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 Sobre a Deficiência Visual


A Luz Que Se Apagou

Rudyard Kipling

cena do filme "The Light That Failed"
cena do filme  The Light That Failed (1939)


Capítulo I

Pós a tormenta combinamos tudo
Da melhor forma que podia ser.
Eu ficaria no paiol sozinha, Pois tinha pouca idade: só três anos,
E Ted iria ao pé do arco-íris,
Pois tinha cinco anos e era homem.
E foi assim que começou, queridos,
E foi assim que tudo começou.
Histórias do Grande Paiol

— Que acha que ela vai fazer se nos apanhar? Nós não deveríamos estar com isto, sabe? — disse Maisie.

— Ela me baterá e trancará você no seu quarto — respondeu Dick sem hesitação. — Você tem os cartuchos?

— Tenho; estão aqui no meu bolso, mas fazem um barulho danado. Os cartuchos de pino disparam sozinhos?

— Não sei. Se está com medo, leve o revólver que eu levo os cartuchos.

— Eu não estou com medo.

E Maisie partiu à frente rapidamente, com a mão no bolso e o queixo erguido. Dick seguiu-a empunhando um revolverzinho de pino.

As crianças haviam descoberto que suas vidas seriam insuportáveis se não praticassem tiro de pistola. Depois de muita reflexão e economia, privando-se de coisas, Dick havia economizado sete xelins e seis pence, que era quanto custava um revólver ordinário de fabricação belga. Maisie só pôde contribuir para a sociedade com meia coroa, que foi empregada na compra de uma centena de cartuchos.

— Você pode economizar melhor do que eu, Dick — explicou.

— Eu gosto de coisinhas boas e você não se importa. Além do mais, isso são coisas de rapazes.

Dick protestou um pouco contra a combinação, mas prosseguiu com o projeto e fez as compras, que as crianças iam experimentar nesse momento. Os revólveres não entravam no plano de vida cotidiana decretado para eles pela tutora que devia servir de mãe a esses dois órfãos, mas não servia. Dick estava sob os seus cuidados havia seis anos, tempo durante o qual a mulher se apropriara para uso próprio das mesadas destinadas a roupas para ele, e, em parte por leviandade, em parte por um desejo natural de fazer sofrer — ela era uma viúva de certa idade ansiosa por casarse novamente — fizera pesar os dias sobre os jovens ombros do rapaz. Quando ele havia esperado amor, ela dera, primeiro, aversão, depois, ódio. Quando, tendo ficado mais velho, ele procurara um pouco de compreensão, ela dera ridículo. As muitas horas livres de que dispunha depois da administração de sua modesta casa ela as dedicava ao que chamava a educação doméstica de Dick Heldar. Sua religião, fabricada principalmente pela própria inteligência e por uma leitura minuciosa das Escrituras, era um auxílio para ela nessa questão.

Nas ocasiões em que pessoalmente não estava descontente com Dick, fazia-o compreender que ele tinha uma pesada conta a ajustar com seu Criador; e assim Dick aprendeu a abominar o seu Deus com tanta intensidade como abominava a Sra. Jennett; e isso não é um estado de espírito sadio para um menino. Em vista de ela haver resolvido considerá-lo um mentiroso irremediável, depois que o medo do sofrimento o levou a dizer a primeira pequena mentira, ele se transformou naturalmente em um mentiroso, embora um mentiroso econômico e reservado, jamais desperdiçando a menor peta desnecessária e nunca hesitando em perpetrar a mais deslavada mentira, desde que plausível, se servisse para tornar sua vida mais tranquila. Esse tratamento deu pelo menos a capacidade de viver só — capacidade que serviu quando foi para o colégio e os meninos riam de suas roupas, que eram pobres de qualidade e muito remendadas. Nas férias ele voltava aos ensinamentos da Sra.

Jennett, e para que a cadeia da disciplina não viesse porventura a enfraquecer pelo contato com o mundo exterior, ela geralmente o espancava por uma razão ou outra, antes de ele haver estado doze horas sob o seu teto.

O outono de um certo ano brindou-o com uma companheira de servidão, um atomozinho de cabelo comprido e olhos pardos, tão reservada como ele, que errava pela casa em silêncio e nas primeiras semanas só falou com o bode que era o seu maior amigo neste mundo e vivia no quintal. A Sra. Jennett era contra o animal dentro do terreno da casa por considerá-lo uma criatura sem Deus, o que indubitavelmente era verdade.

— Então — disse o átomo, escolhendo as palavras com muita resolução — eu vou escrever para os meus advogados dizendo que a senhora é uma mulher má. Amomma é meu, meu, meu!

A Sra. Jennett fez um movimento na direção do vestíbulo, onde havia certos guarda-chuvas e bengalas em um cabide. O átomo compreendeu tão bem como Dick o que aquilo significava.

— Eu já fui espancada antes — disse o átomo com a mesma voz inexpressiva. — Já fui espancada com muito mais força do que a senhora poderá espancar-me. E, se me bater, eu escrevo aos meus advogados e digo que a senhora não me dá o suficiente para comer. Eu não tenho medo da senhora.

A Sra. Jennett não entrou no vestíbulo, e o átomo, após uma pausa para certificar-se de que o perigo de guerra havia passado inteiramente, saiu e foi chorar amargamente no pescoço de Amomma.

Dick soube que ela se chamava Maisie, e a princípio olhou-a com a mais profunda desconfiança, temendo que fosse causar de ele perder o pouco de liberdade que restava. Ela não foi isso, entretanto, e tampouco fez qualquer tentativa para entabular amizade enquanto Dick não deu os primeiros passos. Muito antes de haverem terminado as férias, o peso do castigo compartilhado aproximou as crianças, ainda que não fosse senão para se ajudarem mutuamente na preparação das mentiras para uso da Sra.

Jennett. Quando Dick ia voltar para a escola, Maisie murmurou: — Agora vou ficar sozinha para tomar conta de mim; mas — acrescentou erguendo a cabeça corajosamente — eu posso tomar conta de mim. Você prometeu mandar-me uma coleira de capim para Amomma. Mande-a logo.

Uma semana depois ela pediu a coleira pela volta do correio e não ficou satisfeita quando soube que levava tempo para fazer.

Quando, finalmente, Dick enviou o presente, Maisie esqueceu-se de agradecer.

Muitas férias haviam chegado e acabado desde esse dia, e Dick crescera, transformando-se em um esguio adolescente, mais do que nunca consciente de sua roupa ruim. Nem por um momento a Sra.

Jennett havia relaxado em seus ternos cuidados com ele, mas as bastonadas normais em um colégio — Dick era castigado cerca de três vezes por mês — encheram-no de desprezo pela força da tutora.—

Ela não machuca — explicou a Maisie, que o incitava à rebelião — e fica melhor para você depois que me bate.

Dick atravessava os seus dias descuidado de corpo e selvagem de alma, como os meninos menores da escola acabaram descobrindo, pois, quando dava na veneta, ele os castigava com astúcia e arte. O mesmo espírito o fez mais de uma vez tentar arreliar Maisie, porém a menina recusou contrariar-se.

— Nós dois já somos bastante infelizes assim mesmo — disse ela. — Para que tornarmos as coisas ainda piores? Vamos procurar algumas coisas para fazer e esquecer o resto.

O revólver foi o resultado dessa busca. Só podia ser experimentado na parte mais lamacenta da praia, muito longe das cabinas de banho móveis e do molhe, ao fundo das encostas relvosas de Fort Keeling. A maré estendia-se através de uma extensão de perto de três quilômetros naquela costa e os multicores bancos de limo, banhados pelo sol, emitiam um cheiro detestável de algas mortas. Era ao fim da tarde quando Dick e Maisie chegaram ao seu campo de tiro, com Amomma trotando pacientemente atrás deles.

— Pfui! — fez Maisie, fungando para o ar. — Que será que torna o mar tão malcheiroso? Não gosto disto.

— Você não gosta de coisa alguma que não seja feita especialmente para você — respondeu Dick com rudeza. — Dê-me os cartuchos. Vou tentar o primeiro tiro. Que distância alcança este revolverzinho?

— Oh! Um quilômetro e meio — respondeu Maisie sem hesitar.

— Pelo menos faz um barulho horrível. Tenha cuidado com os cartuchos; não me agradam essas saliências denteadas no rebordo. Tenha cuidado, Dick.

— Não se preocupe. Eu sei carregar. Vou atirar contra o quebramar, acolá.

Dick disparou e Amomma fugiu berrando. A bala levantou um esguicho de lama à direita das estacas engrinaldadas de plantas.

— A bala desvia para cima e para a direita. Tente você, Maisie. Lembre-se de que está carregado.

Maisie tomou o revólver e avançou cautelosamente até à beira da lama, apertando o punho fortemente, com a boca comprimida e o olho esquerdo fechado. Dick sentou-se numa pequena elevação do terreno e riu. Amomma voltou com muita cautela. Estava acostumado a estranhas experiências em seus passeios vespertinos e, encontrando a caixa de cartuchos abandonada, pôs-se a investigá-la com o nariz. Maisie atirou, mas não pôde ver para onde foi a bala.

— Acho que acertei no poste — disse ela, abrigando os olhos com a mão e olhando através do mar deserto.

— Eu sei que foi para os lados da boia de Marazion — declarou Dick com uma risadinha. — Atire baixo e para a esquerda; assim talvez você acerte nele. Olhe! Veja Amomma! ... está comendo os cartuchos!

Maisie voltou-se com o revólver na mão, justamente a tempo de ver Amomma fugindo das pedras que Dick jogava. Nada é sagrado para um bode. Bem alimentado e querido de sua dona, Amomma tinha naturalmente engolido dois cartuchos carregados. Maisie aproximou-se rapidamente para se certificar de que Dick não se enganava.

— Isso mesmo, ele comeu dois!

— Animal horrível! Vão chocalhar dentro dele e estourar, e é bem-feito... Oh! Dick! Eu matei você?

Os revólveres são objetos traiçoeiros em mãos de crianças.

Maisie não podia explicar como acontecera, mas um véu de fumo acre separava-a de Dick, e ela se convenceu de que o revólver disparara no rosto do rapaz. Depois ouviu-o espirrar e deixou-se cair de joelhos junto dele, chorando: — Dick, você não está ferido, não é? Eu não fiz por querer.

— Claro que não fez por querer — respondeu Dick, saindo da fumaça e limpando o rosto. — Mas você por pouco não me cegou. Essa pólvora arde horrivelmente.

Uma manchinha nítida de chumbo cinzento sobre uma pedra mostrava onde a bala tinha batido. Maisie começou a choramingar.

— Não faça isso — pediu Dick, pondo-se em pé de um salto e sacudindo-se. — Eu não estou ferido nem um pouco.

— Não, mas eu poderia tê-lo matado — protestou Maisie, baixando os cantos da boca. — Que é que eu iria fazer então?

— Ia para casa e contava à Sra. Jennett.

Dick sorriu à ideia, depois abrandou: Por favor, não se preocupe com isso. Além do mais, estamos perdendo tempo. Temos de voltar para o chá. Eu fico com o revólver um pouco.

Maisie teria chorado à menor incitação, mas a indiferença de Dick, embora a mão dele tremesse um pouco quando pegou no revólver, reprimiu-a. Ficou estendida na praia ofegando enquanto Dick metodicamente bombardeava o quebra-mar.

— Até que enfim, acertei! — exclamou quando um fiapo de erva voou da madeira.

— Deixe-me tentar — disse Maisie imperiosamente. — Eu já me sinto bem.

Dispararam alternadamente até que o ordinário revolverzinho quase se desmantelou, e Amomma, o proscrito — pois poderia explodir a qualquer momento — passava à distância, perguntandose por que lançariam aquelas pedras. Depois descobriram uma viga que flutuava numa lagoa junto ao talude do Fort Keeling, do lado do mar, e adotaram-na como novo alvo.

— Nas próximas férias — observou Dick, enquanto o revólver, nessa altura completamente desmantelado, dava coices tremendos na sua mão — arranjaremos um novo revólver, de fogo central e que tenha mais alcance.

— Não haverá mais férias para mim — informou Maisie. — Eu vou-me embora.

— Para onde?

— Não sei. Os meus advogados escreveram à Sra. Jennett, e eu tenho de ser educada em qualquer parte... talvez na França...

não sei onde, mas ficarei contente de ir embora.

— Eu não vou gostar nem um pouco. Acho que vão deixar-me aqui. Escute, Maisie, é verdade mesmo que você se vai embora?

Então estas férias vão ser as últimas em que a verei, e eu vou voltar para a escola na semana que vem. Quisera...

O sangue jovem tornou as faces de um vermelho escarlate.

Maisie apanhava tufos de relva e jogava-os pela rampa abaixo na direção de uma papoula amarela que acenava solitariamente para as planícies ilimitadas de lama e para o mar de um branco leitoso mais além.

— Eu gostaria de tornar a vê-lo algum dia — disse ela após uma pausa. — Você também gostaria de me ver?

— Gostaria, mas seria melhor se... se... se você tivesse feito melhor pontaria... lá junto do quebra-mar.

Maisie olhou-o por um instante com os olhos muito abertos. E era aquele o rapaz que ainda dez dias antes tinha decorado os chifres de Amomma com papel recortado de embrulhar pernil e o enviara assim, irrisão barbuda, para a via pública? Depois baixou os olhos: aquele não era o mesmo rapaz!

— Não seja idiota — disse ela e, com rápido instinto, atacou a questão secundária. — Como você é egoísta! Imagine só como eu teria ficado se essa coisa horrível tivesse matado você! Eu já me sinto bastante infeliz sem isso.

— Por quê? Por que vai deixar a Sra. Jennett?

— Não.

— Por que me vai deixar, então?

Ela não deu resposta durante muito tempo. Dick não se atrevia a olhá-la. Sentia, embora não o soubesse, tudo o que aqueles quatro anos haviam representado para ele, e isso tanto mais vivamente quanto não tinha palavras para expressar seus sentimentos.

— Não sei — respondeu Maisie. — Acho que é.

— Maisie, você precisa saber. Eu não acho apenas.

— Vamos para casa — pediu ela debilmente.

Mas Dick não estava disposto a recuar.

— Eu não sei dizer coisas — suplicou — e sinto imensamente haver arreliado você com Amomma o outro dia. Agora é completamente diferente, Maisie, não vê? E você podia ter-me dito que ia embora em vez de esperar que eu descobrisse.

— Não foi você que descobriu. Fui eu que disse. Ó Dick! Que adianta a gente se afligir?

— Não adianta nada, mas nós temos estado juntos anos e anos, e eu não sabia quanto queria bem a você.

— Eu não creio que você me quisesse bem, nunca.

— Não, eu não queria, mas agora quero... e terrivelmente.

Maisie — engoliu em seco — Maisie, querida, diga que você também me quer bem, por favor.

— Eu quero bem, sinceramente..., mas que vai adiantar?

— Por quê?

— Porque vou embora.

— Sim, mas se você me prometer antes de partir... Basta você prometer... está bem?

Um segundo “querida” veio aos lábios mais facilmente do que o primeiro. Tanto na casa de Dick como na escola havia poucas demonstrações de afeto, e ele tinha de as encontrar por instinto.

Tomou a mãozinha dela enegrecida pela fumaça do revólver.

— Prometo — declarou Maisie solenemente — mas, se eu quero bem, não há necessidade de prometer.

— E você me quer bem mesmo?

Pela primeira vez naqueles minutos passados os olhos dos dois se encontraram e falaram o que as palavras inábeis não podiam dizer...

— Ó Dick! Não! Por favor! Estava bem quando dizíamos bomdia, mas agora é completamente diferente.

Amomma observava de longe. Tinha visto seus proprietários discutir com frequência, mas nunca vira troca de beijos. A papoula amarela era mais sabia e acenava com a cabeça em um gesto de aprovação. Considerado como beijo, aquele foi um fracasso, mas, como foi o primeiro em toda a vida de ambos, fora dos exigidos pelo dever, ele abriu mundos novos, cada um deles maravilhoso, de tal modo que se sentiram elevados acima da consideração de quaisquer outros mundos, especialmente daqueles em que era necessário o chá e estarem sentados muito quietinhos. E ficaram assim segurando as mãos um dos outro sem dizer uma palavra.

— Agora você não pode esquecer — declarou Dick finalmente.

Na sua face havia algo que queimava mais do que a pólvora.

— Eu não teria esquecido de qualquer maneira — respondeu Maisie.

Olharam-se e viram que ambos se tinham transformado dos companheiros que foram uma hora antes em uma maravilha e um mistério que não podiam compreender. O sol começou a pôr-se e um vento noturno soprava ao longo das ondulações da praia.

— Vamos chegar terrivelmente tarde para o chá — observou Maisie.

— Vamos para casa.

— Vamos gastar o resto dos cartuchos — propôs Dick.

E ajudou Maisie a descer a rampa do forte até ao mar — descida que ela era perfeitamente capaz de fazer correndo a toda a velocidade. Com igual gravidade Maisie tomou a mão enegrecida.

Dick inclinou-se para a frente desajeitadamente. Maisie retirou a mão, e Dick corou.

— Ora! — fez Maisie com uma risadinha de vaidade lisonjeada.

Ficou bem junto de Dick enquanto ele carregava o revólver pela última vez e atirava na direção do mar, tendo no fundo do cérebro uma vaga ideia de que estava protegendo Maisie contra todos os males do mundo. Uma poça de água lá longe através do lamaçal refletiu os últimos raios do sol e transformou-se em um disco vermelho inflamado. A luz prendeu a atenção de Dick por um instante, e, quando ergueu o revólver, desceu sobre ele um sentimento renovado do milagroso, pois estava ali junto de Maisie, que tinha prometido querer bem por um período indefinido até ao dia em que... Uma lufada do vento, que aumentava, jogou o cabelo negro da menina contra o rosto, quando ela, com a mão no seu ombro, chamava Amomma de “bestinha”, e por um momento ele ficou no escuro... uma escuridão que pungia. A bala partiu através do mar vazio.

— Estragou-me a pontaria — disse ele, abanando a cabeça. — Acabaram os cartuchos. Vamos correr para casa.

Mas não correram. Seguiram muito lentamente, de braço dado.

E era completamente indiferente que o desprezado Amomma, com dois cartuchos na barriga, explodisse ou trotasse ao seu lado.

Porque eles haviam entrado na posse de uma herança áurea e a estavam aproveitando com toda a sabedoria de todos os seus anos.

— E eu vou ser... — Declarou Dick corajosamente, e interrompeu-se. — Não sei o que vou ser. Parece que não consigo passar em exame nenhum, mas faço caricaturas horríveis dos professores. Ah! Ah!

— Seja artista então — sugeriu Maisie. — Você está sempre rindo de mim quando tento desenhar; e será bom para você.

— Nunca mais tornarei a rir de nada que você faça — prometeu ele. — Vou ser artista e fazer coisas.

— Os artistas estão sempre com falta de dinheiro, não é?

— Eu tenho cento e vinte libras de renda por ano. Os meus tutores dizem que vou recebê-las quando chegar à maioridade. Isso será o suficiente para começar.

Oh! Eu sou rica — informou Maisie. — Vou ter trezentas libras por ano só para mim quando fizer vinte e um anos. É por isso que a Sra. Jennett é melhor para mim do que para você. Mas eu quisera ter alguém que me pertencesse... um simples pai ou mãe.

— Você pertence-me para todo o sempre — declarou Dick.

— Sim, nós pertencemos um ao outro... para sempre. É muito agradável.

E apertou o braço. A benevolente escuridão escondeu-os a ambos e, encorajado pelo fato de só poder ver o perfil da face de Maisie, com as longas pestanas velando os olhos pardos, à porta da entrada Dick pronunciou as palavras que vinham do íntimo havia duas horas.

— E eu... eu te amo, Maisie — disse ele em um murmúrio que pareceu reboar através do mundo, o mundo que, no dia seguinte ou no outro, ele iria conquistar.

Houve uma cena que, a bem da disciplina, não descreveremos, quando a Sra. Jennett repreendeu Dick, primeiro por sua lamentável falta de pontualidade, depois por quase se haver matado com uma arma proibida.

— Eu estava brincando com a arma e ela disparou sozinha — explicou Dick quando o rosto marcado pelos grãos de pólvora não pôde mais ser ocultado — mas, se a senhora pensa que vai espancar-me, está enganada. A senhora nunca mais me tocará.

Sente-se e sirva-me o chá. Ao menos disto a senhora não pode privar-nos.

A Sra. Jennett abriu a boca e ficou lívida. Maisie não disse nada, mas encorajava Dick com os olhos, e ele comportou-se abominavelmente durante todo o serão. A Sra. Jennett profetizou um juízo imediato da Providência e uma descida ao inferno mais tarde, mas Dick andava no Paraíso e não a escutava. Só quando ele foi deitar-se é que a Sra. Jennett se refez e se afirmou. Ele dissera boa noite a Maisie de olhos baixos e de longe.

— Se você não é um cavalheiro, ao menos deve tentar proceder como tal — disse a Sra. Jennett com irritação. — Você esteve outra vez brigando com Maisie!

Isso queria dizer que fora omitido o costumeiro beijo de boanoite.

Maisie, pálida até aos lábios, ofereceu a face com um belo ar de indiferença e foi devidamente bicada por Dick, que saiu da sala vermelho como fogo. Nessa noite ele teve um sonho maluco. Tinha conquistado o mundo inteiro e apresentou-o a Maisie numa caixa de cartuchos, porém ela repeliu-o com o pé e, em vez de dizer "Obrigada!”, gritou: — Onde está a coleira de capim que você prometeu para Amomma? Oh, como você é egoísta!

 

Capítulo II

Baixamos as nossas lanças,
Soaram os clarins depois —
Partimos para Kandahar,
Desfilando dois a dois;
Desfilando, desfilando
Desfilando dois a dois,
T a-ra-ra-ra-ra-ra-ra,
A caminho de Kandahar,
Cavalgando dois a dois.
Balada da Caserna

— Não estou zangado com o público inglês, mas gostaria de ver alguns milhares desse público espalhados entre estas rochas! Então eles não teriam tanta pressa de receber os seus jornais matutinos.

Você pode imaginar o nosso bom pai de família — o Amante da Justiça, o Leitor Assíduo, o Pater-Famílias e toda essa turma — frigindo neste cascalho tórrido?

— Com um véu azul por cima da cabeça e a roupa em tiras.

Alguém aqui tem uma agulha? Eu arranjei um pedaço de saco de açúcar.

— Eu empresto uma agulha de enfardar em troca de vinte centímetros quadrados dele. Tenho os dois joelhos das calças furados, — Por que não seis alqueires, já que resolveu pedir? Mas empreste-me a agulha e vou ver o que posso reservar da ourela. Tal como é, não creio seja bastante para proteger o meu nobre corpo contra o vento frio. Que está fazendo com esse seu eterno álbum de desenho, Dick?

— Um estudo do nosso correspondente de guerra consertando o seu guarda-roupa — respondeu Dick gravemente, enquanto o outro sacudia fora as calças de montar lamentavelmente estragadas e começava a adaptar um quadrado de grosseira lona sobre o espaço aberto mais evidente.

O homem gemeu desconsoladamente diante da vastidão do vazio que se abriu diante de seus olhos.

— Olá! você aí, piloto! Empreste-me todas as velas dessa baleeira!

Uma cabeça coroada de fez apareceu na escotilha de ré, dividiu-se em duas metades exatas em um sorriso rápido e desapareceu novamente. O homem das calças em frangalhos, vestindo apenas um jaquetão de caçador e uma camisa de flanela cinza, continuou sua costura enquanto Dick ria por cima do seu desenho.

Umas vinte baleeiras estavam abicadas em um banco de areia apinhado de soldados ingleses de meia dúzia de corpos do exército, ocupados em tomar banho ou em lavar suas roupas. Um monte de rolos para barcos, caixas de víveres, sacos de açúcar e caixotes de farinha e de munição de armas portáteis mostrava onde uma das baleeiras fora obrigada a descarregar à pressa, e o carpinteiro do regimento praguejava alto e bom som enquanto tentava, com uma reserva completamente insuficiente de alvaiade, calafetar as juntas da embarcação abertas pelo calor do sol.

Primeira quebra o maldito leme — exclamou, dirigindo-se ao mundo em geral — depois vai-se o mastro e a seguir, por Deus, como se não tivesse mais nada que fazer, abre-se toda como um loto chinês.

— Foi exatamente o que se deu com as minhas calças, quem quer que você seja — observou o alfaiate sem levantar os olhos do seu trabalho. — Dick, será que algum dia tornarei a ver uma loja decente?

Não obteve outra resposta que o irritado e incessante murmúrio do Nilo, que corria ao redor de uma curva entre paredes de basalto e ia espumar através de um ressalto de rocha um quilômetro rio abaixo. Era como se o pardo peso do rio estivesse expulsando os homens brancos de volta à sua terra. O cheiro indescritível do lodo do Nilo no ar indicava que a corrente estava baixando e que os próximos quilômetros não seriam fáceis de transpor para as baleeiras. O deserto estendia-se quase até às margens, onde, entre cômoros pardacentos, vermelhos e negros, estava acampado um corpo de camelos do exército. Ninguém se atrevia a perder o contato com os barcos, nem mesmo por um dia; havia semanas que não se lutava e, durante todo esse tempo, o Nilo não os tinha poupado. Corredeira sucedia a corredeira, rocha a rocha, grupo de ilhas a grupo de ilhas, a tal ponto que os soldados haviam perdido há muito toda a noção de direção e até mesmo de tempo. Iam para alguma parte, não sabiam por que, para fazer alguma coisa, não sabiam o que. Diante deles estendia-se o Nilo e na outra extremidade do rio encontrava-se um certo Gordon lutando pela própria vida numa cidade chamada Cartum. Havia colunas e tropas inglesas no deserto, ou em um dos muitos desertos; havia colunas no rio; havia mais colunas ainda esperando para embarcar no rio; havia novos contingentes esperando em Assioot e Assuã; corriam mentiras e rumores através da face da terra desesperançada de Suaquém à Sexta Catarata, e os homens supunham vagamente que devia haver alguém investido de autoridade dirigindo o plano geral dos diversos movimentos. O dever dessa determinada coluna do rio era manter as baleeiras flutuando na água, evitar que fossem pisoteadas as plantações dos aldeãos quando as turmas conduziam os barcos à sirga com cordas jogadas do meio da corrente, conseguir tanta quantidade de sono e comida quanta fosse possível e, sobretudo, avançar sem detença contra a corrente espumante do Nilo.

Com os soldados suavam e labutavam os correspondentes dos jornais, e ignoravam quase tanto como seus companheiros. Mas era necessário, acima de tudo, que a Inglaterra ao café fosse divertida, empolgada, interessada e informada se Gordon vivia ou morrera, se metade do exército britânico se desmantelava nas areias do deserto. A campanha do Sudão era uma campanha pitoresca e prestava-se a descrições vividas. De quando em quando um “Especial” conseguia fazer-se matar — o que não era absolutamente uma desvantagem para o jornal que o empregava — e, as mais das vezes, a natureza corpo-a-corpo da luta permitia escapadas milagrosas que mereciam ser telegrafadas para a metrópole a oito pence a palavra. Havia muitos correspondentes com muitos corpos e colunas — desde veteranos que tinham seguido aos calcanhares da cavalaria que ocupara o Cairo em 82, no tempo em que Arabi Paxá se intitulava rei, que tinham visto a obra lamentável em volta de Suaquém quando as sentinelas eram chacinadas à noite e as moitas se povoavam de lanças, a jovenzinhos obrigados subitamente a entrar em ação na ponta de um fio telegráfico para tomarem o lugar de seus maiores mortos ou invalidados.

Entre os veteranos — os que conheciam todos os caprichos e mudanças na confusa organização postal, o valor do mais cansado e escanifrado garrano egípcio oferecido à venda no Cairo ou Alexandria, que sabiam abrandar um funcionário do telégrafo e lisonjear a vaidade eriçada de um recém-nomeado oficial do estadomaior, quando os regulamentos sobre a imprensa se tornavam opressivos — encontrava-se o homem da camisa de flanela, o moreno Torpenhow. Representava o Sindicato Central Meridional na campanha, como já o tinha representado na guerra do Egito e alhures. O sindicato não se preocupava muito com crítica de ataque e essas coisas. Ele servia às massas, e a única coisa que exigia era pitoresco e abundância de detalhes; pois há mais alegria na Inglaterra por um soldado que insubordinadamente sai do quadrado para salvar um camarada do que por vinte generais mourejando até à calvície na solução dos detalhes de transporte e aprovisionamento.

Ele tinha encontrado em Suaquém um moço que, sentado na orla de um reduto há pouco abandonado, mais ou menos do tamanho de uma caixa de chapéus, desenhava um monte de cadáveres estraçalhados por granadas na planície de areia.

— Para quem é que você trabalha? — perguntou Torpenhow.

A saudação do correspondente é como a do caixeiro-viajante em serviço.

— Por minha conta — respondeu o moço sem levantar os olhos. — Você tem fumo?

Torpenhow esperou que ele concluísse o desenho e, depois de o olhar, perguntou.

— Que é que você faz aqui?

— Nada. Havia barulho, vim. Oficialmente estou aqui para pintar barcos, ou então devo tomar conta do condensador de um dos barcos de água. Esqueci qual.

— Você tem audácia bastante para construir com ela um reduto — observou Torpenhow, examinando o seu novo conhecido. — Você desenha sempre assim?

O moço mostrou outros desenhos.

— “Motim a bordo de um barco de porcos chinês” — disse sentenciosamente, mostrando desenhos um após outro. — “Contramestre apunhalado por um comprador”. — “Junco encalhado ao largo de Hakodate”. — “Arrieiro somali sendo açoitado”. — “Granada de sinalização sobre acampamento em Berbera”. — “Dhow negreiro sendo perseguido em volta da Baía de Tajurrah”. — “Soldado caído morto ao luar fora de Suaquém... degolado por Fuzzies”.

— Hum — fez Torpenhow. Pessoalmente eu não sou adepto desse tipo de desenhos à maneira de Verestchagin, mas gostos não se discutem. Está fazendo alguma coisa agora?

— Não. Estou-me divertindo.

Torpenhow olhou para a terrível desolação do lugar.

— Não há dúvida que você tem uma concepção bem estranha de divertimento. Tem algum dinheiro?

— O suficiente para ir vivendo. Quer contratar-me para serviço de guerra?

— Eu não. Mas o meu sindicato talvez. Você desenha regularmente e acho que não se importará muito com o que ganhar, não é?

— Desta vez não. Espero a minha oportunidade.

Torpenhow olhou de novo os desenhos e acenou com a cabeça.

— É, faz bem em aproveitar a primeira oportunidade que aparece.

Afastou-se rapidamente a cavalo, transpôs a Porta dos Dois Navios de Guerra, atravessou ruidosamente a calçada, entrou na cidade e telegrafou para o seu sindicato: “Encontrei aqui um pintor.

Bom e barato. Posso contratá-lo? Enviarei texto com desenhos”.

O homem do reduto ficou sentado balançando as pernas e murmurando: — Eu sabia que a oportunidade viria mais cedo ou mais tarde.

Por Deus, eles vão ter que pagar caro por ela, se eu sair vivo desta embrulhada!

À noite Torpenhow pôde anunciar ao seu amigo que a Agência Central Meridional estava disposta a aceitá-lo a título de experiência, pagando as despesas por três meses.

— E, a propósito, como é o seu nome? — perguntou Torpenhow.

— Heldar. Eles me dão carta branca?

— Eles o contrataram às cegas. Você deverá justificar a escolha. É melhor ficar junto de mim. Eu vou subir com uma coluna e farei o que puder por você. Dê-me alguns dos seus desenhos feitos aqui para despachá-los.

