisa romântica dizia-lhe mais do que ela provavelmente julgava. Observando o seu rosto oval, procurando os seus belos olhos azuis, Hank soube, naquele momento, que não fora o único a apaixonar-se. Ela nunca teria feito aquela proposta, se não pensasse o mesmo.

Oh, como ele queria dar andamento à proposta. Em vez disso, pôs-se de pé. Determinado, desta vez, a fazer as coisas como devia ser — ou não as fazer de todo.

— Desculpa. Se só estás interessada num corpo disponível, vai procurá-lo na cidade.

Ela olhou para ele com um ar incrédulo.

— O quê?

— Foi o que ouviste. Estou apaixonado por ti. Ponto final. Se resolvêssemos avançar para um novo nível de intimidade, estaria a abrir um fosso maior e ficaria com o coração destroçado quando tu me deixasses.

— Oh, Hank — murmurou ela. — Meu Deus.

— Desculpa. Sei que apaixonar-me não fazia parte do contrato, mas o meu coração não concordou com os termos. Gostaria imenso de estar contigo nessa cama. — Enfiou as mãos nos bolsos da anca para não tocar nela. — Se estás a oferecer-me mais qualquer coisa, ou seja, uma possibilidade de viver contigo, aproveito a oportunidade. Mas não é isso que tens em mente, pois não?

— Não — admitiu frouxamente. — Nunca iria resultar.

— Na tua opinião. Acho que estás errada. Se duas pessoas se amam, poderão fazer com que quase tudo funcione.

— É um pensamento muito bonito, mas, em termos práticos, nada exequível atendendo à nossa situação.

Ele olhou com tristeza para ela, durante um longo momento, e depois virou-se para sair dali.

— Onde vais?

— Para o meu quarto. — Parou junto à entrada para olhar para ela. Ele fora brutalmente honesto, excepto num pormenor. O seu coração estava já destroçado. — Já disse o que tinha a dizer. Não sou pessoa para dois pesos e duas medidas.

Quando ele se virou para sair outra vez, ela gritou:

— Espera!

Voltou a pôr as mãos nos bolsos e rodopiou para olhar para ela.

— O que mais há a dizer? Estamos longe de chegar a um acordo sobre isto. Tu continuas com a ideia de seguirmos vias separadas. Eu quero que fiquemos juntos para sempre. Tu só vês potenciais problemas. Eu só vejo soluções. Não creio que nos possamos encontrar a meio caminho.

— É natural que acabe por ficar inteiramente cega. — Ergueu as mãos. — Quando isso acontecer, fazes alguma ideia de quanto custará tornar a área envolvente à casa totalmente segura? Para já não falar de que irei ficar abandonada no rancho, incapaz de apanhar um autocarro para a cidade, incapaz de ir trabalhar. Toda a situação seria impossível.

— Difícil, não impossível — corrigiu ele. — Podia fazer com que as coisas funcionassem, se me desses essa hipótese. O transporte não seria um problema. Se não te pudesse levar à cidade, haveria sempre alguém disponível para o fazer.

— Ficaria dependente de ti, ou deles, para tudo. Consegues imaginar como me sentiria, vivendo dessa maneira?

— Na cidade, estarias dependente de um motorista de autocarro. Qual é a diferença? — Hank encostou-se à ombreira da porta. — Não gostas de depender de ninguém, pois não?

— Dito assim até parece que é crime.

— Não, mais uma fixação, talvez. Lutaste a vida inteira para seres totalmente auto-suficiente. Agora estou a pedir-te para enfrentares uma situação, onde a independência completa será sempre impossível.

— Não vejo porquê. Nem sequer poderia ir uma mercearia comprar qualquer coisa.

— É ir sozinha que é importante para ti? — Arqueou uma sobrancelha. — Muitos casais vão às compras juntos.

— Isso é só um exemplo. Não distorças tudo, tentando fazer com que eu seja a má da fita. Estou apenas a fazer-te um grande favor. Se ficarmos juntos, seria uma âncora agarrada ao teu pescoço, depois de ficar cega... uma responsabilidade permanente.

— Uma âncora muito agradável — respondeu ele — e uma responsabilidade que agradeceria a Deus todos os dias.

— Dizes isso agora, mas irias começar a ressentir-te de mim com o tempo. Terias de gastar milhares de dólares para tornar o rancho seguro para uma mulher cega.

— Podíamos improvisar e tentar remediar as coisas até fazeres a cirurgia, no próximo Verão. Depois disso, se tudo corresse bem, teríamos anos e anos pela frente para podermos poupar e fazer todos os ajustes necessários.

— E se as coisas não corressem bem? O que fazer então?

— Se as coisas não corressem bem, saberíamos dar a volta à questão — assegurou-lhe ele. — Pediria um empréstimo, se fosse necessário. Qualquer coisa. Amo-te. Quero que faças parte da minha vida.

— Mesmo que isso significasse contrair dívidas até mais não? Podias acabar como o teu pai, um rancheiro esforçado de meia-idade com o equipamento obsoleto, meia-dúzia de pilecas no estábulo e um filho ressentido por não ter ido para a faculdade. É isso que queres, todos os teus sonhos desfeitos?

— Estar contigo é o meu sonho agora. E ser como o meu pai não seria assim tão mau. Ele é um homem impecável.

— Não estava a querer dizer que não é. Só que... oh, esquece! Não estás a ser realista em relação a toda esta situação. Já conviveste com alguma pessoa cega?

— Não, não convivi.

— Então não tenho mais nada a dizer. Ele afastou-se da porta.

— Não me estás a dar muito crédito. — A raiva inundou-lhe a voz. — Acreditas, honestamente, que irei desligar-me dos meus sentimentos se a vida se tornar difícil, que irei deixar de te amar só porque não é fácil? Eu não sou assim. Isso não está nos meus genes.

Ela cobriu o rosto com as mãos.

— Eu sei isso, Hank. É esse o problema. Não estás a ver? Irias sorrir abertamente e tolerar isso, e eu sentir-me-ia culpada por ter dado cabo da tua vida.

— Amas-me? — perguntou-lhe ele calmamente.

— Não — respondeu ela, abafando a negação com as mãos.

— Olha para mim quando eu estou a falar, gaita.

Ela deixou cair os braços. Tinha uma expressão completamente impassível, com os músculos da cara meticulosamente distendidos. Ah, mas os olhos. Não conseguiam mentir. Hank olhou para eles e obteve a resposta. Avançou para ela.

— Não fui o único a apaixonar-me.

Ela deitou-se de costas e puxou o lençol até cima.

— Estás louco.

— Talvez, mas é uma loucura sã. — A ponta do colchão bateu nas tíbias de Hank. Pôs as mãos nas ancas e olhou para ela. — Isso muda tudo. Se me amas e eu te amo, o sexo sem sentimento é uma impossibilidade.

— Eu não te amo. Eu não te posso amar. Estás completamente errado acerca de mim. Eu não te amo, ponto final.

— O amor não é uma decisão, Carly. É um sentimento. Não podes forçá-lo, e muito menos rejeitá-lo. Esquece o impacto que isso poderá ter na minha vida e responde à minha pergunta. Amas-me?

— Volta para a cama.

Ela virou-se de lado, de costas para ele, com o lençol enrolado como se fosse uma mortalha. Hank sentou-se ao lado dela, olhando pensativamente para a sua nuca. Depois passou-lhe com um dedo pela espinha. Ela saltou como se tivesse sido atingida por um cabo de alta tensão.

— Pára! — disse ela com brusquidão.

Ele sorriu ligeiramente e repetiu o gesto. A mesma reacção. Tomou-a como um sinal encorajador e, prontamente, afastou o lençol. Isso fê-la olhar para ele.

— O que é que julgas que estás a fazer?

— A explorar as possibilidades.

— Acabaste de chegar à conclusão de que não há nenhumas. — Bateu-lhe na mão quando ele se inclinou para lhe tocar no rosto. — Pára, já disse.

— Porquê?

— Porque sim!

— Resposta evasiva. Dá-me uma razão.

— Não há futuro nisto. Tu queres para sempre. Eu não te posso prometer isso. Fim de conversa.

— Podes prometer ao menos dar o teu melhor?

— Dar o meu melhor?

— Para sempre — disse ele suavemente. Limpou-lhe uma lágrima na face, sentindo tanto amor por ela que era quase uma dor física. — Sem garantias. Se tudo for por água abaixo e não conseguirmos dar a volta, não te manterei agarrada à promessa. Mas se as coisas puderem ser resolvidas, se conseguirmos arranjar uma maneira de fazer com que tudo funcione, a promessa mantém-se. Que tal te parece?

Os seus olhos ficaram brilhantes de lágrimas.

— Não fazes a mínima ideia do que é estar casado com uma pessoa cega. «O paraíso.»

— Deixa-me adivinhar.

— Estás doido.

«Claramente pendurado pelos dedos à beira de um precipício.»

— Sim, doido por ti.

— Receio que venhas a odiar-me.

— Nunca. Quando ficares permanentemente cega, quer seja daqui a cinco ou a trinta anos, quero ser aquele que te dá a mão e te leva a passear ao fim da tarde. Quero ser aquele que desenha imagens com palavras para que possas continuar a ver o pôr-do-sol, ou os primeiros raios da aurora. Quero ser aquele cujo rosto memorizas com os dedos. Quando o nosso filho tirar um curso, quero ser o felizardo que está ao teu lado, aquele que murmura ao teu ouvido para que possas ver tudo na tua mente. Olharei por ti e pensarei que és a melhor coisa que alguma vez me aconteceu. É isso que pensarei. E agradecerei a Deus por teres ficado comigo. — Sentiu um aperto na garganta. — Sabes porquê? Porque se não souberes, algo dentro de mim morrerá, Carly Jane. Deves julgar que poderei optar simplesmente por não te amar, que prosseguirei e encontrarei outra pessoa. Bem, deixa-me dizer-te uma coisa. Os homens Coulter não são desses. Quando amamos, amamos do fundo do coração e não mudamos de opinião, nunca.

— Oh, Hank — murmurou ela com uma voz trémula.

— Dá-me um talvez — implorou. — Promete-me que vais dar o teu melhor para que possa haver um para sempre... É pedir muito? Não ficará nada gravado numa pedra. Se for tudo por água abaixo, poderás sempre voltar atrás. Diz apenas que ficarás comigo o máximo de tempo que puderes. Gozaremos um dia de cada vez.

— Nem tu sonhas quanto eu gostaria de dizer que sim. Nem tu sonhas. Ele estava a poucos centímetros de se meter na cama com ela. Só que algumas coisas não podiam ser apressadas. Esta era uma delas. Até chegarem a uma resolução, ela estava demasiado angustiada e preocupada para se poder fundir nos seus braços.

— Se queres dizer que sim, o que te detém?

— Preciso que me prometas que essa coisa do «sem garantias» funcionará para ambos os lados. Preciso de saber que não ficarás comigo só por um sentimento de dever. Caso contrário, não, Hank, não posso prometer-te que darei o meu melhor.

— Juro-te que nunca ficarei contigo só por um sentimento de dever — prometeu-lhe do fundo do coração. O amor seria aquilo que o uniria a ela, nada mais. — Tens a minha palavra. Se as coisas chegarem a esse ponto, faremos partilhas e cada um irá para o seu lado.

Ela olhou para ele através da obscuridade, tentando ler-lhe a expressão mas sem o conseguir. Hank passou com os nós dos dedos pelo seu rosto delicado, depois afagou-lhe o cabelo, esperando pela resposta.

— Está bem — murmurou ela finalmente. — Darei o meu melhor.

O alívio percorreu-lhe o corpo. Estava a tremer quando se deitou ao lado dela. Passando com o braço pela sua cintura, virou-lhe o rosto para olhar para ela. Limpou-lhe as lágrimas debaixo dos olhos, beijou-lhe a ponta do nariz. Ela ergueu as pestanas, completamente humedecidas. Os olhos brilhavam-lhe ao luar como mercúrio.

— Amo-te, Carly Jane — murmurou ele. — Acho que me apaixonei por ti da primeira vez que olhei para o teu rosto delicado, e estava demasiado bêbedo para me dar conta.

Ela envolveu-lhe o pescoço com os braços e agarrou-se a ele.

— Podias ter quem quisesses. Eu nunca quis que isto acontecesse.

Ele beijou-lhe o cabelo e afagou-lhe o rosto com o nariz até chegar à orelha.

— Se posso ter quem quiser, escolho-te a ti. Quanto a apaixonar-me por alguém, as coisas não acontecem dessa maneira. O amor limita-se a aparecer e a morder-nos o rabo.

Ela riu-se profusamente.

— Que analogia tão romântica. Ele sorriu e abraçou-a ainda mais.

— Pediste algo romântico, não foi? — O seu sorriso desvaneceu-se lentamente. Enterrando o rosto nos caracóis dela, deteve-a durante algum tempo, saboreando a sensação da sua suavidade em contacto com o corpo dele. —

Ah, Carly, como te amo. Não te preocupes, está bem? Podemos conquistar tudo.

Ela estremeceu quando ele lhe tocou com a ponta da língua no extremo da orelha. Ele sorriu e ergueu o queixo para lhe mordiscar o lóbulo da orelha, o que lhe provocou outro arrepio. Pôs a mão nas costas dela, percorrendo-lhe a espinha com os dedos. Ela suspirou e aconchegou-se ainda mais nele.

— Oh, Hank. Eu também te amo tanto — murmurou ela. — Eu também te amo tanto.

Ele recuou para lhe desapertar os botões da camisa de noite. Quando chegou ao quarto botão, ela disse:

— Poderei não ser muito boa nisto ao princípio. Não tenho muita prática.

Ele observou-lhe o rosto.

— Estás nervosa?

— Um pouco.

Tinham de ultrapassar isso. Ele queria que esta vez fosse perfeita para ela.

— Precisamos de uns preliminares.

— Uns quê?

— Uns preliminares. Em vez de avançarmos a talhe de foice, esqueçamos o sexo por agora e apreciemos este nosso momento juntos.

Ela pareceu aliviada.

— Parece-me boa ideia. — Franziu uma sobrancelha. — Quando é que vamos fazer sexo então?

Dentro de cinco minutos, se tudo corresse bem.

— Quando for a altura.

Na sua veste de mangas compridas, muito aprumada, nunca se parecera tanto com um anjo. Hank tocou-lhe ligeiramente no cabelo, depois no braço, totalmente preparado para cometer um sacrilégio.

Ela sorriu hesitante. Ele agarrou-lhe no queixo. Ao luar, ela parecia demasiado bela para ser verdadeira. Ergueu-lhe a cabeça e tocou-lhe ligeiramente na boca com os lábios. Ela sabia tão bem quanto ele se recordava — hesitante mas predisposta, com os lábios macios e deliciosamente húmidos. Agarrou-lhe na anca com a mão e sentiu-a a tremer sob a pressão dos seus dedos.

A respiração de Carly começou a ficar mais acelerada. Não conseguia deixar de se lembrar da última vez que estivera com ele e sentiu um pouco de medo. Quando Hank se inclinou novamente sobre ela, esta tentou afastar-lhe o maxilar, mas, entre o pensar e o fazer, sentiu as madeixas frias do cabelo dele sob os seus dedos. Era tal e qual como ela se lembrava, grosso e sedoso, mas mais áspero do que o seu, e não conseguiu resistir a passar a mão por ele.

Tão levemente como o bater das asas de uma borboleta, ele voltou a tocar-lhe nos lábios. «Sonho ou realidade?» A sua respiração misturou-se com a dela, quente e doce da gasosa que bebera no bar da estância. O sabor dele actuou sobre os seus sentidos como um vinho forte. Ela abriu os lábios, expectante, mas ele não aprofundou o beijo. A sua boca prendeu-se à dela, num contacto suave e sussurrado. «Húmida, sedosa, quente.» Ela fechou as pálpebras. O sangue começou a circular-lhe pesadamente nas veias, tão grosso como o mel. Os pulmões começaram a implorar desesperadamente por oxigénio.

— Hank?

Ele inclinou a cabeça e mordiscou-lhe ligeiramente o lábio inferior.

— O que é? — perguntou ele num murmúrio.

Carly não sabia do que é que precisava, só que ele a fizera querer. Pousou-lhe as mãos sobre os ombros. Uma pele quente e escorregadia. Camadas de músculo forte e vibrante sobre a estrutura óssea. A energia contida que sentiu sob os dedos fez com que o coração disparasse para depois abrandar e recuperar o ritmo.

— És tão bonita — sussurrou ele. — Tão bonita. Nunca quis ninguém, ou alguma coisa, como te quero a ti.

Como se pretendesse memorizar todas as linhas do rosto dela, começou a percorrê-lo lentamente com os lábios, passando pelo arco das sobrancelhas, pela cana do nariz, pela curvatura facial até chegar ao ângulo do maxilar. A cada carícia da sua boca, a pele dela ia ficando cada vez mais electrificada.

Carly gritou de aflição quando ele lhe pegou subitamente pelos braços e se deitou de costas, obrigando-a a sentar-se por cima das suas ancas. A posição fez com que a parte inferior da sua camisa de noite se enrolasse nas coxas. Os dentes brancos de Hank brilharam ao luar quando este lhe esboçou um sorriso lento e esticou a mão para brincar com um caracol que pendia sobre o peito de Carly. Ao roçar ligeiramente com os nós dos dedos pela região, sentiu os mamilos dela a ficarem duros e sensíveis.

— Adoro o teu cabelo — disse-lhe ele. — O teu cabelo e os teus olhos fabulosos foram as primeiras coisas que reparei em ti.

— A sério?

— Ainda estás nervosa. — O seu sorriso alargou-se. — Não há necessidade para tal. Pelos menos comigo. Não te vou voltar a magoar. Sabes isso, não sabes?

Ela engoliu em seco e acenou com a cabeça.

— Sim, eu sei. Eu, hmm... Estou um pouco...

— Nervosa?

Ela riu-se e confirmou com um aceno.

Ele parou de brincar com o cabelo e colocou as suas mãos grandes e quentes nas coxas dela. Ela deu um salto e prendeu-lhe os pulsos.

— Calma — disse ele suavemente.

Acariciou-lhe ligeiramente a pele com a parte inferior dos dedos. Afundou os polegares na parte mais interior e sensível das suas coxas, desenhando círculos, inebriando-a. De novo, o coração de Carly começou a bater como um pistão, sentindo cada pancada como se estivesse a receber um golpe nas costelas.