E acrescentou para si mesmo: “É a melhor pechincha que a Central Meridional já fez, e olhem que eles me contrataram bem barato!” E assim foi que, após a compra de cavalos e algumas providências financeiras e políticas, Dick foi sagrado membro da Nova e Ilustre Fraternidade dos correspondentes de guerra, os quais possuem todos o direito inalienável de fazer quanto trabalho puderem e receber tanto quanto a Providência e seus donos hajam por bem pagar. A estas coisas acrescente-se, se o confrade for digno de tal, o dom da loquacidade a que nenhum homem ou mulher pode resistir quando está em jogo uma refeição ou uma cama, o golpe de vista de um negociante de cavalos, o expediente de um cozinheiro, a constituição de um boi de carro, o estômago de um avestruz e uma infinita adaptabilidade a todas as circunstâncias.

Mas muitos morrem antes de atingir esse grau, e, como os peritos consumados na arte se apresentam na maior parte das vezes em traje de rigor quando se encontram na Inglaterra, sua glória passa despercebida para a multidão.

Dick seguia Torpenhow aonde a fantasia deste o levava e os dois juntos conseguiram realizar algum trabalho que quase os satisfez a eles mesmos. Não era uma vida fácil em sentido algum e, sob a influência dessa vida, os dois tornaram-se muitos íntimos, pois comiam do mesmo prato, compartilhavam o mesmo cantil de água e, elo mais forte de todos, suas correspondências seguiam juntas.

Foi Dick que conseguiu embebedar magistralmente um funcionário do telégrafo numa cabana de palmas muito além da Segunda Catarata, e que, enquanto o homem dormia venturosamente no soalho, se apoderou de certas informações exclusivas laboriosamente adquiridas, transmitidas por um ingênuo correspondente de um sindicato rival. Copiando essas informações metodicamente, levou o resultado a Torpenhow, que disse que tudo era permitido em correspondência de amor e de guerra e extraiu um excelente artigo descritivo do palavreado prolixo de seu rival. Foi Torpenhow que..., mas a história das aventuras dos dois, juntos e separados, de Filé ao sertão deserto de Herawi e Muella, encheria muitos livros. Tinham sido encurralados em um quadrado lado a lado, com medo terrível de serem alvejados pelos soldados superexcitados; tinham lutado montados em camelos de carga na manhã frigida; tinham viajado em silêncio sob um sol ofuscante nos infatigáveis cavalinhos egípcios, e vadeavam nos baixios do Nilo quando a baleeira em que encontraram acomodação resolvera chocar-se em um rochedo oculto e perdera metade das pranchas do fundo.

Nesse momento estavam sentados em um banco de areia e as baleeiras desembarcavam o resto da coluna.

— É — disse Torpenhow, acabando de dar os últimos pontos grosseiros no seu vestuário há muito negligenciado — foi um belo trabalho.

— O remendo ou a campanha? — perguntou Dick. — Não me parecem grande coisa, nem um nem a outra.

— Você queria que o Euryalus fosse levado acima da Terceira Catarata e canhões de oitenta e uma toneladas até Jadkul! Eu, por mim, estou perfeitamente satisfeito com as minhas calças.

E girou gravemente sobre si mesmo para se exibir, como um palhaço.

— Está muito bonito. Especialmente as letras do saco. G. B. T.

Government Bullock Train. Isso é um saco da índia.

— São as minhas iniciais — Gilbert Belling Torpenhow. Eu furtei o pano de propósito. Mas... que diabo está acontecendo com os camelos acolá?

Torpenhow abrigou os olhos para olhar através do saibro coberto de vegetação rasteira.

Um clarim soou furiosamente, e os homens da margem correram a apanhar suas armas e equipamento.

— “Soldados de Pisa surpreendidos no banho” — observou Dick calmamente. — Lembra-se do quadro? É de Miguel Ângelo.

Todos os principiantes o copiam. Essas moitas estão apinhadas de inimigos.

O pessoal do corpo de camelos que estava na margem berrou para a infantaria para que fosse reunir-se a eles, e um clamor rouco ao longo do rio mostrou que o resto da coluna também percebera a situação e corria a tomar parte. Tão rapidamente como uma superfície de água calma é encrespada pelo vento, as elevações juncadas de pedras e as colinas cobertas de mato rasteiro agitaramse e animaram-se de homens armados. Por sorte, eles decidiram conservar-se à distância por algum tempo para gritar e gesticular alegremente. Um homem chegou mesmo a contar uma longa história. A corporação de camelos não fez fogo. Os homens ficaram muito satisfeitos por terem um pouco de tempo para respirar enquanto organizavam alguma espécie de quadrado. Os homens do banco de areia correram para junto deles e as baleeiras que subiam laboriosamente, ouvindo a algazarra, eram encalhadas na margem mais próxima e esvaziadas de todos os homens, salvo os doentes e uns poucos para guardá-las. O orador árabe silenciou e seus amigos uivaram.

— Parecem homens do Mádi — comentou Torpenhow, abrindo caminho a cotoveladas para dentro do quadrado. — São milhares e milhares deles! Eu sei, entretanto, que as tribos destas redondezas não nos são hostis.

— Então o Mádi tomou outra cidade — respondeu Dick — e mandou todos estes demônios ululantes para triturar-nos. Empresteme o seu binóculo.

— Os nossos batedores deviam ter-nos avisado disto. Fomos surpreendidos — observou um subalterno. — Será que os canhões dos camelos não vão abrir fogo? Depressa, homens!

Não havia necessidade de qualquer ordem. Os homens jogavam-se arquejantes contra os lados do quadrado, pois eles tinham boas razões para saber que os que ficassem do lado de fora quando a luta começasse provavelmente morreriam de uma maneira extremamente desagradável. Os pequenos canhões de cento e cinquenta libras do corpo de camelos dispostos a um canto do quadrado, abriram a dança quando o quadrado começou a deslocar-se para a direita a fim de tomar posição em um outeiro existente no terreno em ascensão. Todos já tinham lutado desse modo e não havia novidade alguma no divertimento; sempre a mesma formação no calor sufocante, o cheiro de poeira e couro, o mesmo ataque súbito do inimigo, a mesma pressão sobre o lado mais fraco do quadrado, os minutos de desesperado corpo-a-corpo, depois o silêncio no deserto, quebrado apenas pelos berros dos que o troço de cavalaria tentava perseguir. Eles tinham-se tornado descuidados. Os canhões detonavam a intervalos e o quadrado avançava entre os protestos dos camelos. Então veio o ataque de três mil homens que não tinham aprendido nos livros que era impossível tropas em formação cerrada investirem contrafogo de armas de carregamento pela culatra. Alguns tiros isolados anunciaram a sua aproximação e alguns cavaleiros vinham à frente, mas o grosso da força era constituído de pura multidão, louca de raiva e armada de lança e espada.

O instinto do deserto, onde há sempre muita guerra, indicou que o flanco direito do quadrado era o mais fraco, pois se desviaram da frente. Os canhões bombardeavam-nos ao passar, abrindo por instante, através de seu meio, avenidas muito semelhantes àquelas visões fugazes dos renques de lúpulo de Kent quando passa o trem a grande velocidade; e o fogo da infantaria, retido até ao momento oportuno, abatia-os às centenas. Nenhuma tropa civilizada do mundo poderia suportar o inferno por que eles passavam, os vivos pulando alto para evitar os moribundos que se agarravam aos seus calcanhares, os feridos amaldiçoando e avançando aos trancos, até que caíam — uma torrente negra como a água que passa por cima do açude de um moinho — bem junto ao flanco direito do quadrado.

Então a linha das tropas envoltas em poeira e o céu azul pálido do deserto em cima desapareceram no meio dos rolos de fumaça, e as pedrinhas do chão aquecido e as moitas ressequidas tornaram-se objetos de extremo interesse, pois os homens mediam a sua angustiosa retirada e sua redenção por essas coisas, contando-as maquinalmente e abrindo caminho de volta a determinada pedra ou ramo que tomavam como ponto de referência. Não havia a menor aparência de luta organizada.

E, que os homens soubessem, o inimigo poderia atacar o quadro pelos quatro lados. Seu trabalho era destruir o que estivesse na sua frente, cravar a baioneta nas costas dos que passavam por cima deles, e, morrendo, puxar o matador para baixo na esperança de que fosse atingido na cabeça por alguma coronha vingadora.

Dick esperou tranquilamente com Torpenhow e um médico moço até que a tensão se tornou insuportável. Não havia esperança de socorrer os feridos enquanto o ataque não fosse repelido, de modo que os três foram avançando cautelosamente em direção ao lado mais fraco. Houve uma investida de fora, o breve ruído de lanças em ação, e um homem a cavalo, seguido de trinta ou quarenta outros, irrompeu no interior do quadrado, berrando e acutilando. O flanco direito do quadrado fez uma reentrância cedendo aos invasores e os outros lados enviaram socorro. Os feridos, que sabiam que tinham apenas algumas horas de vida, agarravam-se aos pés do inimigo e derrubavam-no, ou, arrastando-se até um fuzil abandonado, atiravam às cegas para o meio da refrega no centro do quadrado. Dick teve consciência de que alguém o havia cortado violentamente através do capacete, de que havia disparado o revólver contra uma cara negra salpicada de espuma, que imediatamente deixara de ter qualquer semelhança com uma cara, e de que Torpenhow havia caído debaixo de um árabe que derrubara e estava rolando com seu cativo, procurando atingir os olhos. O médico dava estocadas ao acaso com uma baioneta e um soldado sem capacete atirava por cima do ombro de Dick: os grãos de pólvora queimavam a face. Foi para Torpenhow que Dick se voltou por instinto. O representante do Sindicato Central Meridional tinhase libertado de seu inimigo e levantou-se, limpando o polegar nas calças. O árabe, com as duas mãos na testa, gritou, depois pegou de uma lança e arremeteu contra Torpenhow, que arquejava ao abrigo do revólver de Dick. Dick fez fogo duas vezes e o homem tombou inerte. Caiu com o rosto para cima, e não tinha um olho. O fogo de mosquetaria redobrou, mas havia gritos de triunfo misturados com ele. O assalto falhara e o inimigo fugia. Se o meio do quadrado estava em fanicos, o terreno além era um verdadeiro açougue. Dick abriu caminho para a frente por entre os homens enfurecidos. O que restava do inimigo se retirava, enquanto a reduzida — muito reduzida — cavalaria inglesa acossava os retardatários.

Além das linhas dos mortos via-se atravessada sobre uma moita uma larga lança árabe manchada de sangue, jogada fora na retirada, e mais adiante estendiam-se as planícies ilimitadas do deserto. O sol refletiu-se no aço, transformando-o em um disco vermelho inflamado. Alguém atrás dele estava dizendo: “Oh, sai daí, animal!” Dick ergueu o revólver e apontou-o para o deserto. A mancha vermelha à distância atraiu o seu olhar e o clamor em volta pareceu morrer aos poucos até se transformar em um murmúrio muito distante, como o rumor de um mar tranquilo. Havia o revólver e a luz vermelha ... e a voz de alguém espantando qualquer coisa, exatamente como tinha acontecido em alguma parte antes...

provavelmente numa vida passada. Dick esperou pelo que deveria acontecer depois. Algo pareceu estalar dentro de sua cabeça e por um instante ele ficou no escuro — uma escuridão pungente. Atirou ao acaso e a bala voou através do deserto enquanto ele murmurava: “Estragou-me a pontaria. Acabaram os cartuchos.

Vamos ter que correr para casa”. Levou a mão à cabeça e, quando a tirou, estava escorrendo sangue.

— Meu velho, você tem aí um corte bem feio — disse Torpenhow. — Eu devo alguma coisa por este negócio. Obrigado.

Firme, homem! Oh! Você não vai ficar doente aqui!

Dick tinha caído rigidamente contra o ombro de Torpenhow e murmurava qualquer coisa sobre apontar baixo e para a esquerda.

Depois deslizou para o chão e ficou em silêncio. Torpenhow arrastou-o até um médico e sentou-se para fazer uma narrativa do que houve por bem chamar “uma batalha sanguinolenta, da qual as nossas armas saíram”, etc.

Durante toda essa noite, quando as tropas estavam acampadas junto às baleeiras, uma figura negra dançou ao luar claro no banco de areia, gritando que Cartum, a maldita, estava morta... estava morta... morta... que dois vapores estavam entalados nas rochas do Nilo fora da cidade e que de toda a tripulação não restava um só homem; e que Cartum estava morta... morta... morta!

Mas Torpenhow não deu atenção. Ele observava Dick, que clamava alto para o Nilo inquieto, chamando Maisie... sempre Maisie!

— Aqui está um fenômeno — observou Torpenhow, ajeitando as cobertas de Dick. — Aqui está um homem, supostamente humano, que menciona o nome de uma única mulher. E olhem que eu tenho visto muitos delírios! Dick, tome um pouco de bebida.

— Obrigado, Maisie — respondeu Dick.

 

Capítulo III

Assim é que está pensando
Em se fazer de novo ao mar com seus corsários.
Ir chamuscar a barba ao Rei de Espanha
E capturar outro Deão de Jaén
E vendê-lo em Argel.
Um Quadro Holandês

Acompanhada do Sudão e a cabeça rachada de Dick tinham terminado e curado havia alguns meses, e o Sindicato Central Meridional pagará a Dick uma certa importância por conta do trabalho feito, trabalho que eles tiveram o cuidado de declarar não estar absolutamente à altura de seus padrões. Dick jogou a carta ao Nilo, no Cairo, recebeu o cheque na mesma cidade e despediu-se de Torpenhow com sentimento, na estação.

— Vou parar por uns tempos e descansar — informou Torpenhow. — Não sei onde irei morar em Londres, mas, se Deus quiser que nos encontremos, nós nos encontraremos. Você vai ficar aqui à espera da possibilidade remota de outra guerra? Não haverá nenhuma, enquanto o sul do Sudão não for novamente ocupado pelas nossas tropas. Tome nota disso. Adeus e felicidades. Volte quando o seu dinheiro acabar e dê-me o seu endereço.

Dick andou flanando pelo Cairo, Alexandria, Ismailia e Port Said — especialmente Port Said. Há iniquidades em muitas partes do mundo e vício em todas, mas a essência concentrada de todas as iniquidades e de todos os vícios de todos os continentes encontrase em Port Said. E através do coração daquele inferno flanqueado de areias, onde a miragem vibra o dia inteiro sobre os Lagos Amargos, passam, se a gente tiver paciência de esperar, a maioria dos homens e mulheres que conhecemos nesta vida. Dick instalouse em aposentos mais ruidosos do que respeitáveis. Passava as noites no cais, subiu a bordo de muitos navios e viu muitos amigos — gentis ingleses com que havia conversado não muito sensatamente na varanda do Shepheard’s Hotel, apressados correspondentes de guerra, comandantes dos navios-transporte empregados na campanha, oficiais do exército às vintenas e outros de profissões menos respeitáveis. Tinha o que escolher entre todas as raças do Oriente e do Ocidente para seus estudos e a vantagem de ver seus modelos sob a influência da mais viva excitação, às mesas de jogo, nas tavernas, nos antros de dança e alhures. Para se divertir tinha a visão reta do Canal, as areias ardentes, o cortejo de navios e os hospitais brancos onde jaziam soldados ingleses.

Dick esforçava-se por gravar em preto e branco tudo o que a Providência enviava, e, quando esse abastecimento acabava, ele procurava novo material. Era uma ocupação fascinante, mas esgotava o dinheiro, e já tinha sacado adiantadas as cento e vinte libras de renda a que tinha direito anualmente. "Agora vou ter que trabalhar e apertar o cinto!” — pensou e preparava-se para enfrentar o seu novo destino, quando da Inglaterra chegou um misterioso telegrama de Torpenhow que dizia: "Volte depressa: você fez sucesso. Venha.” Um largo sorriso desanuviou o rosto.

— Já? Boas notícias! — disse consigo mesmo. — Vai haver uma orgia esta noite. Procederei segundo a minha sorte. Por Deus, era tempo de que ela viesse!

Depositou metade do dinheiro que tinha em poder de seus bons amigos Monsieur e Madame Binat e encomendou uma sessão de dança de Zanzibar das melhores. Monsieur Binat tremia sob o efeito da bebida, mas madame sorriu compreensivamente...

— Monsieur vai precisar de uma cadeira, naturalmente, e, naturalmente, Monsieur vai desenhar: Monsieur tem maneiras bem estranhas de se divertir!

Binat ergueu o rosto branco-azulado de sua cama no quarto interno.

— Compreendo — disse com voz queixosa. — Todos conhecemos Monsieur. Monsieur é um artista, como eu já fui. — Dick acenou com a cabeça. — No fim — concluiu Binat com gravidade — Monsieur descerá vivo ao inferno, como eu desci.

E riu.

— O senhor deve ir ao baile também — declarou Dick, — Eu o quero lá.

— Por causa do meu rosto? Eu sabia que ia ser assim. Por causa do meu rosto? Meu Deus! E por causa da minha tremenda degradação! Não irei. Leve-o daqui! Ele é um demônio! Ou pelo menos, Celeste, cobre mais.

E o excelente Binat começou a espernear e a gritar.

— Todas as coisas estão à venda em Port Said — observou Madame. — Se meu marido tiver de ir, custará muito mais.

Custará... como é que os senhores dizem?... meio soberano.

O dinheiro foi pago e a dança louca foi realizada à noite em um pátio murado nos fundos da casa de Madame Binat. A própria dama com um vestido de seda cor de malva, sempre a escorregar dos ombros amarelos, tocava o piano, e ao som da música dissonante de uma valsa europeia e à luz de lampiões de querosene as moças zanzibaritas dançavam furiosamente. Binat sentou-se numa cadeira e ficou a olhar sem ver até que o remoinho da dança e o ruído do piano chocalham-te penetraram na bebida que havia tomado o lugar do sangue nas suas veias, e seu rosto brilhou. Dick segurou-o pelo queixo brutalmente e virou o rosto para a luz. Madame Binat olhou por cima do ombro e sorriu com muitos dentes. Dick encostou-se ao muro e desenhou durante uma hora, até que os lampiões começaram a cheirar e as moças se jogaram arquejantes no chão de terra batida. Depois fechou o álbum com um estalo e afastou-se enquanto Binat o puxava debilmente pelo cotovelo.

— Mostre-me — choramingou. — Eu também já fui um artista noutro tempo, eu!

Dick mostrou o esboço.

— Eu sou isso? — gritou Binat. — O senhor vai levar isso e mostrar a todo o mundo que sou eu... Binat?

E o homem gemeu e chorou.

— Monsieur pagou por tudo — declarou Madame. — Ao prazer de ver Monsieur novamente.

O pátio fechou-se e Dick subiu apressadamente a rua arenosa até ao antro de jogo mais próximo, onde era bem conhecido.

— Se tiver sorte, será um bom augúrio; se perder, ficarei aqui.

Distribuiu o dinheiro pitorescamente pela mesa, mal se atrevendo a olhar o que fazia. A sorte favoreceu-o. Três voltas da roleta tornaram-no vinte libras mais rico, e ele foi até ao porto para fazer camaradagem com o capitão de um desmantelado cargueiro a vapor, que o desembarcou em Londres com menos libras no bolso do que ele gostava de pensar.

Um fino nevoeiro cinzento pairava sobre a cidade e as ruas eram muito frias, pois era verão na Inglaterra.

“É um alegre sertão e não mudou nada a bem dizer”, pensou Dick, afastando-se das docas na direção oeste. “E agora que vou fazer?” As casas apertadas umas contra as outras não deram resposta.

Dick olhou ao longo das longas ruas escuras e a impressionante lufa-lufa do tráfego.

— Ó vós coelheiras! — exclamou, dirigindo-se a uma fileira de residências altamente respeitáveis e um pouco separadas entre si.

— Sabeis o que tereis de fazer mais tarde? Tereis de fornecer-me criados e criadas — e aqui estalou os dedos — e o tesouro que pertence aos reis!

E caminhou para diante energicamente. Viu que um de seus sapatos estava aberto do lado. Quando se abaixou para examiná-lo, um homem deu um esbarrão e jogou-o na sarjeta.

— Está certo — disse. — Mais uma continha a ajustar. Mais tarde darei um esbarrão em você.

Boas roupas e boas botinas não são baratas, e Dick deixou a última loja com a certeza de que estava respeitavelmente equipado para algum tempo, mas apenas com cinquenta xelins no bolso.

Voltou às ruas pelas docas e hospedou-se em um quarto, onde os lençóis da cama eram quase audivelmente marcados para o caso de roubo e onde ninguém parecia dormir. Quando sua roupa chegou, procurou no Sindicato Central Meridional o endereço de Torpenhow e obteve-o, juntamente com a informação de que ainda era devido algum dinheiro.

— Quanto? — perguntou Dick no tom de uma pessoa que lida habitualmente com milhões.

— Entre trinta e quarenta libras. Se o senhor quiser, poderemos pagar imediatamente, é claro, mas nós em geral liquidamos nossas contas mensalmente.

“Se eu mostrar agora que aceito qualquer coisa, estou perdido”, disse consigo mesmo. “Tudo o que eu preciso tomarei mais tarde.” E em voz alta: — Quase nem vale a pena, e a verdade é que eu vou passar um mês no campo. Esperem até à minha volta e trataremos disso.

— Esperamos que o senhor não tencione se desligar da nossa casa, Sr. Heldar?

A função de Dick na vida era estudar fisionomias, e ele observou atentamente a do seu interlocutor. “Esse homem tem alguma coisa em mente”, disse consigo. “Não farei negócio enquanto não falar com Torpenhow. Pressinto aqui um grande negócio.” Partiu, pois, sem fazer promessas, para o seu quartinho junto às docas. E era no dia sete do mês e esse mês, calculou com terrível precisão, tinha trinta e um dias!

Não é fácil para um homem de gostos civilizados e apetite sadio sobreviver vinte e quatro dias com cinquenta xelins. Nem é animador começar a experiência sozinho na imensa solidão de Londres. Dick pagava sete xelins por semana pela habitação, o que deixava menos de um xelim por dia para comida e bebida.

Naturalmente, a sua primeira compra foi de materiais da sua profissão. Havia muito tempo já que estava sem eles. Após meio dia de investigações e comparações, chegou à conclusão de que a melhor comida eram salsichas e purê de batata a dois pence o prato. Ora, as salsichas duas ou três vezes por semana, ao café, não são desagradáveis. Ao começo mesmo, com purê de batata, tornam-se monótonas. Ao jantar são impertinentes. Ao fim de três dias Dick execrava salsichas e, não aguentando mais, empenhou o relógio para se banquetear com uma cabeça de carneiro, que não é tão barata como parece, devido aos ossos e ao molho. Voltou às salsichas e às batatas esmagadas. Depois limitou-se inteiramente a purê de batata durante um dia e sentiu-se infeliz por causa da dor que sentia por dentro. A seguir empenhou o colete e a gravata e pensou com pesar no dinheiro desperdiçado em tempos idos. Há poucas coisas mais edificantes para a arte do que o verdadeiro aguilhão da fome, e Dick em seus poucos passeios — ele não fazia questão de exercício, pois criava desejos que não podia satisfazer — surpreendeu-se dividindo a humanidade em duas classes: os que parecia que poderiam dar alguma coisa para comer e os que davam impressão contrária. “Nunca imaginei antes que coisas teria de aprender sobre a fisionomia humana!” pensou, e, como recompensa por sua humildade, a Providência fez um cocheiro que comia na salsicharia onde Dick estava comendo também nessa noite deixar um naco de pão mordido na mesa. Dick apanhou-o — teria lutado por ele com unhas e dentes — e ficou reconfortado.

O mês se arrastou até ao fim e, quase caracolando de impaciência, foi receber o seu dinheiro. Depois apressou-se a procurar o endereço de Torpenhow e sentiu o cheiro de comidas ao longo de todos os corredores da pensão onde ele morava.

Torpenhow vivia no último andar e Dick irrompeu no quarto, sendo recebido com um abraço que quase quebrou as costelas.

Torpenhow arrastou-o para a luz e falou de vinte coisas diferentes quase sem respirar.

— Mas você parece muito magro — concluiu.

— Você tem alguma coisa que se coma? — perguntou Dick, percorrendo o quarto em volta com os olhos.

— Vou tomar o café daqui a um minuto. Que tal umas salsichas?

— Não! Tudo, menos salsichas! Torp, há trinta dias e trinta noites que definho alimentando-me com essa maldita carne de cavalo.

— Como? Qual foi a sua última maluquice?

Dick falou extensamente das últimas semanas. Depois abriu o casaco: estava sem colete.

— Passei maus bocados, muito maus, mas aguentei até ao fim.

— Você não tem muito bom senso, mas ao menos tem fibra.

Coma e fale depois.

Dick atirou-se aos ovos com toucinho e empanturrou-se até não poder mais. Torpenhow entregou um cachimbo cheio e ele fumou como costumam fumar homens que durante três semanas estiveram privados de bom fumo.

— Ufa! — fez ele. — É maravilhoso! Muito bem...

— Por que diabo não veio procurar-me?

— Não podia; já devo demais, meu velho. Além disso, eu tinha uma espécie de superstição de que esta fome temporária — foi fome mesmo e que fome! — me daria mais sorte no futuro. Já passou completamente e ninguém no sindicato sabe os apuros que passei. Desembuche. Qual é o estado exato dos negócios no que me diz respeito?

— Recebeu o meu telegrama? Você fez sucesso aqui. O público gostou imensamente do seu trabalho. Não sei por que, mas gostou.

Dizem que você tem um estilo vigoroso e uma maneira nova de desenhar coisas. E porque eles são principalmente pacatos ingleses, dizem que você tem inspiração. Há uma meia dúzia de jornais que querem o seu trabalho: procuram-no para ilustrar livros.

Dick rosnou desdenhosamente.

— Querem que você amplie os seus esboços menores e os venda aos negociantes. Parece que acham que o dinheiro empregado em você é bom investimento. Meu Deus! Quem pode explicar a loucura insondável do público?

— Eles são gente extremamente sensata.

— Eles são sujeitos a venetas, diga assim, e acontece que você é o objeto da última veneta entre os que se interessam pelo que eles chamam de arte. Neste momento você é uma moda, um fenômeno ou o que você queira. Parece que eu era a única pessoa que sabia alguma coisa a seu respeito aqui, e tenho mostrado aos homens mais convenientes os poucos desenhos que você me ia dando de tempos a tempos. As pessoas que vieram atrás dos seus trabalhos para o Sindicato Central Meridional parecem que o favoreceram. Você está de sorte.

— Hum! Chame sorte se quiser! Chame sorte, depois que um homem andou batendo perna por esse mundo afora como um cão à procura dela! Deixe estar que eu vou dar a sorte mais tarde!

Primeiro preciso de um lugar para trabalhar.

Venha aqui — convidou Torpenhow, atravessando o patamar. — Isto aqui é apenas um grande salão, mas servirá para você. Aí tem a sua claraboia, a sua estrela polar ou o que queira chamar-lhe, bastante espaço para se mexer e um dormitório além. Que mais precisa?

— Perfeitamente bom — respondeu Dick.

Examinou o grande quarto, que ocupava um terço do último andar na desmantelada casa de pensão a cavaleiro do Tâmisa. Um pálido sol amarelo entrava pela claraboia e mostrava toda a sujeira que havia no lugar. Três degraus levavam da porta ao patamar e outros três ao quarto de Torpenhow. A caixa da escada desaparecia na escuridão salpicada de pequeninos bicos de gás, e havia vozes de homens e ruído de portas batendo sete andares abaixo, na obscuridade quente.

— Eles dão liberdade completa aqui à gente? — perguntou Dick precavidamente.

Ele era suficientemente vagabundo para reconhecer o valor da liberdade.

— Toda a que você quiser: terá a chave da porta da rua e liberdade ilimitada. A maior parte somos inquilinos permanentes.

Não é um lugar que eu recomendaria à Associação Cristã dos Moços, mas servirá. Eu aluguei estes aposentos para você quando telegrafei.

— Você é a bondade em pessoa, meu velho.

— Você não estava pensando em me escapar, pois não?

Torpenhow pôs a mão no ombro de Dick e os dois começaram a andar pelo quarto, a partir de então chamado estúdio, em suave e silenciosa comunhão.

Ouviram bater à porta de Torpenhow.

— É algum vagabundo que subiu para tomar uns goles — observou Torpenhow, e levantou a voz alegremente.

A pessoa que entrou era um gordo cavalheiro de meia idade e sobrecasaca acetinada. Tinha os lábios entreabertos e pálidos e profundas bolsas abaixo dos olhos.

“Coração fraco”, pensou Dick enquanto apertava a mão, “coração muito fraco. E o pulso faz tremer os dedos.” O homem apresentou-se como o chefe do Sindicato Central Meridional e “um dos mais ardentes admiradores do seu trabalho, Sr. Heldar. Afirmo-lhe, em nome do sindicato, que nós temos uma enorme dívida para com o senhor, e espero, Sr. Heldar, que não se esqueça de que nós concorremos muito para apresentá-lo ao público”.

Arquejava pelo esforço de subir os sete lanços de escadas.

Dick olhou de relance para Torpenhow, cuja pálpebra esquerda baixou e se deteve assim por um momento.

— Não esquecerei — respondeu Dick, com todos os instintos de defesa despertados. — Os senhores pagaram-me tão bem, que eu não poderia, sabe? A propósito, depois que eu me instalar neste lugar, gostaria de mandar buscar os meus desenhos. Os senhores devem ter lá perto de cento e cinquenta.

— Foi sobre isso... que eu vim falar com o senhor. Infelizmente não se vai poder fazer exatamente assim, Sr. Heldar. Na ausência de qualquer acordo expresso, os desenhos são propriedade nossa, naturalmente.

— Quer dizer que vão ficar com eles?

— Sim, esperamos obter a sua ajuda, nas condições que o senhor estipular, Sr. Heldar, para que possamos fazer uma pequena exposição que, patrocinada pelo nosso nome e com a influência que temos no seio da imprensa, será de utilidade material para o senhor.

Desenhos como os seus...

— Pertencem-me. O senhor contratou-me por telegrama, pagou-me o preço mais baixo que se atreveu a pagar-me, não pode pensar em ficar com eles! Por Deus, homem, eles são tudo o que eu tenho na vida!

Torpenhow observou a fisionomia de Dick e assobiou.

Dick começou a andar para um lado e para o outro, pensando.

Viu toda a sua modesta mercadoria, a primeira arma de seu equipamento, anexada no começo de sua campanha por aquele idoso cavalheiro cujo nome Dick não tinha pegado bem, o qual dizia representar um sindicato, coisa pela qual Dick não tinha a menor reverência. A injustiça do ato não o revoltou muito; ele tinha visto a força prevalecer com demasiada frequência em outros lugares para se mostrar muito escrupuloso quanto aos aspectos morais de justo ou injusto. Mas tinha um ardente desejo de espancar o cavalheiro de sobrecasaca e, quando falou de novo, foi com uma doçura forçada que Torpenhow conhecia muito bem como o começo da luta.

— Desculpe, cavalheiro, mas os senhores não têm um... um homem mais moço para tratar deste negócio comigo?

— Eu falo em nome do sindicato. Não vejo razão para incluir um terceiro...

— O senhor vai ver a razão em um momento. Tenha a bondade de me devolver os meus desenhos.

O homem olhou confusamente para Dick, depois para Torpenhow, que estava encostado na parede. Não estava acostumado a ex-empregados que ordenassem que tivesse a bondade de fazer coisas.

— Realmente, é um roubo a sangue-frio — declarou Torpenhow tranquilamente — mas receio, receio muito que o senhor tenha assaltado o homem errado. Tenha cuidado, Dick, lembre-se de que isto aqui não é o Sudão.

— Considerando os serviços que o sindicato prestou apresentando o seu nome ao público...

Foi uma observação infeliz. Fez Dick lembrar-se dos anos de vida errante em solidão, luta e desejos insatisfeitos. A recordação não combinava bem com o próspero cavalheiro que se propunha gozar o fruto desses anos.

— Não sei bem o que fazer com o senhor — começou Dick meditativamente. — O senhor é um ladrão, naturalmente, e deveria ser meio morto, mas provavelmente morreria. Não o quero ver morto nesta casa: além disso, seria de mau agouro quando me mudo para aqui. Não ataque, cavalheiro; só servirá para prejudicar a saúde.

Pôs uma mão no antebraço do homem e passou a outra pelo corpo roliço debaixo do casaco.

— Meu Deus! — disse a Torpenhow — imagine este pobre diabo grisalho atrever-se a ser ladrão! Uma vez vi retalhar a pele negra de um cameleiro de Esneh a golpes de correia por ter roubado duzentos e cinquenta gramas de tâmaras frescas, e ele tinha a pele rija como cordel de chicote. Esta coisa aqui é toda mole... como uma mulher.

Há poucas coisas mais dolorosamente humilhantes do que ser manuseado por um homem que não tenciona bater-nos. O chefe do sindicato começou a resfolegar. Dick andava em volta dele, apalpando-o como um gato apalpa o tapete macio da lareira. Depois fez um traço com o dedo por baixo das bolsas plúmbeas embaixo dos olhos do homem e abanou a cabeça.

— O senhor ia roubar as minhas coisas... minhas, minhas, minhas!... o senhor, que não sabe quando poderá morrer. Escreva um bilhete ao seu escritório — o senhor diz que é o chefe dele — e ordene que entreguem a Torpenhow os meus desenhos... todos eles até ao último! Espere um instante: sua mão está tremendo... Agora!

E pôs um caderninho diante dele. O bilhete foi escrito.

Torpenhow apanhou-o e partiu sem uma palavra, enquanto Dick continuava andando ao redor do fascinado cativo, dando os conselhos que achava mais convenientes para o bem-estar de sua alma Quando Torpenhow voltou com uma pasta gigantesca, ouviu Dick dizer em tom quase apaziguador: — Muito bem; espero que isto sirva de lição, e, se me aborrecer com qualquer tolice de processo por assalto, depois que eu me houver instalado para trabalhar, creia-me, agarro-o e maltrato-o, e o senhor morrerá. Tanto mais que o senhor não tem muito tempo de vida. Vá! Imshi Vootsak — vá-se embora!

O homem partiu cambaleante e aturdido. Dick respirou profundamente: — Uf! Que gente velhaca que são estes indivíduos! A primeira coisa que um pobre órfão encontra é roubo coletivo, roubo organizado! Pense só na negrura hedionda do espírito desse homem! Os meus desenhos estão todos em ordem, Torp?

— Estão. São cento e quarenta e sete. Bem, devo confessar, Dick, que você começou bem.

— Ele estava-se atravessando em meu caminho. Para ele isso representava apenas algumas libras, para mim era tudo. Não creio que intente qualquer ação. Eu dei alguns conselhos médicos gratuitos sobre o estado do corpo dele. Foram baratos pelo pequeno nervosismo que custaram. Bem, vamos ver agora as minhas coisas.

Dois minutos depois Dick estava estendido no chão profundamente concentrado no conteúdo da pasta, rindo carinhosamente à medida que ia virando os desenhos e pensava no preço por que haviam sido comprados.

Já a tarde ia bem adiantada quando Torpenhow chegou à porta e viu Dick dançando uma sarabanda maluca debaixo da claraboia.

— Fiz um trabalho melhor do que eu imaginava, Torp — disse, sem parar de dançar, — São ótimos! São excelentes! Vão ser vendidos em um abrir e fechar de olhos! Vou fazer uma exposição por minha própria conta. E aquele homem queria privar-me disto!

Sabe que me arrependo agora de não ter batido?

— Saia aconselhou Torpenhow — saia e reze para que Deus o livre do pecado da arrogância, que você nunca perderá. Traga as suas coisas do lugar onde morava e procuraremos tornar este palheiro um pouco mais habitável.

— E depois... Oh, depois — exclamou Dick, sempre dançando — despojaremos os egípcios!

 

Capítulo IV

O lobo está escondido na seara,
À hora em que a fumaça das cozinhas
Encobre todo o ar com nuvenzinhas.
É o lobinho novo.
Atento espia
O ninho onde a mãe-corça esconde a cria,
Medindo a inércia da visada presa
Por sua própria e débil fortaleza.
... A Lua espanta a névoa de repente,
O lobo deixa a refeição na mesa
E uiva para a Lua tristemente.
Em Seoni

— Então. que tal o gosto do sucesso? — perguntou Torpenhow uns três meses depois.

Acabava de regressar ao seu quarto após umas férias no campo.

— Bom — respondeu Dick, que estava sentado diante do cavalete no estúdio lambendo os lábios. — E quero mais... muito mais. Os anos das vacas magras passaram e eu gosto destes das vacas gordas.

— Tenha cuidado, meu velho. Esse caminho conduz a trabalho de má qualidade.

Torpenhow estava esparramado numa espreguiçadeira com um pequeno fox-terrier adormecido sobre o peito, enquanto Dick preparava uma tela. Um estrado, um pano de fundo e um manequim de pintor eram os únicos objetos fixos no lugar. Erguiam-se em meio a uma confusão de diversas coisas, desde cantis de água recobertos de feltro, cintos e distintivos de fardas, a um pequeno fardo de uniformes de segunda mão e um cabide de armas diversas.

Rastos de pés enlameados sobre o estrado indicavam que um modelo militar acabava de sair. O sol pálido de outono estava perto do ocaso e havia sombras nos cantos do estúdio.

— Sim — declarou Dick com firmeza — eu gosto do poder; gosto do divertimento, gosto da agitação e, sobretudo, gosto do dinheiro. Quase chego a gostar das pessoas que fazem a agitação e pagam o dinheiro. Quase. Mas são uma turma esquisita...

espantosamente esquisita.

— De qualquer modo, têm sido bastante boas para você.

Aquela exposição espalhafatosa dos seus desenhos deve ter sido compensadora. Você viu que os jornais a chamaram de “Espetáculo Selvagem”?

— Não faz mal. Eu vendi todo trapo de tela que quis vender, e sinceramente, acho que foi porque eles me julgaram um artista autodidata e vagabundo. Eu teria obtido preços melhores se houvesse executado minhas coisas em panos de lã ou as tivesse rabiscado em osso de camelo em vez de usar simplesmente preto e branco e cores. São realmente uma turma esquisita esta gente.

Limitada não é bem a palavra para descrevê-la. Outro dia conheci um sujeito que me disse que as sombras na areia branca não podiam ser azuis — Ultramar — como são. Descobri depois que a viagem mais longa que o homem tinha feito fora até à praia de Brighton, mas sabia tudo a respeito de arte, o maldito. Fez-me uma preleção e recomendou-me que fosse para uma escola aprender técnica. Gostaria de saber o que o velho Kami teria a dizer àquilo!

Quando foi que você estudou com Kami, homem de começos extraordinários?

— Eu estudei com ele dois anos em Paris. Ele ensinava por magnetismo pessoal. A única coisa que dizia sempre era: Continuez, mes enfants (1), e a gente tinha de tirar disso o melhor proveito que pudesse. Ele tinha um estilo divino e entendia um pouco de cores. Kami sonhava as suas cores; tenho a certeza de que ele nunca viu o artigo genuíno, mas criava-o e era bom.

— Lembra-se de algumas daquelas paisagens do Sudão? — perguntou Torpenhow para incitá-lo.

Dick agitou-se na cadeira.

— Por favor! A evocação faz-me querer voltar para lá. Que cores aquelas! Opala e umbra, âmbar, clarete, vermelho tijolo e enxofre — enxofre de crista de cacatua sobre marrom, com uma rocha cor de azeviche projetando-se no meio de tudo e um friso decorativo de camelos formando um festão contra um puro céu pálido de turquesa.

Começou a andar para um lado e para outro.

— Entretanto, você sabe, se a gente tenta dar a esta gente a coisa como Deus a deu, facilitada para a compreensão deles e de acordo com o talento que Ele nos conferiu...

— Homem modesto! Continue.

— Vêm meia dúzia de jovens e efeminados pagãos, que nunca estiveram sequer em Argel e nos dizem, primeiro, que a nossa ideia é um plágio, depois que não é arte.

— Foi isso que eu arranjei deixando a cidade durante um mês.

Dick, você andou passeando entre as lojas de brinquedos e ouvindo gente falar.

— Não pude evitá-lo — respondeu Dick em tom penitente. — Você não estava aqui e eu me sentia só durante os longos serões.

Um homem não pode trabalhar o tempo todo.

— Um homem poderia ter ido a uma taverna e tomado uma bebedeira decente.

— Quisera ter feito isso, mas juntei-me com essa gente gárrula.

Diziam que eram artistas e eu sabia que alguns deles sabiam desenhar, mas não desenhavam. Ofereciam-me chá — chá às cinco da tarde! — e falavam de arte e do estado de suas almas. Como se as almas deles tivessem importância. Ouvi mais a respeito de arte e vi menos arte nestes últimos seis meses do que em toda a minha vida. Você se lembra de Cassavetti, que trabalhava para um sindicato continental qualquer junto a uma coluna do deserto? Era uma verdadeira árvore de Natal de aparelhos e engenhocas quando partia em campanha completamente equipado com o cantil de água, a corda, o revólver, a pasta de escrever, o estojo de costura, as lâmpadas complicadas e Deus sabe quantas coisas mais! Ele costumava ficar remexendo em tudo aquilo para mostrar como funcionava, mas parece que nunca fez grande coisa além de extrair os despachos dele dos do Nilgó (2). Compreende?

— O bom e querido Nilgó! Ele está na cidade, mais gordo do que nunca. Deve vir aqui esta noite. Vejo perfeitamente a comparação. Você não devia ter-se metido com essa súcia de modistas masculinos. Foi bem-feito e espero que mude o seu modo de pensar.

— Não vai mudar. Aquilo me ensinou o significado de arte — a santa, a sacrossanta arte!

— Você aprendeu algo enquanto eu estive ausente. Que é arte?

— Dar o que eles querem e, depois disso, dar mais. — Dick puxou uma tela que estava voltada para a parede. — Aqui está uma amostra de arte genuína. Vai ser reproduzida por um semanário.

Intitulei-a “Seu Último Tiro”. Baseei-a na pequena aquarela que fiz fora de El Maghrib. Pois bem, atraí meu modelo, um belo carabineiro, aqui para cima com bebida; embebedei-o até não poder mais e transformei-o em um bruto exaltado, desgrenhado, endemoninhado, com o capacete caído para trás, o medo vivo da morte no olhar, o sangue a brotar de um corte acima do tornozelo.

Não era bonito, mas era soldado da cabeça aos pés e humaníssimo.

— Modesto que você é!

Dick riu.

— Bem, só a você estou contando isto. Pintei-o tão bem quanto me foi possível, tirando vantagem do brilho das tintas a óleo. E então o diretor artístico daquele maldito jornal disse que seus assinantes não iriam gostar dele, Era brutal, rude e violento e os homens são naturalmente meigos quando lutam pela própria vida.

Ele queria algo mais sereno, com um pouco mais de cor. Eu poderia ter dito uma porção de coisas, mas falar a um diretor artístico seria o mesmo que falar a um carneiro. Trouxe de volta o meu “Último Tiro”.

Veja o resultado! Vesti um bonito casaco vermelho, sem uma mancha. Isto é Arte. Envernizei os sapatos — observe a luz viva na biqueira. Isso é Arte. Limpei o fuzil — os fuzis estão sempre polidos em serviço — porque isso é Arte. Branqueei o capacete — em serviço ativo usa-se sempre argila plástica para branquear, e é indispensável à Arte. Barbeei o queixo, lavei as mãos e dei um ar de nédia paz. Resultado: um manequim de alfaiate militar. Preço: graças a Deus o dobro do que pedi pelo primeiro desenho, que foi moderadamente decente.

— E você tenciona apresentar essa coisa como trabalho seu?

— Por que não? Fui eu que a fiz. Eu a fiz unicamente no interesse da sacrossanta arte burguesa e do Dickenson’s Weekly.

Torpenhow fumou em silêncio durante algum tempo. Depois deu o seu veredito através de nuvens de fumaça: — Se você fosse apenas um poço de arrogante vaidade, Dick, eu não me importaria... deixaria que fosse para o diabo montado na sua varinha de pintor; mas quando considero o que você representa para mim e verifico que à vaidade você acrescenta a suscetibilidade insignificante de uma garotinha de doze anos, então faço alguma coisa em seu favor. Assim!

Torpenhow deu um pontapé na tela, fazendo um grande rombo, e o terrier saltou para o chão pensando que houvesse ratos no quarto.

— Se você tem alguns palavrões no seu vocabulário, use-os.

Vejo que não os tem. Vou continuar. Você é um idiota, porque nenhum homem nascido de mulher é bastante forte para brincar com o seu público, embora ele seja — e não é — o que você diz que é.—

Eles não sabem nada! Que se pode esperar de criaturas nascidas e criadas nesta luz? — acrescentou Dick, apontando para o nevoeiro amarelo. — Se eles querem verniz de mobília, nós daremos verniz de mobília, enquanto pagarem. Eles são apenas homens e mulheres. Você fala como se fossem deuses.

— Isso é muito bonito, mas não tem nada a ver com o caso.

Eles são a gente para quem você tem de trabalhar, quer goste quer não. São os seus patrões. Não se iluda, Dick, você não é bastante forte para zombar deles... nem de você mesmo, o que é mais importante. Além disso — venha aqui, Binkie: esse borrão vermelho não vai a parte alguma — se não tomar muito cuidado, cairá sob a maldição do livro de cheques, e isso é pior do que a morte. Você se embriagará — e já está meio ébrio — com o dinheiro fácil. Por esse dinheiro e a sua vaidade infernal, está resolvido a produzir conscientemente mau trabalho. Você já fará bastante mau trabalho sem o saber. E, Dick, pela amizade que eu dedico e pela amizade que sei que você me dedica, eu não vou permitir que você corte o seu nariz para mutilar o seu rosto por todo o dinheiro da Inglaterra.

Está entendido. Agora jure.

— Não sei — respondeu Dick. — Eu tenho estado aqui tentando irritar-me, sem o conseguir, ouvindo você falar de modo tão abominavelmente sensato. Acho que vai haver briga lá no Dickenson’s Weekly.

— Por que diabo você há de querer trabalhar em um semanário? Isso é morte lenta.

— Ele me dá os muito apreciáveis dólares — replicou Dick, com as mãos nos bolsos.

Torpenhow olhou-o com grande desprezo.

— E eu pensei que você era um homem! — exclamou. — É uma criança!

— Não, não sou — respondeu Dick, voltando-se rapidamente.

— Você não faz ideia do que significa a certeza do dinheiro para um homem que sempre precisou dele desesperadamente. Nada me compensará de alguns dos prazeres da vida que perdi; como naquele barco de porcos chinês, por exemplo, quando comíamos pão e geleia de fruta em todas as refeições, porque Ho-Wang não nos permitia comer nada melhor, e tudo tinha gosto de porco...

porco chinês. Eu trabalhei por isto, suei por isto e passei fome por isto, linha após linha e mês após mês. E, agora que o consegui, vou aproveitá-lo ao máximo enquanto durar. Que eles paguem... já que não entendem nada!

— E que é que Vossa Majestade se digna querer? Você não pode fumar mais do que fuma; não bebe; não é um gastrônomo; pelo seu aspecto, você se veste no escuro. O outro dia, quando sugeri que comprasse um cavalo, você disse-me que não o queria porque poderia ficar manco, e que, toda a vez que atravessa a rua, toma um cabriolé. Nem mesmo você é bastante idiota para supor que os teatros e todas as coisas vivas que poderá conseguir nas redondezas, significam Vida. Para que diabo quer o dinheiro?

— Para tê-lo, para sentir o seu conforto dourado — respondeu Dick. — Para sentir a presença dele o tempo todo.

A Providência mandou-me nozes enquanto tenho dentes para quebrá-las. Eu ainda não achei a noz que desejo quebrar, mas conservarei os dentes afiados. Talvez algum dia eu e você vamos dar um passeio ao redor de todo o mundo!

— Sem nada que fazer, sem ninguém para nos aborrecer e ninguém com quem competir? Ao fim de uma semana não se poderia mais falar com você. Além disso, eu não iria. Não me interessa vantagem ao preço da alma de um homem... pois seria isso o que representaria. Dick, não adianta discutir. Você é um idiota.—

Não acho. Quando estive naquele barco de porcos chinês, o nosso capitão recebeu muitas honrarias por ter salvado cerca de vinte e cinco mil porquinhos muito mareados quando o nosso desmantelado vapor foi abalroado por um junco de madeira. Ora, muito bem, tomemos estes porcos como comparação ...

— Para o diabo as suas comparações! Toda vez que eu tento melhorar a sua alma, você sempre me vem com algum episódio insignificante de seu passado muito escuso. Porcos não são público inglês, honra em alto-mar não é honra aqui e dignidade é dignidade em todo o mundo. Vá para a rua dar um passeio e apanhe um pouco de dignidade. E, espere, se o Nilgó vier aqui esta noite, posso mostrar a sua espelunca?

— Claro. Daqui a pouco você vai perguntar-me se pode bater à minha porta.

E Dick saiu para se aconselhar consigo mesmo no nevoeiro espesso de Londres.

Meia hora depois de ele ter saído, o Nilgó subiu penosamente a escada para o quarto de Torpenhow. Era o principal e o mais volumoso dos correspondentes de guerra, e suas aventuras datavam do advento do fuzil Dreyse. Com exceção de Keneu, a Grande Águia de Guerra, seu aliado, não havia nenhum homem mais portentoso do que o Nilgó na profissão, e ele sempre iniciava sua conversa com notícias de que ia haver encrenca nos Bálcãs na primavera. Torpenhow riu quando ele entrou.

— Esqueça a encrenca dos Bálcãs. Aqueles estadozinhos estão sempre berrando. Você teve notícia da boa sorte de Dick?

— Tive. Ele conseguiu notoriedade, não é? Espero que você o conserve devidamente humilde. Ele precisa de ser refreado de vez em quando.

— Realmente. Dick está começando a abusar do que ele considera a sua reputação.

— Já? Por Júpiter, ele tem atrevimento! Eu não sei nada sobre a reputação dele, mas, se fizer isso, resultará em um fracasso.

— Foi o que eu disse. Não creio que ele acredite.

— Eles nunca acreditam quando começam. Que ruína é aquela ali no chão?

— Uma amostra da última impertinência dele.

Torpenhow juntou as beiras rasgadas da tela e mostrou o quadro lambido ao Nilgó, que o olhou durante algum tempo, depois assobiou.

— É um cromo — observou — um perfeito cromo litográfico!

Que espécie de espírito se apoderou dele para fazer semelhante coisa? E, no entanto, com que perfeição ele captou a nota que prende o público que pensa com as botinas e lê com os cotovelos! A fria insolência do trabalho quase o justifica; mas ele não deve continuar esta espécie de coisa. Ele não tem sido elogiado e lisonjeado demais? Você sabe que está gente não tem noção de medida. Enquanto dura a moda, chamam um segundo Detaille e um Meissonier de terceira mão. Isso é prato violento para um jovem.

— Não creio que afete muito Dick. Seria o mesmo que você chamar leão a um lobinho e esperar que ele recebesse o cumprimento em troca de um osso. A alma de Dick está no Banco.

Ele trabalha por dinheiro.

— Agora que abandonou o serviço de guerra, creio que não percebe que as obrigações do serviço são exatamente as mesmas, que só os proprietários mudaram.

— Como é que vai saber? Ele acha que é patrão de si mesmo.

— Acha? Eu poderia desenganá-lo para o bem dele, se a palavra impressa pode produzir algum efeito. Ele deve ser castigado.

— Use de ciência então. Eu mesmo o faria, mas gosto muito dele.

— Eu não tenho escrúpulos. Uma vez ele teve a audácia de tentar tomar-me uma mulher no Cairo. Esqueci isso, mas agora me lembro.

— E tomou-lhe?

— Você saberá quando eu tiver lidado com ele. Mas será que adianta alguma coisa? Deixemo-lo em paz e, se tiver algo que se aproveite dentro de si, ele voltará arrastando ou abanando a cauda.

Há mais força numa semana de vida do que em um vigoroso semanário. Não obstante, vou desancá-lo. Vou desancá-lo em regra no Cataclysm.

— Boa sorte para você: mas eu acho que nada aquém de uma barra de ferro faria Dick sentir alguma coisa. A alma dele já tinha sido expulsa do corpo antes de o conhecermos. Ele é interessantemente desconfiado e completamente anárquico.

— É uma questão de temperamento — observou o Nilgó. — Dáse o mesmo com os cavalos. Uns a gente espanca e eles trabalham, outros espancam-se e empacam, outros, quando espancados, saem a passear com as mãos nos bolsos.

— Foi exatamente isso que Dick fez — declarou Torpenhow. — Espere que ele volte. Nesse meio tempo, você pode começar a desancá-lo aqui. Vou mostrar alguns dos últimos e piores trabalhos dele neste estúdio.

Dick havia instintivamente procurado água corrente para conforto de seu estado de espírito. Estava debruçado no muro do Embankment vendo a água do Tâmisa correr através dos arcos da Ponte de Westminster. Começou a pensar nos conselhos de Torpenhow, mas, como de costume, perdeu-se no estudo das caras que passavam. Algumas delas tinham a morte escrita nas feições e Dick admirava-se de que pudessem rir. Outras, rudes e grosseiras em sua maioria, eram iluminadas pelo amor; outras ainda se apresentavam apenas contraídas e vincadas pelo trabalho; mas havia algo que se podia tirar de todas elas. Os pobres deviam pelo menos sofrer para que ele pudesse aprender, e os ricos deveriam pagar pelo rendimento de sua sabedoria. Assim aumentariam a sua reputação no mundo e seu saldo no Banco. Tanto melhor para ele.

Ele havia sofrido. Agora cobraria tributo sobre os males dos outros.

O nevoeiro fendeu-se e por um momento o sol projetou-se na água como uma obreia cor de sangue. Dick ficou a observar a marcha vermelha até que ouviu a voz das ondas entre os pilares morrer como o marulho do mar na maré baixa. Uma moça importunada pelo namorado gritou descaradamente: “Oh, afaste-se, animal!” e uma mudança do mesmo vento que abrira o nevoeiro fez passar diante do rosto de Dick a fumaça negra de um cargueiro do rio em seu ancoradouro abaixo do muro. Ele ficou cego por um instante, depois voltou-se rapidamente e encontrou-se face a face com... Maisie!

Não havia dúvida. Os anos haviam transformado a criança em uma mulher, mas não haviam alterado os olhos pardos, os finos lábios escarlates, nem a boca e o queixo firmemente modelados, e, para que tudo fosse como noutro tempo, ela trajava um vestido cinza bem justo.

Como a alma humana é finita e não se encontra absolutamente sob o próprio domínio, Dick, adiantando-se, disse à maneira dos estudantes: — Oi!

E Maisie respondeu: — Oh! É você, Dick?

Depois, contra a sua vontade e antes que o cérebro recémlibertado de considerações de saldo bancário tivesse tempo de dar ordens aos nervos, todas as veias do corpo de Dick latejaram furiosamente e ele sentiu o céu da boca seco. O nevoeiro desceu de novo e o rosto de Maisie, através dele, ficou de um branco de pérola. Não trocaram nenhuma outra palavra, mas Dick emparelhou com ela e os dois seguiram lado a lado pelo Embankment, marchando a passo cadenciado como em suas excursões vespertinas até à praia. Então disse com voz um pouco áspera: — Que aconteceu a Amomma?

— Morreu, Dick. Não dos cartuchos, mas de comer demais. Ele foi sempre guloso. Não é engraçado?

— É. Não. Você se refere a Amomma?

— Sim. Não. Isto. De onde é que você veio?

— De lá — respondeu Dick, apontando para os lados de leste através do nevoeiro. — E você?

— Oh, eu moro no Norte... no extremo norte, do outro lado do Parque. Ando muito ocupada.

— Que é que você faz?

— Pinto muito. É a única coisa que tenho para fazer.

Como? Que aconteceu? Você tinha trezentas libras por ano.

— E ainda as tenho. Pinto, eis tudo.

— Então você está só?

— Uma moça mora comigo. Não ande tão depressa, Dick; você está fora de cadência.

— Você notou também?

— Naturalmente. Você está sempre fora de cadência.

— É verdade. Sinto muito. Então você continuou pintando?

— Naturalmente. Eu disse que ia continuar. Estive no Slade, depois no Merton, em St. John’s Wood, o grande estúdio, depois frequentei o National... e agora estudo com Kami.

— Mas Kami não está em Paris?

— Não; ele tem o estúdio-escola em Vitry-sur-Marne. Eu estudo com ele no verão e moro em Londres no inverno. Tenho casa montada aqui.

— Você vende muito?

— De vez em quando, mas não muito. Aí está o meu ônibus. Se o não tomar, terei de esperar meia hora. Adeus, Dick.

— Adeus, Maisie. Não me quer dizer onde mora? Eu preciso vêla novamente, e talvez pudesse ajudá-la. Eu... eu também pinto um pouco.

— É possível que eu esteja no Parque amanhã, se não houver luz para trabalhar. Costumo dar um passeio partindo do Arco de Mármore e de volta; é a minha pequena excursão. Mas, naturalmente, eu o verei de novo.

Tomou o ônibus e foi engolida pelo nevoeiro.

— Que o diabo me carregue! — exclamou Dick, e voltou para sua casa.

Torpenhow e o Nilgó encontraram-no sentado nos degraus da porta do estúdio repetindo a frase com sinistra gravidade.

— O diabo o carregará ainda melhor quando eu acabar com você — declarou o Nilgó, erguendo o grande vulto de trás do ombro de Torpenhow e agitando um maço de folhas manuscritas com a tinta ainda fresca. — Dick, é voz corrente que você está sofrendo de cabeça inchada.

— Olá, Nilgó. De volta outra vez? Como vão os Bálcãs? Um lado de você está fora de foco, como de costume.

— Isso não vem ao caso. Eu fui encarregado de desancar você em letra de fôrma. Torpenhow recusa-se a fazê-lo por falsa delicadeza. Estive examinando as últimas obras do seu ganha-pão no estúdio. São simplesmente vergonhosas.

— Oh! Você acha? Pois se pensa que pode criticar-me, está enganado! Você só sabe descrever e precisa de tanto espaço para se mover no papel como um navio cargueiro da Peninsular e Oriental. Mas continue e seja breve. Eu vou dormir.

— Hum-hum! A primeira parte trata apenas dos seus quadros.

Aqui está a conclusão: “Por trabalho feito sem convicção, por força desperdiçada em trivialidades, por esforço consumido com leviandade para o fim expresso de conquistar o aplauso fácil de um público dedicado à moda...

— Isso é “Seu Último Tiro”, segunda edição. Continue.

— ... “moda, resta apenas um fim — o olvido, que é precedido da tolerância e tem como centeio o desprezo. O Sr. Heldar ainda terá de nos provar que não está livre desse perigo.” — Conversa, conversa, conversa! — exclamou Dick asperamente. — É um fim canhestro e jornalismo ordinário, mas perfeitamente verdadeiro. Entretanto — acrescentou, levantando-se de um salto e tirando o manuscrito da mão do outro — escute aqui, velho gladiador, marcado, depravado e amarrotado! Quando a guerra começa, você é enviado para satisfazer a sede bestial de sangue do cego e brutal público inglês. Hoje não existem arenas, mas eles precisam ter correspondentes de guerra. Você é um gladiador gordo, que entra por um alçapão, espreita e conta o que viu. Está precisamente no mesmo nível de um bispo enérgico, de uma atriz afável, de um ciclone devastador ou... da minha gentil pessoa. E atreve-se a dar-me lições sobre o meu trabalho! Nilgó, se valesse a pena, eu o caricaturava em quatro jornais!

O Nilgó assustou-se. Não tinha pensado nisso.

— Em vez disso, tomo esta droga e rasgo-a em pedacinhos ... assim!

O manuscrito voou em pedacinhos pelo poço escuro da escada.

— Vá para casa, Nilgó — continuou Dick. — Vá para casa, para a sua caminha solitária e deixe-me em paz. Eu vou recolher-me até amanhã.

— Quê? Ainda não são nem sete horas! — exclamou Torpenhow com espanto.

— Serão duas horas da manhã se eu decidir — replicou Dick, recuando para a porta do estúdio. — Vou debater-me em uma crise muito séria e não quero jantar.

Entrou e fechou a porta à chave.

— Que se pode fazer com um homem assim? — observou o Nilgó.—

Deixá-lo em paz. É louco varrido.

Às onze bateram violentamente à porta do estúdio.

— O Nilgó ainda está com você? — perguntou uma voz de dentro. — Diga que ele podia ter condensado todas as tolices desajeitadas que escreveu numa epigrama: “Só os livres são escravos e só os escravos são livres”. Diga que ele é um idiota.

Torp, e diga que eu sou outro.

— Está bem. Saia e venha jantar. Você está fumando com o estômago vazio.

Não obteve resposta.

 

Capítulo V

“Tenho mil homens”, disse ele,
“Para honrar-me e servir-me,
Nove castelos no Tyne
E três castelos no Till.”
“Pouco me importam teus homens.
Castelos no Tyne ou Till",
Disse ela, “pois vais comigo
Para honrar-me e servir-me.”
Sir Hoggie e as Fadas

Na manhã seguinte Torpenhow encontrou Dick ocioso, mergulhado numa nuvem de fumaça.

— Então, maluco, como se sente?

— Não sei. Estou procurando descobrir.

— Seria melhor se trabalhasse um pouco.

— Talvez, mas não tenho pressa. Fiz uma descoberta. Há muito ego no meu cosmos.

— Não diga! Essa revelação foi devida às minhas preleções ou às do Nilgó?

— Tive-a subitamente eu mesmo. Demasiado ego. E agora vou trabalhar.

Virou uns poucos de desenhos por acabar, tamborilou em uma nova tela, limpou três pincéis, açulou Binkie para que mordesse os pés do manequim, remexeu na coleção de armas e equipamento, depois saiu bruscamente, declarando que já fizera bastante para esse dia.

— Isto é positivamente indecente — disse Torpenhow de si para si — é a primeira vez que Dick desperdiça uma manhã clara. Talvez ele tenha descoberto que tem alma, temperamento artístico ou qualquer coisa igualmente valiosa. A culpa foi minha por deixá-lo um mês sozinho. Talvez ele tenha saído à noite. Preciso descobrir.

Tocou a campainha chamando o velho e calvo zelador, a quem nada podia espantar ou aborrecer.

— Beeton, o Sr. Heldar saiu alguma vez de noite enquanto eu estive fora?

— Nunca vestiu a roupa de rigor, nem uma só vez, senhor. A maior parte das vezes jantava aqui, mas uma vez ou duas trouxe aqui alguns moços muito esquisitos, depois do teatro. Muito esquisitos mesmo que eles eram. Os senhores aqui do último andar fazem o que bem entendem, mas a mim me parece que jogar uma bengala pela escada abaixo cinco andares e depois correr escada abaixo em fila de quatro de frente para ir apanhá-la e subir de novo da mesma maneira, às duas e meia da manhã, cantando “Traz de volta o uísque, Willie querido” ... não uma vez ou duas, mas vintenas de vezes... não é gentil para os outros hóspedes. O que eu digo é: “Faz aos outros como quiseres que te façam”. Esta é a minha divisa.

— Claro, claro! Acho que o andar superior não é realmente o mais sossegado da casa.

— Eu não me queixo, meu senhor. Eu falei amigavelmente com o Sr. Heldar e ele riu e fez-me um retrato da patroa que é tão bom como uma estampa de cores. Não é tão brilhante como uma fotografia, mas eu sempre digo: “A cavalo dado não olhes os dentes”. O Sr. Heldar não veste a roupa de rigor há semanas.

— Então está tudo em ordem — disse Torpenhow consigo mesmo. — Uma orgia ê coisa sadia e Dick tem cabeça forte, mas, tratando-se de mulheres, não tenho tanta certeza... Binkie, meu cachorrinho, nunca seja homem. Eles são animais caprichosos e fazem coisas sem razão alguma.