Ele puxou-lhe a camisa de noite mais para cima. Com uma sensação análoga ao horror, Carly apercebeu-se de que não tinha qualquer tecido debaixo das nádegas. Estava sentada sobre ele, com o rabo nu assente sobre a ganga das calças, a parte restante em contacto com a barriga dura. Interrogou-se se ele teria noção disso, depois pensou que devia ter, o que a fez corar.

— A segunda coisa que me chamou a atenção em ti foi as tuas pernas. Sem rivais. Tens as pernas mais fantásticas que alguma vez vi.

Hank prosseguiu a exploração enquanto falava, com as suas mãos a deslizarem um pouco mais para cima para traçarem o contorno das ancas. Carly sentiu a respiração a ficar-lhe bloqueada no peito. O facto de ela estar a prender-lhe os pulsos não o impedia em nada de continuar a sua pesquisa e apoderar-se com as mãos do seu rabo nu.

— E és ainda melhor do que aparentas — murmurou ele com uma voz gutural. — Tão suave e macia, e absolutamente doce. — Desprendeu-se das mãos dela para lhe agarrar na camisa de noite. — Quero-te ver da cabeça aos pés.

— Pensei... — Engoliu em seco para firmar melhor a sua voz. — Pensei que tínhamos decidido que precisávamos de uns preliminares.

Ele sorriu enquanto lhe puxava a camisa de noite mais para cima. O algodão roçou sobre os seus mamilos endurecidos. A sensação fê-la suspirar de forma profunda. Hank sentou-se subitamente, assustando-a. A fricção e a pressão repentina da sua barriga dura contra o vértice sensível das suas coxas fizeram-na estremecer.

— Braços para cima — ordenou ele num murmúrio.

Num movimento suave, tirou-lhe a camisa pela cabeça. Deitou-se de novo, arremessando a roupa para longe. Os seus olhos resplandeciam ao luar enquanto olhava para ela de cima a baixo. Para onde quer que ele olhasse, a pele dela ardia, uma tortura delicada que só fazia aumentar o calor que sentia no ventre.

— És absolutamente perfeita.

Com os nós dos dedos, explorou-lhe os contornos da cintura, o seguimento das costelas. Quando chegou ao peito, bateu ligeiramente na parte inferior dos seios com os dedos, uma carícia tão passageira que a fez ansiar por mais. Ele não lhe deu tempo para ficar a pensar nisso. No minuto seguinte, já tinha voltado a pôr-lhe as mãos sobre as pernas. Percorreu com os dedos a parte interior das coxas, desenhando círculos inebriantes e subindo cada vez mais até tocar no tufo de pêlos que cobriam a sua junção.

Segurando-a com uma mão sobre a coxa, afastou as dobras acetinadas de carne feminina e tocou ligeiramente num lugar extremamente macio.

Carly arfou e estremeceu com a sensação. Ele sorriu e continuou a tocar-lhe no sítio, importunando-a com ligeiras pancadinhas com a ponta do dedo. Ela nunca sentira nada parecido. O calor dentro dela intensificou-se. Pequenos choques eléctricos atravessaram-lhe o ventre.

Quando ele parou subitamente, o seu corpo arqueara como o arco de uma flecha. Sentou-se e tocou com a ponta da língua em cada um dos mamilos. Depois, pegou nela pela cintura e rolou novamente sobre ela, desta vez para ficar de cima, com o seu torso a formar uma abóbada protectora de tensão muscular. Baixando a cabeça, beijou-a com intensidade, saboreando o interior suave do seu lábio inferior, contornando-lhe os dentes, pressionando seguidamente a ponta da sua língua sobre a dela num ritmo provocatório de avanços e recuos.

Carly agarrou-se ao cabelo dele, perdida entre sensações e perdida nele. Hank. Fora assim que se sentira da primeira vez que ele a beijara — totalmente centrada, querendo fundir-se no corpo dele. Bastava sentir a mão dele sobre a sua pele para que logo o seu corpo começasse a libertar faíscas e o calor dentro dela se transformasse em laivos de fogo abrasadores.

— Hank — murmurou ela ardentemente. — Oh, sim.

Ele agarrou-lhe nos pulsos e levantou-lhe os braços por cima da cabeça. Depois recuou para olhar para ela, deixando um lastro de fogo entre o rosto e os seios.

— Não vamos apressar as coisas — disse ele, com uma voz rouca. — Pelo menos desta vez.

Tocou-lhe com a sua boca quente no ponto sensível mesmo abaixo da orelha, depois quase que a enlouquecia mordiscando-lhe a parte de trás do pescoço. A seguir foi a vez do colo. Viajou com a língua desde o ombro até à linha do decote, onde se deteve com sucções quentes sobre o ponto de pulsação, como se quisesse extrair-lhe toda a sua essência.

A coluna de Carly arqueou-se quando a boca quente de Hank se apoderou do seu mamilo. Puxou-o com força, depois roçou suavemente com os dentes pela sua ponta palpitante. Ela gemeu. Entrelaçou os seus dedos grandes nos dela, mantendo-lhe os braços por cima da cabeça, enquanto a importunava e chupava. Quando ela tentou desprender as suas mãos, com vontade de tocar-lhe, ele deteve-as rapidamente e continuou o assalto delicado à sua carne macia até ela começar a estremecer como uma corda de arco puxada.

Apercebeu-se, de forma difusa, de que ele se pusera de lado e lhe libertara finalmente as mãos. Agarrou-se logo ao cabelo dele, com unhas e dentes, enquanto ele lhe continuava a beijar os seios. Hank percorreu-lhe o ventre com a sua mão calejada, massajando-o suavemente, tocando-lhe com os dedos em todas as extremidades nervosas, com uma perícia certeira, até os aproximar da zona palpitante entre as suas pernas. Ela estremeceu e gritou quando ele encontrou a carne sensível por que tanto ansiava.

Procurou a humidade quente e pegajosa na sua abertura e depois apoderou-se novamente desse rebordo de carne palpitante, com a parte inferior dos dedos, acariciando-o num movimento lento e circular que a levou a erguer as ancas do colchão.

— Assim é que é. Dá-mo, querida.

Carly não lhe podia negar nada. Arqueou-se contra a sua mão. Ele pressionou com mais força e acelerou o movimento. A necessidade consumia-a. Sentia-se como se estivesse à beira de um precipício, numa posição periclitante. Tentou conter-se, assustada com a sensação que explodia sem controlo dentro dela.

— Deixa vir, querida. Não faz mal, juro. Deixa que isso aconteça.

Ela gemeu, arqueando-se ainda mais. E depois sentiu uma explosão a sair de dentro dela — fragmentos de sensações ricocheteando do ponto onde ele lhe estivera a mexer. Os seus músculos tremeram e reagiram com um solavanco a cada passagem do seu dedo. Ela entregara-se a ele como nunca se entregara a ninguém, completa e totalmente indefesa, com o corpo a ser manipulado por cada passagem eléctrica da sua mão.

Com a pele coberta de suor, caiu ao lado dele numa poça de carne saciada. Ansiava por respirar como se tivesse acabado de correr. Levou uma mão ao coração, incapaz de acreditar que ainda o tinha no lugar.

Hank beijou-lhe os olhos fechados, murmurando-lhe coisas disparatadas ao ouvido, sem que ela se desse conta do seu significado. Lentamente, a realidade foi emergindo à sua volta. A escuridão banhada pelo luar. O contorno escuro do homem que permanecia, ainda meio vestido, ao lado dela. Apaziguou-a, tocando-lhe ligeiramente com a mão sobre a pele humedecida.

Quando a respiração dela abrandou, apoderou-se da sua boca para outro beijo profundo que a deixou outra vez de cabeça à roda. Depois, deslocou-se para a zona do peito, reacendendo o fogo que acabara de extinguir.

Ela apercebeu-se, vagamente, dos lábios dele no seu ventre. Depois, para surpresa sua, sentiu a sua boca quente e molhada perto do monte de carne onde há pouco havia estado a brincar com os dedos de uma forma tão habilidosa. Alarmada, arqueou as costas e tentou afastá-lo, mas ele parecia forte e determinado em levar a cabo a sua missão. Aproximou-se do sítio em questão e bateu-lhe ao de leve com a ponta da língua até ela se esquecer por completo porque é que quisera detê-lo.

Depressa se viu a tremer, respirando de forma superficial, com o seu corpo a responder mais uma vez de forma indefesa a todos os movimentos. Quando ele a fez aproximar-se novamente do êxtase, abrandou os movimentos até ela relaxar. Depois levou-a à beira do êxtase outra vez.

Quando permitiu finalmente que ela atingisse o clímax, fê-la aguentar-se um pouco, esfregando-a suavemente durante a primeira vaga, para depois levá-la à expansão total do orgasmo. Ela atingiu o clímax mais uma vez — e mais outra.

Carly estava exausta quando ele se debruçou finalmente sobre ela. Tinha a sensação de que era incapaz de se mexer se ele a espetasse com uma agulha. Apercebeu-se de que ele já não tinha as calças de ganga vestidas. Franziu os olhos e tentou focá-lo. Ele mais não era do que uma mancha gloriosa de bronze beijado pelo luar, com os seus ombros e braços transbordando de energia. Sentiu a pressão do seu membro duro mas sedoso junto à sua abertura e ficou hirta, esperando sentir dor outra vez.

— Não fiques tensa, querida. Juro, por Deus, que não te irei magoar.

Ele baixou a cabeça para a beijar e, no momento em que os seus lábios se uniam, ele avançou sobre ela. Carly arfou e agarrou-lhe os ombros com toda a força, surpreendida com a sensação. Ele ainda não estava lá dentro e ela já estava a sentir o seu membro duro a esticar-lhe a pele. No entanto, não a estava a magoar.

— Não cabes.

Ele riu-se nervosamente.

— Lá isso é que caibo. Confia em mim. Só não te quero magoar. — Fez um pouco mais de força. — Se sentires alguma dor, diz, que eu paro.

— Está bem. — Logo a seguir a ela ter falado, ele avançou mais um pouco.

Observando a reacção no seu rosto, sorriu e foi avançando mais. Vendo que ela continuava a não dizer nada, entrou por completo com um empurrão suave.

Carly tinha receio de se mexer. A sensação de plenitude era alarmante. Hank, contudo, não tinha tal noção. Recuou e voltou a empurrar suavemente. A sensação que explodia dentro dela era espantosa e incrível, e fincou-lhe as unhas nos ombros.

— Está a doer? — perguntou ele, executando suavemente uma segunda entrada.

Carly não queria acreditar que não estava a doer.

— Não — disse ela, com uma risada trémula.

Ele aumentou o ritmo, com as suas investidas a ganharem cada vez mais força. Poderoso. Carly regozijou-se com todo aquele poder, passando com as mãos sobre os seus braços esticados, verificando-lhe as depressões nas costas, apertando-lhe as nádegas. Depois as sensações apoderaram-se dela. Envolveu-lhe as ancas com as pernas para aumentar o contacto, captando progressivamente o ritmo de modo a poder movimentar-se em sintonia. Era a experiência mais adorável que tivera em toda a sua vida.

Ele pôs-lhe um braço debaixo do ombro e puxou-a para ele.

— Vem-te comigo — murmurou ele. — Vou levar-te ao paraíso.

E com esse convite murmurado foi aumentando de velocidade, com arremessos crescentes das suas ancas. Ela arfou com todas as sensações ardentes que lhe percorriam o corpo. Não acreditava que pudesse haver algo ainda melhor do que aquilo por que já passara.

«Paraíso.» Ele prometera-lhe o paraíso. Podia agora testemunhar com uma convicção absoluta que Hank Coulter era um homem de palavra.

Ao romper da aurora, Carly acordou envolvida nos braços de Hank. Era uma sensação muitíssimo agradável ter este corpo grande e quente envolto no dela. Tocou-lhe com os dedos nos pêlos escuros e flexíveis do peito, explorou os mamilos lisos do tamanho de uma moeda, apertou uma porção de músculo duro com a mão, e desejou. Desejou que ele acordasse. Desejou que ele lhe tocasse nos mamilos com a sua boca quente e sedosa, e depois, lentamente, a devorasse.

Ele expôs um olho azul. A sua boca firme esboçou de imediato um sorriso devastador.

— Estás à procura de sarilhos? Carly acenou.

Ele riu-se e abriu os dois olhos enquanto a contemplava com algum espanto.

— Em que é que o meu anjo envergonhado está a pensar?

— Ele viu o erro do seu comportamento. — Carly empurrou-lhe o ombro para trás para o deitar de costas. Depois pôs-se em cima das suas coxas. — Era horrorosamente aborrecido ser-se um anjo. — Inclinou-se para trás para observar melhor o corpo dele, admirar a sua superfície lisa e os seus contornos volumosos, enquanto passava com os dedos pela sua barriga estriada até chegar ao tufo de pêlos pretos que lhe rodeavam o membro. — És tão bonito!

Os olhos dele toldaram-se de desejo enquanto a examinava de alto a baixo.

— Já viste que estás completamente nua e sentada de uma forma muito ousada sob um feixe de luz?

Carly olhou para baixo. Depois sorriu.

— É um conceito visual.

— Que significa o quê? — perguntou ele, com a voz ardendo de desejo.

— O que é a nudez, exactamente? Até ontem à noite, nunca me apercebera da nudez a não ser ao espelho.

— Queres dizer com isso que podias cumprimentar-me à porta de avental e saltos altos, sem mais nada, sem te sentires envergonhada?

— Saltos altos? Partiria um tornozelo. Podiam ser uns sapatos de salto raso?

Ele saltou da cama de uma forma tão súbita que Carly nem sequer teve tempo de dar um grito de surpresa ao ver-se imobilizada na cama, depois de ele a ter feito cair de costas com um braço.

— Fazes-me o jantar, só com um avental?

— Se quiseres.

Ele inclinou-se para lhe mordiscar os seios.

— Morri e cheguei ao céu.

Carly também estava a caminho do céu. As suas entranhas agitavam-se e vibravam a cada puxão da boca de Hank. Dobrou-se sobre o queixo para poder observar melhor. Quando ele se apercebeu, os seus olhos cintilaram de descrença.

— A fazer registos, Carly Jane? Ela acenou afirmativamente.

— Quero lembrar-me de tudo. De tudo acerca de ti.

Ele recuou para passar ao de leve com a mão entre o peito e as coxas.

— O sol nunca tocou numa coisa tão bonita como tu. Nunca. Depois desta declaração tão sentida, embrenhou-se na tarefa de lhe proporcionar uma colecção preciosa de visuais para ela poder armazenar na sua mente.


Capítulo Dezanove

Para grande tristeza de Carly, a viagem a Portland não tardou a ficar para trás, terminando também a semana de passeios. Fiel à sua palavra, Hank mostrara-lhe as zebras, as girafas, os camelos, os macacos, os tigres e os leões, e dera-lhe igualmente a observar paisagens magníficas, incluindo o monte Hood, o desfiladeiro do rio Colúmbia e o monte Santa Helena. Ficou contente por ter podido registar tudo na sua memória, porque as notícias que recebeu do especialista não foram as melhores. A distrofia lattice instalara-se nas córneas, já de si debilitadas, e estava agora a lascar e a endurecer a sua superfície a um ritmo alarmante. Merrick não podia prever quanto tempo demoraria até ela ficar cega, mas, sem que ele tivesse dito alguma palavra, Carly sabia que estava para breve.

Recusou-se a sentir-se deprimida com o facto. Hank enchera-lhe a mente com coisas memoráveis. Procurou refúgio nelas, sabendo que permaneceriam com ela no escuro, imagens coloridas que nem sequer a lattice lhe poderia roubar.

Na terça-feira à noite, dia 15 de Julho, quando regressavam ao rancho, Carly pensou que Hank iria de imediato para o estábulo. Ele estivera fora durante toda a semana, e ela sabia que ele tinha coisas para fazer. Em vez disso, regressou à casa de madeira, logo depois de ter saído, com os braços cheios de caixas pretas e fios pendurados.

— É uma aparelhagem. Tinha-a no meu quarto na casa principal. Também podemos tirar proveito dela aqui.

Depois de ter montado tudo e posto um CD a tocar, pegou em Carly e começou a dançar a valsa em torno da casa. Quando ela começou a ficar tonta de tanto rodopiar, riu-se e disse:

— Não tens mais nada para fazer?

— Nada é tão importante como isto.

Parou de dançar para beijá-la. Como sempre, o beijo incendiou-os e depressa se viram a dirigir-se para o quarto, largando as peças de roupa pelo caminho. Uma vez na cama, acariciou-a com as mãos e a boca até ela achar que já não aguentava mais.

— Hank? — murmurou ela. — Por favor.

Ele mordiscou-lhe a pele sensível debaixo da orelha.

— Nem penses — disse ele. — Vou importunar-te até mais não, e depois fazer com que atinjas o clímax tantas vezes que hás-de ficar para aí deitada sem te conseguires mexer ou pensar, toda minha, desde a ponta dos pés até ao cocuruto da cabeça.

Cumpriu a sua promessa, recorrendo habilidosamente aos seus talentos para a levar até à beira do êxtase e depois acalmar-lhe a carne palpitante de modo a quebrar o ímpeto inicial. Era uma tortura divina e depressa o corpo de Carly estava a tremer com uma necessidade louca de satisfazer os seus desejos mais ardentes e primários.

— Por favor, por favor, por favor — gemeu.

Com um pequeno som de regozijo, permitiu-lhe algum fôlego, para depois a lançar num novo ímpeto febril que a levou aos espasmos do orgasmo, com todos os músculos do seu corpo a estremecerem de prazer.

Mais tarde, Carly não se conseguia mexer nem pensar, e era toda sua. Só então se apoderou dela e levou-a mais uma vez ao paraíso com ele.

— Acorda, beleza.

Carly resmungou e puxou os cobertores para cima da cabeça.

— Que horas são?

— Sete. Está na hora de levantar. — Hank tirou a roupa da cama de cima dela, deu-lhe umas palmadinhas no rabo e disse:

— Se não te levantares dentro de dois segundos, ponho-te debaixo de um duche de água fria. Quero ir contigo às compras.

Carly só queria dormir.

— Só me vou levantar depois das oito.

Soltou um grito quando ele lhe pegou pelos braços.

— Eu avisei-te.

Ela agarrou-se ao pescoço dele, rindo com um ar sonolento.

— Não te atrevas a pôr-me debaixo de um duche frio. Sou muito má quando fico irritada.

Ele levou-a até à casa de banho, pousou-a no chão e dobrou-se para ajustar a temperatura da água.

— E se for quente?

— Comprar o quê? — Esfregou a cara debaixo dos olhos. — Detesto ir às compras.

— Coisas para o bebé. — Ligou o chuveiro e baixou a cabeça escura para a beijar de uma forma doce e prolongada. — Quero que vejas tudo. Os baby-grows, as camisolas, os cobertores, um berço e uma cama de grades. Já estás interessada?

— Temos dinheiro?

— Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Pareces um disco riscado. — Pegou-lhe pelo cotovelo e ajudou-a a entrar na banheira. Ela inspirou quando a água quente lhe atingiu o corpo. Ele fechou a cortina. Depois, no segundo seguinte, abriu-a parcialmente. — Pensando melhor, posso ver?

Ela riu-se e atirou-lhe com a água para o rosto.

— Sai. Depois de ontem à noite, é impossível que estejas a pensar nisso outra vez.

— Os homens pensam nisso de três em três minutos. Ela olhou para ele com um ar espantado.

— Deves estar a brincar.

— É verdade, juro. Estatísticas. Pensamos nisso quando estamos a trabalhar, a comer, a conversar. Depois sonhamos com isso. — Sorriu e agarrou no sabonete. — Sabes como é sensual ter alguém a lavar-nos o corpo com as mãos ensaboadas?

— Deixa isso para mais tarde, cowboy. Estou completamente derreada. Hank sorriu e ensaboou na mesma as mãos. Um beijo era suficiente para incendiá-la. Inclinou-se para lhe agarrar num braço. Ela gritou e afastou-se dele. Pestanejou quando ele lhe passou com a mão sobre os mamilos rosados, sentindo-os a endurecerem e a ficarem salientes. Deus, como ele a amava. Ela respondeu-lhe prontamente, rendendo-se daquela forma tão doce da qual ele nunca se fartava.

No momento em que se pôs a brincar com os seus mamilos, esfregando-os e beliscando-os até ficarem inchados, ela gemeu e inclinou a cabeça para trás. O seu corpo esguio tinha contornos perfeitos e a sua pele de alabastro um toque acetinado que o fascinava. Ele queria-a com uma necessidade insaciável que não conseguia de maneira nenhuma satisfazer por mais que a possuísse.

Mais tarde, Hank não seria capaz de explicar como é que tudo tinha acontecido, mas o certo é que acabou por se meter debaixo do duche com ela, completamente vestido, de botas e tudo.

Foi o melhor sexo que teve alguma vez na vida.

— Não podemos comprar um berço de oitocentos dólares — protestou Carly três horas mais tarde.

Hank fez sinal ao empregado do piso.

— Vamos levá-lo — disse.

— Hank! — Carly agarrou-lhe na manga da camisa. — É muito caro.

— Pode transformar-se numa cama de criança — argumentou ele. — Duas pelo preço de uma.

— Duas pelo preço de três, queres tu dizer. Podíamos comprar uma coisa mais barata.

— Onde, no Goodwill?

Carly desistiu e deixou que ele fizesse as coisas à sua maneira. E, para espanto seu, assim foi. Compraram lençóis, protecções laterais, baby-grows unissexo, cobertores e pantufinhas. No final das compras, Hank gastara quase quatro mil dólares e eram os donos orgulhosos de uma cama de grades em carvalho, um berço de fabrico artesanal, uma mesa de banho, uma cómoda de bebé, uma cadeira alta de alimentação, um parque, uma cadeira de balouço, uma cadeira para o carro, três mobiles, vários brinquedos e mais roupa e cobertores do que o bebé iria provavelmente precisar.

A caminho de casa, ele sorriu-lhe e disse:

— Quando souberes se é um rapaz ou uma rapariga, compramos mais roupa.

Carly suspirou.

— Estou contente por termos decidido dar o nosso melhor para sempre. Pagar-te tudo iria prolongar-se até ao próximo milénio.

Ele baixou as sobrancelhas e olhou para ela com uma expressão carrancuda.

— Será que estás a pensar desistir de pagares o que me deves?

Ele era sempre tão generoso que Carly nem queria acreditar no que estava a ouvir.

— O acordo financeiro mantém-se de pé — disse ele firmemente. — Vais ter de me pagar. — Os cantos da sua boca torceram-se. Olhou para ela de forma malevolente. — Pela parte que me toca, bem podes começar já a pagar a dívida... a partir desta noite.

Ela deu uma gargalhada sonora.

— As tuas botas ainda nem sequer estão secas e já estás a pensar na próxima vez.

— Pois é. Alinhas?

Ela estava sempre pronta. A coisa mais maravilhosa era que o sexo não era apenas sexo. Era uma relação de amor doce e bela.

Na manhã seguinte, Hank estava na loja da esquina quando viu uma revista sobre bebés no expositor. Pegou nela e começou a folheá-la. Quando se deparou com várias fotografias de bebés, indagou se Carly vira alguma vez um. Todos os miúdos que tinham estado com eles no churrasco de quatro de Julho eram mais velhos. Se vira um bebé, devia ter sido ao longe, o que significava que não podia ter registado na sua memória.

O pensamento de ela poder vir a dar à luz sem fazer a menor ideia de como era um bebé incomodou Hank. Depois de deixar a loja, em vez de se dirigir para casa, foi até Crystal Falls para dar uma vista de olhos na livraria à procura de publicações sobre bebés. Queria que a sua mulher visse todo o tipo de bebés: os gordos, os magros, os de caracóis e os de ar engraçado, com o cabelo todo espetado. Dessa maneira, quando o seu filho nascesse, seria capaz de lhe dizer como é que ele era.

Hank saiu da loja com os braços carregados de livros. Encontrara até um com imagens de fetos nas várias fases de gravidez. Quando mostrou os livros a Carly, uma hora depois, ela começou a chorar.

— Oh, Hank.

— O que foi? — Inclinou-se sobre o sítio onde ela estava sentada à mesa. — Querida, não te queria pôr triste.

— Não estou triste — balbuciou ela. — Estou feliz. Ele não tinha tanta certeza.

Limpando as lágrimas enquanto dava uma vista de olhos pelos livros, Carly apontou para uma revista cheia de imagens de bebés.

— Oh, não são tão queridos? — Riu-se profusamente. — Olha para ele. Não é a coisinha mais fofa que alguma vez viste?

Hank sentou-se ao lado dela para ver os livros. Ficaram com um ar solene enquanto viam com atenção as imagens de ultra-sons de fetos em diferentes fases de desenvolvimento.

— É o nosso — murmurou ela, tocando numa fotografia com o dedo. — E, no mês seguinte, ele terá este aspecto.

— Ele? — Hank inclinou-se para lhe roubar um beijo rápido. — Quero uma rapariga parecida contigo.

— É pena. Quero um rapaz parecido contigo.

— Temos um pequeno problema então — disse ele, com uma severidade simulada. — E há só uma maneira de resolvê-lo, ter dois filhos, um para mim e outro para ti.

Ela sorriu sonhadora e voltou a olhar para os bebés.

— Da próxima vez, teremos de planear as coisas com bastante mais cuidado. O médico só me deixará engravidar nas vésperas de um transplante, quando as córneas estiverem já num estado bastante debilitado, de modo a que a lattice não lhes possa causar qualquer tipo de dano.

Hank não pensara nisso.

— Bem, então. — Pegou no queixo dela e obrigou-a a olhar para ele. — Não vamos pensar em mais bebés. Apenas um... ou adoptamos. Não quero que fiques cega durante nove meses só para termos outro filho.

— Quero que seja nosso.

— Uma criança adoptada será sempre nossa.

Os olhos dela estavam brilhantes de lágrimas. Era óbvio que ela queria retorquir, mas houve algo que a deteve.

Hank esperara sempre ter uma data de filhos — e gostaria naturalmente que fossem filhos biológicos, tanto quanto possível. Mas a que preço?

A visão de Carly piorou nas semanas seguintes e Hank alterou o seu horário de trabalho para a poder levar a passear durante o dia. Quando não estavam algures a passear, ele ajudava-a a organizar todos os armários. Café, terceiro armário, segunda prateleira, primeira lata à direita.

— Não me faz diferença nenhuma — assegurou-lhe ele. — Se for preciso, posso pôr uma etiqueta na parte de fora da prateleira para não me esquecer do sítio onde estão as coisas.

Carly sentia-se sensibilizada com os esforços de Hank. Levantou-se em bicos de pés para o abraçar no pescoço.

— Mais importante do que isso é não te esqueceres do sítio onde estou — disse ela suavemente. — Quero estar contigo o máximo que puder enquanto conseguir ver.

Ele beijou-a profundamente e, antes de Carly se dar conta, ela já estava nos seus braços, relegando os armários para segundo plano.

Depois de fazerem amor, Carly estirou-se languidamente e esgueirou-se da cama com intenção de ir tomar um duche. Dera apenas três passos quando os seus pés tocaram em algo que caiu de lado, e por pouco não se estatelava no chão. Hank pôs-se de pé num instante.

— Estás bem? — Agarrou-a pelo braço temendo que ela pudesse cair. — A minha bota, tropeçaste na minha bota. Desculpa, querida. Vou pô-las debaixo da cama a partir de agora.

— Estou bem, Hank. Foi apenas um ligeiro tropeção.

Mesmo querendo reconfortá-lo, Carly sabia que não estava bem. Não vira a bota. «Quando», indagou, «é que a sua vista piorara tanto?» Olhou para baixo, com a esperança de ainda ser capaz de ver as tábuas do chão. Em vez disso, parecia que um denso nevoeiro se juntara em torno dos seus tornozelos. Desviou o olhar para a parede do lado oposto do quarto, e reparou que também estava obscurecida pelo nevoeiro.

Hank tocou-lhe no ombro.

— Querida, o que se passa?

Carly pegou no roupão que estava aos pés da cama e vestiu-o.

— Nada. Estou bem. — O regresso da sua cegueira não devia tê-la surpreendido tanto. Não queria acreditar que tivesse chegado assim tão cedo. Sentiu um aperto na garganta. — Está na altura de passares a ter um cuidado louco com as arrumações — Forçou um sorriso. — Já não consigo ver o chão. — Riu-se e bateu com a mão. — Não sei como é que isto aconteceu sem eu dar por isso.

Ele olhou para baixo.

— Já não vês nada?

Ela abanou a cabeça. Depois, precisando de estar sozinha com a descoberta, durante alguns minutos, apressou-se a ir para a casa de banho.

A partir desse momento em diante, Hank passou a ter um cuidado louco com as arrumações, nunca atirando com as botas para o chão, nunca deslocando a mobília sem a voltar a pôr no lugar e certificando-se sempre de que deixava os armários tal e qual os tinham encontrado. Ocasionalmente, quando ele cometia alguns erros, Carly não conseguia dizer nada. Ele fora tão simpático e estava a esforçar-se tanto que ela não se podia queixar.

Alguns dias depois, Hank estava a mostrar-lhe uns cartões quando ela se apercebeu de que ele estava a aproximá-los muito mais dela do que das outras vezes.

— Há quanto tempo fazes isso? — perguntou ela suavemente. Ele não fingiu não saber o que ela queria dizer.

— Não tenho bem a certeza. Há já algum tempo. — Voltou a pôr os cartões na caixa. — Eu, hmm... — Aclarou a garganta e olhou-a directamente nos olhos. — De todas as vezes que nos servimos deles, tenho de os aproximar sempre mais.

Olhando para a cara dele, Carly apercebeu-se claramente de que as suas feições já não se apresentavam tão nítidas como dantes. Era como olhar para uma fotografia com os contornos indistintos.

Achara que se sentia preparada para isto, segura que poderia lidar com a situação quando ela ocorresse. Mas era muito mais difícil aceitá-la do que esperara. Agora sabia o que era ver. Acostumara-se a isso. E, dentro de pouco tempo, as persianas iriam fechar-se outra vez.

Nesse momento, Carly sabia que assim que deixasse de ver uma série de coisas, a única coisa de que sentiria realmente falta era do rosto de Hank.

— Estás bem? — perguntou ele. Ela acenou e sorriu.

— Estou bem. Não é nada de importante.

Só que era importante. Ela não queria ser cega outra vez. Apetecia-lhe fugir, só de pensar nisso, mas não podia escapar à escuridão.

Como que pressentindo o seu pânico, Hank distraiu-a, transportando-a até ao quarto e fazendo amor com ela. Depois disso, Carly deixou-se ficar saciada nos seus braços, amando-o como nunca o amara dantes.

Quando ele saiu, alguns minutos depois, foi até à janela e pôs-se a olhar para o rancho, tentando desesperadamente ver a paisagem. Só via uma mancha para onde quer que olhasse, mas a memória ajudou-a. Havia perigos por toda a parte — cavalos à solta, chão irregular, canais de irrigação, lagos e arame farpado. Podia fazer o caminho em segurança agora, se tivesse cuidado, mas sabia que não iria durar muito tempo.

Na manhã seguinte, Carly acordou às seis com uma forte dor nos olhos. De início, ainda tentou voltar a adormecer, mas o desconforto era de tal ordem que não foi capaz. Protegendo o rosto com uma mão para bloquear a luz, foi até ao armário dos medicamentos à procura das gotas, mas quando passou com os dedos pela prateleira, não conseguiu encontrar o frasco. Ela ou Hank tinham mudado obviamente o seu lugar.

Carly sentiu uma dor terrível nos olhos, enquanto tentava ler os rótulos nos recipientes que estavam no armário. Formas indistintas. Mal conseguia distinguir os recipientes, quanto mais as letras.

Derrotada, fechou a porta do armário e apoiou a fronte latejante no espelho frio. A dor era demasiado intensa para conseguir ignorá-la. Hank era capaz de não regressar a casa, antes da hora do almoço, e ela não podia esperar tanto tempo pelas gotas, pelo menos com os olhos a doerem-lhe daquela maneira.

Dirigiu-se à cozinha. Fechando os olhos, ligou o número do seu telemóvel. Nenhuma resposta. Ouviu a mensagem de voz. «Olá, daqui fala o Hank. Lamento, mas de momento não posso atender a sua chamada.»

Carly apercebeu-se de que ele deveria ter deixado o telemóvel na carrinha. Tentou ligar para a casa principal para perguntar a Molly se podia vir ajudá-la, mas ninguém respondeu. Lembrava-se vagamente de Jake e a mulher terem partido inesperadamente para Portland, na noite anterior, algo relacionado com um problema na empresa de investimentos agora gerida por Molly com uma diligência admirável.

«Não havia como contornar a questão», pensou Carly. Teria de se vestir e ir até ao estábulo. Hank teria de vir a casa para ver onde estavam as gotas.

A caminho do estábulo, alguns minutos mais tarde, Carly pôs um pé num buraco e desejou pela primeira na sua vida ter aprendido a usar uma bengala. Sempre conseguira safar-se bem na cidade sem ela. Infelizmente, as superfícies não eram tão regulares ou previsíveis ali. Vacilou, mas conseguiu recuperar o equilíbrio antes de cair.

O perigo iminente fê-la parar e olhar demoradamente em redor. Só enxergava numa bolha com cerca de um metro de diâmetro. Já não conseguia ver o chão. Se se desviasse do caminho de terra batida, deparar-se-ia com troncos e paus espalhados por todo o lado.

Olhando sempre em frente, deslocou-se com cuidado na direcção do estábulo, tacteando o chão à sua frente com a ponta dos pés à procura de obstáculos. Não havia problema. «Já andara de skate cega», lembrou-se. Podia certamente caminhar umas dezenas de metros sobre um terreno ligeiramente irregular sem se matar.

Enquanto continuava a andar, tentou ouvir os sons, mas só conseguia ouvir o murmúrio do vento nas árvores. Também contou os passos, esforçando-se por distinguir o contorno do estábulo à sua frente. Não ficou surpreendida quando não viu nada. Um metro de espaço livre não era grande coisa em termos de visão ao longe. Caminhando por instinto, prosseguiu, confiante de que estava a ir na direcção certa.

Ao fim de algum tempo, a confiança de Carly caiu abruptamente. Não se lembrava do estábulo ficar tão longe da casa.

— Hank? — chamou ela. Nenhuma resposta.

Começando a ficar assustada, desenhou um círculo lento, franzindo os olhos para tentar ver através do nevoeiro. A um metro de distância, em todas as direcções, o mundo não era mais do que uma névoa cinzenta. Durante a noite, a sua visão piorara bastante.

Calma. Tinha de manter a calma.

— Hank! — gritou ela, esperando que ele pudesse ouvi-la.

Ele não respondeu. Ela ficou quieta e pôs-se à escuta. Não ouviu qualquer som que lhe indicasse para que lado era o estábulo. Grande problema. Isso significava que ela se desviara algures e já não sabia muito bem onde estava.

Ficou paralisada no caminho e tentou lembrar-se exactamente quantos passos dera. Houve uma altura em que nunca dava um passo sem automaticamente iniciar uma contagem. Como é que em tão pouco tempo passara a depender tanto dos seus olhos a ponto de já não ter necessidade de fazer uma coisa dessas?

Muito bem. Respirar fundo. Manter a calma. Não podia ter andado assim tanto. Tinha de ficar num espaço aberto onde as pessoas que estivessem cá fora a trabalhar a pudessem ver. O mais aconselhável era manter-se quieta e gritar. Mais cedo ou mais tarde, alguém a ouviria, e iria sair daquela situação.

— Hank! — gritou ela. — Hank!

Carly perdeu rapidamente a noção de quantas vezes gritara o nome do marido. Nada. Começou a sentir a garganta arranhada de tanto gritar. Doíam-lhe os olhos. Precisava das gotas. Passou com uma mão a tremer pelo rosto, indagando há quanto tempo estaria ali. Uma hora, duas? Precisava de algo para a dor que tinha nos olhos, naquele instante. Lutara toda a vida para ser auto-suficiente. Agora, num abrir e fechar de olhos, tornara-se numa pessoa dependente, indefesa, alguém que não conseguia fazer as coisas mais básicas sem ajuda. A continuar assim, Hank detestaria estar casada com ela dentro de um mês e ela também se detestaria a si própria.

À sua esquerda, ouviu um cavalo a relinchar. Sentiu alguma esperança. Esperou um pouco mais e foi recompensada pelo som de um casco a bater no metal. O estábulo. Virou-se nessa direcção e, cautelosamente, avançou de novo, vendo bem onde punha os pés para não tropeçar ou cair.

— Hank! — gritou ela de novo. — Hank! Estás aí?

Depois de ter dado cinquenta passos, parou. Demasiado longe. Tinha o coração aos pulos. O corpo coberto de suor. Ouviu o cavalo outra vez. Não tardou a dissipar-se. Corrigiu a sua direcção e avançou, caminhando mais lentamente agora, com os seus movimentos denotando alguma insegurança. Será que havia arame farpado à sua frente? Com medo de bater em alguma coisa, começou a tactear o ar à sua frente, tal como estava a fazer com os pés.