Dick seguira para o norte através do Parque, mas em espírito caminhava pela praia de lodo com Maisie. Riu alto quando se lembrou do dia em que ornara os chifres de Amomma com o papel ornamental de embrulhar pernil e Maisie, branca de raiva, o esbofeteara. Como pareciam longos aqueles quatro anos vistos em retrospecto e como Maisie estava intimamente ligada a cada hora deles! Tempestade através do mar e Maisie com um vestido cinza na praia e rindo para a corrida das sumacas de pesca que fugiam ao temporal; sol quente nas dunas de lodo; Maisie correndo impelida pelo vento que vergastava a praia e levantava areia, que batia nas orelhas como grãos de chumbo; Maisie, muito serena e independente, contando mentiras à Sra. Jennett, enquanto Dick a secundava com perjúrios mais grosseiros; Maisie andando delicadamente de pedra em pedra, com um revólver na mão e os dentes cerrados; e Maisie de vestido cinza sentada na relva entre a boca de uma ravina e uma papoula amarela. As imagens passaram diante dele uma a uma e a última deteve-se mais tempo. Dick sentia-se perfeitamente feliz, com uma paz interior que era tão nova para o seu espírito quanto estranha para a sua experiência. Nem por um instante ocorreu que poderia haver outra ocupação para o seu tempo que a de vaguear através do Parque antes do meio-dia.

— Há uma excelente luz para trabalhar agora — disse Dick, observando placidamente a própria sombra. — Um pobre diabo devia sentir-se grato por isto. E lá está Maisie!

Ela caminhava ao seu encontro, vindo do Arco de Mármore, e Dick notou que nada havia mudado em seu jeito de andar. Era bom encontrar a mesma Maisie e morando por assim dizer na casa ao lado. Não trocaram qualquer cumprimento, porque nos velhos tempos eles não os trocavam.

— Que está fazendo fora do estúdio a esta hora? — perguntou Dick no tom de quem tem o direito de perguntar.

— Vadiando. Vadiando simplesmente. Zanguei-me com um queixo e raspei-o. Depois deixei-o em um montinho de aparas de tinta e saí.

— Eu sei o que é isso. Que espécie de quadro é?

— Uma cabeça de gênero, que não saiu direito... uma coisa horrível!

— Eu não gosto de trabalhar sobre tinta raspada quando pinto carne. O grão parece lanoso quando seca a tinta.

— Não se a gente raspar direito.

Maisie fez um gesto para mostrar os seus métodos. Tinha uma mancha de tinta na manga branca. Dick riu.

— Desleixada como sempre.

— Vejam quem fala! Olhe o seu punho.

— É mesmo! Pior que o seu. Não creio que tenhamos mudado muito em nada. Vamos ver.

Examinou Maisie atentamente. A névoa azul pálida de um dia de outono insinuava-se entre os troncos das árvores do Parque, formando fundo para o vestido cinza, o toque de veludo negro acima do cabelo preto e o perfil resoluto.

— Não, não mudou nada. Como é bom! Lembra-se de quando prendi o cabelo no fecho de uma valise?

Maisie acenou com a cabeça, com um piscar de olhos, e voltou o rosto inteiramente para Dick.

— Espere um momento — disse ele. — Essa boca está com os cantos um pouquinho caídos. Quem a está aborrecendo, Maisie?

— Ninguém senão eu mesma. Parece que nunca consigo sairme bem do meu trabalho e, entretanto, esforço-me terrivelmente, e Kami diz...

— Continuez, mesdemoiselles. Continuez toujours, mes enfants. Kami é desalentador. Desculpe.

— É isso que ele diz. No verão passado disse-me que eu estava progredindo e que me deixaria expor este ano.

— Não aqui, pois não?

— Claro que não. No Salon.

— Você voa alto.

— Eu estou batendo as asas há bastante tempo. Onde é que você expõe, Dick?

— Eu não exponho. Eu vendo.

— Qual é o seu gênero então?

— Você não ouviu?

Dick abriu os olhos. Seria possível? Lançou o olhar em volta à procura de algum meio de convicção. Não estavam muito longe do Arco de Mármore.

— Venha um pouco pela Oxford Street e eu mostro.

Um pequeno grupo de pessoas estava concentrado em volta de uma loja de estampas que Dick conhecia bem.

— Há alguma reprodução de meu trabalho no interior — disse ele com reprimido triunfo. Nunca o sucesso tivera um gosto tão doce na sua língua.

— Isso é o tipo de coisas que eu pinto. Gosta?

Maisie olhava uma bateria de campanha em corrida desabalada preparando-se para entrar em ação sob o fogo. Na multidão atrás dela encontravam-se dois artilheiros.

— Eles inutilizaram o cavalo dianteiro direito — disse um ao outro. — Está horrivelmente ferido, mas eles estão aproveitando bem os outros. Aquele condutor da dianteira é melhor do que você, Tom. Veja com que habilidade conduz o cavalo dele!

— O número Três vai escapar do armão no próximo arranco — respondeu o outro.

— Não vai, não. Veja como o pé dele está escorado contra o estribo. Ele está bem.

Dick observava o rosto de Maisie e impava de júbilo — triunfo completo, indecoroso, vulgar. Ela estava mais interessada na pequena multidão do que no quadro. Aquilo era algo que ela podia compreender.

— Era isto que eu desejava! Oh, quanto o desejava! — disse por fim, entre dentes.

— Eu... tudo eu! — comentou Dick placidamente. — Veja os rostos deles. A coisa impressiona-os. Eles não sabem o que faz seus olhos e bocas se abrirem, mas eu sei. E eu sei que meu trabalho está certo.

— Sim, estou vendo. Que maravilha acontecer uma coisa assim a uma pessoa!

— Acontecer? Eu tive de sair à procura dela. Que é que você pensa?

— Eu chamo sucesso. Diga-me como o conseguiu.

Voltaram para o Parque e Dick narrou a saga de suas façanhas com toda a arrogância de um moço falando a uma mulher. Contou a história desde o começo, e os eus... eu... eu... eu... iam passando através da narrativa como passam os postes telegráficos pelo viajante. Maisie escutava e acenava com a cabeça. As histórias de lutas e privações não a comoviam nem um pouco. Ao fim de cada canto ele concluía: “E isso me deu alguma ideia sobre o tratamento das cores”, ou da luz, do que fosse que ele tivesse empreendido alcançar ou compreender. Levou-a ofegante através de metade do mundo, falando como nunca havia falado em toda a sua vida. E, na maré enchente de sua exaltação, acudiu um grande desejo de pegar aquela donzela que acenava com a cabeça e dizia: “Compreendo; continue” ... pegá-la e levá-la consigo, porque era Maisie e porque compreendia, porque era direito seu e uma mulher desejável acima de todas as mulheres.

De repente, parou.

— Assim foi que obtive tudo o que queria — disse — e tive de lutar por ele. Agora conte você.

A história de Maisie era quase tão incolor como o seu vestido.

Abrangia anos de paciente labuta, sustentada por um orgulho selvagem que não se abalava nem com os risos dos negociantes de arte, nem quando os nevoeiros retardavam o trabalho ou quando Kami era rude e até mesmo sarcástico e as moças de outros estúdios se mostravam forçadamente corteses. Tinha alguns pontos brilhantes em quadros aceitos em exposições provincianas, mas terminou com a queixa frequentemente repetida: — Como vê, Dick, eu não obtive sucesso, embora tenha trabalhado tão arduamente.

Dick encheu-se de piedade. Fora assim mesmo que Maisie falara quando não pudera acertar no quebra-mar, meia hora antes de o beijar. E isso acontecera ontem.

— Não faz mal — disse ele. — Vou dizer uma coisa, que espero você acredite.

As palavras vinham espontaneamente, sem pensar.

— Á coisa toda, tudo sem exceção, não vale uma grande papoula amarela ao fundo de Fort Keeling.

Maisie corou um pouco.

— Está muito bem para você falar assim, mas você obteve sucesso e eu não.

— Deixe-me falar então. Eu sei que você compreenderá.

Maisie, querida, parece um pouco absurdo, mas aqueles dez anos nunca existiram e eu voltei. Você não vê? Você está só e eu também. Para que se contrariar? Em vez disso, venha comigo, querida.

Maisie furou a areia com a sombrinha. Estavam sentados em um banco.

— Compreendo — respondeu lentamente. — Mas eu tenho o meu trabalho e preciso fazê-lo.

— Faça-o junto comigo então, querida. Eu não a interromperei.

— Não, eu não poderia. É o meu trabalho... meu... meu... meu!

Eu tenho vivido só comigo mesma toda a minha vida e não vou pertencer a ninguém exceto a mim mesma. Lembro-me das coisas tão bem como você, mas isso não conta. Nós éramos crianças então e não sabíamos o que nos aguardava. Dick, não seja egoísta.

Eu acho que vejo um meio de alcançar um pouco de sucesso no ano que vem. Não me tire.

— Perdão, querida. Eu falei inconsideradamente. Não posso esperar que você abandone toda a sua vida só porque eu voltei. Irei para a minha casa e esperarei um pouco, — Mas, Dick, eu não quero que você... saia... da minha vida quando acaba de voltar.

— Estou às suas ordens. Perdoe-me.

Dick devorava com os olhos o rostinho perturbado. E havia triunfo neles, porque ele não podia conceber que Maisie recusasse amá-lo mais cedo ou mais tarde, uma vez que ele a amava.

— É injusto da minha parte — declarou Maisie, mais lentamente do que antes. — É injusto e egoísta; mas, meu Deus, eu tenho vivido tão solitária! Não, você me interpreta mal. Agora que o encontrei novamente... é absurdo, mas quero conservá-lo na minha vida.

— Naturalmente. Nós pertencemos um ao outro.

— Não, não nos pertencemos; mas você sempre me compreendeu e há tanta coisa no meu trabalho em que você poderia ajudar-me! Você sabe coisas e conhece as maneiras de fazê-las. Precisa ajudar-me.

— Eu sei, creio, ou então não me conheço a mim mesmo.

Depois creio que você não se importará de me perder de vista completamente, e quer que a ajude no seu trabalho?

— Isso mesmo. Mas lembre-se, Dick, nada resultará daí. É por isso que me sinto tão egoísta. Deixemos as coisas como estão. Eu desejo realmente a sua ajuda.

— Você a terá. Mas vejamos: primeiro preciso ver os seus quadros, examinar os seus desenhos e descobrir quais são as suas tendências! Você precisa ler o que os jornais dizem sobre as minhas tendências! Então eu darei bons conselhos e você pintará de acordo. Não é isso, Maisie?

De novo brilhou um triunfo profano nos olhos de Dick.

— É muita bondade sua... muita bondade mesmo. Porque você se consola com o que nunca sucederá, e eu sei isso e, contudo, desejo conservá-lo. Não me culpe depois, por favor.

— Vou entrar nisto com os olhos abertos. Além disso, a rainha não pode errar. Não é o seu egoísmo que me impressiona. É a sua audácia em propor que eu me preste a que você faça uso de mim...

— Ora! você é apenas Dick... e uma loja de estampas.

— Ótimo; é isso mesmo que eu sou. Mas, Maisie, você acredita que eu a amo, não é? Não quero que alimente quaisquer falsas ideias sobre essa coisa de irmão e irmã.

Maisie ergueu o rosto para ele por um instante, depois baixou os olhos.

— É absurdo, mas... creio. Quisera poder mandá-lo embora antes que você se zangasse comigo. Mas..., mas a moça que mora comigo é ruiva e impressionista e todas as nossas ideias se chocam.

— Também as minhas e as suas, creio. Não faz mal. Daqui a três meses riremos de tudo isto juntos.

Maisie abanou a cabeça lugubremente.

— Eu sabia que você não compreenderia. E maior será a sua mágoa quando descobrir depois. Veja o meu rosto, Dick, e diga-me o que vê.

Os dois encararam-se por um instante. O nevoeiro estava começando a formar-se e abafava o ruído do tráfego de Londres além das grades do Parque. Dick concentrou todo o seu conhecimento de fisionomias penosamente adquirido no estudo daqueles olhos, daquela boca e daquele queixo, de todo o conjunto abaixo do chapéu de veludo negro.

— É a mesma Maisie e sou o mesmo eu — disse finalmente. — Ambos temos vontadezinhas muito próprias e um de nós terá de ser domado. Agora quanto ao futuro. Preciso ir ver os seus quadros algum dia... suponho que quando a moça ruiva estiver em casa.

— Os domingos são os dias mais convenientes para mim. Você deve ir aos domingos. Há uma infinidade de coisas sobre as quais preciso falar e pedir conselho. Agora tenho de voltar para o trabalho.

— Procure descobrir o que eu sou antes do próximo domingo — advertiu Dick. — Não tome tudo o que eu disse como certo. Até à vista, querida e felicidades.

Maisie afastou-se silenciosamente como um ratinho cinzento.

Dick ficou a olhá-la até que desapareceu da sua vista, mas não a ouviu dizer de si para consigo muito gravemente: — Sou uma miserável... uma miserável, egoísta e detestável.

Mas ele é Dick e Dick compreenderá.

Nunca ninguém explicou ainda o que acontece realmente quando uma força irresistível encontra o poste inabalável, embora muitos tenham meditado profundamente no assunto, como o próprio Dick meditou. Ele tentou convencer-se de que dentro de algumas semanas Maisie seria levada pela sua simples presença e por suas palavras a uma maneira mais razoável de pensar. E então lembrouse com perfeita nitidez do rosto dela e de tudo o que viu escrito nele.

— Se eu entendo algo de fisionomias — disse — naquele rosto há tudo menos amor. Preciso convencer-me disso; e aquele queixo e aquela boca revelam uma firmeza indomável. Mas Maisie tem razão. Ela sabe o que quer e o conseguirá. Que insolência! E logo comigo! De todas as pessoas deste vasto mundo ela decidiu aproveitar-se de mim! Mas, afinal de contas, ela é Maisie. Não se pode fugir a esse fato; e será bom tornar a vê-la. Esta história devia estar fervendo no fundo da minha cabeça há anos... Ela utiliza-me como eu utilizei Binat em Port Said. Está perfeitamente certa. Vai magoar um pouco. Terei que a ver todos os domingos... como um moço fazendo a corte a uma criada. Ela acabará cedendo, e, contudo... aquela boca não é de pessoa que cede. Ficarei desejando beijá-la o tempo todo e terei de olhar os seus quadros...

nem sei ainda que espécie de trabalho ela fez... e terei de falar sobre a arte da Mulher! O que significará condenar perpetuamente e em particular todas as variedades de arte. A arte prestou-me um serviço em tempos e agora atrapalha-me. Vou para casa fazer um pouco de arte.

A meio caminho do estúdio Dick foi acometido por um pensamento terrível. Sugeriu a figura de uma mulher solitária no nevoeiro.

— Ela está completamente só em Londres, com uma moça ruiva impressionista, que provavelmente tem a digestão de um avestruz.

A maioria das pessoas ruivas têm-na. Maisie é uma criaturazinha biliosa. Elas devem comer como mulheres solitárias... refeições a todas as horas e chá com todas as refeições. Lembro-me de como viviam os estudantes em Paris... como porcos. Ela pode cair doente a qualquer momento e eu não poderei ajudá-la. Uf! Isto é dez vezes pior do que ter uma esposa!

Torpenhow entrou no estúdio ao anoitecer e olhou Dick com os olhos cheios dessa austera afeição que nasce entre homens que puxaram juntos o mesmo remo e estão jungidos pelo hábito, o uso e as intimidades da luta. É uma boa afeição e, como permite e até incentiva a briga, a recriminação e a sinceridade mais brutais, ela não morre, mas aumenta e torna-se à prova de qualquer ausência e má conduta.

Dick ficou silencioso depois de entregar a Torpenhow o cachimbo cheio da conciliação. Pensava em Maisie e em suas possíveis necessidades. Era uma coisa nova pensar em alguém que não em Torpenhow, que era perfeitamente capaz de pensar por si mesmo. Ali estava finalmente uma descarga para o saldo bancário.

Podia adornar Maisie barbaramente com joias — um grosso colar de ouro em volta daquele pequenino pescoço, braceletes nos braços roliços e anéis de alto preço nas mãos — as mãos frias, sóbrias, sem anéis, que ele tinha tomado entre as suas. Era um pensamento absurdo, pois Maisie nem ao menos permitiria que pusesse um anel em um dedo, e riria dos adornos de ouro. Seria melhor ficar sentado com Maisie serenamente no escuro, com o braço em volta do pescoço dela e com o seu rosto encostado no ombro, como convinha a marido e mulher. Nessa noite as botas de Torpenhow rangiam e sua voz forte feria os ouvidos. Dick contraiu as sobrancelhas e murmurou uma palavra má porque tinha tomado todo o seu sucesso como um direito e pagamento parcial por todo o desconforto passado, e então via-se detido em sua marcha por uma mulher que admitia todo esse sucesso e não se apaixonava por ele imediatamente.

— Que há, meu velho? — perguntou Torpenhow, que já tinha feito uma ou duas tentativas infrutíferas para entabular conversa. — Por acaso eu terei dito alguma coisa ultimamente que o magoasse?

— Você? Não. Como poderia?

— Está com o fígado desarranjado?

— Um homem verdadeiramente sadio não sabe que tem fígado.

Estou apenas um pouco contrariado com as coisas em geral. Acho que é a minha alma.

— O homem verdadeiramente sadio não sabe que tem alma.

Que tem você a ver com luxos dessa espécie?

— A coisa veio por si mesma. Quem é o homem que diz que somos todos ilhas gritando mentiras uns para os outros através de mares de mal-entendido?

— Ele tem razão, quem quer que seja... salvo quanto ao malentendido.

Eu não creio que nós pudéssemos desentender-nos.

A fumaça azul encontrava o teto e descia em espirais.

Torpenhow disse insinuante: — É uma mulher, Dick?

— Os diabos me levem se é alguma coisa mesmo remotamente semelhante a uma mulher; e, se você começar a falar desse modo, eu alugo um estúdio de tijolo vermelho, com decorações brancas, begônias e petúnias, húngaros de uniforme azul tocando no meio de palmeiras em vasos, e monto todos os meus quadros em molduras de gesso pintadas de anilina, convido todas as mulheres que latem, engrolam e gemem coisas sobre o que dizem os compêndios de arte, e ponho você para recebê-las, Torp... de casacão de veludo marrom-rapé, calças amarelas e gravata laranja. Você vai gostar disso.—

Muito transparente, Dick. Um homem melhor do que você negou com pragas e juras em uma ocasião memorável. Você se excedeu, exatamente como ele. Não é da minha conta, está claro, mas é consolador saber que algures debaixo das estreias se está preparando para você um castigo em regra. Se virá do céu ou da terra, não sei, mas virá e o amansará um pouco. Você precisa de uma sova.

Dick estremeceu, — Está bem — disse. — Quando esta ilha se desintegrar, ela pedirá socorro a você.

— Eu acudirei ao chamado e ajudarei a desintegrá-la mais um pouco. Nós estamos dizendo tolices. Venha, vamos a um teatro.

Capítulo VI

“Podes conduzir mil homens,
Sem nunca puxar a brida,
Mas não a Fada-Rainha
Sem teu coração partires.”
O pé do estribo escapou-lhe,
Da mão escapou a brida
E está rendido e cativo
Aos pés da Fada-Rainha.
Sir Hoggie e as Fadas

Algumas semanas depois, em um domingo muito nevoento, Dick voltava para casa através do Parque.

— Isto — disse — é evidentemente a sova a que Torp se referia. Dói mais do que eu esperava. Mas a rainha não pode errar, e não há dúvida que ela tem alguma noção de desenho.

Acabava de fazer uma visita dominical a Maisie — sempre sob a mira dos olhos verdes da impressionista ruiva, que ele detestou à primeira vista — e experimentava o arrepio de um vivo sentimento de vergonha. Domingo após domingo, vestindo a sua melhor roupa, ele havia caminhado para a casa desarrumada ao norte do Parque, primeiro para ver os quadros de Maisie, depois para criticar e aconselhar a respeito deles, pois percebera que eram produções sobre as quais valia a pena aconselhar. Domingo após domingo, e seu amor aumentava em cada visita, ele fora obrigado a empurrar para dentro do peito o coração que subira aos lábios incitando-o a beijar Maisie, irresistivelmente. Domingo após domingo, a cabeça acima do coração o advertira que Maisie ainda não estava atingível e que seria melhor falar o mais possível sobre os mistérios da arte que representava tudo para ela. Por conseguinte, era seu destino suportar a tortura semanal no estúdio construído lá fora, no quintal úmido de uma frágil e abafada vilazinha onde nada estava nunca em seu devido lugar e que ninguém visitava... suportar e ver Maisie andando para um lado e para o outro com as chávenas. Ele detestava chá, mas, como dava um pouco mais de tempo na presença de Maisie, bebia-o com devoção, e a moça ruiva ficava sentada em um montinho desleixado e olhava-o sem falar. Ela estava sempre a observá-lo. Uma vez, e só uma vez, quando a ruiva deixou o estúdio, Maisie mostrou um álbum que continha alguns recortes de jornais provincianos — umas notas brevíssimas e apressadas sobre seus quadros mandados para exposições remotas. Dick inclinou-se e beijou o polegar sujo de tinta sobre a página aberta.

— Ó meu amor, meu amor — murmurou — você dá valor a estas coisas? Jogue-as na cesta de papéis!

— Não enquanto não obtiver algo melhor — respondeu Maisie, fechando o álbum.

E então Dick, movido por um absoluto desrespeito pelo seu público e imbuído de profunda consideração pela moça, propôs-lhe, para que ela obtivesse mais desses cobiçados recortes, pintar um quadro que Maisie assinaria.

— Isso é infantil — protestou Maisie — e não pensei que você fosse capaz de me fazer semelhante proposta! Deve ser trabalho meu. Meu... meu... meu!

— Então faça medalhões decorativos para as casas dos ricos cervejeiros. Você é boa nessa espécie de trabalho.

Dick estava enojado e selvagem.

— Desenharei coisas melhores de que medalhões, Dick — respondeu ela em um tom que lembrava o atomozinho de olhos pardos falando corajosamente à Sra. Jennett.

Dick ter-se-ia humilhado completamente se a outra moça não houvesse entrado nesse momento.

No domingo seguinte ele depôs aos pés de Maisie pequenos presentes de lápis que quase podiam desenhar sozinhos e tintas em cuja permanência ele acreditava, e dedicou uma atenção muito escrupulosa ao trabalho. Este exigia, entre outras coisas, uma exposição da fé que havia nele. Torpenhow teria ficado com os cabelos arrepiados se ouvisse a fluência com que Dick pregava o seu próprio evangelho artístico, Um mês antes Dick teria ficado igualmente espantado, porém Maisie assim o queria e ele compunha as palavras penosamente a fim de tornar claro para a compreensão dela tudo o que para ele mesmo estivera oculto sobre os porquês e as razões de trabalho.

Não há a menor dificuldade em fazer uma coisa se a gente a sabe fazer; a dificuldade está em explicar o nosso método.

— Eu poderia explicar isto corretamente se tivesse um pincel na mão — disse Dick, desesperado, procurando explicar a modelagem de um queixo que Maisie se queixava de que não “parecia carne” — era o mesmo queixo que ela havia raspado com a espátula — mas acho quase impossível ensinar-lhe. Há um estranho e sombrio toque holandês na sua pintura que me agrada, mas acho que você é fraca no desenho. Você escorça como se nunca tivesse pintado com modelo e pegou o modo pastoso de Kami de tratar a carne na sombra. Além disso, você, talvez sem o saber, foge ao trabalho.

Que tal você dedicar algum tempo apenas ao desenho? O desenho não permite tapear; o óleo, sim, e dez centímetros quadrados dessa coisa brilhante e traiçoeira no canto de um quadro algumas vezes salvam um quadro... eu o sei. Mas é imoral. Dedique-se ao desenho por algum tempo, e então poderei falar mais sobre a sua capacidade, como costumava dizer o velho Kami.

Maisie protestou; ela não tinha interesse por desenho puro.

— Eu sei — respondeu Dick. — Você quer pintar as suas cabeças de gênero com um molho de flores na base do pescoço para esconder o modelado imperfeito. — A moça ruiva deu uma risadinha. — Quer pintar as suas paisagens com gado mergulhado no capim até aos jarretes para esconder o mau desenho. Quer fazer muito mais do que pode. Tem noção de cor, mas carece de forma. A noção de cor é um dom — ponha-a de lado e não pense mais nela — mas a ideia da forma pode ser adquirida pelo estudo. Ora, todas as suas cabeças de gênero — e algumas delas são muito boas — manterão você exatamente no ponto em que se encontra.

Com o desenho você irá para a frente ou para trás, e revelará todas as suas fraquezas.

— Mas os outros... — começou Maisie.

Você não deve dar importância ao que os outros fazem. Se as almas deles fossem a sua alma, seria diferente. Nós sustentamonos ou caímos pelo nosso trabalho, lembre-se, e é uma perda de tempo pensar em outrem nesta batalha.

Dick fez uma pausa e o desejo que ele havia afastado tão resolutamente voltou aos seus olhos. Olhou para Maisie, e o olhar pedia tão claramente como se fossem palavras. Não era tempo de abandonar todo aquele deserto estéril de tela e conselhos e dar as mãos à Vida e ao Amor?

Maisie consentiu tão adoravelmente no novo programa de estudo, que Dick com dificuldade pôde reprimir-se de a tomar nos braços ali mesmo e levá-la ao cartório mais próximo. Era a obediência implícita à palavra falada e a completa indiferença pelo seu desejo mudo que confundia e açoitava a alma de Dick. Ele tinha autoridade naquela casa — verdade era que autoridade limitada à metade de uma tarde em cada sete, mas muito real enquanto durava. Maisie tinha aprendido a recorrer a ele em muitas questões, desde a maneira própria de acondicionar quadros à eliminação da fumaça de uma chaminé. A moça ruiva nunca o consultava sobre coisa alguma. Aceitava, porém, as suas visitas sem protesto e observava-o continuamente.

Ele descobriu que as refeições da casa eram irregulares e fragmentárias. Como ele suspeitara desde o início, as duas moças viviam principalmente de chá, conservas e biscoitos. O plano delas era fazerem compras uma vez por semana alternadamente, mas viviam, com a ajuda de uma criada de tempo parcial, tão irregularmente como dois corvos novos. Maisie gastava a maior parte da sua renda em modelos e a outra moça deliciava-se com aparelhagem tão refinada quanto seu trabalho era tosco. Armado de conhecimento adquirido muito caro nas docas, Dick advertiu Maisie de que o fim da alimentação insuficiente representava mutilação da capacidade de trabalho, o que era consideravelmente pior do que a morte. Maisie aceitou a advertência e começou a dar mais atenção ao que comia e bebia. Quando o seu drama acudia, o que geralmente acontecia nos longos crepúsculos de inverno, a lembrança daquele pequeno ato de autoridade doméstica e de sua coerção com uma escova de limpar a chaminé fumacenta da sala de estar feria Dick como golpes de chicote.

Imaginou que essa lembrança seria o extremo de seus sofrimentos, até que, em um domingo, a moça ruiva anunciou que ia fazer um estudo da cabeça de Dick e que ele tivesse a bondade de ficar quietinho e — acrescentou como se a ideia ocorresse de repente — olhasse para Maisie. Ele obedeceu, porque não ficava bem recusar, e pelo espaço de meia hora refletiu sobre todas as pessoas do passado que ele havia exposto para o benefício da sua arte. O que acudiu à memória mais distintamente foi Binat — o Binat que outrora fora artista e falava sobre degradação.

O que ela fez foi um monocromo rudimentaríssimo de uma cabeça, mas revelava a expectativa muda, o anelo e, sobretudo, a escravização irremediável do homem numa atitude de amarga zombaria.

— Eu o compro — disse Dick prontamente — pelo preço que você pedir.

— O meu preço é demasiado alto, mas acho que você me ficará igualmente agradecido se...

O desenho úmido voou da mão da moça e caiu nas cinzas do aquecedor do estúdio. Quando ela o apanhou estava irremediavelmente borrado.

— Oh! Ficou todo estragado! — exclamou Maisie. — E não cheguei a vê-lo. Era parecido?

— Obrigado — agradeceu a Dick entre os dentes à moça ruiva, e retirou-se rapidamente.

— Como esse homem me odeia! — comentou a moça. — E como ele a ama, Maisie!

— Que bobagem! Eu sei que Dick gosta de mim, mas tem o trabalho dele e eu tenho o meu.

— Sim, ele gosta de você e acho que agora sabe que há qualquer coisa no impressionismo. Maisie, você não percebe?

— Não percebo? Percebo o quê?

— Nada; somente... eu sei que se conseguisse induzir um homem a olhar para mim como esse homem olha para você, eu...

não sei o que faria. Mas ele odeia-me. Oh, como ele me odeia!

A ruiva não falou com absoluta exatidão. O ódio de Dick fora temperado por gratidão durante alguns momentos, e depois esquecera-a por completo. Só o sentimento de vergonha permaneceu, e ele o ia alimentando enquanto atravessava o Parque no nevoeiro.

— Vai haver uma explosão um destes dias — disse com raiva.

— Mas não é culpa de Maisie; ela está certa, perfeitamente certa, segundo o seu próprio entender. Não posso culpá-la. Este negócio já está durando perto de três meses. Três meses!... Um nada perto dos dez anos que levei dando cabeçadas e tropeções para adquirir a ideia mais rudimentar do meu trabalho. Isso é verdade, mas então não havia ninguém a espetar-me todos os domingos com alfinetes e espátulas. Ó minha queridinha, se algum dia eu conseguir domá-la, alguém vai passar muito maus bocados. Não. Eu continuaria tão bobo por ela, como sou agora. Envenenarei aquela ruiva no dia do meu casamento — ela é indecente — e agora vou desabafar este mau humor em Torp.

Ultimamente Torpenhow sentira-se no dever de censurá-lo pelo pecado de leviandade e Dick escutara sem responder uma palavra.

Nas semanas entre os primeiros domingos e sua disciplina ele havia-se atirado ao trabalho selváticamente, resolvido pelo menos a mostrar a Maisie toda a extensão de sua força. Mas então havia dito a Maisie que ela não devia prestar a menor atenção a qualquer trabalho fora do seu, e Maisie obedecera demasiado bem. Ela ouvia seus conselhos, mas não se interessava pelos seus quadros.

— As suas coisas cheiram a tabaco e sangue — disse uma vez.

— Você não sabe fazer outra coisa senão soldados?

“Eu seria capaz de pintar uma cabeça sua que a espantaria”, pensou Dick — foi isto antes de a ruiva o ter posto sob a guilhotina — mas disse apenas: “Sinto muito”, e nessa noite atormentou a alma de Torpenhow com blasfêmias contra a arte. Depois, insensivelmente e até certo ponto contra a sua vontade, deixou de se interessar pelo próprio trabalho. Por causa de Maisie e para se compensar da dignidade que parecia estar perdendo a cada domingo, não produzia conscientemente trabalho ordinário, mas, uma vez que Maisie não se interessava nem mesmo pelo que ele tinha de melhor, era melhor não fazer absolutamente nada além de esperar e contar tempo entre domingo e domingo. Torpenhow andava enojado de ver passar as semanas infrutíferas, e então um domingo à noite, quando Dick se sentia completamente exausto após três horas de pungente autodomínio na presença de Maisie, ele atacou-o. Houve troca de palavras ásperas, e Torpenhow retirouse para consultar o Nilgó, que aparecera para conversar sobre política continental.

— Está completamente ocioso? Indiferente e irascível? — perguntou o Nilgó. — Não vale a pena preocupar-se. Provavelmente Dick está fazendo papel de bobo com uma mulher.

— E você acha que isso não é grave?

— Acho. É possível que ela o faça perder a cabeça e abandonar o trabalho por algum tempo. Ela poderá até aparecer aqui qualquer dia e fazer um escândalo na escada: a gente nunca sabe. Mas enquanto Dick não resolver falar espontaneamente, é melhor deixá-lo em paz. Ele não é homem fácil de tratar.

— Não, e eu quisera que o fosse. Mas é um indivíduo tão agressivo, presunçoso e petulante!

Ele perderá tudo isso com o tempo. Primeira precisa aprender que não pode atacar o mundo a torto e a direito com uma caixa de tubos de tinta e um pincel. Você tem afeição?

— Se pudesse, sofreria qualquer castigo que estivesse reservado: mas o pior é que nenhum homem pode salvar seu irmão.

— Não, e o pior ainda é que não há baixa nesta guerra. Dick precisa aprender a lição como o resto de nós. E, por falar em guerra, vai haver barulho nos Bálcãs na primavera.

— O barulho ameaça há muito tempo. Quisera que pudéssemos arrastar Dick para lá quando viesse.

Dick entrou no quarto pouco depois e fizeram a pergunta.

— Não me tenta — respondeu secamente. — Estou muito bem onde estou.

— Acho que você não leva a sério toda essa xaropada que aparece nos jornais, não é? — perguntou o Nilgó. — A sua popularidade acabará em menos de seis meses... o público conhecerá o seu estilo e partirá em busca de alguma coisa nova... e onde ficará você?

— Aqui na Inglaterra.

— Quando poderia estar fazendo trabalho decente entre nós acolá? Tolice! Irei eu, irá Keneu, Torp e Cassavetti, e todos nós estaremos lá, e teremos muito que fazer, com lutas ilimitadas e para você uma oportunidade de ver coisas que fariam a fama de três Verestchagins.

— Hum! fez Dick, puxando a fumaça do cachimbo.

— Você prefere ficar aqui pensando que todo o mundo está admirando os seus quadros? Procure imaginar como a vida do homem mediano está cheia de seus próprios interesses e prazeres!

Quando vinte mil deles encontram tempo para levantar a cabeça entre duas garfadas e grunhir qualquer coisa sobre uma coisa que não tem o mínimo interesse para eles, o resultado líquido é chamado fama, reputação ou notoriedade, segundo o gosto e a fantasia de quem fala!

— Eu sei isso tão bem como você. Conceda-me um pouco de bom senso.

— Que me enforquem se concedo!

Que o enforquem, pois. Aliás, você o será provavelmente...

como espião, por turcos exaltados. Ai, ai! Estou cansado, morto de cansado, e a virtude abandonou-me.

Dick deixou-se cair numa cadeira e adormeceu profundamente em um minuto.

— Isso é mau sinal — comentou o Nilgó em voz baixa.

Torpenhow apanhou o cachimbo de cima do colete de Dick, onde estava começando a arder, e pôs um travesseiro debaixo da cabeça.

— Não podemos ajudá-lo — disse. — É um bom camarada e eu gosto dele. Veja a cicatriz do golpe que recebeu lá no quadrado.

— Não me admiraria que isso tivesse atacado um pouco as faculdades mentais.

— Eu sim. Ele é um maluco muito mercenário.

E então Dick começou a ressonar furiosamente.

— Oh, não! Não há afeição que resista a uma coisa dessas!

Acorde, Dick! Se tem de fazer esse barulho todo, vá dormir em outro lugar.—

Quando um gato passou a noite inteira nos telhados observou o Nilgó em voz baixa — geralmente dorme o dia inteiro.

Isso é história natural.

Dick levantou-se cambaleante e afastou-se esfregando os olhos e bocejando. Em suas vigílias noturnas ele teve uma ideia, tão simples e tão luminosa que se espantou de não a ter concebido antes. Era cheia de astúcia. Procuraria Maisie em um dia de semana... e sugeriria uma excursão, levando-a de trem a Fort Keeling e percorrendo com ela o mesmo terreno em que eles costumavam andar juntos dez anos antes.

— Em regra geral — explicou à sua imagem coberta de espuma de sabão na manhã seguinte — não é prudente atravessar a mesma trilha duas vezes. Uma coisa nos lembra outra, levanta-se um vento frio e a gente fica triste, mas esta é uma exceção a todas as regras que já existiram. Irei falar com Maisie imediatamente.

Felizmente, a ruiva estava fora fazendo compras quando ele chegou, e Maisie, vestindo uma blusa toda salpicada de tinta, brigava com uma tela. Não gostou de o ver, pois as visitas em dia de semana estendiam as suas relações, e ele precisou de toda a sua coragem para explicar ao que ia.

— Eu sei que você tem trabalhado demais — concluiu com um ar de autoridade. — Se continuar assim, acabará por se esgotar. É melhor vir comigo.

— Aonde? — perguntou Maisie com voz cansada.

Estava diante do cavalete havia muito tempo e sentia-se cansada.

— Onde quer que você deseje. Tomaremos um trem amanhã e veremos onde ele para. Almoçaremos em qualquer parte e eu trarei você de volta à noitinha.

Se houver boa luz para trabalhar amanhã, perderei o dia.

Maisie sopesou irresolutamente a pesada paleta branca de castanheiro.

Dick reprimiu uma praga que acudiu aos lábios. Ele ainda não tinha aprendido a ter paciência com a moça para quem seu trabalho era tudo, tudo.

— Você perderá bem mais, querida, se aproveitar todas as horas de luz. O excesso de trabalho é tão mortífero como a ociosidade. Não seja insensata. Virei buscá-la amanhã cedinho, depois do café.

— Mas você certamente vai convidar...

— Não, não vou. Quero você e mais ninguém. Além disso, ela me detesta tanto quanto eu a ela. A moça não aceitaria. Até amanhã, pois, e reze para que tenhamos sol.

Dick partiu encantado e, consequentemente, não fez absolutamente nada. Sufocou um louco desejo de fretar um trem especial, mas comprou um grande capote cinza de canguru forrado de marta negra lustrosa e depois recolheu-se a si mesmo para meditar sobre a situação.

— Amanhã vou passar o dia fora com Dick — disse Maisie à moça de cabelo ruivo quando esta voltou, cansada, de fazer compras em Edgware Road.

— Ele merece isso. Mandarei lavar bem o soalho do estúdio enquanto você estiver fora. Está muito sujo.

Havia meses que Maisie não tinha qualquer descanso e aguardava o passeio com certo alvoroço, mas não sem alguma preocupação.

“Não há ninguém melhor do que Dick quando fala sensatamente”, pensou, “mas tenho a certeza de que vai falar bobagens e importunar-me, e não creio que eu possa responder nada que agrade. Se fosse sensato, eu gostaria dele muito mais.” Os olhos de Dick encheram-se de alegria quando apareceu na manhã seguinte e viu Maisie, vestindo um casacão de inverno e com um chapéu de veludo preto, à espera dele no vestíbulo.

Palácios de mármore e não miseráveis imitações de madeira seriam certamente o fundo mais adequado para tal divindade. A ruiva puxou-a para o interior do estúdio por um instante e beijou-a precipitadamente. As sobrancelhas de Maisie subiram até ao alto da testa: não estava acostumada a tais demonstrações.

— Cuidado com o meu chapéu — disse, afastando-se rapidamente e correndo escada abaixo até onde Dick esperava junto do cabriolé.

— Você está bem quente? Não quer comer mais alguma coisa?

Ponha este capote sobre os joelhos.

— Estou perfeitamente confortável, obrigada. Aonde vamos, Dick? Oh! Pare de cantar desse jeito! A gente vai pensar que você está maluco.

— Que pensem... se o esforço não os matar antes disso. Eles não sabem quem somos e eu certamente não me importo de saber quem eles são. Por Deus, Maisie, você está encantadora!

Maisie ficou a olhar para a frente e não disse nada. O vento de uma clara e fria manhã de inverno tinha dado cor às faces. No alto as nuvens de fumaça de um amarelo cremoso dissipavam-se uma a uma no céu azul pálido e os imprevidentes pardais saíam de seus comitês nas gárgulas e de suas conspirações nas cocheiras para clamar que a primavera vinha aí.

— Teremos lindo tempo no campo — observou Dick.

— Mas aonde vamos?

— Espere e verá.

Pararam em Victoria, e Dick foi comprar os bilhetes. Por espaço de menos de meia fração de um instante ocorreu a Maisie, confortavelmente acomodada junto ao fogo da sala de espera, que era muito mais agradável mandar um homem à bilheteria do que abrir caminho a cotoveladas através da multidão. Dick acomodou-a em um Pullman — só por causa do calor que havia lá — e ela olhou a extravagância com graves olhos escandalizados enquanto o trem partia em direção ao campo.

— Quisera saber aonde vamos — repetiu pela vigésima vez.

Perto do fim da viagem passou rapidamente pela janela do trem o nome de uma estação de que Maisie se lembrava bem, e então compreendeu.

— Oh, Dick! Seu tratante!

— Bem, eu pensei que você gostaria de ver outra vez o lugar.

Você não voltou aqui desde os velhos tempos, pois não?

— Não. Nunca tive vontade de tornar a ver a Sra. Jennett, e ela era tudo o que existia aqui.

— Nem tudo. Olhe para fora um momento. Lá está o moinho de vento acima dos campos de batatas. Ainda não construíram vivendas ali. Lembra-se de quando eu a tranquei lá dentro?

— Lembro. Como a Sra. Jennett o espancou por causa disso!

Eu nunca disse que foi você.

— Ela calculou. Entalei um pedaço de pau debaixo da porta, disse que eu estava enterrando Amomma viva no batatal, e você acreditou. Você tinha uma natureza crédula naquela época.

Os dois riram, e debruçaram-se para fora, identificando antigos pontos de referência com muitas reminiscências. Dick olhava a curva da face de Maisie, muito perto da sua, e via o sangue subir sob a pele clara. Congratulou-se consigo mesmo por sua astúcia e parecia que a tarde ia proporcionar uma recompensa maravilhosa.

Quando o trem parou, desceram e olharam a velha cidade com novos olhos. Primeiro, mas de longe, observaram a casa da Sra.

Jennett.

— Se por acaso ela saísse agora, que é que você faria? — perguntou Dick com fingido terror.

— Eu faria uma careta.

— Mostre, quero ver — desafiou Dick, imitando a linguagem da infância.

Maisie fez a careta na direção da mesquinha vivenda e Dick riu alto.

— “É uma vergonha!” — exclamou Maisie, imitando o tom da Sra. Jennett. — “Maisie, corra lá para dentro imediatamente e aprenda a coleta, o evangelho, e a epístola para os próximos três domingos. Depois de tudo o que ensinei ... e três porções nos domingos ao jantar! Dick está sempre a induzi-la a proceder mal. Se você não é um cavalheiro, Dick, ao menos poderia...

A frase terminou bruscamente. Maisie lembrou-se de quando ela fora usada pela última vez.

— Tentar comportar-se como tal — completou Dick imediatamente. — Perfeitamente. Agora vamos almoçar e depois seguiremos até Fort Keeling... a não ser que você prefira ir de carruagem.

— Devemos ir a pé, em respeito pelo lugar. Como tudo mudou pouco!

Seguiram na direção do mar através de ruas intatas e sentindo sobre os ombros a influência de coisas antigas. Por fim passaram por uma confeitaria muito conceituada no tempo em que o dinheiro de ambos junto montava a um xelim por semana.

— Dick, você tem alguns pence? — perguntou Maisie quase para si mesma.

— Só três, e se você pensa que vai gastar dois em pastilhas de hortelã-pimenta, está enganada! Ela diz que chupar pastilhas de hortelã-pimenta não é próprio de uma dama.

Riram novamente e de novo a cor subiu às faces de Maisie, enquanto o sangue fervia no coração de Dick. Após um bom almoço, desceram para a praia e para Fort Keeling através da terra deserta e açoitada pelo vento, que nenhum construtor achara que valia a pena profanar. Do mar soprava a brisa de inverno e cantava nos ouvidos.

— Maisie observou Dick — o seu nariz está começando a ficar de um vivo azul-da-Prússia na ponta. Apostarei uma corrida com você até onde você quiser o tempo que você quiser.

Ela olhou em volta cautelosamente e, com uma risadinha, partiu, tão rápido quanto o casacão permitia, até que ficou sem fôlego.

— Nós corríamos léguas — comentou arquejando. — É absurdo que não mais possamos correr.

— Velhice, querida. É a vida de cidade, onde a gente só faz engordar e amolecer. Quando eu queria puxar o seu cabelo, você geralmente corria uma légua gritando a plenos pulmões. Eu devia saber, porque os seus berros eram para chamar a Sra. Jennett com uma bengala e...

— Dick, eu nunca em toda minha vida o fiz apanhar uma surra de propósito.

— Eu sei, claro que não. Meu Deus! Olhe para o mar!

— Ora, é o mesmo mar de sempre! — respondeu Maisie.

Torpenhow soubera pelo Sr. Beeton que Dick, convenientemente trajado e barbeado, saíra de casa às oito e meia da manhã com uma manta de viagem no braço. O Nilgó apareceu ao meio-dia para jogar xadrez e conversar.

— É pior que tudo o que eu imaginei — observou Torpenhow.

— Oh, o eterno Dick, creio! Você se agita em volta dele como uma galinha em volta de um pinto. Deixe-o desembestar, se ele acha isso divertido. A gente pode espancar um cachorrinho, mas não pode espancar um rapaz.

— Não se trata de uma mulher qualquer. É uma mulher; uma moça.—

Que provas tem?

— Dick levantou-se e saiu às oito da manhã... levantou-se no meio da noite, por Júpiter! coisa que nunca faz senão quando está em campanha. E mesmo assim, lembre-se, tivemos que o arrancar à força de baixo das cobertas antes do começo da luta em El- Maghrib. É revoltante.

— Parece estranho, mas talvez ele tenha resolvido comprar um cavalo. Ele poderia levantar-se para isso, não acha?

— Ele podia levantar-se para comprar um carrinho de mão! Se estivesse pensando em comprar um cavalo, ele nos diria. É uma moça!— Não tenha tanta certeza. Poderá ser apenas uma mulher casada.

— Dick tem um pouco de bom senso, o que não se poderia dizer de você. Quem é que se levanta de madrugada para visitar a mulher de outro homem? É uma moça.

— Admitamos que seja uma moça. Talvez ela ensine que existe alguém mais no mundo além de Dick.

— Ela vai estragá-lo. Vai desperdiçar o tempo dele, casar-se com ele e arruinar o trabalho para sempre. Dick vai tornar-se um homem respeitável antes que possamos impedi-lo e... e não irá mais conosco para a guerra.

— Tudo isso é perfeitamente possível, mas a terra não revolverá em sentido oposto quando acontecer... Ah — ah! Eu daria qualquer coisa para ver Dick fazendo a corte a uma pequena. Não se preocupe com isso. Estas coisas estão nas mãos de Alá e nós apenas podemos observar. Traga o xadrez.

A moça ruiva estava deitada no seu quarto olhando para o teto.

Os passos na calçada, quando se tornavam indistintos na distância, soavam como beijos, muitas vezes repetidos, que emendavam uns nos outros, transformando-se em um beijo único. Tinha as mãos estendidas dos lados do corpo e abria-as e fechava-as ferozmente de quando em quando.

A arrumadeira encarregada de lavar o estúdio bateu à sua porta: — Desculpe, senhorita, mas para lavar um soalho há duas, para não dizer três espécies de sabão, que são o amarelo, o pintado e o desinfetante. Por isso, quando eu ia trazer o balde para o corredor, pensei que talvez fosse melhor vir aqui perguntar que espécie de sabão a senhora deseja que eu use nas tábuas, O sabão amarelo, senhorita...

Não havia nada na linguagem da mulher que justificasse ao paroxismo de fúria que levou a moça ruiva a avançar até ao meio quarto quase gritando...

— A senhora pensa que eu me importo que espécie de sabão a senhora use ou deixe de usar? Qualquer espécie serve... qualquer espécie!

A mulher fugiu e a moça ruiva olhou para a sua imagem no espelho por um instante e cobriu o rosto com as mãos. Foi como se tivesse gritado alto algum segredo vergonhoso.


Capítulo VII

Rosas vermelhas e brancas
À minha amada ofertei;
Pediu-me rosas azuis;
Busquei-as, não as achei.
Corri metade do mundo
A ver se as encontraria:
Por toda a parte fui alvo
De risos e zombaria.
Talvez ela ache suas rosas
Para lá da sepultura...
Minhas rosas são melhores —
Foi em vão minha procura.
Rosas Azuis

Com efeito, o mar não havia mudado. As águas estavam baixas nas dunas de lama e a boia de Marazion fazia soar a sineta e oscilava no canal de maré. Na areia branca da praia talos secos de papoulas tremiam e tagarelavam entre si.

— Não vejo o velho quebra-mar — observou Maisie entre dentes.

— Demos graças por termos ainda o que temos. Não me parece que tenham montado um único canhão novo no forte depois que estivemos aqui. Vamos ver.

Chegaram à esplanada de Fort Keeling e sentaram-se em um canto abrigado do vento sob o cano alcatroado de um canhão de quarenta libras.

— Agora só nos falta Amomma aqui! — observou Maisie.

Durante muito tempo ficaram ambos em silêncio. Depois Dick tomou a mão de Maisie e chamou-a pelo nome.

Ela abanou a cabeça e olhou para o mar.

— Maisie, querida, isto não a faz pensar diferente?

— Não! — respondeu ela baixinho — Eu... eu diria se fizesse, mas não faz. Oh! Dick, por favor, seja sensato!

— Não acha que algum dia mudará?

— Não, tenho a certeza.

— Por quê?

Maisie apoiou o queixo na mão e, sempre olhando para o mar, falou apressadamente: — Eu sei perfeitamente o que você quer, Dick, mas não posso dar-lhe. Não é culpa minha; sinceramente, não é. Se eu sentisse que poderia gostar de alguém..., mas sinto que não posso.

Simplesmente não compreendo o que significa esse sentimento.

— Isso é verdade, querida?

— Você tem sido muito bom para mim, Dick, e a única maneira que tenho de retribuir é dizer a verdade. Não me atrevo a dizer uma mentira. Já sem isso me desprezo bastante.

— Por que, Deus meu?

— Porque... porque aceito tudo o que você me dá e não dou nada em troca. É mesquinho e egoísta da minha parte e, toda vez que penso nisso, fico aborrecida.

Então compreenda, de uma vez por todas, que eu sou perfeitamente capaz de cuidar dos meus negócios e que, se decido fazer uma coisa, a culpa não é sua. Você não tem absolutamente nada de que se censurar, minha querida.

Tenho, sim, e falar a respeito serve apenas para tornar a coisa ainda pior.

— Então não fale a respeito.

— Como posso evitá-lo? Se você se encontra a sós comigo por um instante, começa logo a falar disso, e, quando não fala, está nos seus olhos. Você não sabe quanto me desprezo algumas vezes.

— Santo Deus! — exclamou Dick, quase saltando. — Fale a verdade agora, Maisie, de uma vez por todas! Eu... esta importunação enfada-a?

— Não. Não me enfada.

— Você me diria se a enfadasse?

— Eu diria, creio.

— Obrigado. Porque isso é inevitável. E você deve aprender a perdoar um homem quando está enamorado. Ele é sempre uma peste. Você deve ter experiência disso?

Maisie não achou a última pergunta digna de resposta, e Dick foi obrigado a repeti-la.

— Houve outros homens, é claro. Eles sempre me importunavam quando eu estava no meio do meu trabalho e queriam que eu desse ouvidos.

— Você escutava-os?

— A princípio e eles não podiam compreender por que não me interessavam. E costumavam elogiar os meus quadros, e eu pensava que eram sinceros. Os elogios envaideciam-me. Falei a Kami e — nunca esquecerei — uma vez Kami riu de mim.

— Você não gosta que riam de você, não é, Maisie?

— Detesto. Eu nunca rio de outras pessoas a não ser... a não ser quando fazem trabalho ordinário. Dick, diga-me sinceramente o que pensa dos meus quadros em geral... de tudo o que viu meu.

— “Sincero, sincero e mais que sincero!” disse Dick, citando um lema de outros tempos. — Conte-me o que Kami diz sempre.

Maisie hesitou.

— Ele diz que há sentimento neles.

— Como se atreve a dizer-me uma inverdade dessas? Lembrese que eu estudei com Kami durante dois anos. Eu sei exatamente o que ele diz.

— Não é uma inverdade.

— É pior; é uma meia verdade. Kami diz, inclinando a cabeça para um lado... assim...

— II y a da sentiment, mais il n’y a pas de parti pris (3).

E enrolou os erres ameaçadoramente como fazia Kami.

— Sim, é isso que ele diz, e estou começando a pensar que ele tem razão.

— Claro que tem.

Dick admitia duas pessoas no mundo que não podiam errar.

Uma delas era Kami.

— E agora você diz a mesma coisa. É tão desanimador.

— Sinto muito, mas você pediu-me que falasse a verdade. Além disso, eu a amo muito para enganá-la com relação ao seu trabalho.

É vigoroso, é paciente algumas vezes... nem sempre... e, algumas vezes, revela talento, mas não há absolutamente razão alguma para que seja realizado. Pelo menos é a impressão que me dá.

Nunca há razão especial alguma para se fazer seja o que for neste mundo. Você sabe isso tão bem como eu. Eu só desejo sucesso.

— Então está seguindo caminho errado para alcançá-lo. Kami nunca disse isso?

— Não me cite Kami. Eu quero saber o que você pensa. Antes de mais nada, meu trabalho é ruim.

— Eu não disse isso, nem o penso.

— É pintura de amador então?

— Isso decididamente não é. Você é uma mulher trabalhadeira, pé-de-boi, e eu a respeito por isso.

— Você não se ri de mim na minha ausência?

— Não, querida. Compreenda, você representa mais para mim do que qualquer outra pessoa. Envolva-se neste capote, senão vai ficar regelada.

Maisie envolveu-se nas macias peles de marta, virando a pele cinza de canguru para fora.

— Isto é delicioso — disse, esfregando o queixo meditativamente ao longo da pele. — Muito bem, por que faço mal em tentar obter um pouco de sucesso?

— Justamente por tentar. Você não compreende, querida? O bom trabalho não tem nada a ver... não pertence à pessoa que o faz. É incutido nela de fora.

— Mas como é que isso afeta...

— Espere um momento. A única coisa que podemos fazer é aprender a executar o nosso trabalho, a nos tornarmos senhores e não servos dos nossos materiais e a nunca ter medo de nada.

— Isso eu compreendo.

— Tudo o mais vem de fora de nós. Muito bem. Se pusermos mãos à obra serenamente, tentando resolver ideias que nos são enviadas de fora, poderemos ou não realizar alguma coisa que não seja má. Muito depende de que sejamos senhores dos tijolos e da argamassa do ofício. Mas no instante em que começarmos a pensar no sucesso e no efeito do nosso trabalho — a tocar com um olho na galeria — perderemos a força, o toque e tudo o mais. Pelo menos foi o que eu descobri. Em vez de se manter serena e dedicar todo o talento que possui ao seu trabalho, você se preocupa com uma coisa que não poderá ajudar nem impedir de modo algum.

Compreende?

— É fácil para você falar assim. O público gosta do seu trabalho. Você nunca pensa na galeria?

— Com demasiada frequência, mas sou sempre castigado com perda de poder. É tão simples como a regra de três. Se tratarmos levianamente o nosso trabalho, usando-o para nossos próprios fins, nosso trabalho nos fará o mesmo, e, sendo como somos a parte mais fraca, sofreremos.

— Eu não trato meu trabalho com leviandade. Você sabe que ele é tudo para mim.

— Naturalmente, perceba-o ou não, você dá duas pinceladas para si mesma e uma para o seu trabalho. Não é culpa sua, querida.

Eu faço exatamente a mesma coisa e sei que o estou fazendo. A maioria das escolas francesas e todas as nossas aqui instigam os estudantes a trabalhar visando ao galardão e à satisfação do próprio orgulho. Diziam-me que todo o mundo estava interessado no meu trabalho e todo o mundo no atelier de Kami falava de pintura e eu acreditava sinceramente que o mundo precisava da grandeza, da influência e de toda sorte de impertinências do meu pincel. Por Deus, eu acreditava realmente nisso! Quando a minha pequenina cabeça estava estalando com uma ideia que eu não podia expressar porque não tinha conhecimento suficiente da minha arte, pavoneava-me, maravilhado com a minha própria magnificência e preparando-me para assombrar o mundo.

— Mas uma pessoa certamente pode fazer isso algumas vezes, não pode?

— Muito raramente com premeditação, querida. E, quando se consegue, é uma coisa tão insignificante, e o mundo é tão grande que ninguém se importa a não ser uma milionésima parte. Maisie, venha comigo e eu mostrarei algo do tamanho do mundo. Não podemos deixar de trabalhar como não podemos deixar de comer — isso está subentendido — mas procure compreender por que você trabalha. Eu conheço uns pequenos paraísos tão maravilhosos onde poderia levá-la... ilhas aninhadas abaixo do equador! Avistam-se após semanas de solavancos através duma água que é tão negra como mármore negro devido à profundidade, e a gente fica sentada dia após dia na mesa das enxárcias e vê o Sol nascer quase com medo por ver o mar tão solitário.

— Quem é que tem medo... você ou o Sol?

— O Sol, naturalmente. E há ruídos sob o mar e sons em cima no céu claro. Depois encontra-se uma ilha cheia de orquídeas úmidas e quentes que nos fazem caretas e são capazes de tudo, salvo falar. Há nela uma queda de água com 100 metros de altura, parecendo exatamente uma lasca de jade verde entrelaçado de prata, e nas rochas vivem milhões de abelhas silvestres, e podem ouvir-se os suculentos cocos cair das palmeiras, e a gente manda um servo cor de marfim pendurar uma longa rede amarela com borlas como milho maduro e erguemos as pernas e ficamos a ouvir as abelhas zumbindo e a água caindo até que adormecemos.

— Pode-se trabalhar nesse lugar?

— Claro. A gente precisa fazer alguma coisa. Penduramos a tela numa palmeira e deixamos que os papagaios a critiquem.

Quando eles começam a brigar, jogamos uma fruta-do-conde madura e ela rebenta numa espuma de creme. Há centenas de lugares assim. Venha vê-los comigo.

— Não gosto muito desse lugar. Respira ociosidade. Fale-me de outro.—

Que me diz de uma grande cidade morta, toda construída de arenito vermelho, com aloés de um verde cru crescendo entre as pedras; uma cidade abandonada e esquecida nas areias cor de mel? Existem lá quatro reis mortos, Maisie, cada um deles em um túmulo maravilhoso, mais formidável que todos os outros. Olhamos os palácios, as ruas, as lojas e os tanques, e pensamos que devem viver homens ali, até que vemos um minúsculo esquilo pardo esfregar o nariz solitariamente na praça do mercado e um enfeitado pavão sair imponentemente de um portal esculpido e abrir a cauda contra um anteparo de mármore de um rendilhado tão fino como ponto de agulha. Depois um macaco — um macaquinho preto — atravessa a praça principal para ir beber em um poço de dez metros de profundidade. Ele escorrega pelas trepadeiras até à beira da água e um amigo segura-o pelo rabo para que não caia.

— Tudo isso é verdade?

— Eu estive lá e vi. E então vem a noite e as luzes cambiam até um ponto em que a gente tem a impressão de encontrar-se dentro de uma opala. Um pouco antes do pôr do sol, com a pontualidade de um relógio, um grande e eriçado javali, seguido de toda a família, transpõe trotando a porta da cidade, sacudindo a espuma das presas. Subimos ao ombro de um deus cego de pedra negra e vemos o porco escolher um palácio para passar a noite e entrar com toda a segurança abanando a cauda. Depois levanta-se o vento da noite, as areias agitam-se e ouvimos o deserto lá fora cantar: “Agora vou dormir”, e tudo fica escuro até que nasce a lua. Maisie, querida, venha comigo ver como é o mundo realmente. É muito encantador, e é muito horrível..., mas eu não a deixarei ver nada horrível... e ele não se importa com os seus quadros, nem com os meus, nem com coisa alguma que não seja realizar a própria obra e amar. Venha, e eu a ensinarei a preparar sangria e a pendurar uma rede e ... Oh!

milhares de coisas... e você verá por si mesma o que é cor e descobriremos juntos o que é amor, e então talvez nos seja permitido realizar algum trabalho. Venha.

— Por quê? — perguntou Maisie.

— Como é que você poderá fazer alguma coisa enquanto não tiver visto tudo, ou pelo menos tudo quanto puder? E, além disso, querida, eu a amo. Venha comigo, você não tem nada que fazer aqui; não pertence a este lugar; você é meio cigana ... seu rosto o denuncia; e eu... só o cheiro do mar me faz ficar inquieto. Venha através do mar e seja feliz!

Tinha-se levantado e estava na sombra do canhão olhando a moça. A tarde curtíssima de inverno havia passado e, antes que eles dessem por isso, a lua hibernai deslizava através do mar tranquilo. Longas linhas retas de prata mostravam onde uma vaga da maré enchente passava por cima das dunas de lodo. O vento cessara e no silêncio intenso eles podiam ouvir um jumento mordendo o capim geado a muitos metros de distância. Uma batida vaga, como de um tambor abafado, veio através da névoa do luar.

— Que é isso? — perguntou Maisie subitamente. — Parece um coração pulsando. Onde é?

Dick ficou tão irritado com esse súbito desvio da conversa ante as suas súplicas, que não se atreveu a falar para não se trair, e no silêncio ouviu o som. De seu lugar sob o canhão Maisie olhava-o com certo temor. Quisera tanto que ele fosse sensato e deixasse de assediá-la com emoção transoceânica que ela podia e não podia compreender! Não estava, contudo, preparada para a mudança que se produziu no rosto dele enquanto escutava.

— É um vapor — disse ele — e um vapor de duas hélices pela batida. Não posso distingui-lo, mas deve estar muito perto da costa.

Ah! — exclamou quando o traço vermelho de um foguete atravessou a névoa. — Está parado no interior a fazer sinais antes de transpor o Canal.

— É um naufrágio? — perguntou Maisie, para quem essa linguagem era grega.

Dick desviou os olhos do mar.

— Naufrágio? Que tolice! É um navio que está dando sinal para poder atravessar o Canal. Foguete vermelho para vante... agora há uma luz verde à ré, e dois foguetes vermelhos sobem do passadiço.

— Que significa isso?

— É o sinal da Cross Keys Line, a linha da Austrália. Que navio será?O tom da voz de Dick havia mudado. Parecia falar consigo mesmo, e Maisie não gostou, O luar rompeu a névoa por um momento, iluminado o costado negro de um longo vapor que avançava pelo Canal.

— Quatro mastros e três chaminés... e vai bem carregado. Deve ser o Barralong ou o Bhutia. Não, o Buthia tem proa de Clipper. É o Barralong, de partida para a Austrália. Dentro de uma semana descobrirá o Cruzeiro do Sul... Navio de sorte! Que navio de sorte!

Ficou a olhar atentamente e avançou até à rampa do forte para ver melhor, mas a névoa sobre o mar engrossou de novo e o bater das hélices tornou-se mais débil. Maisie chamou-o com um pouco de irritação, e ele voltou, conservando ainda os olhos voltados para o mar.—

Você já alguma vez viu o Cruzeiro do Sul resplendendo sobre a sua cabeça? — perguntou. — É soberbo!

— Não — respondeu Maisie secamente — e não quero vê-lo.

Se você acha que é tão maravilhoso, por que não vai lá vê-lo você mesmo?

Maisie ergueu o rosto do negror macio das peles de marta que circundavam o pescoço, e seus olhos luziam como diamantes. O luar brilhando na pele cinza de canguru transformou-a em prata frígida.

— Por Júpiter, Maisie, você parece um idolozinho pagão enfiada aí nessas peles.

Os olhos mostraram que ela não apreciou o madrigal.