— Hank! Responde-me! — gritou ela. — Hank!

Avançou de novo para a frente, e não encontrou nada. Sentiu-se a cair e começou a gritar. O grito foi curto. A água gelada envolveu-a. O choque fê-la abrir a boca enquanto se afundava e a água entrava até ao nariz, pela traqueia abaixo. «Meu Deus.» Entrou em pânico e voltou à superfície, asfixiada. O lago. Era o seu pior pesadelo, uma página do passado. A rapariga cega que ninguém queria, lutando desesperadamente para não se afogar.

Tinha de nadar até à margem, mas perdera todo o sentido de orientação. As suas roupas ensopadas pesavam-lhe. Nadou em pânico para se manter à superfície, primeiro numa direcção, depois noutra. Onde ficava a maldita margem?

Lembrava-se de Hank ter dito que o lago tinha três metros de profundidade junto à margem e seis no centro. Nadou numa direcção, depois noutra, afastando a água com as mãos, na esperança de se agarrar a algo sólido. O terror invadiu-lhe o coração. Água, aquilo que mais temia.

«Tinha de manter a cabeça fora de água», pensou. Pensar. Acabara de cair no lago. Se se pusesse a nadar num círculo cada vez maior, encontraria, de certeza, a margem. Não podia estar assim tão longe de terra firme. Nadando à cão, foi-se deslocando do sítio, rezando para que estivesse realmente a nadar em círculos. Na água, ficava desorientada quando não conseguia ver. Diminuía a sua capacidade de ouvir, fazia-a sentir-se sem peso.

Círculos... círculos. Não tardou a ficar exausta. Tinha as roupas coladas aos braços e às pernas, o que a fazia sentir-se pesada. Iria afogar-se, de certeza.

— Hank! — gritou ela. A água entrou-lhe na boca, por pouco não a estrangulando. Depois de tossir para desanuviar a traqueia, chamou outra vez pelo seu nome, esperando e rezando para que ele a ouvisse. — Hank!

Pouco a pouco, foi-se apercebendo de que se estava a afundar. A linha de água chegou-lhe à boca. Fez um esforço para manter o queixo fora de água, mas ela nunca fora uma grande nadadora e a exaustão estava a tomar conta dos seus movimentos.

Deixou-se arrastar para o fundo. A cabeça começou a latejar-lhe com a falta de ar. Tentou voltar à superfície, lutando por respirar. «Meu Deus... meu Deus». Mais uma vez, afundou-se. Sentiu uma dor lancinante na traqueia, um ardor horrível elevando-se da garganta até ao nariz.

Afogar-se. Ela estiva a afogar-se.


Capítulo Vinte

Hank fechou a torneira e coçou a cabeça. Olhando para Shorty, sentado num banco de ordenha no exterior do estábulo, perguntou:

— Ouviste alguma coisa?

O vaqueiro, de sessenta e cinco anos, olhou por cima do freio que estava a consertar e pôs uma mão atrás da orelha.

— O que é que disseste?

Hank caminhou até à zona central.

— Pensei ter ouvido alguém a gritar.

— É natural. Temos cerca de vinte homens a trabalhar aqui.

Hank tinha uma sensação estranha. Dirigiu-se até à porta aberta. Nada, nem sequer um empregado. Mesmo assim, sentia-se inquieto. Olhando de novo para Shorty, disse:

— Vou até casa para ver se a Carly está bem.

— Até mais logo então — disse Shorty com um sorriso desdentado. Hank fungou de nojo e partiu na direcção de casa. Quando chegou,

estava a sorrir. «Talvez», pensou lascivamente, «não voltasse ao estábulo essa tarde». Shorty que calasse o bico, porque era isso mesmo que ia fazer.

— Carly? — chamou ele assim que entrou. — Eh, querida. Estás acordada?

Cobriu a distância que o separava do quarto em quatro longas passadas e espreitou pela porta. Nada de Carly. Foi até à casa de banho. Também não estava lá. Estranho. Normalmente ela não se aventurava a sair de casa sozinha a não ser para ir ao estábulo.

Voltou para o alpendre.

— Carly! Estás cá fora, querida? Nenhuma resposta.

Deixou-se ficar ali por um momento, observando o espaço em redor com uma preocupação crescente. «Merda.» Se ela tivesse saído dali, será que conseguiria ver o suficiente para encontrar o caminho de casa? Esfregou a nuca, esquadrinhando a paisagem.

E depois viu — algo branco no lago. Apanhou um susto de morte. Saltou do alpendre e desatou a correr pelo trilho. «Valha-me Deus.» Algo branco — no lago. «Não. Por favor, Deus, não.»

As suas botas ecoavam de cada vez que pisavam o solo, fazendo com que o seu corpo estremecesse todo. Enquanto corria, Hank mantinha o olhar fixo no ponto branco na água e sabia, muito antes de chegar à margem, que era a sua mulher, flutuando de cara para baixo, com os braços esguios afastados do corpo.

Não parou para tirar as botas ou o chapéu, mal atingiu a margem. Mergulhou na água, ficando logo a meio caminho do sítio onde ela se encontrava sem ter dado uma braçada.

— Carly! — gritou ele, enquanto cobria a distância remanescente. — Valha-me Deus!

Segurou-a nos braços. Não se mexia. Quando a virou viu que os seus lábios estavam roxos e o rosto adquirira um horrível tom de azul. Desesperado, nadou até à costa transportando-a num braço.

Uma vez na margem, começou a tentar salvá-la, fazendo-lhe pressão sobre o peito, respirando para a sua boca, e rezando precipitadamente. «Por favor, Deus, por favor, Deus, por favor, Deus.» Pareceu-lhe uma eternidade. Morta. Ela tentara dizer-lhe. Meu Deus. Ela tentara fazê-lo compreender que 0 sítio era muito perigoso para ela.

Hank gemeu e agarrou-a pelos ombros.

— Respira! — Colocou-a numa posição sentada, gritando pelo seu nome. «Por favor, Deus.» Ele não podia viver sem ela. — Respira, Carly. Não te atrevas a morrer! Respira, gaita.

Voltou a baixar-lhe o corpo para lhe fazer novamente a respiração boca a boca. Depois apalpou-lhe o coração. Nada. Não olhara para o relógio. Não sabia há quanto tempo estava a tentar ressuscitá-la. Um minuto, dez? Não interessava. Não podia parar.

Parar significava o inimaginável — que ela tinha partido.

De repente, o corpo dela projectou-se para a frente e uma grande golfada de água saiu-lhe pela boca. Hank recuou, esperando vê-la a abrir os olhos subitamente e começar a respirar, como acontece sempre com as vítimas de afogamento nos filmes. Em vez disso, manteve-se imóvel com um ar de morta. Estava prestes a reiniciar todo o processo quando a água voltou a sair-lhe dos lábios.

Depois, ela engasgou-se e começou a tentar respirar, com os pulmões a fazerem um barulho horrível. Hank virou-a de lado.

— Graças a Deus. Graças a Deus. Shorty apareceu ao lado de Hank.

— Vai buscar a minha carrinha! Tenho de levá-la ao hospital. Depressa, Shorty!

Enquanto o velhote desaparecia a correr, Carly levou os joelhos ao peito. Com um braço agarrado à cintura, tossiu libertando mais água. Depois começou a respirar mais facilmente. Hank afastou-lhe o cabelo molhado com as mãos a tremer.

— Meu Deus, Carly. Meu Deus. Ela mexeu-se para olhar para ele.

— Hank? — grasnou ela.

Ele aproximou-se, tocando-lhe no rosto gentil, que parecia finalmente ganhar alguma cor. Ainda tinha os lábios azuis, mas enquanto a observava, viu o seu rosto a ficar mais rosado.

— Não tentes falar, querida. Vou levar-te ao hospital. Vais ficar bem. Ela fechou os olhos.

— O meu bebé. Oh, Hank, o meu bebé. Até então, Hank não pensara no bebé.

— Vai ficar bem — disse ele. — O bebé vai ficar bem.

Mesmo enquanto proferia estas palavras, Hank interrogava-se se o bebé estaria morto. Não fazia a mínima ideia do que um afogamento poderia provocar num feto de três meses.

— A sua mulher e o bebé estão bem — disse um médico do serviço de urgência a Hank, cerca de uma hora depois. — Os pulmões de Carly estão limpos. Ela está lúcida. E o coração do bebé bate bem.

— Graças a Deus — murmurou Mary Coulter.

Hank tinha uma vaga ideia da presença dos pais. Toda os membros da família, excepto Jake e Molly, que estavam fora da cidade, tinham-se precipitado para o hospital para estar com ele, e esperavam ansiosos por uma palavra acerca da situação da sua mulher e do bebé.

— Graças a Deus — repetiu Hank. Deixou-se cair na cadeira da sala de espera, com as pernas subitamente tão fracas que já não se aguentava de pé. Inclinou-se para a frente, apoiando a cabeça na parte inferior das mãos. — Graças a Deus — murmurou ele arrastadamente. — Tudo por minha culpa, tudo por minha culpa. — Apercebeu-se de que estava a falar para si próprio e olhou para cima. — Obrigada, doutor.

O médico, um homem baixo e forte vestido com um casaco branco, umas calças de fato de treino e uns sapatos de golfe, bateu no ombro de Hank.

— Estão ambos em condições de ir para casa, Mister Coulter, e pode dar graças a Deus e a si por isso, não a mim. Foi você que fez o que precisava de ser feito.

— É verdade — confirmou o pai de Hank. — Manteve a cabeça fria e salvou-lhe a vida.

Hank não via as coisas desse modo. Se não fosse a sua estupidez, Carly nunca teria caído no lago para começar.

Quando Carly emergiu da sala de urgências, sorriu-lhe palidamente. Ainda tinha as roupas ligeiramente humedecidas e o cabelo caía-lhe sobre os ombros de uma forma estranha, formando uns cachos que lhe faziam lembrar mel derramado, mas o certo é que nunca vira ninguém tão belo.

— Olá — disse ele, erguendo-se com alguma dificuldade.

Ela foi direita aos seus braços. Hank abraçou-a e deixou-se ficar com o rosto enterrado nos cabelos dela. Sentia um arrepio de pânico a percorrer-lhe a coluna de todas as vezes que se recordava do aspecto dela quando a tirara da água. Morta. Ele estivera tão perto de a perder.

Hank estava contente por ter a família ao pé de si. Correram todos a abraçá-la e a dizer-lhe como estavam contentes por vê-la sã e salva. Tal deu-lhe uma oportunidade para se desviar, recompor-se um pouco e colocar um sorriso na cara. Ela parecera-lhe tão frágil quando a abraçara.

A caminho de casa, Hank não conseguia parar de pensar no aspecto dela, do seu corpo inerte, do seu rosto tão azul. A culpa provocou-lhe um aperto no peito, dificultando-lhe a respiração.

— Vou dar uma volta às coisas. Não te preocupes. Vou pôr umas vedações e umas coisas do género. Nunca mais te irás sentir perdida lá fora.

Ela limitou-se a acenar sem dizer nada.

Quando regressaram ao rancho, Hank viu-se na necessidade de reservar algum tempo só para ele. Depois de lhe ter dado roupas secas e ajudado a deitar-se, saiu da casa de madeira e foi até ao estábulo onde se sentou num fardo de palha e se pôs a pensar como estivera prestes a perdê-la. Jake apareceu e sentou-se ao lado dele.

— A culpa não foi tua, Hank. Pára de te lamuriares.

— A culpa foi minha. Ela tentou alertar-me para o facto de ter necessidades especiais. Fiquei convencido de que podia tratar de tudo e tomar conta dela. Agora temo que possa vir a negligenciar outra coisa qualquer, que ela se magoe e a perca para sempre.

— Já falaste com ela acerca disso?

— Não — disse Hank sem grande convicção. — Mas vou falar. Quando Hank regressou a casa, pensou que Carly estava a dormir. Não estava. Ela ouviu-o a sentar-se na sala de estar. Ao fim de alguns minutos de silêncio, deu-se conta de um soluço quebrado, muito masculino — o som tão suave que parecia que tinha imaginado. Depois ouviu-o a murmurar, «Meu Deus, meu Deus. Não fazia a mínima ideia. A mínima ideia. E se eu não conseguir fazer isto?»

Carly aninhou-se de lado. Lágrimas quentes cobriram-lhe os olhos. Fartara-se de dizer a Hank que ele não sabia o que era ter de viver com ela. Agora a realidade alertara-o para o facto.

Ele foi ter com ela mais tarde. Depois de a envolver com os braços, prometeu-lhe uma série de vezes que iria tornar o rancho mais seguro.

— Vou começar a tratar disso amanhã de manhã, e não vou descansar enquanto não estiver tudo pronto, juro.

Apesar de todas as palavras de conforto, não conseguiu fazer a única coisa que poderia ter apaziguado o coração dorido de Carly. Fazer amor com ela. Quando ela tentou encorajá-lo, ele pegou-lhe na mão e levou-a até aos lábios.

— Esta noite não, querida. Desculpa. Não... posso.

Era a primeira vez, desde a noite no lago, que ele se afastava dela. Carly aninhou-se de lado, sentido o coração a desfazer-se em mil bocados.

Cumprindo com o prometido, Hank estava já na The Works, a loja que fornecia o rancho Coulter, quando Zeke abriu as portas, na manhã seguinte.

— Eh, maninho — disse Zeke com um sorriso. — Por aqui tão cedo?

— Preciso de arame e de postes — disse-lhe Hank. — Uma grande quantidade. A Carly está cheia de medo. E tem razões para isso. Tenho de tornar as coisas seguras para ela, Zeke.

— A sua visão está assim tão má? Hank acenou afirmativamente.

— Parece piorar a cada dia que passa. Ainda consegue ver ao perto, mas penso que até isso irá desaparecer.

Quando Hank regressou ao rancho, uma hora depois, Levi foi ter com ele ao estábulo. O homem idoso coçou a cabeça e transferiu o peso dos pés, claramente sem saber o que dizer. Quando finalmente conseguiu recuperar a voz, Hank não queria acreditar no que estava a ouvir.

— A Carly foi-se embora — disse Levi sem rodeios. — Com uma amiga. Bess, creio eu. Parece-me que levou a maior parte das coisas com ela.

Hank precipitou-se para a casa de madeira. Por mais irracional que fosse o seu pensamento, esperava ver Carly à mesa da cozinha, devorando a sua cura habitual para os enjoos matinais. Ela não estava lá. Enquanto fechava a porta, sentiu-se invadido por um estranho sentimento de vazio. A casa nunca parecera assim quando ela estava lá.

Não querendo acreditar nas palavras de Levi acerca do facto de Carly o ter deixado, foi verificar todos os cantos à casa. Um olhar para o armário da frente foi suficiente para confirmar que as suas roupas já não estavam lá. No quarto das traseiras, viu que a maior parte da roupa e cobertores do bebé tinha sido tirada da cómoda.

De volta à cozinha, viu uma carta em cima da mesa. Sentindo-se sem forças e estranhamente abstraído, sentou-se numa cadeira e começou a lê-la. As linhas não estavam muito direitas, mas a escrita era legível.

Querido Hank: É difícil para mim escrever, por isso não me vou alongar muito. Eu preciso de viver na cidade onde há passeios, passagens de peões e transportes públicos. Tu precisas de viver onde estás, perto da tua terra, trabalhando com os teus cavalos. Lembrar-me-ei sempre de ti aqui, no teu elemento, o meu belo príncipe com umas botas de montar e um chapéu rebaixado para lhe proteger os olhos. Por uns tempos, tornaste todos os meus sonhos realidade. Infelizmente, estavas apenas sob empréstimo. Fica a saber que, durante algum tempo, fui mais feliz do que alguma vez pensei que podia ser, e isso irá perdurar nas minhas memórias para sempre. Tentara desenhar um «sorri sempre», um pouco torto, com um olho fora do círculo. Entrarei em contacto. Com o tempo, quando já estivermos um pouco mais distanciados disto tudo, talvez possamos vir a ser bons amigos. Era uma coisa que devíamos tentar fazer, pelo nosso filho.

Terminou com um floreado. Sempre tua, Carly.

Hank atirou a carta para cima da mesa e deixou-se ficar ali sentado, a olhar para o vazio por entre as lágrimas. Partido. Ela tinha partido. Por mais que tentasse, não conseguia perceber o que se passava. Pior ainda, não conseguia antever um futuro sem ela.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Bess atendeu o telefone ao quarto toque.

— Estou?

Hank engoliu em seco para poder firmar a voz.

— Olá, Bess. Sou eu, o Hank. Longo silêncio. Depois ela respondeu:

— Olá, Hank. Que surpresa. Ele sorriu tristemente.

— Sei que vieste buscá-la, Bess. Ela disse-mo na carta.

— Muito bem. Já sabes. Fim de conversa. Hank afundou-se numa cadeira.

— Tens de me dizer onde ela está.

— Não — respondeu ela. — Não tenho de te dizer isso. Ele suspirou e fechou os olhos.

— Vejamos as coisas doutro modo. Irei encontrá-la mais cedo ou mais tarde. Podias ser amiga. Poupavas-me uma série de chatices e dinheiro.

— Não posso. Prometi-lhe. Traí-a uma vez. Não vou voltar a fazer o mesmo. Penso que ela tem razão desta vez.

— Como é que podes dizer isso? Eu amo-a, bolas, e ela ama-me. Pertencemos um ao outro. Convém que te recordes que ela está grávida do meu filho.

— Acalma-te, Hank.

— Não me quero acalmar. A minha mulher deixou-me! Foi ter com o pai, não foi?

Silêncio.

— Tomo isso como um sim. — Hank apertou com mais força o telefone. — Bolas, Bess. Não entres nestes jogos. Ela vai ser feliz longe de mim? É uma pergunta que devias fazer a ti própria.

— Não, ela não vai ser mais feliz — admitiu Bess —, mas, pelo menos, estará mais segura, e tu também. Por vezes, tens de amar alguém o suficiente para te afastares. Não farias o que fosse necessário para evitar que ela renegasse tudo o que lhe interessa?

— Ela é tudo o que me interessa, Bess. Ela não me salvou, ela destruiu-me.

— Sabes o que quero dizer. Estamos a falar de milhares, talvez mais de cem mil dólares para tornar esse lugar seguro para ela. Como é que vais poder fazer isso?

Hank riu-se com azedume.

— Oh, vá lá. Não vai custar assim tanto.

— Queres apostar? Não te bastará colocar umas estacas e esticar uma meia dúzia de fios. Terás de pavimentar os caminhos e ladeá-los por vedações de metal. Convinha haver sistemas de intercomunicação em todo o lado para que ela possa ligar para o estábulo, para a casa de madeira, ou para a casa principal em caso de emergência. E precisas de delimitar os pastos com vedações de alta segurança, não com arame farpado. Podia continuar indefinidamente e são só algumas melhorias. Ela também irá necessitar de balaustradas em todos os alpendres, e o interior da casa terá de ser remodelado em função dela. Cem mil dólares não é muito. Poderá custar muito mais do que isso,

Hank não se apercebera da quantidade de coisas que teriam de ser feitas.

— Tratarei disso.

— Como? Diz-me como e talvez te dê a morada do pai dela.

Bingo. Hank relaxou na cadeira. Agora que sabia onde Carly estava, podia certamente trazê-la para casa.

— Obrigado, Bess.

— Do quê?

— Por me teres dito onde ela estava.

— Merda.

Ele riu-se sem grande humor.

— Queres poupar-me o trabalho de ter de ir à procura do número de telefone e morada?

— Não. Oh, está bem. Mas estou a avisar-te, Hank. Ela não vai regressar contigo. A não ser que faças milagres. Por pouco que ela e o bebé não morreram.

— Não vai acontecer outra vez. Isso é garantido. Ela quer milagres, eu faço milagres, eu amo-a, ponto final. Ela pertence aqui comigo.

— Então fala com alguns peritos.

— Peritos?

— Sim, profissionais, pessoas que poderão dar uma vista de olhos pelo rancho, pela casa e por todos os edifícios exteriores, para depois desenharem uns planos de acordo com as suas necessidades.

— Isso irá custar uma fortuna.

— Precisamente.

— Está bem. Peritos. Posso tratar disso.

Bess deu-lhe relutantemente a morada e o número de telefone do pai de Carly.

— Não vás ter com ela até teres a certeza, a certeza absoluta de que podes tratar de tudo. Promete-me. Ela já está magoada e tu também. Se a levares para casa e as coisas não funcionarem, só estarás a prolongar o inevitável.

Hank vira Ryan e Bethany fazerem com que o seu casamento funcionasse. Tinham tudo contra eles, mas haviam conseguido lutar contra a adversidade e arranjar uma solução funcional, uma vida adequada aos dois. O amor e a determinação para ultrapassarem todos os obstáculos haviam sido suficientes para levaram a sua avante.

Hank amava Carly e estava muitíssimo determinado.

Bethany e Ryan estavam a jantar quando Hank apareceu à porta e entrou. Bethany esboçou um sorriso quando o viu.

— Olá, grandalhão. Como está a Carly hoje?

Hank começou a responder, mas o seu sobrinho interrompeu-o.

— Tio Hank! — Sly deu uma gargalhada enquanto se contorcia para tentar sair da cadeira alta. — Tio Hank!

Forçando um sorriso, Hank circundou a mesa para abraçar a criança.

— Olá, miúdo. — Fingiu furtar alguma comida. — Nham! Feijão-verde. Era óbvio que Sly não partilhava o mesmo sentimento. Apressou-se a meter uma mão-cheia de feijões na boca de Hank. Bethany riu-se enquanto se dirigia para a cozinha de cadeira de rodas para ir buscar mais um prato.

— Senta-te! — ordenou ela por cima do ombro. Ryan levantou-se para apertar a mão a Hank.

— O que te traz por cá?

— Tenho um problema que preciso de discutir contigo — respondeu Hank.

A irmã regressou à mesa, arranjou mais um lugar e depois bateu com a mão no assento de uma cadeira.

— Os problemas são sempre mais fáceis de resolver quando estamos todos juntos à mesa. Senta-te, meu calmeirão.

Hank aceitou o convite.

— Não estou com muita fome. — Ele não sabia se iria voltar a ter fome. — A Carly deixou-me.

Bethany ficou paralisada.

— Oh, não — murmurou ela.

— Lamento ouvir isso — condoeu-se Ryan.

Tanto Ryan como Bethany pararam de comer enquanto Hank os informava acerca da fuga de Carly, nessa manhã. A expressão de Bethany denotava alguma compreensão.

— Deve ter sido muito assustador para ela, Hank — disse ela suavemente. — A Carly quase que ia morrendo naquele lago e é um milagre não ter perdido o bebé.

Hank acenou afirmativamente, sentindo a garganta tão apertada que mal conseguia falar.

— Preciso de fazer uma série de alterações no Lazy J, arranjar tudo para que ela não volte a correr outra vez perigo. Só que não sei por onde começar.

Bethany foi até à cozinha para ir buscar uma garrafa de vinho e três copos. De regresso à mesa, disse:

— Irá ser extremamente caro, especialmente se contratares os tais peritos para desenharem os planos. Tenho alguns amigos cegos que conheci na universidade. Poderei encetar algumas diligências. Mas é natural que te proponham uma lista de melhoramentos de todo o tamanho. É o que acontece sempre.

Hank esfregou a nuca para aliviar a tensão.

— Não estou preocupado com os custos. Possuo metade do Lazy}. Pedirei dinheiro emprestado em função do meu valor patrimonial.

Ryan pegou no vinho que Bethany lhe tinha servido. Recostando-se na cadeira, bebeu um gole e disse:

— Isso não vai ser necessário. Eu concedo-te um empréstimo.

Hank sabia que Ryan tinha montes de dinheiro, mas ia contra a sua maneira de ser aproveitar-se do dinheiro da família.

— Não posso aceitar o teu dinheiro, Ryan. Preciso de fazer isto sozinho.

— Tretas, — Ryan colocou o copo na mesa com um som decisivo, — Sei que precisas de dinheiro. E a verdade é que a Carly não será a única a beneficiar com as mudanças. A Bethany tem tido algumas dificuldades em deslocar-se. Ela preocupa-se com o facto de poder ficar presa algures se se afastar muito da casa.

— Lá isso é verdade — insistiu Bethany. — No quatro de Julho tive medo de levar o Sly até ao riacho para brincar, por causa do estado empapado do terreno. O Ryan teve de ir com ele. Iria visitá-los mais vezes se houvesse um caminho para a minha cadeira de rodas.

Hank abanou a cabeça.

— Vim para obter informações e conselhos, não dinheiro.

— Sim, bem, o que queres obter e o que tens são duas coisas diferentes — disse Ryan. — Não faz grande sentido económico pedir dinheiro emprestado, dando o rancho como garantia, para já não falar do facto de colocares a tua fonte de rendimento em risco, tendo eu imenso dinheiro disponível. Ficaria extremamente chateado se fosses por esse caminho. Como é que podes recusar uma possibilidade de poderes pagar quando quiseres, um empréstimo sem juros?

Hank franziu uma sobrancelha.

— Sem juros? Quem é que não tem sentido de negócio? Ryan piscou o olho à mulher.

— Aquilo que pretendo em troca é ter um rancho em condições para que a minha mulher possa circular à vontade sem ter de enfiar uma roda num buraco onde cabe um Volkswagen.

Hank riu-se contra a vontade.

— Que buraco? Perdão. Estás a falar da herança da família Coulter.

— Exactamente. — Ryan inclinou a cabeça para Bethany. — Ela é uma Coulter por sangue. Se existe alguém com direito a circular por todo o rancho é ela. Vai em frente, Hank. Transforma o rancho num sonho tornado realidade para as senhoras deficientes. A minha recompensa será ver a cadeira de rodas da tua irmã por todo o lado com os nossos filhos, mostrando-lhes as coisas que ela costumava fazer quando era pequena.

— Ámen — disse Bethany.

— Tens um filho. — Hank apontou para Sly, que estava a devorar o puré de batata sem recorrer a qualquer utensílio. — Porque é que estás a falar no plural?

Bethany corou e olhou de relance para Ryan.

— Estás grávida? — Hank riu-se com incredulidade. — Ena! Isso é fabuloso, Bethie. Estou muito contente por vocês.

O rubor aprofundou-se.

— Ainda não temos a certeza. Talvez. — Ela olhou para Ryan de novo.

— Provavelmente. Estou atrasada.

— Muito atrasada. — Ryan sorriu, com os seus olhos azuis cintilantes transbordando de afecto enquanto olhava para a mulher. — Ela tem andado tão atarefada este Verão, com a academia de equitação para crianças deficientes, que negligenciou o mais importante, como dar-me a conhecer que iria ser pai de novo.

Bethany franziu o nariz.

— Não estou a negligenciar nada. Só que ainda não tive tempo para fazer um teste, muito obrigada. Posso estar, posso não estar. — Olhou para o marido com paixão. — Se não estiver, irei continuar a tentar.

— Estou muito contente — disse Hank. — Parabéns.

— Quanto a aceitares esse empréstimo... — Bethany olhou para Hank de uma forma acusadora que dizia, «Deves-me esta». — O Ryan tem uma quantidade obscena de dinheiro. Se pedires um empréstimo dando esta terra como garantia, e puseres a herança da minha família em risco, nunca te perdoarei.

Hank não conseguiu falar durante algum tempo — nem sequer conseguia pensar no que dizer. Só sabia que era o homem mais feliz à face de terra por ter uma família tão maravilhosa.

— Aceito — disse ele com uma voz rouca. — Obrigado, Ryan. Poderia levar um mês para conseguir um empréstimo bancário. Sendo assim, poderei começar já com as obras.

— E trazer a tua mulher de volta aonde pertence, o mais rápido possível

— insistiu Bethany com um sorriso de felicidade.

— Mal posso esperar — disse Hank de forma ténue. — Prometi à sua amiga Bess que esperaria até ter o trabalho todo feito, mas não será fácil.

Ryan levantou-se da cadeira e foi buscar o telefone portátil.

— Bethany, vê lá se descobres esses tais contactos para o Hank — ordenou ele enquanto marcava um número. Logo a seguir, disse, «Olá, Rip. Daqui fala Ryan Hendrick. Que tal vão as coisas este Verão? Tens alguma equipa disponível?» Ouviu durante algum tempo. Depois levantou um polegar na direcção de Hank e disse, «Óptimo. O meu cunhado precisa de fazer umas obras aqui, com alguma urgência, um grande projecto semelhante àquele que fizeste para mim no Rocking J.» O sorriso de Ryan alargou-se. «Duas equipas? Eh, amigo, isso seria fantástico. Ele vai precisar de alguns dias para elaborar os planos. Se conseguires mandá-las no início da próxima semana, seria muito bom.» Ryan fez uma pausa. «Acertaste. Hank Coulter. É proprietário do Lazy J., a leste da cidade.» Indicou o número de telemóvel de Hank. «Está bem assim. Ele fica à espera do vosso contacto. Obrigado, amigo.»

Depois de ter desligado, Ryan sorriu.

— Meio caminho andado. O Tanner é excelente. Tem sempre tudo muito bem organizado e costuma contratar os melhores homens que há por aí. As coisas têm andado um pouco paradas este Verão e tem duas equipas disponíveis. Pode enviá-las na próxima segunda-feira, prontos para começarem a trabalhar.

Hank vira a qualidade do trabalho de Tanner no Rocking K. Tanto quanto se lembrava, a empresa de construção também finalizara o projecto num tempo recorde.

— Isso é óptimo. Obrigado, Ryan.

Pela primeira vez, desde que entrara na casa de madeira e vira que Carly tinha desaparecido, Hank foi capaz de relaxar. Tinha o dinheiro para melhorar o rancho e a amortização do empréstimo não o deixaria com a corda na garganta. Também tinha duas equipas prontas para avançarem com o trabalho. Bethany entraria em contacto com os outros especialistas para planearem o projecto.

Se tudo corresse bem, Carly poderia estar de regresso ao Lazy J dentro de algumas semanas.


Capítulo Vinte e Um

Art Adams deixou-se ficar junto à entrada do sombrio quarto de hóspedes, olhando com um ar solene para a filha, que acabara finalmente por adormecer esparramada na cama de casal. No calor do Verão, seria preciso gastar uma fortuna para manter os quartos confortáveis com a ajuda do ar condicionado, pelo que mantinha o termostato nos oitenta. Como tal, Carly estava apenas coberta com um lençol, com o osso ilíaco e a extremidade do ombro claramente visíveis através do tecido leve.

Desde que aparecera à sua porta, há umas três semanas, que ela não fazia outra coisa senão perder tempo com diligências que não levavam a lado nenhum, forçando-o a passar horas na Internet para tentar ajudá-la a encontrar um emprego de professora, quer no Arizona quer no Oregon. Quando viu que isso não conduzia a nada, instigou-o a ler a secção de Emprego dos anúncios classificados, todas as noites, com os olhos postos no vazio, o rosto tenso. Não havia empregos nas redondezas para ela. Todas as noites, quanto abria o jornal, Art rezava para que desse de caras com alguma coisa. Até um cargo de solicitador por telefone ter-lhe-ia dado algum alento, mas, até agora, não haviam encontrado nada. Sem um computador especialmente equipado, Carly não podia sequer escrever uma carta de apresentação.

Doía-lhe ver a filha, que sempre se orgulhara de ser auto-suficiente, a ficar de mãos atadas. Qualquer outra mulher que estivesse à procura de emprego poderia servir à mesa, tomar conta de crianças ou servir hambúrgueres para obter algum rendimento. Nenhuma destas opções estava acessível a uma mulher cega.

Entretanto, Carly perdera imenso peso. Era como ver alguém a definhar. A cada dia que passava, o seu espírito destemido ia ficando cada vez mais enfraquecido e o seu rosto mais pálido e apático. Agora, passava a maior parte do tempo em que estava acordada sentada à janela, ouvindo canções country-western na rádio, enquanto olhava cegamente para o deserto, com os seus olhos outrora tão expressivos completamente vazios, à excepção de um horrível desalento que Art não conseguia dissipar.

Vendo-a sofrer desta maneira, Art começara a odiar Hank Coulter com uma virulência assustadora. A sua filha tinha o coração destroçado e o homem por quem ela sofria não se dava sequer ao trabalho de pegar num telefone e falar com ela. Nunca na sua vida Art se sentira tão frustrado, zangado ou terrivelmente impotente.

Ao longo dos últimos dias, tentara distanciar-se e recuperar o equilíbrio emocional, mas era impossível. Como é que um pai se podia afastar da sua única filha? A alegria dela era a sua alegria. A dor dela era a sua dor. Neste preciso momento, o mundo dela estava a desfazer-se, por isso o seu também estava desfeito.

O telefone tocou nesse momento, fazendo com que Art descesse à terra. Com um último olhar para a sua menina, fechou cuidadosamente a porta e encaminhou-se para a sala de estar para atender o portátil.

— Estou?

— Mister Adams? — disse uma profunda voz masculina. — Daqui fala Hank Coulter, o marido de Carly.

Por breves momentos, Art ficou tão espantado que não conseguiu pensar no que dizer. Depois a raiva emergiu do seu corpo, de uma forma tão repentina e dolorosa que começou a tremer. Durante dias, fantasiara acercado que iria dizer a esta amostra inútil de ser humano na primeira oportunidade. Dirigiu-se para o quarto, onde poderia expor tudo o que lhe ia na mente sem acordar Carly.

Assim que a porta se fechou atrás dele, Art disse numa voz vários decibéis acima do normal:

— Seu inútil e desgraçado filho da mãe\ — Não era exactamente aquilo que ele planeara dizer, mas bastava, para começar. Indagou se Coulter teria desligado, e esperava que o tivesse feito. Carly estaria melhor sem ele na sua vida. — Ainda está aí?

Seguiu-se outro breve silêncio. Depois Coulter aclarou a garganta e disse:

— Sim, sir, ainda estou aqui.

O «sir» apanhou Art totalmente de surpresa, fazendo com que se interrogasse, durante uns breves instantes, se julgara mal o homem. Nãa. A resposta educada não passava indubitavelmente de fogo-de-vista. Bem, Art não se deixava enganar assim tão facilmente. As acções de Coulter falavam por si e não eram as de um homem que amava a sua mulher.

— Como é que se atreve a ligar para esta casa depois de três semanas de silêncio? — gritou Art. — Se pensa que o vou deixar falar com a minha filha, está muito enganado. Engravidou-a, tirou-lhe a visão, atrasou-lhe os estudos e, por fim, destroçou-lhe o coração. Acho que já provocou danos suficientes.

Art esperava que Coulter o desancasse e desligasse — ou pedisse para falar com Carly. Em vez disso, manteve-se em silêncio durante um tempo considerável. A sua voz tornara-se áspera devido àquilo que só podia ser interpretado como um sinal de arrependimento quando finalmente respondeu:

— Tem toda a razão. Sou culpado de tudo, menos da última coisa.

— Está a falar a sério? — perguntou Art com incredulidade. — A minha filha está emocionalmente devastada. Se você não é o responsável por isso, então quem é?

— As circunstâncias.

— As circunstâncias?

— Sim, sir, e tenho estado a trabalhar para tentar remediar os problemas desde que ela me deixou. Agora que tenho tudo pronto, gostaria de falar consigo acerca da forma como deverei prosseguir, dentro do possível, com a sua bênção.

— Prosseguir? Com a minha filha, é o que está a querer dizer? Pense melhor.

— Não o culpo por temer pela vida dela, Mister Adams. Portei-me muito mal. Admito.

De novo, Art ficou surpreendido. Uma admissão de culpa não era o que ele estava à espera.

Coulter respirou de forma trémula, depois apressou-se a acrescentar:

— Para minha própria defesa, devo lembrá-lo que nunca convivi de perto com uma pessoa cega. Sabia que a visão de Carly estava a diminuir, mas não fazia a mínima ideia que corria qualquer perigo físico. Falámos acerca da hipótese de introduzir algumas melhorias no rancho. Pensei que pudéssemos esperar até ao próximo Verão, quando ela fizesse a segunda cirurgia. O incidente no lago fez-me alertar para os perigos que a rodeavam e juro que mal consegui dormir depois disso, tentando compor tudo.

Art ainda não estava a conseguir acompanhá-lo, mas antes de poder exigir uma clarificação, Coulter prosseguiu:

— Ela estará absolutamente segura comigo agora. Eu sei que deve estar a pensar que era impossível transformar um rancho inteiro em apenas três semanas, mas garanto-lhe que foi isso que aconteceu. Mandei vir uns profissionais para elaborar os planos e contratei duas equipas a tempo inteiro para tratarem de tudo.

Art levantou uma mão, depois apercebeu-se de que Coulter não o podia ver.

— Que história é essa do incidente no lago?