— Desculpe — continuou ele. — O Cruzeiro do Sul não vale a pena ser visto se alguém não nos ajuda a olhá-lo. O vapor não se ouve mais.

— Dick — disse Maisie tranquilamente — suponhamos que eu fosse para você agora — espere um momento — exatamente como sou e gostando de você como gosto?

— Não como de um irmão, não é? — Você disse isso lá no Parque.

— Eu nunca tive irmão. Suponhamos que eu dissesse: "Leveme a esses lugares e, com o tempo, talvez eu venha a gostar realmente de você”, que é que você faria?

— Eu a mandaria de volta para o lugar de onde veio em um cabriolé. Não, não faria isso, deixaria você ir a pé. Mas você não poderia fazer isso, querida. E eu não me arriscaria. Você é digna de ser esperada até que venha sem condições.

— Você acredita nisso sinceramente?

— Tenho uma vaga ideia de que acredito. Nunca ocorreu que seria assim?

— S... sim. Sinto-me tão malvada com relação a isto tudo.

— Mas malvada do que de costume?

— Você não sabe tudo o que eu penso. É quase horrível demais para confessar.

— Não faz mal. Você prometeu dizer-me a verdade... pelo menos.

É tão ingrato da minha parte, mas..., mas, embora eu soubesse que você gosta de mim e eu goste de o ter comigo, eu... eu seria capaz até de o sacrificar se isso me proporcionasse o que eu desejo.

— Minha pobre querida! Eu conheço esse estado de espírito.

Ele não conduz a bom trabalho.

— Você não está zangado? Lembre-se, eu me desprezo realmente.

— Não me sinto propriamente lisonjeado — eu já tinha calculado isso mesmo — mas não estou zangado. Sinto muito por você. Não há dúvida que você devia ter abandonado essa pequenez há anos.

— Você não tem o direito de me tratar com superioridade! Eu só quero aquilo porque venho trabalhando há tanto tempo. Você conseguiu-o sem a menor dificuldade e... e eu não acho justo.

— Que posso eu fazer? Eu daria dez anos da minha vida para conseguir o que você deseja. Mas não posso ajudá-la. Nem mesmo eu posso ajudá-la.

Um murmúrio de dissentimento de Maisie. Ele continuou: — Eu sei pelo que acaba de dizer que você está no caminho errado para o sucesso. Ele não se obtém sacrificando outras pessoas... isso pelo menos eu aprendi: devemos sacrificar-nos a nós mesmos e viver debaixo de ordens e nunca pensar por nós mesmos, nunca ter verdadeira satisfação em nosso trabalho a não ser bem no começo, quando tentamos captar uma ideia.

— Como pode crer tudo isso?

— Não é uma questão de crer ou descrer. E a lei, e podemos aceitá-la ou rejeitá-la a nosso bel-prazer. Eu tento obedecer, e, se não posso, o meu trabalho desvirtua-se nas minhas mãos. Em quaisquer circunstâncias, lembre-se, quatro quintos do trabalho de todo o mundo devem ser maus. Mas o restante vale o esforço pelo próprio esforço.

— Não é agradável receber galardão mesmo por trabalho mau?

— É demasiado agradável. Mas... Posso dizer uma coisa? Não é uma história agradável, mas você é de tal modo como um homem que eu me esqueço quando estou falando com você.

— Diga.

— Uma vez, quando eu estava no Sudão, fui percorrer um campo em que havíamos lutado durante três dias. Havia mil e duzentos mortos no campo e não tivéramos tempo de os enterrar.

— Que coisa horrível!

— Eu tinha estado a trabalhar em um desenho em grande formato e perguntava-me o que o público cá da terra pensaria a respeito. O espetáculo daquele campo ensinou-me muita coisa.

Parecia um imenso canteiro de horríveis cogumelos de todas as cores e... eu nunca tinha visto homens em massa voltando aos seus primórdios. E comecei a compreender que os homens e as mulheres são apenas material para se trabalhar e que o que eles digam ou façam não tem a mínima importância. Compreende?

Rigorosamente falando, seria o mesmo que encostar o ouvido à paleta para escutar o que as nossas cores estão dizendo.

— Dick, isso é ignominioso!

— Espere um instante. Eu disse: rigorosamente falando.

Infelizmente, todo o mundo tem de ser homem ou mulher.

Alegra-me que você admita isso.

— No seu caso, eu não o admito. Você não é uma mulher. Mas as pessoas comuns, Maisie, têm de comportar-se e trabalhar como tais. É isso que me torna tão selvagem. — Jogou uma pedra na direção do mar enquanto falava. — Eu sei que não é da minha conta interessar-me pelo que as pessoas dizem; percebo que, se dou ouvidos, a minha produção se estraga, e, entretanto, com todos os demônios — outra pedra jogada na direção do mar — não posso deixar de ronronar quando me afagam o pelo. Mesmo quando vejo perfeitamente que estão escondendo mentiras atrás de bonitas palavras, essas mentiras fazem-me feliz e influenciam a minha mão.

— E quando a pessoa não diz coisas bonitas?

— Então, minha bem-amada — respondeu Dick, rindo — esqueço que sou o despenseiro destes dons e quero obrigar a paulada esse homem a amar e apreciar o meu trabalho. É absolutamente humilhante, mas creio que mesmo que fôssemos anjos e pintássemos seres humanos completamente de fora, perderíamos em estilo o que ganharíamos em talento.

Maisie riu à ideia de Dick como anjo.

— Mas você parece pensar que tudo o que é agradável estraga a sua arte — observou ela.

— Eu não penso. É a lei... exatamente como era na casa da Sra. Jennett. Tudo o que é agradável prejudica a nossa arte. Alegrome que você veja tão claro.

— Eu não gosto do que vejo.

— Nem eu. Mas... tenho ordens a obedecer: que posso fazer?

Você é suficientemente forte para arrostá-lo sozinha?

— Creio que assim é preciso.

— Deixe que eu ajude, querida. Podemos apoiar-nos um ao outro com muita firmeza e andar direito. Cambalearemos horrivelmente, mas será melhor do que tropeçarmos separadamente. Maisie, será que você não vê a razão?

— Não creio que devêssemos unir-nos. Seríamos “dois do mesmo ofício” e nunca concordaríamos.

— Como eu gostaria de conhecer o homem que fez esse provérbio! Creio que ele vivia numa caverna e comia carne crua. Eu gostaria de fazê-lo roer as próprias pontas de lança.

— Eu estaria apenas meio casada com você. Andaria preocupada e sempre às voltas com o meu trabalho como faço agora. Quatro dias dos sete da semana eu sou uma pessoa intratável.

— Você fala como se ninguém mais no mundo houvesse jamais manejado um pincel. Pensa que eu não conheço o sentimento de preocupação, de inquietação e de impotência para realizar? Você é feliz se só tem quatro dias disso em cada sete. Que diferença faria isso?

— Muita... se você sofresse a mesma coisa.

— Sim, mas eu poderia respeitá-la. Outro homem talvez não o fizesse. Talvez risse de você. Mas não adianta falar a respeito. Se você pode pensar desse modo, não poderá gostar de mim... por enquanto.

A maré tinha coberto quase completamente as dunas de lama e vinte vagazinhas vieram quebrar-se na praia antes que Maisie resolvesse falar.

— Dick — disse ela com lentidão — eu creio sinceramente que você é melhor do que eu.

— Isso parece que não vem ao caso..., mas em que sentido?

— Não sei bem, mas no que você disse sobre o trabalho e outras coisas. Depois, você é paciente. Não há dúvida, você é melhor do que eu.

Dick pensou rapidamente na tristeza da vida de um homem comum. Não encontrou nada nesse retrospecto que o enchesse de um sentimento de virtude. Levou a bainha da capa aos lábios.

— Por que é que você consegue ver coisas que eu não vejo? — indagou Maisie, fazendo de conta que não vira o gesto dele. — Eu não creio no que você crê, mas creio que você está certo.

— Se eu tenho visto alguma coisa, Deus sabe que não poderia tê-la visto senão por você e sei que não poderia tê-la dito senão a você. Foi como se você me houvesse feito ver tudo claro por um instante, mas eu não faço o que digo. Você me ajudaria... Somos apenas dois no mundo para todos os fins e... e você gosta de ter-me ao seu lado?

— Sem dúvida. Será que você é capaz de compreender quanto eu me sinto solitária?

— Querida, eu sou capaz.

Há dois anos, quando aluguei a casinha, eu ficava andando para um lado e para o outro no quintal tentando chorar. Nunca posso chorar. Você pode?

— Há bastante tempo que não o tento. Que é que você tinha?

Excesso de trabalho?

— Não sei, mas eu costumava imaginar que havia perdido tudo, que não tinha dinheiro e estava passando fome em Londres.

Pensava nisso o dia inteiro e assustava-me... Oh, como me assustava!

— Eu conheço esse medo. É o mais terrível de todos. Eu acordo com ele à noite de vez em quando. Mas você não devia experimentar isso.

— Como é que você sabe?

— Não vem ao caso. As suas trezentas libras anuais estão seguras?

— Estão em títulos da dívida pública consolidada.

— Ótimo. Se vier alguém e recomendar um investimento melhor — mesmo que seja eu — não dê ouvidos. Não arrede o seu dinheiro de onde está nem por um instante e não empreste um tostão... nem mesmo à moça ruiva.

— Não me ralhe assim! Não creio que eu faça nada impensado.

— O globo está cheio de homens que venderiam a própria alma por trezentas libras anuais; e vêm mulheres, conversam, tomam emprestado cinco libras agora, dez libras depois, e as mulheres não têm consciência quando se trata de uma dívida de dinheiro. Agarrese ao seu dinheiro, Maisie, porque não há nada mais horrível no mundo do que a pobreza em Londres. Ela me aterrou. Por Deus, ela me encheu de pavor! E uma pessoa não deve ter medo de nada.

A cada homem está destinado o seu terror particular — o terror que, se não for combatido, o acovardará até à perda da hombridade.

A experiência que Dick tivera da sórdida miséria penetrara até às profundezas de seu ser, e, talvez para que não achasse a virtude demasiado fácil, essa recordação mantinha-se viva no fundo da sua consciência, tentando-o, quando os negociantes o procuravam para comprar suas mercadorias. Como o Nilgó tremia contra a vontade diante da água verde parada de um lago ou de um açude de moinho, como Torpenhow se perturbava diante de qualquer arma branca capaz de cortar ou furar e se desprezava por isso, Dick temia a pobreza que uma vez experimentara quase de brincadeira.

Seu fardo era mais pesado que os de seus companheiros.

Maisie viu o rosto dele contraído ao luar.

— Você tem bastante dinheiro agora — observou ela, tranquilizadora.

— Nunca terei o suficiente — começou ele com terrível ênfase.

Depois, rindo: — Sempre faltarão três pence nas minhas contas.

— Por que três pence?

— Uma vez carreguei a mala de um homem da Estação de Liverpool Street até Blackfriars Bridge. Era um carreto de seis pence — não ria, era mesmo! - e eu precisava do dinheiro desesperadamente. Ele só me deu três pence e nem ao menos teve a consideração de me pagar em prata. Por mais dinheiro que eu ganhe, nunca poderei recuperar aqueles três pence.

Essa não era linguagem própria do homem que havia pregado a santidade do trabalho. E chocou Maisie, que preferia o seu pagamento em aplausos, os quais, sendo o que todos os homens desejavam, deviam ser o pagamento certo. Procurou na sua bolsinha e gravemente tirou uma moeda de três pence.

— Aí tem — disse. — Eu pago, Dick, e não se preocupe mais; não vale a pena. Está pago?

— Estou respondeu o humaníssimo apóstolo da arte pela arte, recebendo a moeda. — Estou mil vezes pago e vamos fechar a conta. Vou trazê-la na corrente do meu relógio, e você é um anjo, Maisie.

— Eu estou muito entorpecida e sinto um pouco de frio. Santo Deus! A capa está toda branca de geada e o seu bigode também!

Não pensei que estivesse fazendo tanto frio!

Uma pequena camada de geada cobria o ombro do sobretudo de Dick. Também ele havia esquecido o estado do tempo. Riram juntos e com essa risada acabou a conversa grave.

Correram na direção de terra através do deserto para se aquecerem, depois voltaram-se para olhar o esplendor da maré cheia sob o luar e as intensas sombras negras das moitas de tojo.

Foi uma alegria adicional para Dick o fato de Maisie ser capaz de ver as cores como ele as via... de ser capaz de ver o azul no branco do nevoeiro, o violeta nas paliçadas cinzentas e todas as outras coisas como eram... não de um tom, mas de milhares. E o luar penetrou na alma de Maisie, de modo que ela, ordinariamente tão reservada, tagarelou sobre si mesma e sobre as coisas que interessavam — sobre Kami, o mais sábio dos professores, e sobre as moças do estúdio; as polonesas, que se matavam de trabalho se não as continham, as francesas, que falavam extremamente de muito mais do que jamais realizariam; as desmazeladas inglesas, que labutavam desesperadamente e não podiam compreender que vocação não implicava talento; as americanas, cujas vozes ásperas no silêncio de uma tarde quente irritavam os nervos até ao ponto de ruptura e cujas ceias causavam indigestão; as tempestuosas russas, que nada podia deter nem domar, que contavam histórias de aparições até que as moças gritavam; as fleumáticas alemãs, que iam ali para aprender uma coisa e, tendo aprendido essa coisa, partiam fleumaticamente e dedicavam-se a copiar quadros o resto da vida. Dick ouvia extasiado, porque era Maisie que falava. Ele conhecia aquela vida.

— Não mudou muito — disse. — Ainda costumam roubar tintas à hora do almoço?

— Não se diz roubar. A palavra é “atrair”. Naturalmente. Eu sou competente nisso... eu só atraio azul-de-ultramar; mas há estudantes que são capazes de atrair até branco.

— Eu mesmo já fiz isso. Não se pode evitar quando as paletas são penduradas. Todas as tintas são propriedade comum desde que escorram... mesmo que a gente as ajude a escorrer com uma gota de óleo. É para ensinar o pessoal a não desperdiçar os seus tubos.

— Eu gostaria de atrair um pouco das suas cores, Dick. Talvez alcançasse o seu sucesso com elas.

— Eu não devo dizer uma palavra feia, mas bem que gostaria.

Que importância tem neste mundo, que você acaba de perder uma ótima oportunidade de conhecer, o sucesso, a falta de sucesso, ou um super sucesso, em comparação com... Não, não reabrirei o assunto. É tempo de voltarmos para a cidade.

— Sinto muito, Dick, mas...

— Você está muito mais interessada nisso do que em mim.

— Não sei. Não sei se estou.

— Que é que você me dará se eu ensinar um atalho seguro para tudo o que você quer... a aflição, a inquietação, a confusão e o resto? Você promete obedecer-me?

— Naturalmente.

— Em primeiro lugar, nunca deve esquecer uma refeição pelo fato de ter muito que fazer. Você se esqueceu de almoçar duas vezes na semana passada — disse Dick ao acaso, pois sabia com quem estava lidando.

— Não... só uma vez.

— Isso já é bem mau. E não deve tomar uma chávena de chá com um biscoito em vez de comer um jantar regular só porque o jantar dá muito trabalho.

— Você está-se divertindo à minha custa!

— Nunca falei mais sério na minha vida. Ó meu amor, meu amor, você ainda não conseguiu perceber quanto você é para mim?

Eis que o mundo inteiro conspira para dar um resfriado, para atropelá-la, para ensopá-la até aos ossos, para roubar o seu dinheiro, para deixá-la morrer de excesso de trabalho ou de inanição, e eu não tenho o simples direito de olhar por você! Ora, eu nem ao menos sei se você tem suficiente bom senso para vestir um agasalho quando o tempo está frio!

— Dick, você é uma pessoa horrível para conversar...

sinceramente! Como acha que eu me arrumei enquanto você esteve ausente?

— Eu não estava aqui e não sabia. Mas agora estou de volta e daria tudo para ter o direito de dizer para sair da chuva.

— O seu sucesso também?

Desta vez Dick teve de fazer um enorme esforço para não dizer um palavrão.

— Como a Sra. Jennett costumava dizer, você é uma provação, Maisie! Você tem vivido demais encerrada em escolas e pensa que todo o mundo está olhando para você. Não há duzentas pessoas no mundo que compreendam quadros. As outras fingem compreender e não se interessam. Lembre-se, vi mil e duzentos mortos como canteiros de cogumelos. É apenas a voz da mais ínfima fração de gente que faz o sucesso. O mundo real não se importa... nem um pouco. Quem nos diz que cada homem do mundo não estará talvez discutindo com uma Maisie sua?

— Pobre Maisie!

— Pobre Dick, digo eu. Você acredita que, enquanto está lutando pelo que é mais caro do que a própria vida, ele quer saber de olhar para um quadro? E, mesmo que quisesse e mesmo que todo o mundo quisesse e mil milhões de pessoas se erguessem e gritassem hinos para honrar-me e glorificar-me, pensa que isso compensaria eu saber que você estava fora fazendo compras em Edgware Road em um dia de chuva, sem guarda-chuva? Vamos para a estação.

— Mas você disse lá na praia... — insistiu Maisie com certo temor.

Dick gemeu alto: — Sim, eu sei o que disse. Meu trabalho é o que tenho, ou sou, ou espero ser, e acredito haver descoberto a lei que o governa, mas ainda me resta um pouquinho de espírito jovial ... embora você o tenha quase destruído. Consigo perceber que não é tudo para todo o mundo. Faz o que eu digo e não o que eu faço.

Maisie teve o cuidado de não reabrir assuntos discutíveis e os dois voltaram a Londres alegremente. A chegada interrompeu Dick no meio de uma eloquente arenga sobre as belezas do exercício.

Ele compraria um cavalo para Maisie — um cavalo que nunca baixara a cabeça ao freio — e o alojaria em um estábulo, com um companheiro, a uns trinta quilômetros de Londres, e Maisie, unicamente para o bem da sua saúde, iria passear a cavalo com ele, Dick, duas ou três vezes por semana.

— Isso é absurdo — protestou ela. — E não seria correto.

— Ora, quem em toda a Londres esta noite teria interesse ou audácia suficiente para nos chamar à ordem por alguma coisa que decidíssemos fazer?

Maisie olhou os lampiões, o nevoeiro e o torvelinho horrendo.

Dick tinha razão, mas um cavalo não contribuiria para a arte como ela a compreendia.

— Você é muito gentil algumas vezes, mas é muito tolo mais vezes ainda. E não vou permitir que me dê cavalos, nem vou desviá-lo de seu caminho esta noite. Irei para casa sozinha. Quero apenas que me prometa uma coisa. Não vai pensar mais naqueles três pence extras, está bem? Lembre-se de que foi pago, e não vou permitir que seja rancoroso e faça mau trabalho por causa de uma coisinha assim. Você é capaz de ser tão grande que não deve nunca ser mesquinho.

Era o mesmo que voltar suas próprias palavras contra ele. Só restava a Dick pôr Maisie em um cabriolé.

— Até à vista — disse ela simplesmente. — Você vai aparecer no domingo. Foi um belo dia, Dick. Por que não pode ser sempre assim?

— Por que o amor é como o desenho: ou a gente vai para a frente ou vai para trás: não se pode ficar no mesmo lugar. A propósito, continue com o seu desenho. Boa noite e, por mim...

tenha cuidado com você.

Voltou-se para regressar a casa, meditativo. O dia não proporcionara nada do que ele esperara, mas — e isso valia sem dúvida muitos dias! — aproximara-o mais de Maisie. O fim nessa altura era apenas uma questão de tempo e o prêmio valia bem a espera. Por instinto Dick voltou-se para o rio mais uma vez.

— E ela compreendeu imediatamente — disse, olhando para a água. — E descobriu no mesmo instante o meu pecadilho predileto e pagou. Meu Deus, como compreendeu! E disse que eu era melhor do que ela! Melhor do que ela! — Riu do absurdo da ideia. — Será que as moças adivinham uma metade da vida dum homem? Elas não podem, do... do contrário não casariam conosco.

Tirou o presente do bolso, olhou-o como se fosse um milagre e um testemunho da compreensão que um dia conduziria à felicidade perfeita. Enquanto isso, Maisie estava só em Londres, sem ninguém para salvá-la do perigo. E o apinhado sertão estava repleto de perigo.

Dick fez uma prece desconexa ao Destino, à maneira dos pagãos, e jogou a moeda de prata ao rio. Se algum mal tivesse de acontecer, que ele suportasse o fardo e Maisie saísse ilesa, pois aquela moeda de três pence era mais cara para ele do que todos os seus haveres. Era uma moeda pequenina em si, mas fora Maisie que dera e o Tâmisa tinha-a agora no seu seio, e por certo as Parcas se sentiriam subornadas com isso.

O mergulho da moeda pareceu libertá-lo momentaneamente do pensamento de Maisie. Dick deixou a ponte e partiu para casa assobiando, com um grande desejo de conversa de homem e fumo depois daquela primeira experiência de um dia inteiro passado na companhia de uma mulher. Houve um desejo mais forte em seu coração quando se levantou diante de si a visão não invocada do Barralong, muito fundo na água e singrando o mar em demanda do Cruzeiro do Sul.

Capítulo VIII

E eram estes, como vos disse,
Os amigos de Hiawatha,
Chibiabos, o musicista,
E o fortíssimo Kwasind.
Hiawatha

Torpenhow estava paginando as últimas laudas de um manuscrito qualquer, enquanto o Nilgó, que aparecera para jogar xadrez e ficara para conversar sobre tática, acabava de ler a primeira parte, comentando desdenhosamente enquanto lia.

— É pitoresco e conciso — disse — mas como estudo sério dos negócios da Europa Oriental não vale grande coisa.

— De qualquer modo, estou livre dele... Trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove linguados ao todo, não são? Deve dar entre onze e doze páginas de valiosas falsas informações. Ai, ai!

Juntou as folhas e cantarolou: Quem quer comprar cordeiro? Quem compra cordeiro?

Se eu tivesse muito, muitíssimo dinheiro, Eu nunca apregoaria: “Quem compra cordeiro?” Dick entrou, um pouco constrangido e agressivo, mas do melhor bom humor possível.

— Até que enfim voltou! — exclamou Torpenhow.

— Mais ou menos. Que é que você esteve fazendo?

— Trabalhando. Dick, você se porta como se fosse dono do Banco da Inglaterra. Eis que se passaram três dias — domingo, segunda, terça, e você não desenhou uma linha! É escandaloso.

— As ideias vêm e vão-se, meus filhos... elas vêm e vão-se como o nosso tabaco — respondeu Dick, enchendo o cachimbo. — Além disso — inclinou-se para jogar no fogo o graveto com que acendera o cachimbo — Apoio nem sempre puxa o seu... Oh! Ao diabo com as suas brincadeiras de mau gosto, Nilgó!

— Isto aqui não é lugar para pregar a teoria da inspiração direta — observou o Nilgó, pendurando no prego da parede o grande fole de ferreiro de Torpenhow, — Nós acreditamos em trabalho, pura e simplesmente. Que temos?...

— Se você não fosse tão grande e gordo — respondeu Dick, olhando em volta à procura de uma arma — eu...

— Nada de traquinadas em minha casa. Vocês dois destruíram metade da minha mobília na última vez que andaram jogando travesseiros um contra o outro. Você podia ter a delicadeza de cumprimentar Binkie. Olhe só para ele.

Binkie tinha saltado do sofá e rodeava o joelho de Dick, abanando a cauda e arranhando as botinas.

— Meu bom amigo! — exclamou Dick, apanhando o cachorrinho do chão e beijando-o na malha preta acima do olho direito. — Como é, Binkie? Esse grandalhão feio expulsou você do sofá? Vá mordê-lo, Sr. Binkie.

E jogou o cachorrinho para cima do estômago do Nilgó, que se tinha refestelado comodamente, e Binkie fingiu destruir o Nilgó palmo a palmo, até que uma almofada do sofá o extinguiu e, arquejando, ele botou a língua de fora para o grupo.

— Binkie esta manhã foi dar um passeio antes de você acordar, Torp — informou Dick. — Vi-o namorando o açougueiro da esquina quando abriam as portas... como se não tivesse bastante que comer em sua própria casa!

— Isso é verdade, Binkie? — perguntou Torpenhow severamente.

O cachorrinho retirou-se para debaixo da almofada do sofá e mostrou pelo gordo e branco traseiro que realmente não tinha mais interesse algum na discussão.

— Parece-me que outro vira-latas saiu a passear também — observou o Nilgó. — Por que se levantou tão cedo, Dick? Torp disse que talvez você tenha ido comprar um cavalo.

— Ele sabe que seríamos necessários nós três para fazer um negócio tão sério como esse. Não, eu me senti solitário e infeliz e saí para olhar o mar e ver os bonitos navios passarem.

— Aonde foi?

— Até à margem do Canal. Um lugar chamado Progly ou Snigly ou coisa parecida, não me lembro. Mas fica apenas a duas horas de trem de Londres e os navios passam por lá.

— Viu algum seu conhecido?

— Só o Barralong de partida para a Austrália e um navio de cereais de Odessa inclinado para a frente. Era um dia escuro, mas o mar cheirava bem.

— E vestiu as suas melhores calças só para ir ver o Barralong?

— perguntou Torp com intenção.

— Vesti porque não tinha outras além das de pintar. Além disso, eu queria honrar o mar.

— Ele o fez ficar inquieto? — perguntou vivamente o Nilgó.

— Terrivelmente. Não me fale. Arrependo-me de ter ido.

Torpenhow e o Nilgó trocaram um olhar, enquanto Dick, curvando-se, se ocupava em remexer nas botas e chinelos do primeiro.

— Estes servem — disse finalmente. — Não é que eu aprove muito o seu gosto em chinelos, mas o importante é o número.

Enfiou os pés em umas pantufas de pele de sambur do formato de meias, procurou uma cadeira e refestelou-se nela.

— Esses são os meus chinelos preferidos — informou Torpenhow. — Eu ia justamente calçá-los.

— Você e o seu reprovável egoísmo! Só porque me vê feliz um instante já quer aborrecer-me e apoquentar-me. Procure outros.

— É uma sorte para você que suas roupas não sirvam para Dick, Torp. Vocês dois vivem em regime comunista.

— Dick nunca tem nada que eu possa usar. Ele só serve para a gente tomar dinheiro.

— Diabos o levem, então você andou remexendo nos meus guardados? — exclamou Dick. — Ontem eu guardei uma moeda de libra no pote de fumo. Como é que você espera que um homem mantenha em ordem a sua contabilidade se...

Neste ponto o Nilgó começou a rir e Torpenhow acompanhou-o.

— Escondeu uma libra ontem! Belo financista! Você emprestoume cinco libras no mês passado. Lembra-se? — perguntou Torpenhow.

— Lembro, claro.

— Lembra-se que eu paguei dez dias depois e você pôs o dinheiro no fundo do fumo?

— Por Júpiter, pus mesmo? Eu pensei que o tinha guardado numa das caixas de tintas!

— Pensou! Há cerca de uma semana eu entrei no seu estúdio para apanhar um pouco de fumo e encontrei o dinheiro.

— Que fez com ele?

— Levei o Nilgó a um teatro e alimentei-o.

— Você não poderia alimentar o Nilgó nem com o dobro desse dinheiro... só se desse comida do Exército. Bem, eu acho que teria descoberto mais cedo ou mais tarde. De que estão rindo?

— Você é um toleirão de marca maior em muitos sentidos — observou o Nilgó, ainda rindo à ideia do jantar. — Não tem importância. Nós dois tínhamos estado a trabalhar muito e resolvemos gastar o seu lucro imerecido, e, como você não passa de um malandro, não nos preocupamos com o caso.

— Muito gentil... e isso da parte de um homem que está rebentando à minha custa! Eu recupero esse jantar um dia destes.

Que tal irmos ao teatro agora?

— Calçar os sapatos... vestir-nos... e lavar-nos? — objetou o Nilgó com voz preguiçosa.

— Retiro a proposta.

— Que tal, para variar — uma extraordinária variedade! — nós, digo, nós, pegarmos do nosso carvão, as nossas telas e continuarmos com o nosso trabalho?

Torpenhow falou com energia, mas Dick apenas agitou os dedos dos pés dentro das macias mocassinas de couro.

— Você é homem de ideias fixas! Se eu tivesse alguma figura inacabada, não teria modelo; se tivesse o meu modelo, não teria fixador, e eu nunca deixo o carvão de um dia para o outro sem o fixar; e mesmo que eu tivesse o meu fixador e vinte fotografias de fundo, não poderia fazer nada esta noite. Não sinto disposição.

— Binkie, meu cãozinho, ele é um porco preguiçoso, não é? — disse Nilgó.

— Muito bem, eu vou fazer algum trabalho — resolveu Dick, levantando-se rapidamente. —Vou buscar o Livro de Nungapunga e acrescentaremos outro quadro à Saga do Nilgó.

— Você não acha que o está importunando demais? — perguntou o Nilgó depois que Dick saiu do quarto.

— Talvez, mas eu sei o que ele será capaz de produzir se quiser. Fico furioso de ouvir elogiá-lo por trabalho passado quando sei o que devia fazer. Eu e você estamos arrumados...

— Infelizmente... Eu tenho sonhado bastante.

— Também eu, porém agora sabemos as nossas limitações.

Mas os diabos me carreguem se sei o que Dick poderá vir a ser quando se entregar ao trabalho! É por isso que tanto me irrito com ele.

— E depois que você tiver dito e feito tudo, será posto de lado, muito justamente, por uma mulher.

— Talvez... Onde é que você pensa que ele foi hoje?

— Ver o mar. Você não viu a expressão que tinha nos olhos quando falou do mar? Ele está tão inquieto como uma andorinha no outono.

— Sim, mas teria ido só?

— Não sei e não me importo, mas ele está com o começo de febre do movimento. Ele deseja levantar acampamento e partir. Os sinais não mentem. Seja o que for que tenha dito antes, neste momento ele é dominado pela ânsia de viajar.

— Seria talvez a salvação dele — observou Torpenhow.

— Talvez... se você estiver disposto a assumir a responsabilidade de ser um salvador: eu, por mim, sou avesso a mexer com almas.

Dick voltou com um grande álbum de desenhos com fecho, que o Nilgó conhecia muito bem e não apreciava muito. Nesse álbum Dick havia desenhado, nas horas de divertimento, toda a sorte de incidentes curiosos ocorridos nos quatro cantos do mundo, vividos por ele mesmo ou contados por outros. Mas a vasta extensão do corpo e da vida do Nilgó era o que mais o atraía. Quando a verdade faltava, ele recaía nas ficções mais absurdas e representava incidentes completamente indecorosos da carreira do Nilgó — seus casamentos com muitas princesas africanas, sua vergonhosa traição, entregando um corpo do exército ao Mádi por esposas africanas, sua tatuagem por hábeis tatuadores birmaneses, sua entrevista (e seus terrores) com o carrasco amarelo do sanguinolento campo de execuções de Cantão e, finalmente, as passagens do seu espírito para os corpos de baleias, elefantes e tucanos. De tempos a tempos Torpenhow havia acrescentado descrições rimadas e o todo era uma curiosa obra de arte, porque Dick concluiu, tendo em conta o nome do livro, que interpretar significa “desnudar” e que seria errado desenhar o Nilgó com roupa em quaisquer circunstâncias. Consequentemente, o último desenho, que representava esse homem tão sofrido visitando o Ministério da Guerra para reclamar o seu direito à medalha do Egito, estava longe de ser delicado. Dick acomodou-se confortavelmente à mesa de Torpenhow e começou a virar as páginas.

— Que fortuna você teria representado para Blake, Nilgó! — disse. — Há em alguns destes desenhos um suculento rosado que é mais do que real. “O Nilgó cercado pelos madistas quando se banhava” ... isto tem base na realidade, não tem?

— Por pouco não foi o meu último banho, irreverente trocatintas.

Binkie já entrou na Saga?

— Não; Binkie não tem feito outra coisa senão comer e matar gatos. Vejamos. Aqui está você como um santo de vitral em uma igreja. Linhas extraordinariamente decorativas em volta da sua anatomia; devia ficar agradecido por ser passado à posteridade deste modo. Daqui a cinquenta anos você existirá em raros e curiosos fac-símiles a dez guinéus cada um. Que devo pintar desta vez? A vida doméstica do Nilgó?

— Ele não a tem.

— Então a vida extra doméstica do Nilgó! Claro! Assembleia em massa das esposas dele na Praça Trafalgar. Isso mesmo. Elas vieram dos confins do mundo para assistir ao casamento do Nilgó com sua noiva inglesa. Será em sépia. É um material agradável para trabalhar.

— É uma perda de tempo escandalosa — observou Torpenhow.

— Não se preocupe; isto mantém a mão da gente em forma...

especialmente quando se começa sem esboço.

Começou a trabalhar rapidamente.

— Esta é a coluna de Nelson. Daqui a pouco aparecerá o Nilgó trepando por ela.

— Dê alguma roupa desta vez.

— Sem dúvida... um véu e uma coroa de flores de laranjeira, pois vai se casar.

— Puxa, que habilidade! — exclamou Torpenhow.

Olhava por cima do ombro de Dick, e este fez sair do papel, com três movimentos do pincel, as costas muito gordas e os ombros recurvados pelo esforço, comprimidos contra a pedra.

— Imagine — continuou Dick - se a gente pudesse publicar algumas destas queridas coisinhas toda vez que o Nilgó paga a um homem que sabe escrever para dar ao público uma opinião honesta sobre os meus quadros.

— Ao menos você deve admitir que eu sempre conto quando faço alguma coisa dessa espécie. Eu sei que não posso desancá-lo como você merece, por isso encarrego outro da tarefa. O jovem Maclagan, por exemplo...

— N-não... um instante, meu velho; estenda a mão contra o papel da parede... Você só sabe balbuciar e chamar-me nomes.

Esse ombro esquerdo está escondido da minha vista. Tenho mesmo que jogar um véu por cima disso. Onde está a minha raspadeira?

Muito bem, que é que você dizia a respeito de Maclagan?

— Eu só dei ordens para atacá-lo em linhas gerais por você não produzir trabalho duradouro.

— E daí esse jovem idiota — concluiu Dick, jogando a cabeça para trás, fechando um olho e mudando a posição do papel debaixo da mão — entregue a si mesmo, munido de um tinteiro e o que ele julgava serem ideias próprias, começou a despejar as suas coisas em cima de mim nos jornais. Você devia ter contratado um homem adulto para o trabalho, Nilgó. Que tal os véus da noiva agora, Torp?

— Como é que três pinceladas e duas raspadelas fazem essa coisa destacar-se do corpo desse modo? — perguntou Torp, para quem os métodos de Dick eram sempre novos.

— Depende do lugar onde a gente dá as pinceladas e as raspadelas. Se Maclagan soubesse este pouco a respeito do próprio ofício, talvez se saísse melhor.

— Por que, então, você não põe as malditas pinceladas em alguma coisa que fique? — insistiu o Nilgó, que, com efeito, se tinha dado ao trabalho, um trabalho imenso, de contratar, para benefício de Dick, a pena de um jovem cavalheiro que dedicava a maior parte de suas horas de vigília a uma ansiosa meditação sobre os princípios e fins da arte, que, escrevia, era una e indivisível.

— Espere um momento até ver como vou arrumar o meu cortejo de esposas. Você parece que se casou extensamente, e eu preciso esboçá-las com lápis — medas, partas, edomitas... Ora muito bem, pondo de parte a franqueza e a maldade e... e a tolice de tentar intencionalmente realizar trabalho que sobreviva, como chamam, eu me contento em saber que já fiz o melhor que pude até ao presente e que não farei nada semelhante outra vez durante algumas horas pelo menos... provavelmente anos. O mais provavelmente, nunca.

— Quê! A sua melhor obra é alguma coisa dessas que você tem guardadas? — exclamou Torpenhow.

— Alguma coisa que vendeu? — sugeriu o Nilgó.

— Não. Não está aqui e não foi vendida. Melhor do que isso, ela não pode ser vendida e não creio que ninguém saiba onde está. Eu certamente não sei... E mais e mais esposas ainda do lado norte da praça. Vejam o virtuoso horror dos leões!

— É melhor você explicar — insistiu Torpenhow, e Dick levantou a cabeça do papel.

— Foi o mar que me fez lembrar a coisa — começou lentamente. — Quisera que ele não me tivesse feito lembrar. Pesa alguns milhares de toneladas... a não ser que se possa cortar com um cinzel.

— Não seja idiota. Você não pode inventar coisas para nós — protestou o Nilgó.

— Não há invenção alguma no caso. É um fato. Eu viajava à toa de Lima para Auckland em um grande, velho e condenado navio de passageiros transformado em cargueiro, de propriedade de uma firma italiana de segunda ordem. Era um barco estranho. Ficamos reduzidos a quinze toneladas de carvão por dia e considerávamonos felizes quando podíamos fazer sete nós. Então parávamos para deixar esfriar os mancais das máquinas, perguntando-nos se a rachadura que havia no eixo da hélice não estaria aumentando.

— Você era despenseiro ou foguista naquele tempo?

— Eu estava abonado na época, de modo que era passageiro, do contrário creio que teria sido despenseiro — respondeu Dick com perfeita gravidade, voltando ao cortejo de irritadas esposas. — Eu era um dos únicos passageiros de Lima e o navio viajava quase vazio de carga, mas cheio de ratos, baratas e escorpiões.

— Que tem isso a ver com o quadro?

— Espere um momento. O navio fora empregado no transporte de passageiros na China e na segunda coberta tinha beliches para dois mil chinas. Esses beliches foram tirados e o navio estava vazio até à proa, e a luz entrava pelas vigias... uma luz muito aborrecida para se trabalhar enquanto a gente não se acostumava. Durante semanas eu não tive nada que fazer. As cartas de marear do navio estavam aos pedaços e o nosso comandante não se atrevia a seguir para o sul com medo de ser colhido por alguma tempestade e fazia todo o possível para redescobrir uma a uma todas as ilhas do Arquipélago da Sociedade. Eu descia para a segunda coberta e trabalhava no meu quadro a bombordo, o mais para vante que era possível. Tinha tinta marrom, um pouco de tinta verde, que eles usavam para pintar os batéis, e um pouco de tinta preta para os metais, só isso.

— Os passageiros devem tê-lo julgado maluco.

— Só havia um e era uma mulher; mas foi ela que me deu a ideia para o meu quadro.

— Como era ela? — perguntou Torpenhow.

— Uma espécie de negra-judia-cubana e de moralidade igualmente confusa. Não sabia ler nem escrever e não queria aprender, mas costumava descer para me ver pintar. O comandante não gostava disso, porque estava pagando a passagem dela, e tinha de ficar no passadiço de vez, em quando.

— Compreendo. Deve ter sido divertido.

— Foi o melhor período da minha vida. Para começar, não sabíamos se não iríamos afundar a qualquer momento quando o mar estava agitado. Quando o mar estava calmo, era um paraíso, e a mulher costumava misturar as tintas e falar em um inglês capenga, e o comandante cada poucos minutos descia à segunda coberta, porque, dizia, tinha medo de algum incêndio. De modo que, como veem, nós não podíamos saber quando seríamos surpreendidos, e eu tinha uma ideia esplêndida para executar e só três cores à minha disposição.

— Qual era a ideia?

— Dois versos de Edgar Allan Poe...

Nem os anjos no céu, nem os demônios no fundo do mar Poderão jamais separar minha alma da alma da linda Annabel Lee.

Veio-me do mar... espontaneamente. Desenhei aquela luta, em água verde, pela alma nua e sufocada, e a mulher serviu-me de modelo para os demônios e para os anjos — demônios marinhos e anjos marinhos e a alma meio afogada entre eles. Não parece grande coisa descrito com palavras, mas quando havia luz boa na segunda coberta, ele parecia muito bom e horripilante. Tinha mais de dois metros por mais de quatro, e foi feito ao sabor dos caprichos da luz.

— A mulher inspirava-o muito? — perguntou Torpenhow.

— Ela e o mar juntos... imensamente. Havia um bocado de mau desenho no quadro. Lembro-me que eu ia ao ponto de contrariar a minha natureza escorçando por puro prazer, e escorcei imensamente, mas, apesar disso, foi a melhor coisa que já fiz. O navio deve ter sido desmantelado, ou está no fundo do mar. Puxa!

Que bom tempo que foi aquele!

— Que aconteceu depois disso?

— Terminou tudo. Quando deixei o navio, estava sendo carregado de lã, mas até os estivadores conservaram o quadro desimpedido até ao fim. Acredito sinceramente que os olhos dos demônios os assustavam.

— E a mulher?

— Ela também tinha medo dele depois que o terminei.

Costumava persignar-se antes de descer para vê-lo. Apenas três cores e sem possibilidade de arranjar mais, e o mar lá fora e amor ilimitado no interior e o medo da morte sobrepondo-se a tudo o mais... puxa!

Dick tinha deixado de olhar para o desenho e olhava o vazio à sua frente.

— Porque não tenta fazer alguma coisa da mesma espécie agora! — perguntou o Nilgó.

— Porque essas coisas não nos vêm graças a jejum e orações.

Quando eu encontrar um cargueiro, uma judia-cubana, outro assunto e a vida antiga, talvez.

— Você não os encontrará aqui — observou o Nilgó.

— Realmente, não os encontrarei aqui. — Dick fechou o álbum de desenhos com um estalo. — Este quarto está quente como um forno. Abram a janela, alguém!

Debruçou-se para fora olhando a escuridão mais espessa de Londres embaixo. Aquele apartamento era muito mais alto do que as outras casas, dominando uma centena de chaminés — chapéus deformados, girando, lembrando gatos sentados, e outros toscos mistérios de tijolo e zinco sustentados por pilares e travados por ganchos em forma de S. Para os lados do norte as luzes de Piccadilly Circus e de Leicester Square lançavam um clarão cor de cobre acima dos telhados negros e para o sul estendiam-se todas as luzes bem alinhadas do Tâmisa. Um trem atravessou uma das pontes da estrada de ferro e seu ruído abafou por um instante o rumor surdo das ruas. O Nilgó consultou o relógio e disse brevemente: — É o noturno de Paris. Você pode comprar aqui a sua passagem direta para São Petersburgo.

Dick passou a cabeça e os ombros para fora da janela e olhou para o outro lado do rio. Torpenhow aproximou-se dele, enquanto o Nilgó se dirigia ao piano tranquilamente e o abria. Binkie, fazendo-se tão grande quanto possível, esparramou-se no sofá com o ar de quem não está disposto a aborrecer-se facilmente.

— Que é que há? — perguntou o Nilgó, falando aos dois pares de ombros. — Nunca viram esta cidade antes de hoje?

Um rebocador a vapor apitou, puxando duas chatas para o embarcadouro. Depois entrou no quarto o ruído confuso do tráfego.

Torpenhow cutucou Dick.

— Bom lugar para ganhar dinheiro, mas péssimo lugar para se viver, não é, Dick?

Dick estava com o queixo apoiado na mão e, sem tirar os olhos da escuridão, respondeu com as palavras de certo general relativamente famoso: — Meu Deus, que cidade para saquear!

Binkie sentiu o ar da noite a fazer cócegas nos bigodes e espirrou lamentosamente.

— Vamos dar um resfriado a Binkie — observou Torpenhow. — É melhor entrarmos - e os dois recolheram a cabeça. — Você será enterrado no Cemitério de Kensal, Dick, um destes dias, se não estiver fechado à hora em que quiser ir para lá... enterrado a meio metro de distância de outro homem, da esposa dele e da família.

— Alá não o permita! Escaparei antes que chegue essa hora.

Dê espaço a um homem para estirar as pernas, Sr. Binkie.

Dick jogou-se no sofá e puxou as orelhas aveludadas de Binkie, enquanto bocejava com vontade.

— Você vai achar o piano completamente desafinado — disse Torpenhow ao Nilgó. — Ninguém o abre a não ser você.

— O que eu chamo uma grande extravagância — resmungou Dick. — O Nilgó vem sempre quando eu estou fora.

— Isso é porque você está sempre fora. Berre, Nilgó, para que ele ouça.

E Dick citou a legenda feita por Torpenhow no Livro de Nungapunga: A vida do Nilgó é fraude e é matança E seus escritos são mal Dickens, diluído: Mas quando ele alça a voz em toda sua pujança, O próprio Mádi clama: “Oh, nunca haver nascido!” — Como é que chamam pelo alce no Canadá, Nilgó?

O homem riu. Cantar era a sua única habilidade social, como haviam testemunhado muitas tendas da imprensa em terras distantes.

— Que vou cantar? — perguntou, voltando-se na cadeira.

— “Moll Roe de Manhã” — sugeriu Torpenhow ao acaso.

— Não — protestou Dick vivamente.

O Nilgó esbugalhou os olhos. A velha canção de marinheiros de que ele, entre muito poucos, possuía toda a letra, não era bonita, mas Dick tinha-a ouvido muitas vezes sem pestanejar. Sem prelúdio atacou a imponente toada que congrega e perturba os corações dos ciganos do mar...

Adeus, adeus, Damas de Espanha, Damas de Espanha, adeus, adeus!

Dick virou-se inquieto no sofá, pois podia ouvir a proa do Barralong talhando as águas verdes do mar a caminho do Cruzeiro do Sul. Depois veio o coro...

Como bons marinheiros ingleses que somos, Cruzaremos os mares berrando e cantando, Até lançar sonda no Canal de Inglaterra; De Ushant a Scilly são quarenta e cinco léguas.

— Trinta e cinco... trinta e cinco — corrigiu Dick com petulância.

— Não deturpe a Sagrada Escritura. Continue, Nilgó.

E a primeira terra em que tocamos Tinha por nome Deadlean.

E continuaram até ao fim, cantando muito vigorosamente.

— Seria uma canção melhor se a proa do navio estivesse voltada no sentido contrário... na direção do farol de Ushant, por exemplo — disse o Nilgó.

— Agitando os braços como um moinho de vento descontrolado — acrescentou Torpenhow. — Cante alguma outra coisa, Nilgó.

Você está com um excelente vozeirão esta noite.

— Cante o “Piloto do Ganges”; você cantou isso na praça na noite anterior a El-Maghrib. A propósito, quantos ainda estarão vivos daquele coro? — comentou Dick.

Torpenhow pensou um momento.

— Por Júpiter! Creio que só eu e você. Raynor, Vickery e Deenes... todos mortos; Vincent contraiu varíola no Cairo, foi trazido para aqui e morreu dela. Isso mesmo, só eu, você e o Nilgó.

— Hum! E entretanto os homens daqui que têm feito seu trabalho toda a sua vida em estúdios bem aquecidos, com um policial em cada esquina, diz que eu cobro demais pelos meus quadros.

— Eles compram seu trabalho, não as suas apólices de seguro, meu querido filho — observou o Nilgó.

— Eu joguei uma coisa para conseguir a outra. Não pregue.

Continue com o seu “Piloto”. Onde diabo você desencavou essa canção?

— Numa pedra de sepultura — respondeu o Nilgó. — Numa pedra de sepultura em uma terra distante. Acrescentei o acompanhamento de uma porção de acordes de contrabaixo, e aí está.

— Ó vaidade! Comece.

E o Nilgó começou: Cortei minha amarra, companheiros, vou descer com a maré, tenho ordens de partir, e vós ficais ancorados.

E nunca por bela manhã de junho me fiz ao mar com a consciência mais limpa, melhor esperança, coração mais leve e livre!

Ombro a ombro, Joe, meu rapaz, para o meio da turba qual uma cunha!

Feri com os alfanjes, camaradas, mas não corteis com o gume.

Grita Charnock: “Espalhai as faxinas, dobrai esse brâmine ao meio,A viúva pálida e alta para mim, Joe, a mocinha morena para ti!” Moço Joe (tens quase setenta anos), por que tua pele é tão escura?

Katie tem suaves e belos olhos azuis, quem enegreceu os teus?... Atenção!

Nessa altura estavam todos cantando. Dick sentindo o rugido do vento do mar largo em redor dos ouvidos enquanto a voz de baixo profundo continuava: A salva da manhã — Oh, firmes! — a mim os arcabuzes!

Sondei o coração do Grande Almirante holandês como meu chumbo sonda o mar.

Sondando, sondando o Ganges, descendo com a maré.

Amarra-me o navio junto a Charnock, perto da minha noiva morena.

Lembranças a Kate em Fairlight... Holwell, obrigado!

Firme! Rumamos para o céu, por dunas de areia frias e azuis.

— Que é que há nessa bobagem para fazer um homem ficar inquieto? — perguntou Dick, levantando-se Binkie do chão e colocando-o em cima do próprio peito.

— Depende do homem — respondeu Torpenhow.

— O homem que foi ver o mar — observou o Nilgó.

— Eu não sabia que ele ia perturbar-me deste modo.

— É isso que os homens dizem quando vão dizer adeus a uma mulher. É, contudo, mais fácil a gente livrar-se de três mulheres do que de um pedaço da nossa vida e do nosso ambiente.

— Mas uma mulher pode ser... — Começou Dick desprevenido.

— Um pedaço da nossa vida — continuou Torpenhow. — Não, não pode. — Sua fisionomia ensombreceu-se por um momento. — Ela diz que quer compartilhar os seus sentimentos e ajudá-lo no seu trabalho e em tudo o mais que evidentemente um homem tem de fazer sozinho. Depois manda no mínimo cinco bilhetes por dia para perguntar por que diabo não tem perdido seu tempo com ela.

— Não generalize — objetou o Nilgó. — Na altura em que você chegar aos cinco bilhetes por dia já deve ter passado por muitas coisas e ter-se comportado de acordo. O que não se deve é começar a coisa, meu filho.

— Eu não devia ter ido ver o mar — observou Dick, um nadinha ansioso por mudar de conversa. — E você não devia ter cantado.

— O mar não manda cinco bilhetes por dia — declarou o Nilgó.

— Não, mas eu estou fatalmente comprometido. É uma feiticeira, que nunca envelhece, e eu sinto muito havê-la conhecido.

Por que não nasci, me criei e morri em um apartamento de terceiro andar, fundos?

— Veja-o blasfemando contra o seu primeiro amor! Por que diabo não havia de dar ouvidos? — exclamou Torpenhow.

Antes que Dick pudesse responder, o Nilgó, com um grito que sacudiu as janelas, começou a cantar “Os Homens do Mar”, que, como todos sabem, começa com “O mar é uma velha malvada” e, depois de oito linhas de imagens verdadeiras, termina com um refrão, lento como o estalar de um cabrestante quando o carco se aproxima relutante da barra, onde os homens suam e pisam ruidosamente o cascalho.

“Ó nossas mães, que nos gerastes!

Melhor do que vós sois o mar; Pois ele vibra em nossas fibras!” Diziam os Homens do Mar.

O Nilgó cantou essa estrofe duas vezes, com simplicidade, visando a ser ouvido por Dick. Mas Dick esperava o adeus dos homens às esposas.

"Ó vós, esposas que ficais, Mais caro que vós sois o mar...

E dormireis mais sossegadas”, Diziam os Homens do Mar.

As rudes palavras eram como as batidas da proa do desconjuntado navio procedente de Lima nos dias em que Dick misturava tintas, amava, pintava demônios e anjos na meia obscuridade, pensando se no minuto seguinte não senti" ria a faca do comandante italiano entre as espáduas. E a febre de viajar, que é mais real do que muitas doenças tratadas por médico, despertou nele violentamente, incitando-o, a ele que amava Maisie acima de tudo no mundo, a partir e saborear de novo a antiga vida quente e desregrada — a brigar, suar, jogar, dedicar-se aos amores fáceis em companhia de seus camaradas; tomar o navio e conhecer o mar novamente e, através dele, gerar quadros; falar com Binat entre as areias de Port Said enquanto a velha preparava as bebidas; ouvir o estralejar da mosquetaria e ver a fumaça afastar-se fina e espessa novamente, até as brilhantes fisionomias negras aparecerem através dela, e naquele inverno cada homem era estritamente responsável por sua própria cabeça e só por ela, e golpeava com o braço desencadeado, mas...

“Ó nossos pais, no cemitério, Mais velho que vós sois o mar; Serão mais verdes nossas tumbas”, Diziam os Homens do Mar.

— Que é que nos retém? — perguntou Torpenhow no longo silêncio que se seguiu à canção.

— Você disse há pouco tempo que não iria dar um passeio ao redor do mundo, Torp.

— Isso foi há meses, e eu só me opus a você ganhar dinheiro para as despesas de viagem. Você disparou o seu dardo nesta direção e acertou. Parta, faça algum trabalho e veja coisas.

— Tire um pouco de banha de cima do lombo; você está vergonhosamente fora de forma — secundou o Nilgó, fazendo um movimento rápido para a frente e agarrando um punhado de carne em cima das costelas de Dick. — Mole como massa de vidraceiro...

puro sebo produzido pelo excesso de alimentação. Elimine-o com exercício, Dick.

— Estamos todos igualmente gordos, Nilgó. Na próxima vez que for viajar, você ficará sentado, piscando, arquejando, e morrerá de apoplexia.

— Não se preocupe. Parta você em um navio. Vá a Lima novamente, ou ao Brasil. Na América do Sul há sempre barulho.

— Acha que eu preciso que me digam onde devo ir? Grande Deus, a única dificuldade é saber onde devo parar. Mas eu vou ficar aqui mesmo, como já disse.

— Então você será enterrado no Cemitério de Kensal e transformado em adipocera com os outros — declarou Torpenhow.

— Está pensando nas encomendas aceitas? Pague a multa e parta.

Você tem dinheiro suficiente para viajar como um rei, se quiser.

— Você tem as noções mais horríveis de divertimento. Já me imagino viajando de primeira classe em um hotel de seis mil toneladas e perguntando ao terceiro-maquinista o que faz girar os motores e se não faz muito calor na casa das caldeiras! Ah! ah! Eu viajaria como vadio se alguma vez decidisse embarcar, o que eu não vou fazer. Mas farei uma concessão e irei dar um passeiozinho para começar.

— Já é alguma coisa. Aonde irá? — perguntou Torpenhow. — Seria excelente para você, meu velho.

O Nilgó viu o piscar de olho de Dick e reprimiu-se de falar.

— Em primeiro lugar irei ao estábulo de Rathray, onde alugarei um cavalo, que conduzirei com muito cuidado até Richmond Hill.

Depois voltarei a passo para evitar aguar o animal e irritar Rathray.

Farei isso amanhã para tomar um pouco de ar e fazer exercício.

— Ora!

Dick mal teve tempo de erguer o braço para desviar a almofada que o enojado Torpenhow jogou à cabeça.

— Ar e exercício, hein? — fez o Nilgó, sentando-se pesadamente em cima de Dick. — Vamos dar um pouco das duas coisas. Traga o fole, Torp.

Nesse ponto a conferência transformou-se em desordem, porque Dick não consentiu em abrir a boca enquanto o Nilgó não segurou o nariz com força, e houve alguma dificuldade para introduzir o bico do fole entre os dentes. Mesmo depois de conseguirem isso, Dick tentou debilmente soprar contra o sopro do fole e intumesceu as bochechas até que produziu um grande ruído de explosão. Nessa altura, como o inimigo ficasse fraco de tanto rir, ele espancou os dois, tanto, com uma almofada do sofá, que a almofada se descoseu, as penas voaram, e Binkie, intervindo em favor de Torpenhow, foi enrolado na almofada meio vazia e aconselhado a sair dela à força de unhas. Ele conseguiu isso depois de algum tempo, viajando rapidamente para um lado e para o outro como um paio ambulante e, quando finalmente saiu para pedir satisfações, viu os três pilares do seu mundo tirando penas do cabelo.

— Ninguém é profeta na sua terra — observou Dick tristemente, sacudindo os joelhos. — Esta penugem não vai mais sair das minhas calças.

— Era para o seu bem — observou o Nilgó. — Nada como ar e exercício.

— Inteiramente para o seu bem — repetiu Torpenhow, sem a menor referência à palhaçada de momentos antes. — Isso permitiria ver as coisas na devida perspectiva e o impediria de amolecer na estufa desta cidade. É verdade, meu velho. Eu não falaria se não pensasse assim. Mas você leva tudo na brincadeira!

— Juro por Deus que não é verdade — respondeu Dick, apressadamente é sério. — Você não me conhece se pensa desse modo!— Eu não penso — disse o Nilgó.

— Como podem indivíduos como nós, que sabem o que a vida e a morte significam realmente, atrever-se a pilheriar sobre alguma coisa? Eu sei que nós afetamos isso, para não sucumbirmos ou irmos ao outro extremo. Então eu não vejo, meu velho, como você está sempre ansioso por minha causa e tentando aconselhar-me a fazer trabalho melhor? Pensa que eu mesmo não penso nisso? Mas você não pode ajudar-me... você não pode ajudar-me... nem mesmo você! Devo fazer o meu jogo sozinho, à minha maneira.

— Atenção, atenção! — fez o Nilgó.

— Qual é a coisa na Saga do Nilgó que eu nunca desenhei no Livro de Nungapunga? — continuou Dick, dirigindo-se a Torpenhow, que estava um pouco espantado com aquela explosão.

Ora, havia no livro uma página em branco dedicada ao desenho, que Dick não executara, sobre a maior façanha da vida do Nilgó: quando esse homem, moço ainda e esquecendo que seu corpo e ossos pertenciam ao jornal que o empregava, cavalgou através de uma relva escorregadia, queimada pelo sol, à retaguarda da brigada de Bredow, no dia em que os cavalarianos se lançaram contra a artilharia de Canrobert. Contra esta e, possivelmente, pois eles não sabiam, contra vinte batalhões em frente, para salvar o desmantelado 24 de Infantaria Alemã, dar tempo de decidir a sorte de Vionville e descobrir, antes de seus remanescentes voltarem a Flavigay, que a cavalaria podia atacar e esmagar a inabalável infantaria. Toda vez que o Nilgó se sentia inclinado a pensar em uma vida melhor, em uma renda maior e numa alma talvez muito mais pura, ele confortava-se com este pensamento: “Eu marchei com a brigada de Bredow em Vionville”, e cobrava ânimo para qualquer batalha menor que o dia seguinte pudesse porventura oferecer-lhe.

— Eu sei — disse ele muito gravemente. — Sempre me alegro de que você não tivesse incluído isso.

— Não o incluí porque o Nilgó me ensinou o que o exército alemão aprendeu então e o que Schmidt ensinou à sua cavalaria.

Eu não conheço alemão. Como é? “Presta atenção às circunstâncias e o socorro virá por si.” Eu preciso seguir o meu caminho à minha maneira, meu velho.

— Tempo ist Richtung. Você aprendeu bem a sua lição — declarou o Nilgó. — Ele precisa ir só. Ele fala verdade, Torp.

— Talvez eu esteja completamente errado... horrendamente errado. Devo descobrir isso por mim mesmo, assim como tenho de pensar por mim mesmo. Eu não me atrevo a virar a cabeça para me vestir à maneira do vizinho. Não poder ir custar-me muito mais do que você pode imaginar, mas não posso, eis tudo. Preciso fazer o meu próprio trabalho e viver a minha própria vida â minha própria maneira, porque sou responsável por ambos. Só desejo que não pense que brinco a respeito, Torp. Eu tenho os meus próprios fósforos e enxofre, e farei o meu próprio inferno, obrigado.

Houve uma pausa constrangida. Depois Torp perguntou suavemente: — Que disse o Governador da Carolina do Norte ao Governador da Carolina do Sul?

— Não sei — respondeu o Nilgó — mas sei que há muito tempo que não bebemos.

— Eu liberei o meu espírito, respeitável Binkie-com-penas-naboca.

— Dick apanhou o animalzinho ainda indignado e sacudiu-o delicadamente. — Você foi amarrado em um saco e obrigado a correr às cegas para cá e para lá, pequeno Binkie, sem razão alguma, e isso ofendeu a sua dignidadezinha. Não tem importância.

Sic volo, sic jubeo, stet para o ratione voluntas (4) e não me espirre nos olhos porque falo latim. Boa noite.

E saiu do quarto.

— Isso foi direta para você — observou o Nilgó.

Eu disse que era inútil meter-se com ele. Ele não gostou.

— Se não tivesse gostado, teria dito uns palavrões para mim.

Não compreendo. Ele está com a febre das viagens e não quer viajar. Só espero que não tenha de partir algum dia quando não o desejar — observou Torpenhow.

Em seu próprio quarto Dick tentava resolver a questão por si mesmo... e a questão era se todo o mundo e tudo o que havia nele e um ardente desejo de explorar as duas coisas valeria uma moeda de três pence jogada no Tâmisa.

— Veio de eu ter visto o mar, e sou um cachorro por pensar a respeito — concluiu. — Depois de tudo, a lua-de-mel será essa excursão — com passagem reservada; somente... somente eu não sabia que o mar era tão forte. Eu não o senti tanto enquanto estava com Maisie. Foram essas malditas canções. E ele está começando de novo.

Mas era apenas “Noturno a Júlia”, de Herrick, o que o Nilgó estava cantando, e, antes de ele haver terminado, Dick reapareceu ao limiar, não vestido para sair, mas perfeitamente razoável, sedento e tranquilo.

A sua inquietação viera e partira com o subir e baixar da maré em Fort Keeling.

 

Capítulo IX

Se tomei o barro vil
E habilmente o modelei
Na forma de um deus de barro,
Maior honra conquistei.
Se tomaste o barro vil
E tuas mãos não limpaste
Das nódoas que te ficaram,
Maior vergonha alcançaste.
Os Dois Oleiros

Dick não fez trabalho algum durante o resto da semana. Depois veio outro domingo. Ele temia sempre esses dias e ansiava por eles, mas, desde que a moça ruiva o tinha retratado, havia na verdade mais medo do que desejo em seu espírito.

Verificou que Maisie desprezara completamente suas sugestões de praticar desenho. Ela havia concentrado todo o seu esforço na ideia absurda de uma “cabeça de gênero”. Dick teve de fazer algum esforço para se dominar.

— Que adianta sugerir alguma coisa? — disse ele severamente.

— Oh, mas isto será um quadro... um verdadeiro quadro, e eu sei que Kami me permitirá mandá-lo para o Salon. Você não se importa, não é?

— Creio que não. Mas você não terá tempo de aprontá-lo para o Salon.

Maisie hesitou um pouco. Sentia-se mesmo um tanto embaraçada.

— Por causa disso, nós vamos para a França com um mês de antecedência. Esboçarei a ideia aqui e executarei o quadro no estúdio de Kami.

O coração de Dick parou, e ele esteve a ponto de se revoltar contra a sua rainha, que não podia errar. “No momento exato em que eu pensava ter progredido alguma coisa na minha conquista, ela sai a caçar borboletas. É de enlouquecer!” Não havia possibilidade de discutir, porque a ruiva estava no estúdio. Dick pôde apenas expressar a sua censura com os olhos.

— Sinto muito — disse — e creio que você comete um erro.

Mas qual é a ideia do seu novo quadro?

— Tirei-a dum livro.

— Para começar, isso já é mau. Os livros não são lugar para quadros. E...

— Este é — interveio a ruiva atrás dele. — Eu o li para Maisie outro dia. É do livro “Cidade da Noite Horrível”. Conhece-o?

— Um pouco. Sinto ter falado. Há quadros nele. Qual foi o que a inspirou?

— A descrição da Melancolia...

As asas fechadas qual águia possante, Mas demasiado impotente para erguer A régia robustez terrena De sua força e orgulho.

E mais adiante. (Maisie, sirva o chá, querida.) A fronte prenhe de ideias e sonhos funestos, O molho de chaves, o vestido doméstico.

Volumoso, mas rígido, Como couraça de frígido metal brunido.

Os pés em grossos sapatões Para esmagar toda a fraqueza.