— Nunca mais voltará a acontecer — assegurou-lhe Coulter. — Sei que ela ficou aterrorizada como isso. Por pouco que não ia morrendo. Eu também teria ficado aterrorizado. Construí caminhos com guardas de segurança por todo o rancho e coloquei intercomunicadores em todos os cruzamentos para que ela possa pedir ajuda se ficar desorientada. O pessoal dos Serviços de Apoio para Cegos e Deficientes Visuais também deu uma ajuda. Além de terem reorganizado toda a casa, mandaram fazer umas placas de metal com inscrições em Braille, que colocaram em todos os postos com intercomunicadores, para que Carly possa saber sempre onde está. Também arranjei um pager para pôr no cinto e estar sempre contactável, onde quer que esteja. O ecrã digital diz-me o ponto exacto onde ela está, sempre que me procurar.

A raiva esvaiu-se por completo de Art, que se afundou na cama como um balão de hélio a esvaziar-se lentamente.

— A minha filha caiu num lago? — Não era propriamente uma pergunta. De repente, todas as peças começavam a encaixar-se.

— Ela não lhe contou? — Coulter parecia tão espantado como Art. — Que razão deu para me deixar, então?

Durante vinte e um dias miseráveis, o ódio de Art por este homem atingira proporções gigantescas. Seria necessário um reordenamento dos seus pensamentos para aceitar que fora a sua filha a abandonar o marido, e não o contrário.

— Ela não me deu propriamente uma razão — admitiu Art. — Parti do princípio que a tinha levado a dar um passeio e a largara assim que ficou farto.

— Assim que fiquei farto?

Pela primeira vez, em três longas semanas, Art viu-se a sorrir. Este jovem amava claramente a sua filha e Art apercebia-se agora de que se tinha excedido ao dizer aquelas coisas no início da conversa. Ia pedir desculpas, mas, depois, pensou melhor, optando por descobrir, de uma vez por todas, que tipo de pessoa era Hank.

Pondo um tom melancólico na sua voz, Art disse:

— Falar é fácil. A minha filha está aqui há três semanas e só agora é que você pegou no telefone para falar com ela. Isso diz-me tudo o que eu preciso de saber, ou seja, que ela está melhor longe de si.

— Esperei para lhe ligar até ter tudo pronto — protestou Coulter. — Foi por isso que ela me deixou, não por causa de qualquer coisa que tivesse dito ou feito, mas por causa de todos os perigos que existiam aqui no rancho. Ela meteu na cabeça que eu ficaria financeiramente de rastos se fizesse todas as melhorias necessárias, que ficaria melhor sem ela na minha vida. Errado. Para a ter ao pé de mim, diria adeus a este rancho num abrir e fechar de olhos.

Carly receara sempre que a sua cegueira constituísse um fardo para as pessoas que ela amava. O sorriso de Art aprofundou-se.

— Essa é a sua história — disse ele, procurando injectar um pouco de descrença na voz de forma a espicaçar Coulter.

— É a verdade. Amo essa rapariga do fundo do meu coração. Art recebeu isso com algum sarcasmo.

— Você tem uma forma estranha de demonstrar o seu amor. Graças a si, a minha filha parece um esqueleto andante. Perdeu tanto peso que até estou assustado.

— Meu Deus — murmurou Coulter, arrastando a voz. Art continuou de forma incisiva.

— Estou bastante preocupado, não só com a sua saúde, mas também com a do bebé. — Isso era absolutamente verdade. — De repente, sem mais nem quê, você liga para aqui procurando restabelecer a comunicação? Não me parece.

Ouviu o som de algo a bater do outro lado da linha. Quando Coulter voltou a falar, a voz de Hank tremia de raiva.

— Está bem. Compreendo a sua posição. Agora tente compreender a minha. Com todo o respeito, sir, é da minha mulher que está a falar. Vou buscá-la amanhã. Se tenciona impedir-me, é melhor ficar no alpendre com uma arma carregada e preparar-se para usá-la.

— Chamar a Polícia seria uma solução mais simples.

— Faça o que entender. Uma noite na prisão não me vai fazer mal. Compreenda uma coisa, amo a sua filha, e ela ama-me. Qualquer que seja o número de noites que passe na prisão, mais cedo ou mais tarde, irei trazê-la para casa aonde ela pertence. Quando esse dia chegar, não seria mais conveniente para si estar de boas relações com o genro?

Art admirou a coragem deste jovem. A força emanava dele, mesmo ao telefone, e não era pessoa para se deixar enganar. Era exactamente aquilo que Carly precisava num marido, alguém que ficasse do lado dela...

— Muito bem observado.

— Espero ter a sua bênção antes de... — Coulter interrompeu a frase, com um silêncio inquiridor. — Desculpe?

— Disse que era muito bem observado. Desejaria estar de boas relações com o marido da minha filha e pai do meu neto. A que horas tenciona vir amanhã?

— Pouco antes do meio-dia — respondeu Coulter, num tom cauteloso e hesitante. — Eu, hmm... perdi alguma coisa?

Art desatou finalmente a rir.

— Não, filho. Acho que seria mais correcto dizer que negligenciei algumas coisas. Quando Carly chegou aqui, há três semanas, com os olhos vermelhos de tanto chorar, não consegui pôr de lado a minha raiva. Dentro em breve, compreenderá o que eu quero dizer. Não pensei; apenas reagi. A minha menina estava magoada e, na minha mente, você era o responsável.

— E ela não o informou correctamente? Art riu-se outra vez.

— Não. De cada vez que lhe perguntava o que tinha acontecido, a sua resposta era sempre, «Não resultou». Como era mais do que óbvio que ela ainda o amava, tirei as conclusões erradas. Em resumo, devo-lhe uma desculpa pelas coisas que disse no início da nossa conversa.

— Não é necessário desculpar-se. Basta saber que não disparará sobre mim quando eu tocar à campainha. Amo-a, Mister Adams. Só quero construir uma vida com ela e fazê-la feliz.

Art já tinha deduzido isso.

— Levaria a mal um conselho bem-intencionado de um homem mais velho?

— Não, sir, estou sempre aberto a bons conselhos.

Art deslocou-se na cama para se encostar à cabeceira.

— Espero que esteja confortável. Tenho uma longa história para lhe contar acerca da minha filha.

Na manhã seguinte, às onze e quarenta em ponto, Ryan Kendrick parou o SUV alugado diante da casa prefabricada de Art Adams. Hank olhou para a casa através da janela do banco de trás, observando a parte lateral em alumínio verde, o rebordo branco e as duas janelas destacadas que rodeavam o alpendre coberto. Casas para reformados típicas do Arizona, com o pátio decorado com cactos, outras plantas resistentes e rochas ornamentais. Uma manga de vento às riscas, atada a um poste do alpendre, flutuava na brisa errante. Vasos de flores coloridos decoravam a balaustrada.

— Então? — Ryan virou-se para olhar para Hank. — Vais ficar o dia todo aí sentado, a pensar no assunto, ou entrar dentro de casa para a ires buscar?

Hank respirou fundo para se encher de coragem.

— Estou tão nervoso que nem consigo mexer um dedo. Acham que devia falar com ela primeiro? Ou arrastá-la logo cá para fora?

Bethany virou-se no assento.

— Hank, por amor de Deus. Ela não vai aceitar nada, antes de ver as melhorias que introduziste no rancho. Podes dizer tudo o que quiseres, prometer-lhe a lua, que ela não vai acreditar que vocês os dois possam viver juntos. Tens de ser tu a mostrar-lhe primeiro.

Com os olhos azuis a cintilarem de riso, Ryan encolheu os ombros e ergueu as mãos.

— Ela é que é a perita, não eu. É uma coisa de mulheres.

— Não é uma coisa de mulheres — retorquiu Bethany. — Os homens incapacitados sentem exactamente o mesmo. Andar com uma pessoa saudável já é assustador. Quando essa pessoa vive a quilómetros de distância da cidade num rancho, as perspectivas são ainda mais aterradoras.

— Deve ser o pai dela — disse Ryan, apontando com a cabeça para a casa.

Hank virou-se e viu um homem frágil de ombros curvados de pé junto à porta de tela. Parecia muito mais velho do que Hank imaginara. A maior parte das pessoas da idade de Carly tinha pais com quarenta e tal anos, ou pouco mais de cinquenta.

— Ele está a acenar para entrares — disse Bethany, esboçando um grande sorriso na direcção de Hank. — Um amigo do lado do inimigo! Vai, Hank. A Carly poderá revelar algum enervamento de início, mas, quando acalmar, pensará que é extremamente romântico.

Hank não estava muito seguro disso. Carly era do tipo teimosamente independente. Não era pessoa para gostar de ser retirada à força de casa do pai. O suor escorria-lhe pelas costas no momento que abriu a porta de trás.

— Vamos a isto. — Depois de se endireitar, encostou-se ao veículo e disse: — Prepara-te para arrancar, Rank. Se as coisas ficarem feias, quero estar a meio caminho do aeroporto antes de os vizinhos terem tempo de chamar a Polícia.

Ryan brindou-o com uma expressão zombeteira.

— Tudo a postos. Já fui algemado e encarcerado uma vez. — Olhou para Bethany com um ar brincalhão. — Não quero repetir a experiência.

A irmã de Hank deu um murro no ombro do marido, na brincadeira.

— Nunca me vais perdoar por isso, pois não?

— É verdade. Foi tudo por tua...

Hank bateu a porta e já não ouviu o resto da resposta de Ryan. Ouvir os risinhos abafados de Bethany através do vidro da janela foi suficiente para ajudar a acalmar todas as suas inquietações. Ninguém podia negar que ela e Ryan formavam um casal perfeito, ou que a sua relação era paradisíaca. Contra todos os ventos e marés, e apesar de Bethany ter ficado paraplégica, tinham construído uma vida fabulosa em conjunto.

Se eles tinham conseguido, Hank e Carly também podiam conseguir.

Hank fez-se ao caminho, esmagando com as suas botas as pedras brancas que cobriam a areia seca do deserto. Art Adams segurou a porta de tela com uma mão e cumprimentou Hank com um aceno no momento em que este subia os degraus.

— Quem é, pai? — perguntou uma voz feminina do interior.

Hank inclinou a cabeça para Art, atravessou o alpendre e entrou dentro de casa, com as suas botas a ecoarem com alguma sonoridade sobre um pequeno quadrado de mármore que revestia a entrada, ladeado de três lados por uma alcatifa cor de marfim. Hank entrou na sala de estar e na sala de jantar adjacente que dava para uma cozinha nas traseiras. O lugar estava arrumado, modestamente mobilado e tinha aquele odor a acrílico característico das casas novas com bancadas moldadas e revestidas.

Assim que Hank se deu conta do cheiro, logo outro se apoderou dele: o aroma inesquecível e inconfundível que passara a associar apenas a Carly, uma mistura leve mas intensa de pó talco e rosas. Como que atraído por um íman, o seu olhar dirigiu-se para o sítio onde ela estava sentada, numa cadeira de balouço junto à janela destacada da sala de estar. A luz do Sol entrava obliquamente através do vidro, iluminando a nuvem de cabelo loiro encaracolado que lhe caía sobre os ombros e delineava a magreza do seu rosto pequeno e atormentado.

Hank sentiu uma dor tão forte no peito que parecia que tinha levado um coice. O ar precipitou-se dos seus pulmões. Os joelhos quase que se vergavam. «Deus meu.» Umas olheiras escuras de cansaço circundavam agora os grandes olhos azuis de Carly. As concavidades outrora delicadas que se destacavam por baixo das suas maçãs do rosto eram agora proeminentes e cavadas, contribuindo para o seu ar esquelético. Art alertara-o para que o aguardava, mas Hank não estava preparado para isto.

Deu três passos hesitantes na sua direcção. Ela levantou a cabeça para ouvir, com uma expressão de espanto crescente. O seu olhar incidiu directamente sobre ele. Ele continuava à espera de algum sinal de reconhecimento, que não surgiu, até se aperceber de que ela não o conseguia ver — nem sequer uma silhueta enevoada. Nas últimas três semanas, ficara quase totalmente cega.

— Hank? — murmurou ela com uma certa incredulidade. Pousando as mãos nos braços da cadeira de balouço, ele inclinou-se para poder ficar com o nariz suficientemente próximo para ela o reconhecer.

— Não. É o homem do serviço de entregas que veio buscar uma encomenda para levar para o Oregon.

— O que estás a...? — A sua pergunta foi interrompida por um arfar de susto no preciso momento em que ele a retirou da cadeira, segurando-lhe as costas com um braço e pondo o outro por baixo dos joelhos.

Hank pensou ter vislumbrado um brilho de alegria nos seus belos olhos azuis. Depois, com um pequeno bufar de ultraje, ela gritou:

— Põe-me no chão, imediatamente. O que julgas que estás a fazer?

— Vim buscar a minha mulher.

Hank ajustou-a nos braços para a segurar melhor, o que teve o efeito agradável de a obrigar a agarrar-se ao seu pescoço.

— Meu Deus, não me deixes cair!

Nem pensar. Um edredão pesava mais do que ela. Hank virou-se para sair de casa e ficou surpreendido ao ver Art junto à porta, com um braço esticado para manter a porta aberta e quatro sacos de plástico brancos nas mãos, cheios de coisas que pareciam ser roupas.

— Se me tiver esquecido de alguma coisa, envio pelo correio — disse a Hank. — Leve-a, que eu ajudo com os sacos.

— Pai? — A voz de Carly gritou de descrença. — Faz qualquer coisa!

— O quê? — perguntou Art.

— Detém-no!

Com uns olhos azuis idênticos aos de Carly, Art sorriu e piscou o olho a Hank.

— Ele é quarenta anos mais novo do que eu, querida. Não o posso deter. Hank pôs-se de lado para conseguir passar pela porta, com os pés balouçantes de Carly a atingirem a ombreira.

— A não ser que queiras que te atire para cima dos ombros como uma saca de cereais — avisou —, vais parar de espernear.

Ela ficou subitamente quieta nos seus braços. Depois ficou hirta.

— Não te atreverias.

— Não me provoques.

Hank apressou-se a sair do alpendre e a descer as escadas. Enquanto encurtava a distância que os separava do SUV, com passadas firmes e longas, Ryan saltou para fora do veículo, circundou-o e abriu a porta de trás.

— Olá, Carly. Ryan Kendrick. Prazer em ver-te de novo.

— Olá, Carly! — Bethany cumprimentou alegremente da parte da frente. — Estou aqui como co-piloto do Ryan. Viemos na velha geringonça dos Kendricks.

— É uma piada — apressou-se Hank a dizer. — É um avião muito bonito e confortável, e o Ryan é um piloto experimentado.

— É claro que é uma piada — retorquiu Bethany. — O Ryan nunca transportaria a sua mulher grávida em algo que não fosse um avião de confiança. — Bethany piscou o olho, levou a mão aos lábios e disse: — Ups. Era para contar mais tarde. — Esboçou um sorriso. — Estamos as duas grávidas, Carly. Não é giro?

Carly não pareceu registar nada do que Bethany disse. Contorceu-se nos braços de Hank, procurando cegamente pelo pai.

— Não vou contigo, Hank — insistiu aflita. — Pai? Tens de fazer alguma coisa. Não podes deixar que ele me leve!

Art abriu o porta-bagagem para colocar as coisas de Carly.

— Posso e é o que farei — disse bruscamente. — O lugar de uma mulher é ao pé do marido. Volta para o Oregon, querida. Constrói a tua vida, cria o teu filho lindo e manda-me montes de fotografias. Eu tenho setenta e três anos e estou reformado, lembra-te. Criei-te. Quero gozar a minha vida, daqui em diante. Quem faz a cama, nela se deita, como diz o velho ditado. Não me peças para dormir contigo.

Hank sentiu Carly a recuar perante as palavras e soube que a tinham atingido em cheio. Depositou-a gentilmente no assento de trás, esperando que ela se precipitasse para a porta do lado oposto assim que ele a largasse. Em vez disso, deixou-se ficar sentada, com um olhar perdido de alguém abandonado e ferido. Hank sentiu o coração a apertar-se de uma forma dolorosa. A única pessoa com quem ela fora capaz de contar tinha-lhe acabado de tirar o tapeie e dado a entender que não a queria na sua vida.

Hank por pouco não fechava a porta do passageiro para dizer a Art que fora longe de mais. Mas não. Ninguém conhecia Carly melhor do que o pai e Hank tinha de confiar naquilo que Art estava a fazer. Ao cortar os laços familiares, punha Carly à deriva, deixando Hank como a sua única âncora. Por muito que isso pudesse ferir Carly agora, era capaz de ser o melhor para ela. Desta forma, ela seria forçada a depender de Hank e, no processo, aprenderia a contar com o seu amor.

No momento em que Hank se virava para apertar a mão ao sogro, não pôde deixar de ficar admirado com o ponto a que haviam chegado, desde o início da conversa telefónica que haviam tido na noite anterior. Por outro lado, talvez não fosse assim tão estranho. Ambos adoravam a mesma mulher. Os olhos de Art encheram-se de lágrimas e a sua boca tremia quando agarrou na mão de Hank.

— Toma conta dela — murmurou ele.

Normalmente, Hank limitava-se a dar a outro homem um aperto de mão firme para depressa o desfazer. Desta vez, manteve o contacto por mais tempo, tentando transmitir sem palavras como amava profundamente a filha de Art e que o pedido era totalmente desnecessário. Ainda assim, com Art a tentar evitar as lágrimas, um simples aperto de mão não parecia ser suficiente.

«Que se lixe», pensou Hank, colocando o braço esquerdo em torno dos ombros finos de Art para lhe dar um abraço.

— Vou fazê-la feliz — murmurou ele. — Tem a minha palavra.

Com o seu corpo delgado a tremer, Art devolveu efusivamente o abraço de Hank e bateu-lhe com força nas costas.

— Estou confiante disso, rapaz. Se não estivesse, estarias metido numa grande alhada ao levá-la daqui.

— Poderá telefonar quando quiser. Temos um plano de tarifas empresarial, e não terei qualquer problema em cobrir os custos das chamadas pagas no destinatário. Ela irá precisar de falar consigo regularmente.

Enquanto se afastavam, Art acenou e murmurou:

— Vou aguardar uns dias, para lhe dar tempo a instalar-se. — Engoliu em seco e limpou as lágrimas que lhe tinham escorrido pelo rosto envelhecido. — Tira o máximo proveito. Não poderei deixar as coisas assim por muito tempo.

Hank acenou e virou-se para entrar dentro do SUV. Com as mãos depositadas frouxamente no colo e os ombros descaídos, Carly olhou para a frente no momento em que ele se sentou ao lado dela. O seu rosto pálido tinha ficado absolutamente sem expressão. Ele pensou em dar-lhe espaço, durante algum tempo, mas depois lembrou-se da história que Art lhe contara na noite anterior e achou que seria o pior erro que poderia cometer. Em vez disso, envolveu-a com um braço, puxou-a para o pé de si, e não resistiu a pressionar a sua cara contra a dela.

— Amo-te, Carly Jane — murmurou ele com uma voz rouca. — Sempre te amei. Não te podes alhear disso. Não te podes afastar. É melhor parares de tentar.

Os ombros dolorosamente finos de Carly estremeceram no momento em que ele lhe pôs a mão em cima do braço.

Bethany virou-se e esticou-se para dar uma palmadinha no joelho de Carly.

— Estou tão contente por voltar a ver-te, Carly. Sei que tu e o Hank têm umas contas a ajustar e precisam de falar. Só quero dizer que tens todo o apoio da nossa família. — Colocou alguns papéis dobrados nas mãos frouxas de Carly. — São cartas do Jake, do Zeke e dos gémeos. Todos se ofereceram para fazer de motorista um dia por semana, e levar-te à cidade sempre que for preciso alguma coisa se o Hank não estiver disponível. Não é bom? Assim não terás de te preocupar com a possibilidade de ficares abandonada. Além disso, a mãe e o pai ofereceram-se para ficar com o bebé. Se fores trabalhar e o Hank estiver ocupado no rancho, não haverá problemas nesse aspecto.

Carly sorriu debilmente, mas não disse nada. Bethany olhou com um ar preocupado para Hank. Ele ergueu as sobrancelhas, esperando que a sua irmã se apercebesse da dica e fechasse a boca para ele poder trocar algumas impressões com Carly. Bethany calou-se e virou-se para a frente outra vez. Não havia muita privacidade, mas, por agora, era o melhor que Hank podia arranjar.

Passou ligeiramente com a mão pela manga de Carly. Ela tinha a mesma camisa branca que usara naquela noite maravilhosa no lago Lemolo, antes de terem feito amor pela primeira vez.

Respirou fundo e começou o seu discurso, que ensaiara umas boas centenas de vezes para que saísse tudo bem.

— Agora que sei o estado lamentável em que se encontrava a tua visão no dia em que caíste ao lago — começou —, compreendo perfeitamente o medo que podes sentir num lugar como o Lazy J. Quero que saibas que não estou zangado por me teres deixado. Nunca estive. — Voltou a respirar fundo. — O que lá vai, lá vai. As condições do rancho já não são um problema. É totalmente seguro para ti agora. Não vou entrar em pormenores. Tu própria irás ver as melhorias daqui a nada.

— Não — disse ela, com algum nervosismo. — Não vou ver as melhorias. Já estou praticamente cega de novo, Hank. A palavra ver já não faz parte do meu vocabulário.

Era o mesmo que estar a dizer a Hank que se tinha concentrado na sua visão deteriorada e não estava interessada em saber como conseguira arranjar dinheiro para fazer as melhorias. Era essa, afinal de contas, a razão pela qual ela o tinha deixado em primeiro lugar, a sua grande preocupação em relação ao facto de ele se vir a encher de dívidas. Art tinha razão. Não tinha tanto a ver com a capacidade deles para ultrapassarem os obstáculos, mas com o receio de Carly de que ele viesse a sair da relação assim que passasse o momento de excitação.

O facto de ela não saber quanto ele a amava fê-lo querer introduzir alguma razoabilidade no seu raciocínio. Ele não era nenhum adolescente imberbe, com as hormonas aos saltos, completamente superficial e sem qualquer tipo de dignidade nas suas intenções. Ele era um homem adulto que sabia o que estava a fazer. Quando entregou o coração a esta mulher, era para sempre.

Mas isso era uma discussão para mais tarde, algo que teriam de fazer quando estivessem a sós. Por enquanto, podia apenas dizer que a amava e assegurar-lhe de que não assumira um enorme risco financeiro para fazer as melhorias necessárias no Lazy J. Como tal, resolveu explicar-lhe o que tinha acontecido, contando como Ryan lhe concedera um empréstimo sem juros, que poderiam pagar em qualquer altura.

— O que quer que faças, não digas obrigada — interveio Bethany. — A verdade é que o Ryan apoiou o projecto também para meu benefício. — A irmã de Hank começou a descrever-lhe como se sentira sempre tão presa no Lazy J. — É maravilhoso agora, Carly! Há caminhos de cimento por todo o lado. Ontem levei o Sly até ao riacho sozinha. A água dá pela altura do tornozelo, na maior parte dos sítios, um lugar perfeitamente seguro para ele brincar, mas, dantes, a minha cadeira ficava sempre atolada no terreno pantanoso. Agora posso rodar sem problemas e mantê-lo debaixo de olho enquanto caça salamandras.

Carly esboçou um sorriso frágil.

— Óptimo, Bethany.

Ouvindo a reacção artificial de Carly, Hank não pôde deixar de indagar quanto tempo demoraria até ela baixar a guarda e começar a sentir-se feliz.

O voo de regresso ao Oregon, no avião da família Kendrick, pareceu interminavelmente longo a Hank, apesar de terem aterrado na pista do Rocking J menos de quatro horas depois. Sentia os nervos à flor da pele quando Carly e os seus pertences foram transferidos do avião para a carrinha. A tensão aumentou ainda mais durante a viagem de quarenta minutos até ao Lazy J. Depois de estacionar a carrinha perto da casa principal, Hank tirou as chaves da ignição, colocou-as na mão e olhou tristemente em redor do rancho. Para onde quer que olhasse, havia caminhos de cimento, ladeados de ambos os lados por guardas de metal. Não fora fácil planear o traçado para que as camionetas e o equipamento pesado pudessem passar através da vedação e chegar às vastas extensões de terreno que ficavam para além do riacho. Hank e Jake passaram horas a olhar para os papéis e a pedir mudanças para que o rancho fosse um lugar aprazível para as pessoas deficientes, mas mantendo toda a sua operacionalidade.

Ao longo das últimas três semanas, Hank imaginara este momento uma centena de vezes, o brilho de felicidade no rosto de Carly enquanto a levava a fazer uma visita. Agora, depois de ter falado com o pai dela acerca do seu passado, sabia que não iria fazer as coisas dessa maneira. Antes de Carly poder gozar a alegria, a verdadeira alegria, teria de revisitar uma das suas maiores mágoas e ele era o infeliz sacana que teria de forçá-la a fazer essa jornada final.

— Bem — começou —, estamos finalmente em casa. — Debruçou-se no interior da cabina para lhe tirar o cinto de segurança. — Anda ver.

— Não estou em condições de ver — lembrou-lhe glacialmente.

— Está bem — respondeu com uma paciência exagerada —, anda sentir. Os lábios dela esboçaram um sorriso amargo.

— Deves estar a gozar. Já sei o que a casa gasta. Não vou a lado nenhum deste rancho sozinha.

Ao fim de cinco horas a tentar extrair-lhe um sorriso dos lábios, a paciência de Hank atingira o limite. Achou que talvez fosse uma coisa boa. Se ele conseguisse irritar-se um pouco, talvez fosse mais fácil fazer o que tinha a fazer.

Pensou deliberadamente quão injusta ela estava a ser para ele. Isso aumentou-lhe a pressão sanguínea. Como é que ela se atrevia a compará-lo com um miúdo de dezoito anos? Dava para ficar realmente ofendido só de pensar na injustiça disso. Para piorar ainda mais as coisas, ela acreditava realmente que ele a tinha amado apenas enquanto fora divertido e que, no dia em que as coisas começassem a ficar mais pretas, iria dar à sola. O que fez com que a sua pressão sanguínea aumentasse ainda mais.

Ele podia fazer isto. Só precisava de se concentrar no seu lado da questão, para intensificar a sua raiva. Voltou a olhar para o rancho durante algum tempo, pensando na fortuna que gastara em todas as modificações. Ouvira alguma palavra de agradecimento? Não. Até agora ela nem sequer lhe fizera um elogio.

Abriu a porta e saiu, batendo-a com força suficiente para estremecer o vidro, e dirigiu-se para o lado dela do veículo com passos irados. Ela aninhara-se no seu canto, durante toda a viagem, por isso quase que caía da carrinha quando ele lhe abriu subitamente a porta. Ele impediu-a de cair, depois agarrou-a pela cintura e largou-a sem cerimónias no chão. Ela mostrou-se apreensiva quando ele recuou e fechou a porta com um pé.

— Queres discutir comigo, Carly Jane? — perguntou ele, com a voz uns tantos decibéis acima e um pouco mais irada do que aquilo que pretendia. — Porque se é isso que queres, aviso-te já. Trabalhei que me desunhei durante três semanas sem dormir quase nada, tentando fazer milagres. Gostaria de obter um pouco mais de colaboração e gratidão da tua parte.

— Não te pedi nada.

— Fi-lo na mesma. Prometeste-me. Dar o teu melhor. Foi esse o acordo. Não o renegues.

— Eu dei o meu melhor!

— Não deste. Fugiste à primeira contrariedade.

— Quase que ia morrendo.

— Mas não morreste. E agora que todos os problemas estão resolvidos, não vais ficar a cismar no que aconteceu.

Ela esticou o maxilar, levantou o queixo e pôs os braços na cintura.

— Paras de gritar?

— Não, não paro. Pelo menos até veres as coisas de forma racional.

— Tu é que estás a ser pouco racional. Queres que eu viva aqui e finja que tenho uma vida normal.

— Isso não é verdade!

— Pára de gritar! Não me vais intimidar. Não tenho medo de ti.

— Mentirosa. — Inclinou-se de modo a que os seus narizes ficassem a poucos centímetros um do outro, o que a fez recuar de um pulo. Apontando-lhe um dedo ao peito, disse: — Linguagem Corporal. Consegui muito boas notas. Os teus gritos, «Não me toques!» Bem, querida. Posso tocar-te sempre que quiser. És a minha mulher!

— Isso é uma situação que poderá ser facilmente alterada num tribunal sempre que eu quiser! — ripostou ela.

Hank ouviu a porta da frente da casa principal a abrir-se. Olhou em volta e viu o seu irmão Zeke a aparecer na varanda. Zeke olhou para o rosto de Hank e fechou a porta outra vez. Muito bem. Isto ia ficar pior antes de ficar melhor, possivelmente bem pior.

Hank voltou-se para a mulher.

— Vais divorciar-te de mim sobre o meu cadáver. Acorrento-te à cama antes de permitir que isso aconteça.

— Não me venhas com ameaças. Bastou uma vez. Nunca mais. Armas-te em duro, mas não passas de um grande urso de peluche quando se trata de levar as coisas a sério.

«Um grande urso de peluche?» Até ela dizer isso, Hank fingira que estava zangado. Agora estava realmente zangado. Já lhe haviam chamado todos os nomes feios, numa ou noutra ocasião. Mas urso de peluche? Isso era um ataque à sua virilidade.

Se ela quisesse que ele fosse duro, ele iria mostrar o que isso era. Baixou-se, segurou-a pela parte de trás dos joelhos e atirou-a para cima do ombro, tendo o cuidado de não a magoar. Ela gritou como um demónio, agarrando-se à parte de trás do cinto e fazendo força com os braços para se soltar.

— O que é que estás a fazer?

Hank não sabia bem o que estava a fazer, apenas que era bom fazer finalmente alguma coisa. Três longas semanas. Sentira tanto a falta dela que chorara como um bebé, vezes sem conta, aterrorizado com o pensamento de passar o resto da vida sem ela. Agora ela estava a actuar como se ele tivesse peçonha.

Ele sabia que ela o amava, bolas. Ela mostrara-lhe o seu amor de uma centena de modos diferentes. Ele vira isso nos seus olhos, sentira no seu toque. Uma mulher como Carly não se entregava inteiramente a um homem a não ser que o seu coração o ditasse. Ele nunca a beijaria sem a ver derretida nos seus braços, tão suave, doce e quente como um caramelo liquefeito.

Com esse pensamento em mente, Hank dirigiu-se para a casa de madeira. Se ela continuasse a ameaçá-lo com o divórcio, mesmo depois de ele a ter ajudado a ultrapassar todas as barreiras, ele não se chamava Hank Coulter.

— Põe-me no chão! — gritou ela.

— Desculpa. Isso não vai acontecer. Vou acorrentar-te à cama e fazer amor contigo uma dúzia de vezes até admitires que me amas.

— Oh, por amor de Deus. — Deixou cair os braços e ficou a balançar. — Isso é um absurdo, Hank. Não podes estar a falar a sério. O que queres provar com isso?

Boa pergunta. Em que é que ele estava a pensar? Fora um bocado longe. Fazer amor não fazia parte da sua estratégia. Pelo menos, por enquanto. A mulher fizera com que ele deixasse de pensar correctamente.

Hank virou à direita, o que a fez voltar a gritar alarmada.

— Para onde me estás a levar?

Ele não respondeu. Sem diminuir a passada, cobriu a distância até ao novo caminho que levava à casa de madeira. Uma vez junto à cerca, parou para a pôr no chão, abriu o portão e empurrou-a.

— Onde é que estou? — perguntou ela com uma voz fina, tacteando o ar com as suas mãos espalmadas. — Hank? — Sobreveio-lhe um ligeiro pânico sobreveio-lhe enquanto pronunciava o nome. — Não me deixes aqui!

Hank apoiou as mãos na parte de cima da cerca, endireitou os braços e baixou a cabeça, fazendo um esforço para pensar devidamente. Ele não podia ir. Ele amava-a demasiado para aceitar calmamente a sua indiferença, mesmo sabendo o que a tinha causado.

— Hank, por favor! — gritou ela, com o pânico a acentuar-se cada vez mais.

Ele levantou a cabeça para olhar para ela. Ela estava a reagir como ele esperara. Vendo bem as coisas, o seu plano estava a funcionar na perfeição.

Ela acreditava que ele estava zangado com ela. Ela estava cega e não fazia a mínima ideia do sítio onde estava, rodeada por armadilhas de morte. Ele viu-lhe o terror nos olhos, a apreensão em todas as linhas do corpo. Ela acreditava, honestamente, que ele pudesse virar as costas e deixá-la ali.

— Não te vou deixar, Carly — disse ele, com uma voz áspera. — Hoje, amanhã, nunca. Eu não sou o Michael.

Carly ficou apreensiva ao ouvir o nome. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e o seu rosto já de si pálido tornou-se ainda mais lívido.

— Quem é que te falou acerca do Michael?

— Imagina a minha surpresa quando descobri que eu não fui o primeiro príncipe que apareceu à tua frente e te fez ficar nas nuvens. Parece que omitiste alguns pormenores acerca da tua juventude. Houve um rapaz que olhou para ti duas vezes. Porque é que não me contaste nada?

Ela cerrou as mãos junto ao corpo.

— Não tinhas nada a ver com o assunto — disse ela ferozmente.

— Tretas! Se havia alguém interessado no assunto era eu. Quando o teu pai me contou a história, ontem à noite, fez-se luz no meu cérebro. O mistério em torno de Carly, subitamente, desapareceu. Isso explicava tudo, a tua timidez da primeira vez que nos encontrámos, a tua relutância em falar comigo depois disso, a tua recusa peremptória em aceitar a minha ajuda financeira, para já não falar em casar comigo. Eu era o príncipe número dois e, pior do que isso, um sacana de todo o tamanho que só te queria por causa do sexo.

— Pára!

Hank deu um passo atrás, depois debruçou-se sobre a cerca para se abeirar dela.

— Não posso parar, Carly. Há coisas que têm de ser ditas. Tens medo que eu me venha a transformar noutro Michael, desde que nos conhecemos. Ele fingiu amar-te, fingiu não querer saber que eras cega, e tu eras demasiado jovem e ingénua para te aperceberes de que ele tinha outro motivo em mente, nomeadamente o de saltar para cima das tuas cuecas. Não é verdade?

— Não vou discutir isto!

— Muito bem. Não discutas. Estou bem comigo próprio, graças ao teu pai.

Ela engoliu em seco e abanou a cabeça.

— Custa-me a acreditar que ele te tenha contado tudo isto.

— Porque é que não o haveria de fazer, quando te viu a desperdiçar uma hipótese de seres feliz? Dou graças a Deus por ele ter falado comigo. Pelo menos, agora, sei as linhas com que me coso. Não tem que ver com a introdução de melhorias no rancho para poderes ser independente. Tem que ver com o terror de precisares de alguém, ou acreditares em alguém. Durante algum tempo, puseste os teus medos de lado e atreveste-te a acreditar que eu te amava, realmente. Mas, depois, caíste no lago e tudo voltou à estaca zero. Era só uma questão de tempo, antes de perderes por completo a visão, e depois serias aquela pessoa que ninguém queria, para já não falar de uma grande dor para todos aqueles que gostavam de ti. Em vez de enfrentares a situação, fugiste, fazendo com que eu acreditasse que não querias destruir a minha vida. Era melhor teres-me largado primeiro. Não é verdade? Era melhor reduzires as tuas perdas e saíres com o teu orgulho intacto do que ficares comigo e magoares-te outra vez.

— Pára! — Virou-se para fugir dele e bateu na guarda. Usando-a para se orientar, percorreu o caminho que haviam feito, regressando à casa principal. Avançou vários metros até se abeirar de um posto com um intercomunicador. Quando a sua mão bateu na caixa de metal, parou para analisar a sua forma.

— O que é isto? — perguntou ela, com uma voz aflita. — Onde é que eu estou?

— Diz-me tu — desafiou-a.

Ela encontrou uma placa em Braille e passou com os dedos a tremer pelos caracteres em relevo.

— O estábulo? — Passou com o polegar pela seta que apontava o caminho. Depois encontrou as placas que conduziam até à casa de madeira e à casa principal.

— Oh, Hank — murmurou ela, com a sua voz grossa de dor.

— Directamente à tua esquerda há portões perpendiculares — explicou Hank com uma voz rouca. — Um deles conduz ao estábulo, o outro à casa principal. Abrem para os dois lados e fecham-se automaticamente. Saberás sempre quando chegares a um portão que te encontras numa bifurcação. Não é que devas estar muito interessada. Não me parece que querias alguma coisa do mundo que eu criei aqui para ti porque amares-me, confiares em mim e contares comigo é demasiado assustador.

Ela levou a mão à boca e deixou-se ficar onde estava, a tremer.

— Fiz tudo isto para poder viver contigo, Carly. Porque te amo e não consigo suportar ficar longe de ti.

Ela olhou para ele com um ar implorativo, uma dor enorme estampada nos seus olhos.

— Estou a ficar cega!

O coração de Hank abateu-se um pouco enquanto a observava. Olhos fixos, cabeça erguida. Ela tinha aperfeiçoado aquele papel durante toda a sua vida e era muito boa nisso. Ninguém podia adivinhar, só de olhar para ela, que não conseguia ver.

— Tu já estás cega — disse ele suavemente.

— Não completamente.

— Muito perto. Só consegues ver o meu rosto se estiver com o nariz colado ao teu. — Deu um passo. — Onde é que eu estou, Carly? — Deu outro passo. — Mesmo atrás de ti! É onde eu estou. Tu estás cega e eu ainda estou aqui. Habitua-te. Existem muitos Michaels no mundo, mas, bolas, eu não sou nenhum deles.

O seu rosto contorceu-se e um soluço arrastado desprendeu-se-lhe do peito.

— Lembra-te dele por aquilo que ele era! — gritou Hank. — Um idiota mimado e egoísta que não queria saber de ninguém. Pensou que serias uma presa fácil, que lhe irias dar sexo se ele te desse um pouco de atenção. Ele namorou contigo durante algumas semanas, ganhou a tua confiança. Depois, na noite da festa da fogueira junto ao lago, levou-te a dar um passeio na floresta, pediu mais do que apenas beijos e tu disseste-lhe que não.

— Oh, Hank, não. Já sabes a história. Porquê voltar a insistir nela?

— Estou a tentar chegar a algum lado.

— Que lado? — gritou. — Esclarece tudo de uma vez só.

— Eu não sou como o Michael.

— Eu sei isso.

— Sabes? Do meu ponto de vista, isso não é muito claro, Carly. Por isso, vamos rever a história, passo a passo, para estabelecer, de uma vez por todas, que eu não sou como ele. O sacana deixou-te sozinha, por amor de Deus, sem pensar no que te poderia acontecer.

— Não — murmurou ela.

Hank fora demasiado longe para poder recuar.

— Enquanto tentavas encontrar o caminho de regresso para a fogueira, esbarraste nas árvores, caíste sobre os troncos, tropeçaste nas rochas. O teu pai diz que não havia ponto nenhum do teu corpo que não tivesse nódoas negras e arranhões. E a coroa da glória foi teres caído no lago. Não é verdade?

Ela acenou afirmativamente, com os seus ombros a erguerem-se violentamente enquanto fazia um esforço para conter as lágrimas.

— É por isso que tens tanto medo da água, porque quase te afogaste nessa noite. Mais importante, é a razão pela qual tens medo de acreditar que eu te amo. Lá bem no fundo, onde a razão não impera, tens medo de que, mais cedo ou mais tarde, eu me canse de andar com uma corrente presa ao pescoço e me vá embora. Talvez não te abandone na floresta, mas irei deixar-te na mesma, tão certo como o ar que respiras, e lá ficarás sozinha, indefesa e amedrontada porque foste demasiado estúpida para confiar outra vez nas promessas de um sacana qualquer.

Ela perdeu finalmente a batalha e começou a chorar, com os seus soluços arrastados e secos, os sons vindos das profundezas do seu ser. Hank pôs-lhe uma mão na nuca e puxou-a para junto de si. Foi suficientemente estúpido para esperar que tudo estivesse terminado, de que ela já estivesse em condições de ceder e ver as coisas como eram na realidade, uma memória horrível que não tinha nada a ver com eles ou com o seu futuro.

Não. Ela cerrou as mãos e bateu-lhe nos ombros.

— Ouvi-te! Naquela noite, depois de eu ter caído no lago. Ouvi-te, Hank! Ele não fazia a mínima ideia do que é que ela estava a falar.

— Tu estavas na sala de estar — gritou ela. — Ouvi-te a chorar. E depois disseste, «Meu Deus, e se eu não puder fazer isto?:

O seu estômago deu uma reviravolta. A dor que viu nos olhos dela quase que o fez cair de joelhos.

Ela engoliu em seco e susteve a respiração parando de lhe bater, deixando-se ficar quieta, hirta de dor, com as cestas arqueadas para pôr alguma distância entre os dois corpos. Com uma voz fina, disse:

— Depois disso, não me quiseste. Tentei fazer amor contigo e tu afastaste-me. Foste tu que quebraste o acordo. Prometeste-me. Não ficar comigo só por um sentimento de dever. Prometeste!

— Meu Deus. — Hank lembrava-se muito bem dessa noite. Pensara amiúde nessas últimas horas ao longo destas três semanas. E ela tinha razão: ela tentara excitá-lo e ele virara-lhe as costas. — Querida, não. Compreendeste mal.

Ela desviou a cara, não querendo acreditar nele.

— Não podia fazer amor contigo. Estava demasiado triste. Quase que morreste nesse dia. Culpei-me por isso. Disseste-me, vezes sem conta, que eu não fazia a mínima ideia das tuas necessidades especiais e não prestei atenção. A minha estupidez quase que te ia matando. Sentia-me demasiado culpado, e estava aterrorizado por não poder tornar o rancho seguro. Não é que não quisesse estar contigo. Era o que eu mais queria. Nunca deixei de te amar. Como é que pudeste pensar uma coisa dessas?

No momento em que fez esta pergunta sabia que era uma pergunta estúpida. Com o seu passado para tornar as águas ainda mais turvas, é claro que ela pensara nisso. Agarrou-a pelo braço e arrastou-a de novo até ao intercomunicador. Comportando-se como um louco, pegou-lhe no dedo e começou a tocar nos botões.

— Este é uma linha directa para a casa principal. Este é para o estábulo.

Depois de lhe mostrar a sequência de botões, que a punham em contacto com todos os edifícios do rancho, pôs-lhe o dedo em cima do botão de alarme. O grito das sirenes exteriores quebrou o silêncio e ela assustou-se profundamente. Hank apressou-se a carregar novamente no botão para desligar o alarme.

— O sinal de alarme! — gritou ele. — No caso de o pager e as linhas do intercomunicador não serem suficientes. Um homem que não te amasse faria uma coisa destas? Bolas, Carly! Amo-te do fundo meu coração! Se não te amasse, ter-te-ia deixado no Arizona.

Soluços violentos assolaram-lhe o corpo. Hank puxou-a para junto de si. De início, deixou-a chorar. Assim que os seus soluços começaram a esmorecer, começou a embalá-la, afagando-lhe o cabelo, beijando-lhe o sobrolho, amando-a como nunca tinha amado ninguém.

— Estás cega, Carly. Eu ainda estou aqui. Se algo acontecer e a próxima cirurgia falhar, continuarei a estar aqui ao teu lado, para te poder abraçar, amar, incapaz de respirar sem a tua presença. Nunca direi que não te quero porque não podes ver. Amar-te-ei com todas as minhas forças até ao fim da minha vida.

Carly pressionou o rosto contra a sua camisa, tão exausta que mal conseguia pensar, quanto mais avaliar o que dissera. As suas emoções estavam agora completamente à flor da pele.

— Pensei que o Michael me amava — sussurrou ela.

— Compreendo — murmurou ele. — Bolas, só tinhas dezoito anos. Compreendo, querida.

— Não, não compreendes. — Bateu-lhe na camisa com os punhos. — Eu acreditei realmente nele. Jurei que nunca mais voltaria a ser tão estúpida.

— E depois apareci eu, um vaqueiro com uma deixa bem ensaiada e tu caíste de novo. — Apertou-a com força, fazendo com que Carly desejasse fundir-se e ser absorvida por ele. — Compreendo que tenhas ficado muilo magoada. E também compreendo agora porque é que ficaste com tanto receio de mim, depois disso, Existe só uma falha no teu raciocínio. Eu amo-te a sério, Carly Jane, não apenas por seres bonita, não apenas por nos termos divertido juntos, não apenas por gostar de fazer amor contigo. Gosto de tudo em ti, do pacote completo. Poderás desfazer-te de metade dessas coisas, que eu continuarei a amar-te do fundo do meu coração.

Carly inclinou a cabeça para trás para lhe observar o rosto.

— Quero acreditar nisso. Mas há um cantinho dentro de mim que tem medo.

— Estamos bem um para o outro, então. Eu também tenho medo.

— Tu? — Ela olhou incrédula para o seu rosto escuro, sobressaindo de forma intermitente no meio de uma grande névoa cinzenta. — Tens medo?

— Se tenho. Tenho medo que não acredites que eu te amo. Tenho medo de te perder. Farei tudo, Carly. Qualquer, coisa. Pedir-te-ei conselhos. Mandarei endireitar todos os caminhos do rancho, se for necessário. Só quero, por favor, que não me peças para viver sem ti. É a única coisa que não te posso dar, meu amor, a tua liberdade.

A sinceridade contida na sua voz rouca foi suficiente para convencer Carly de que ele a amava verdadeiramente. A tensão que sentiu no corpo robusto de Hank ajudou a consolidar essa ideia. Ele tinha sinceramente medo de que ela pudesse deixá-lo. Saber isso foi suficiente para lhe dar a coragem de que ela precisava para ficar.

Amparando-lhe o rosto com as mãos, ela pôs-se em bicos de pés para poder tocar-lhe na boca com a sua. Ele soltou um gemido e percorreu-lhe o cabelo com os dedos, depois inclinou a cabeça para poder controlar o beijo, reclamando-lhe os lábios numa mistura quente e húmida de línguas que deixou Carly sem respiração e com a cabeça a andar à roda. Hank. Desceu com as mãos até ao pescoço, pôs-lhe os dedos em cima dos ombros e afagou-lhe os braços de modo a sentir os músculos rijos e tendões fortes debaixo das mangas da camisa.

Quando ela lhe atingiu os pulsos, Hank virou a palma das mãos para cima e terminou o beijo para poderem recuperar a respiração.

— Estas mãos estarão sempre ao teu lado — murmurou ele. — A tua força quando fraquejares, o teu apoio quando não puderes ficar de pé sozinha.

Estava a falar a sério quando pronunciei aqueles votos, e continuarei a fazer o meu melhor para os honrar quando for mais velho. Só gostaria de fazer mais um juramento.

— Qual? — perguntou ela.

— Que os meus olhos também sejam os teus. Quando ficares cega, desenharei imagens com palavras para que possas continuar a ver as coisas bonitas. Disseste-me, uma vez, que a primeira coisa extraordinária que viste foi o céu azul do Oregon Central. É o meu juramento, Carly, nada a não ser céus azuis até ao fim das nossas vidas, mesmo que fiques cega para sempre.

Carly agarrou-se ao pescoço dele.

— Leva-me para casa, Hank.

Ele baixou-se para lhe pegar pelos braços. Enquanto a transportava para a casa de madeira, ela olhou para cima para aquele rosto bonito, observando com pormenor todas as suas rugas e saliências, para se poder lembrar delas mais tarde. Se pudesse escolher uma coisa para reter e levar com ela para a escuridão, seria um pôr-do-sol ou um magnífico céu azul.

Seria a memória com que ficaria do amor que via a brilhar nos olhos de Hank Coulter.


Epílogo

Quando o membro mais novo da família Coulter anunciou a sua chegada, Art Adams, Bess, Cricket, todo o clã Coulter e todos os Kendricks, estavam reunidos no corredor do hospital no exterior da sala de partos. Hank estava lá dentro» com a mulher, vacilando entre o papel de instrutor e marido preocupado. Ajudara a nascer imensos poldros e, para falar verdade, não acreditava que o parto fosse amedrontá-lo, mas o certo é que tremia imenso de todas as vezes que Carly gritava de dor.

Em vez de lhe pedir para respirar, só conseguia dizer, «Valha-nos Deus», ou «Daria tudo para ser eu a passar por isto», ou «Porque é que Deus achou que deviam ser as mulheres a dar à luz?» Cada oração, proclamação e pergunta era seguida por um «Nunca mais. Estás a ouvir, Carly? Quero ser cortado.»

Entre contracções, Carly sorria debilmente.

— Nem penses que vais fazer uma vasectomia, Hank Coulter. Quero ter, pelo menos, mais um bebé e talvez mais do que isso.

— Mais tarde. Nem sequer consigo enfrentar a situação agora. Carly não tinha esse problema.

— Posso engravidar entre transplantes, sem provocar complicações graves.

— Ver o pai morrer de uma trombose não é uma complicação? Não quero que passes por isto outra vez.

Quando Hank Jr. nasceu e foi enfaixado de azul na sala de partos, Hank caiu numa cadeira, com a respiração tão exausta que parecia que tinha sido ele a dar à luz. Agarrou na mão de Carly, com o bebé no outro braço. Carly só conseguia ver uma grossa mancha cinzenta. Tal como o seu especialista da córnea previra, ficara completamente cega poucos dias depois de Hank a ter ido buscar ao Arizona, e passara a viver na escuridão desde então.

Carly consolou-se com o pensamento de que seria apenas temporário. Assim que o seu especialista achasse que era seguro, efectuaria uma segunda operação para recuperar a vista e, quando o resultado dessa intervenção começasse a falhar, faria o seu primeiro transplante córneo. Se tudo corresse bem, e ela tinha tudo para acreditar que sim, teria muitos anos de visão pela frente.

Talvez, com um pouco de sorte do lado dela, Hank Jr. já estivesse casado e com um filho nos braços, antes de a sua visão desaparecer por completo. Carly tinha razões para ter esperanças. Ver os netos a crescer seria um bónus fabuloso.

Ela só desejava, do fundo do coração, ter mantido a visão para poder ver agora o seu bebé.

Como se Hank tivesse adivinhado os seus pensamentos, começou a descrever-lhe o filho.

— Ele é tão perfeito, Carly Jane — murmurou ele, com uma voz rouca.

— Tem o cabelo castanho-escuro, como o meu, e a sua pele também é morena. Tem uma face rosada e uma boca igual à tua.

Os olhos de Carly encheram-se de lágrimas, pois agora que já vira, sabia, na realidade, a que cores correspondiam o vermelho e o castanho, e como era a sua própria boca.

— Puseram-lhe um barrete azul muito engraçado — murmurou Hank.

— Parece um daqueles extraterrestres com cabeça em forma de cone.

Carly riu-se, vendo o bebé na sua mente.

— Os dedos das mãos e dos pés são tão pequenos, e do rosa mais bonito que alguma vez viste.

Hank ficou repentinamente silencioso. Carly quase que conseguia sentir a sua estupefacção.

— Meu Deus — sussurrou ele.

— O que foi? — perguntou ela num murmúrio.

— A primeira luz da manhã — respondeu ele.

Carly conseguiu aperceber-se de que o quarto tinha ficado mais claro. A escuridão que a envolvia não era de um negro total.

— Quem me dera que conseguisses ver — murmurou Hank. — Branco-pérola a entrar pelas persianas, banhando o quarto com faixas de rosa-claro e dourado. É como se os anjos estivessem aqui a inundar o quarto de uma luz suave.

Carly agarrou na mão grande do marido, vendo tudo na sua mente de uma forma perfeitamente clara. Era quase tão bom como ver-se a si própria. E talvez os anjos estivessem lá. Os anjos eram criados pelo amor, não eram? Este quarto transbordava de amor.

Hank dobrou-se para beijá-la e colocar o pequeno feixe de vida nova nos seus braços. Guiando as suas mãos, mostrou os dedos do bebé, murmurando:

— Já viste alguma coisa tão pequena e perfeita?

Enquanto despiam o bebé, Hank foi traduzindo as imagens por palavras para que Carly pudesse ver tudo na sua mente. Era notório o amor contido na sua voz enquanto descrevia as pernas arqueadas do filho, a barriga inchada, o cordão umbilical e o rosto engelhado. As suas palavras foram ditas com uma enorme devoção e ternura. Carly interrogava-se agora como é que poderia ter acreditado que este homem talvez não a quisesse porque ela era tudo menos perfeita.

Sentiu um calor agradável a percorrer-lhe o corpo e, com um suspiro de exaustão, fechou os olhos. Soubera, desde sempre, que só iria ver durante um breve período de tempo e que, depois, iria ficar cega até ao final da sua vida. Mas nunca imaginara que seria capaz de enfrentar o eventual regresso da cegueira com tanta paz.

Com Hank ao seu lado, nunca ficaria realmente cega outra vez. Os seus olhos seriam os dela, tal como ele jurara. Quando envelhecessem, dariam passeios ao entardecer, e ela seria capaz de ver tudo. A dádiva dele para com ela — imagens traduzidas por palavras. O amor não tinha a ver com facilidades, segundo Hank. Tinha a ver com ficarem juntos para o bem e para o mal. Ele estaria sempre ao lado dela, a não ser que a morte o levasse primeiro e, mesmo assim, Carly sabia que nunca mais voltaria a ficar na mais completa escuridão.

Teria o amor deste homem para lhe alumiar o caminho.

FIM

 

notas:

  • 1 Na sua versão mais simples, mistura de uísque Southern Confort, amaretto e gim com um pouco de sumo de limão (N. da T.)
  • 2 Uma pessoa só pode ser considerada cega, em termos legais, se a visão corrigida do melhor dos seus olhos for de 20/200 ou menos (N. da T.)
  • 3 «COBRA» — Consolidated Omnibus Budget Reconciliation Act. Lei aprovada pelo Congresso norte-americano em 1985, que permite a alguns empregados continuarem a beneficiar do seu plano de saúde depois de abandonarem o emprego. (N. da T.)
  • 4 O MBA (Master of Business Administration) é um curso de pós-graduação na área da gestão de empresas. (N. da T.)
  • 5 Restaurante especializado em panquecas. (N. da T.)
  • 6 Filme pornográfico realizado por Jim Clark em 1978. (N. da T.)
  • 7 Referência ao lendário juiz-taberneiro, «a única lei a oeste de Pecos». (N. da T.)
  • 8 Discurso famoso proferido pelo presidente Abraham Lincoln, no dia 19 de Novembro de 1863. (N. da T.)
  • 9 Cadeia de montanhas de grande altitude que atravessa o estado do Oregon. (N. da T.)


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Catherine Anderson  é autora de vários livros bestsellers do New York Times. Em Mais Perto do Céu, oferece-nos a história de duas pessoas que descobrem o poder que o amor tem de nos curar. Carly Adams sente que lhe deram uma nova oportunidade na vida. Nascida com uma doença rara dos olhos, manteve-se cega até uma operação recente lhe ter possibilitado a recuperação da visão. Agora está ansiosa por experimentar tudo o que o mundo tem para oferecer - incluindo as palavras doces de um vaqueiro que desperta o seu desejo… Hank Coulter não tem quaisquer planos para assentar, até que descobre que Carly Adams está grávida do seu filho - uma gravidez que lhe ameaça a visão.
 


MAIS PERTO DO CÉU
Catherine Anderson,
- texto integral -
Título original: Blue Skies, 2004
Colecção À Flor da Pele
Edição Arcádia - Portugal, 2010

 

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16.Jul.2020
Maria José Alegre