A moça não procurava esconder o desprezo que sua voz preguiçosa exprimia. Dick teve um estremecimento de mal-estar.

— Isso, se não me engano, já foi feito por um obscuro artista chamado Dürer — observou. — Como diz o poema?...

Há três séculos e mais sessenta anos Com fantasias e pensamentos próprios.

Seria o mesmo que você tentasse reescrever o Hamlet. Será uma perda de tempo.

— Não, não será — declarou Maisie, pousando as chávenas com ruído para se afirmar. — E eu tenciono fazê-lo. Não vê que coisa linda que daria?

— Como é que uma pessoa pode fazer um trabalho para o qual não tem preparo adequado? Qualquer idiota pode ver isso. É preciso preparo para realizar a coisa... preparo e convicção; não basta correr atrás da primeira fantasia.

Dick falou entre dentes.

— Você não compreende — replicou Maisie. — Eu acho que posso fazê-la.

De novo a voz da moça atrás dele: Frustrada e repelida, ela trabalha ainda; Cansada e enferma de alma, ainda mais trabalha.

Por sua vontade indomável sustentada, Suas mãos modelam, seu cérebro medita E todas suas ânsias em labor se transformam.

— Imagino que Maisie tenciona encarnar-se no quadro ...

— Sentada em um trono de quadros rejeitados? Não, não farei isso, meu caro. Foi a própria ideia que me fascinou. É claro que você não se interessa por cabeças de gênero, Dick. Eu não creio que você fosse capaz de pintá-las. Você gosta de sangue e ossos.

— Isso é um desafio direto. Se você pode pintar uma Melancolia que não seja apenas uma cabeça de mulher angustiada, eu posso pintar uma melhor; e vou pintá-la. Que sabe você de Melancolias?

Dick acreditava que nesse momento mesmo estava sorvendo três quartos de todo o sofrimento do mundo.

— Ela era mulher — respondeu Maisie — e sofreu muito... até que não suportou mais. Depois começou a rir de tudo e então eu a pintei e mandei-a para o Salon.

A moça ruiva levantou-se e saiu do quarto, rindo.

Dick olhou para Maisie humilde e desesperado.

— Esqueça o quadro — pediu. — Você vai realmente voltar para Kami um mês antes do tempo?

— Preciso, se quiser fazer o meu quadro.

— E isso é tudo o que você deseja?

— Naturalmente. Não seja estúpido, Dick.

— Você não tem capacidade para isso. Você tem apenas as ideias... as ideias e os pequeninos impulsos ordinários. Como você conseguiu dedicar-se ao trabalho regularmente durante dez anos, eis um mistério para mim. Então vai mesmo ... um mês antes?

— Preciso fazer o meu trabalho.

— Seu trabalho... ora! Não, eu não falei a sério. Está bem, querida. Claro que você precisa fazer o seu trabalho e... eu acho que vou despedir-me por esta semana.

— Nem ao menos vai ficar para o chá?

— Não, obrigado. Você me permite partir, querida? Não há mais nada de especial que você deseje de mim, e os exercícios de desenho não têm importância.

— Quisera que você ficasse para podermos conversar mais sobre o meu quadro. Basta que um único quadro faça sucesso, e chamará a atenção para todos os outros. Eu sei que alguns dos meus trabalhos são bons. Tudo depende de que sejam vistos. E você não precisa ser tão grosseiro.

— Desculpe. Falaremos sobre a Melancolia em algum dos outros domingos. Ainda temos quatro... isso mesmo, um, dois, três, quatro. Até à vista, Maisie.

Maisie ficou de pé junto à janela do estúdio, pensando, até que a ruiva voltou, um pouco branca nos cantos da boca.

— Dick foi-se embora — informou Maisie. — Justamente quando eu queria falar com ele sobre o quadro. Não é egoísmo dele?

Sua companheira abriu a boca como para falar, fechou-a de novo e continuou a leitura de “A Cidade da Noite Horrível”.

Dick estava no Parque, dando voltas a uma árvore que tinha escolhido, muitos domingos antes, como sua confidente. Praguejava audivelmente e, quando verificou que as deficiências da língua inglesa constrangiam a raiva, procurou consolo no árabe, que é expressamente destinado ao uso dos aflitos. Ele não estava satisfeito com a recompensa de seu paciente serviço, não estava satisfeito consigo mesmo, e levou muito tempo a chegar à proposição de que a rainha não podia errar.

— É um jogo perdido — disse. — Eu não valho nada quando se trata dum capricho dela. Mas em Port Said, quando estávamos perdendo, nós dobrávamos a parada e continuávamos. Ela fazer uma Melancolia! Ela não tem o talento, nem a intuição nem o preparo necessário. Tem somente o desejo. Maisie é vítima da maldição de Rubens. Não quer praticar desenho, porque isso significa trabalhar duro, e, entretanto, ela é mais forte do que eu! Eu a farei compreender que posso vencê-la na própria Melancolia.

Mesmo assim, não se impressionaria. Ela diz que eu só sei pintar sangue e ossos. Não creio que Maisie tenha sangue nas veias.

Assim mesmo amo-a; e devo continuar a amá-la, e, se puder humilhar a sua desmedida vaidade, eu o farei. Pintarei uma Melancolia que será de fato uma Melancolia — “a Melancolia que transcende toda a razão”. Vou fazê-la imediatamente, com todos os diab... assim Deus me ajude!

Descobriu que a ideia não criava forma e que ele não conseguia libertar o espírito nem por um instante da lembrança da partida de Maisie. Interessou-se pouco pelos esboços que ela fez da Melancolia quando mostrou na semana seguinte. Os domingos sucediam-se rapidamente e aproximava-se o momento em que nem todos os sinos de Londres poderiam chamar Maisie de volta para ele. Uma vez ou duas disse qualquer coisa a Binkie sobre “futilidades hermafroditas”, mas o cachorrinho recebia tantas confidências de Torpenhow e de Dick, que nem deu às suas pontudas orelhas o trabalho de ouvir.

Dick teve permissão de ir despedir-se das moças no cais. Iam pelo noturno de Dover e esperavam voltar em agosto. Era no mês de fevereiro, e Dick achou que estava sendo maltratado. Maisie andava tão atarefada desguarnecendo a sua casinha do outro lado do parque e empacotando as suas telas, que não tinha tempo para pensar. Dick foi até Dover e perdeu um dia inteiro angustiado na expectativa de uma possibilidade maravilhosa. No último instante Maisie permitir-lhe-ia um pequenino beijo? Refletiu que poderia pegá-la à força, como tinha visto fazer com mulheres no sul do Sudão, e arrebatá-la, porém, Maisie nunca se deixaria levar. Voltaria os olhos pardos para ele e diria; “Dick, como você é egoísta!” E ele perderia a coragem. Pensando bem, achou que seria melhor suplicar um beijo.

Maisie parecia mais beijável do que de costume quando desembarcou do trem noturno para o molhe batido pelo vento, com impermeável cinza e um barretinho de viagem da mesma cor. A ruiva não estava tão encantadora. Tinha os olhos verdes, fundos, e os lábios ressequidos. Dick providenciou o embarque das malas e foi para junto de Maisie na escuridão sob o passadiço. As malas postais caíam com grande ruído no porão e a ruiva observava-os.

— Você vai ter uma travessia ruim — observou Dick. — Está ventando. Se me comportar, posso ir visitá-la?

— Você não deve ir. Andarei muito ocupada. Se precisar de você, mando chamá-lo. Mas escreverei de Vitry-sur-Marne. Vou precisar consultá-lo sobre uma infinidade de coisas. Oh, Dick, você tem sido tão bom para mim! Tão bom para mim!

— Obrigado, querida. Mas isso não modificou nada, não é?

— Eu não posso mentir-lhe. Não... não nesse sentido. Mas não pense que não me sinto grata.

— Ao diabo a gratidão! — exclamou Dick numa voz rouca, voltado para o tambor da roda propulsora.

— Que adianta insistir? Você sabe que eu arruinaria a sua vida e você arruinaria a minha nas condições em que as coisas estão.

Lembra-se do que me disse naquele dia que ficou tão zangado lá no Parque? Disse que um de nós tinha de ser domado. Você não pode esperar até que chegue esse dia?

— Não, meu amor. Eu a quero indomável... toda para mim.

Maisie abanou a cabeça.

— Meu pobre Dick, que posso dizer?

— Não diga nada. Dê-me um beijo? Só um beijo, Maisie. Juro que não tomarei mais. É melhor você consentir, e então ficarei convencido de que está mesmo reconhecida.

Maisie ofereceu a face e Dick tomou a sua recompensa na escuridão. Foi apenas um beijo, mas, como não fora especificado limite de tempo, foi longo. Maisie libertou-se dele com irritação e Dick ficou humilhado e vibrando dos pés à cabeça.

— Adeus, querida. Eu não quis assustá-la. Desculpe.

Mas... porte-se bem e faça bom trabalho — especialmente a Melancolia. Eu vou pintar uma também. Dê lembranças minhas a Kami e tenha cuidado com o que beber. A água potável do campo é ruim em toda a parte, mas na França é pior do que em qualquer outro lugar. Escreva-me se quiser alguma coisa, e adeus. Despeçase por mim dessa moça e... não pode dar-me outro beijo? Não.

Você tem toda a razão. Adeus.

Um grito advertiu-o de que não era direito subir pelo plano inclinado das malas postais. Saltou para o molhe quando o vapor se punha em movimento e acompanhou-o com o coração.

— E não há nada... nada neste mundo que nos separe a não ser a obstinação dela... Estes barcos noturnos para Calais são pequenos demais. Vou dizer a Torp que escreva nos jornais a respeito. Ele já está começando a arfar.

Maisie ficou onde Dick a deixara até que ouviu uma tossezinha sufocada ao seu lado. Os olhos da moça ruiva ardiam em uma chama fria.

— Ele beijou-a! — disse. — Como pôde permitir-lhe, se não representa nada para você? Como se atreveu a receber um beijo dele? Oh! Maisie, vamos para a cabina das senhoras. Estou enjoada... terrivelmente enjoada.

— Ainda não chegamos ao mar alto. Desça você, querida, e deixe-me ficar aqui. Não gosto do cheiro das máquinas... Pobre Dick! Ele merecia um... só um. Mas não pensei que me assustasse tanto. Dick voltou à cidade no dia seguinte, justamente a tempo para o almoço, que tinha encomendado por telegrama. Contrariado, encontrou apenas pratos vazios no estúdio. Berrou e Torpenhow entrou com um ar de culpa.

— Psiu! — fez Torpenhow. — Não faça esse barulho todo. Fui eu que o comi. Venha ao meu apartamento e vou mostrar por quê.

Dick parou assombrado ao limiar, pois no sofá de Torpenhow uma moça dormia, respirando pesadamente. O pequeno e ordinário boné de marinheiro, o vestido branco e azul, mais próprio para junho do que para fevereiro, sujo de lama na saia, o casaquinho orlado de uma imitação de astracã e descosturado nos ombros, o guardachuva de um xelim e onze pence e, sobretudo, o miserável estado das botinas de pelica diziam tudo.

— É! que é isso, meu velho? Você não deve trazer gente dessa, aqui. Elas roubam coisas dos apartamentos.

— Admito que não é muito próprio, mas eu vinha para casa depois do almoço e ela entrou cambaleando no vestíbulo. A princípio pensei que estivesse embriagada, mas era fraqueza. Eu não podia deixá-la assim, de modo que a trouxe aqui para cima e dei o seu almoço. Tinha desfalecido de fome. Adormeceu imediatamente depois de comer.

— Eu tenho alguma experiência desse mal. Ela devia estar vivendo de salsichas. Torp, você devia tê-la entregado a um policial por se atrever a desfalecer numa casa respeitável. Pobre infeliz!

Veja essa fisionomia! Não há uma pitada de imoralidade nela.

Apenas insensatez... tibieza, fatuidade, debilidade, futilidade. É uma cabeça típica. Nota como a caveira está começando a aparecer através do enchimento de carne no rosto e nos malares?

— Que bárbaro desapiedado que você é! Não se bate numa mulher caída. Poderemos fazer alguma coisa? Ela estava literalmente caindo de inanição. Quase caiu nos meus braços e, quando viu a comida, devorou-a como um animal selvagem. Foi horrível.

— Eu posso dar dinheiro, que provavelmente gastará em bebida. Ela vai dormir para sempre?

A moça abriu os olhos e olhou para os homens com uma expressão em que havia terror e descaro.

— Sente-se melhor? — perguntou Torpenhow.

— Sinto. Obrigada. Não há muitos cavalheiros tão bons como o senhor. Obrigada.

— Quando foi que você deixou o serviço? — perguntou Dick, que estivera observando as mãos gretadas e cheias de cicatrizes.

— Como é que o senhor soube que eu estive em serviço? Eu estive. Criada para todo o serviço. E não gostei.

— E gosta de ser dona do seu próprio nariz?

— Dou a impressão de que gostei?

— Creio que não. Um momento. Podia ter a bondade de virar o rosto para a janela?

A moça obedeceu e Dick observou o rosto intensamente — tão intensamente que ela fez menção de se esconder atrás de Torpenhow.

— Os olhos têm a coisa — observou Dick, andando para um lado e para o outro. — São uns olhos soberbos para o que eu quero.

E, afinal de contas, todo o rosto depende dos olhos. Isto foi enviado do céu para compensar o que... o que foi tomado. Agora que a angústia semanal caiu dos meus ombros, posso dedicar-me ao trabalho seriamente. É evidente que me foi enviada do céu. Sim.

Levante o queixo um pouco, por favor.

— Com delicadeza, meu velho, com delicadeza. Você está aterrando a pequena — advertiu Torpenhow, vendo a moça tremer.

— Não deixe que ele me bata! Oh, por favor, não o deixe bater em mim! Eu fui espancada hoje cruelmente porque falei a um homem. Não o deixe olhar-me desse jeito! Ele é mau. Não o deixe olhar para mim desse jeito! Oh! Eu sinto como se não tivesse nada em cima do corpo quando me olha assim!

Os nervos superexcitados no frágil corpo fraquejaram e a moça começou a chorar como uma criança e a gritar. Dick abriu a janela e Torpenhow abriu a porta de par em par.

— Pronto — disse Dick em tom tranquilizador. — Meu amigo aqui pode chamar um polícia e você pode fugir por essa porta.

Ninguém vai fazer mal.

A moça soluçou convulsivamente durante alguns minutos, depois tentou rir.

— Nada no mundo fará mal. E agora escute um momento o que vou dizer-lhe. Eu sou de profissão o que chamam um artista. Sabe o que fazem os artistas?

— Eles desenham as coisas em tinta vermelha e preta nos cartazes das casas de penhores.

— Está certo. Mas eu ainda não subi até aos cartazes das casas de penhores. Isso é feito pelos acadêmicos. Eu quero desenhar a sua cabeça.

— Para quê?

— Porque é bonita. É por isso que você virá ali ao quarto do outro lado do patamar três vezes por semana às onze da manhã, e eu darei três libras por semana só para ficar sentada quietinha e deixar-se desenhar. E aqui tem uma libra por conta.

— Por nada? Oh! — A moça virou a moeda nas mãos e disse, novamente chorosa: — E nenhum dos senhores tem medo de que eu fuja com o dinheiro?

— Não. Só as moças feias fazem isso. Procure lembrar-se deste lugar. E, a propósito, como se chama?

— Meu nome é Bessie... Bessie... Não adianta dar o resto.

Bessie Broke, se querem saber. E os senhores como se chamam?

Bem... o fato é que nunca ninguém dá o nome verdadeiro.

Dick consultou Torpenhow com o olhar.

— Meu nome é Heldar e meu amigo chama-se Torpenhow.

Você não deve deixar de vir. Onde mora?

— Ao sul do rio... em um quarto... cinco xelins e seis pence por semana. O senhor não se está divertindo à minha custa com as três libras?

— Você verá depois. E, Bessie, na próxima vez que vier aqui, lembre-se, não precisa usar essa pintura. Faz mal à pele, e eu tenho todas as cores que você possa desejar.

Bessie retirou-se esfregando a face com um lenço esfarrapado.

Os dois homens entreolharam-se.

— Você é um homem — disse Torpenhow.

— Receio ter sido um idiota. Não compete a nós correr por esse mundo a reformar Bessies Brokes. E uma mulher de qualquer espécie não tem o direito de pôr os pés neste patamar.

— Talvez ela não volte.

— Ela voltará se estiver convencida de que receberá comida e calor aqui. Infelizmente, tenho a certeza. Mas lembre-se, meu velho, de que ela não é uma mulher: é o meu modelo, e tenha cuidado.

— Que ideia! É um espantalhozinho de gente... uma criatura das sarjetas e nada mais.

— É o que você pensa! Espere até que tenha comido um pouco e perdido o medo. Esse tipo claro refaz-se com muita rapidez. Você não a reconhecerá daqui a uma semana ou duas, quando esse medo abjeto abandonar os olhos. E então estará demasiado feliz e risonha para o meu objetivo.

— Mas não é por caridade que você a toma... para me agradar?

— Eu não tenho o hábito de brincar com brasas para agradar a ninguém. Ela foi-me enviada do céu, como disse antes, para me ajudar na minha Melancolia.

— Nunca ouvi uma palavra a respeito dessa senhora.

— Que adianta a gente ter um amigo se temos de comunicar as ideias sob a forma de palavras? Você devia saber o que estou pensando. Não me ouviu resmungar ultimamente?

— Assim mesmo; mas os resmungos podem significar tudo em qualquer língua, desde mau fumo a negociantes desonestos. E eu não creio ter merecido muito as suas confidências ultimamente.

— Era um resmungo agudo e sentido. Devia ter compreendido que significava Melancolia.

Dick andou com Torpenhow para um lado e para o outro no quarto, em silêncio. Depois deu uma palmada nas costas.

— Não vê? A futilidade abjeta de Bessie, o terror que tem nos olhos, reunidos a um ou dois detalhes da espécie de angústia que entraram no domínio da minha experiência ultimamente. Igualmente um pouco de laranja e preto... dois tons de cada. Mas eu não posso explicar com o estômago vazio.

— Parece uma maluquice. É melhor você continuar fiel aos seus soldados, Dick, em vez de ficar aí divagando a respeito de cabeças, olhos e experiências.

— Você acha?

Dick começou a dançar sobre os calcanhares, cantando; São pimpões como perus quando têm dinheiro a rodo, Devíeis ver como riem, como galhofam, coitados; São espertos, divertidos, quando têm dinheiro em grande quantidade...

Mas vê de só, vê de só, quando estão arruinados!

Depois sentou-se para verter todo o seu amor a Maisie numa carta de quatro folhas, cheia de conselhos e estímulo, e jurou que começaria a trabalhar com toda a concentração apenas Bessie reaparecesse.

A moça apareceu, sem pintura e sem adornos, alternativamente amedrontada e descarada. Quando verificou que se esperava dela apenas que se conservasse sentada, ficou mais calma e começou a criticar as coisas do estúdio francamente e com algum acerto.

Gostava do calor e do conforto e de estar livre do medo da dor física. Dick fez dois ou três estudos da cabeça de Bessie em monocromo, mas a verdadeira ideia da Melancolia não ocorria.

— Em que confusão o senhor tem as coisas aqui! — observou Bessie alguns dias depois, quando já se sentia perfeitamente à vontade. — Creio que as suas roupas estão assim também! Os cavalheiros nunca sabem para que servem os botões e os cadarços.

— Eu compro as coisas para usá-las e uso-as até que se despedacem. Não sei como faz Torpenhow.

Bessie fez uma investigação diligente no quarto deste último e desencavou um feixe de meias em estado lamentável.

— Algumas destas vou cerzir — disse. — Levarei outras para casa. Sabe? Eu fico sentada o dia inteiro em casa sem ter nada que fazer, como uma senhora, e sem notar mais as outras moças da casa do que se fossem outras tantas moscas! Não digo palavras desnecessárias, mas, quando falam comigo, ponho-as no lugar delas rapidamente, sabe? Tem sido muito agradável nestes dias.

Fecho a minha porta e elas só podem chamar-me nomes através da fechadura, e eu fico dentro, tal qual uma senhora, cerzindo meias. O Sr. Torpenhow gasta as meias nas duas pontas ao mesmo tempo.

“Recebe três libras de mim por semana e as delícias da minha companhia e não me cirze meias! Não recebe nada de Torp além de um aceno de cabeça de vez em quando no patamar, e cirze todas as meias! Bessie é bem uma mulher”, pensou Dick, e olhou para ela através dos olhos semicerrados. A comida e o descanso haviam transformado a moça, como Dick previra.

— Por que me olha desse modo? — perguntou ela subitamente.

— Não faça isso. O senhor parece muito mal quando olha assim. O senhor não me aprecia muito, não é?

— Depende da maneira como você se comportar.

Bessie comportava-se maravilhosamente. Apenas ao fim de uma sessão era difícil induzi-la a sair para as ruas escuras. Ela preferia muito o estúdio e a grande cadeira perto do aquecedor, com algumas meias no regaço como pretexto para demorar. Então vinha Torpenhow e Bessie animava-se a contar casos estranhos e maravilhosos do seu passado e ainda mais estranhos de sua nova vida melhorada. Fazia chã como se tivesse o direito de o fazer, e uma vez ou duas Dick surpreendeu os olhos de Torpenhow fitos na figurinha esbelta, e, como as arrumações de Bessie no apartamento faziam Dick ansiar ardentemente por Maisie, compreendeu a que tendiam os pensamentos de Torpenhow. E Bessie tinha um cuidado extremo com o estado da roupa branca de Torpenhow. Falava muito pouco com ele, mas às vezes os dois conversavam no patamar.

— Fui um grande idiota — disse Dick consigo mesmo. — Eu sei que aspeto tem a luz de uma lareira quando um homem vagueia por uma cidade estranha, e a nossa vida, mesmo em seus melhores momentos, é solitária e egoísta. Será que Maisie não sente isso algumas vezes? Mas eu não posso mandar Bessie embora. O pior de tomar uma atitude é que a gente nunca sabe onde as coisas irão parar. Uma noite, após uma sessão prolongada até ao limite máximo da luz, Dick foi despertado de um ligeiro sono por uma voz entrecortada no quarto de Torpenhow. Pôs-se em pé de um salto.

— Que fazer agora? Não convém entrar... Oh, obrigado, Binkie!

O pequeno terrier abriu a porta com o focinho e saiu para tomar posse da cadeira de Dick. A porta abriu-se de par em par e Dick viu através do patamar Bessie na meia luz fazendo sua suplicazinha a Torpenhow. Estava ajoelhada junto dele e abraçava os joelhos.

— Eu sei... eu sei — dizia ela numa voz embargada pela emoção. — Não é direito da minha parte fazer isto, mas não posso evitá-lo; e o senhor foi tão bom, tão bom, e nunca me deu atenção!

E eu remendei as suas coisas com tanto cuidado... Oh, por favor!

Não é o mesmo que se eu estivesse pedindo para casar comigo. Eu nem pensaria nisso. Mas, não... não poderia tomar-me e viver comigo até que aparecesse a Senhorita Certa? Eu sou a Senhorita Errada, eu sei, mas seria capaz de trabalhar para o senhor e gastar as mãos até aos ossos. E eu não sou feia... Diga que sim!

Dick mal reconheceu a voz de Torpenhow quando respondeu: — Mas escute... não adianta. Eu posso ser mandado para fora dum momento ao outro se estourar uma guerra. De um momento ao outro... querida.

— Que importa isso? Enquanto não vai, então. Até que vá. Não estou pedindo muito e... o senhor não sabe como eu cozinho bem.

Havia lançado um braço em volta do pescoço de Torpenhow e puxava a cabeça para baixo.

— Até... que eu vá, então.

— Torp — chamou Dick através do patamar, mal podendo firmar a voz. — Venha aqui um momento, meu velho. Estou em apuros. — “Deus queira que ele me escute!” Algo muito semelhante a uma praga saiu dos lábios de Bessie.

Tinha medo de Dick e desapareceu escada abaixo aterrada, mas o tempo que Torpenhow demorou a entrar no estúdio foi uma eternidade. Dirigiu-se para o consolo da lareira, escondeu a cabeça nos braços e gemeu como um touro ferido.

— Que direito você tem de intervir? — exclamou finalmente.

— Quem está intervindo em quê? O seu próprio bom senso disse há muito tempo que você não podia cometer semelhante idiotice. Foi um suplício duro, Santo Antônio, mas agora você está bem.—

Eu não devia tê-la visto andar aqui pela casa como se pertencesse. É isso que me transtorna. Isso dá uma espécie de anseio em um homem, não é? — gemeu Torpenhow.

— Agora você está falando sensatamente. É isso mesmo. Mas visto não estar em condições de discutir as desvantagens da vida conjugal, você sabe o que vai fazer?

— Não. Quisera saber.

— Vai partir e fazer uma bela excursão para se restabelecer. Vá a Brighton, ou a Scarborough, ou a Prawle Point, e veja os navios passarem. Eu tomarei conta de Binkie, e você partirá imediatamente. Nunca se deve resistir ao diabo. É ele que controla a banca. Fuja dele. Arrume as suas coisas e parta.

— Acho que você tem razão. Aonde irei?

— E diz correspondente especial! Faça a mala primeiro e pergunte depois.

Uma hora mais tarde Torpenhow partia para a noite em um cabriolé.

— Provavelmente você pensará em algum lugar para ir quando estiver em movimento — observou Dick. — Para começar, vá até Euston e... ah, sim... tome uma bebedeira esta noite.

Voltou para o estúdio e acendeu mais velas, pois achou a sala muito escura.

— Oh, Jezebel! Fútil Jezebelzinha! Como vai odiar-me amanhã!... Binkie, venha aqui.

Binkie virou-se de costas no tapete da lareira e Dick acariciou a barriga meditativamente com o pé.

— Eu disse que ela não era imoral. Enganei-me. Disse que sabia cozinhar. Isso revelou pecado premeditado. Ó Binkie, se a pessoa é um homem, a gente se perde, mas se é uma mulher e diz que sabe cozinhar, vai para um lugar muito pior.


Capítulo X

Que é isso que marcha ao meu lado?
O vosso inimigo, senhor.
Que segue teimoso ao meu lado?
A sombra da noite, senhor.
Eu quero o inimigo de frente!
Tombou, é vencido, senhor.
Combateis contra o sol-poente;
A noite é chegada, senhor.
O Combate do Riacho de Heriot

— É uma vida alegre esta minha — comentou Dick alguns dias depois. — Torp está fora; Bessie odeia-me; não consigo fixar a ideia da Melancolia: as cartas de Maisie são agressivas; e acho que estou com indigestão. Por que é que um homem sente dores na cabeça e vê manchas pretas diante dos olhos, Binkie? Devo tomar algumas pílulas para o fígado?

Dick acabava de ter uma discussão muito feia com Bessie. Pela quinquagésima vez ela o censurara por haver mandado Torpenhow embora. Explicou o seu ódio eterno a Dick e deixou bem claro que só posava por causa do dinheiro dele.

— E o Sr. Torpenhow é dez vezes melhor do que o senhor — concluiu.

— Não há dúvida. Por isso é que foi embora. Eu devia ter ficado e feito a corte a você.

A moça ficou sentada com o queixo na mão, carrancuda.

— A mim? Bem que eu quisera pegá-lo! Se não tivesse medo de ser enforcada, matava-o! Era isso que eu fazia. Acredita em mim?

Dick teve um sorriso fatigado. Não é agradável viver em companhia de uma ideia que não quer criar forma, de um fox-terrier que não fala e de uma mulher que fala demais. Ele teria respondido, mas nesse momento desenrolou-se de um canto do estúdio como que um véu da gaze mais fina. Esfregou os olhos, mas a névoa cinza não desapareceu.

— É a maldita indigestão. Binkie, vamos consultar um curandeiro. Não podemos permitir que os nossos olhos nos atrapalhem, pois é com eles que ganhamos o nosso pão e ossos de costeleta de carneiro para cachorrinhos.

O médico era um clínico afável de cabelo branco e não disse nada enquanto Dick não começou a descrever a névoa fina que vira no estúdio.

— Todos nós precisamos de algum remendo ou conserto de tempos a tempos — disse o médico alegremente. — Como um navio, meu caro senhor... exatamente com um navio. Algumas vezes o casco não está em condições e precisamos consultar um cirurgião; outras vezes é o cordame e então sou eu que aconselho; umas vezes são os motores, e vamos a um especialista do cérebro, outras vezes o vigia do passadiço está cansado e então vamos ver um oculista. Eu recomendaria consultar um oculista. Algum remendo ou conserto de quando em quando, eis o que nós precisamos. O senhor deve consultar um oculista.

Dick procurou um oculista... o melhor de Londres. Estava convencido de que o clínico não sabia nada da sua profissão e mais convencido ainda de que Maisie riria dele se fosse obrigado a usar óculos.

— Desprezei durante muito tempo os avisos de meu senhor, o estômago. Daí estas manchas diante dos olhos, Binkie. Eu vejo tão bem como sempre vi.

Quando entrou no corredor escuro que conduzia à sala de consulta, um homem esbarrou com ele. Dick viu o rosto quando ele saía precipitadamente para a rua.

— Esse é o tipo do escritor. Tem o mesmo formato de testa de Torp. Parece muito doente. Provavelmente ouviu alguma coisa que não agradou.

No mesmo instante em que pensava, um grande medo se apoderou de Dick, um medo que o fez suspender a respiração quando entrou na sala de espera do oculista, adornada com pesada mobília de talha, papel verde-escuro e quadros de tons sóbrios nas paredes. Reconheceu uma reprodução de um de seus próprios desenhos.

Havia muitas pessoas esperando. Chamou a atenção um livro de cantos de Natal em vermelho e ouro vividos. Iam crianças a esse oculista e elas precisavam de distração em letras grandes.

Isto é arte idólatra e ordinária — comentou Dick lá consigo, puxando para si o livro. — Pela anatomia dos anjos, foi feito na Alemanha.

Abriu-o maquinalmente e saltou aos olhos um poema escrito em tinta vermelha: A outra alegria que teve Maria Foi sua alegria de ver a Jesus, Seu filho dileto, menino de luz, Dar vista aos ceguinhos, que glória, que encanto!

Fazer cegos ver, dar felicidade!

Glória ao Padre, ao Filho, ao Espírito Santo, Por toda a Eternidade!

Dick leu e releu os versos até que chegou sua vez e o doutor, sentado em uma cadeira de braços, se inclinou sobre ele. O clarão de um microscópio de gás nos seus olhos fê-lo contrair-se. A mão do médico tocou a cicatriz do golpe de espada na fronte, e Dick explicou sumariamente como o recebera. Quando a chama foi retirada, Dick viu o rosto do médico e de novo sentiu medo. O oculista envolveu-se em uma nuvem de palavras. Dick conseguiu ouvir alusões a “cicatriz”, “osso frontal”, “nervo óptico”, “extrema cautela” e “evitar ansiedade mental”.

Qual é o veredicto? — perguntou debilmente. — Minha profissão é pintar e não posso perder tempo. Que é que o senhor me diz?

De novo o remoinho de palavras, mas desta vez tinham sentido.

— Pode-me dar alguma coisa de beber?

Muitas sentenças já haviam sido proferidas naquele quarto escuro, e os prisioneiros muitas vezes precisavam de consolo. Dick encontrou na mão um copo de conhaque.

— Pelo que me é dado concluir — disse, tossindo por causa da bebida — o senhor diz tratar-se de deterioração do nervo óptico ou coisa parecida, por conseguinte, um mal irremediável. Qual é o meu limite de tempo, se evitar toda a tensão e preocupação?

— Talvez um ano.

— Meu Deus! E se não me cuidar?

— Não poderei dizer com certeza. Não se pode verificar a extensão exata do ferimento produzido pelo golpe de espada. A cicatriz é muito antiga e... o senhor diz que esteve exposto à luz forte do deserto?... aplicação excessiva a trabalho meticuloso?

Sinceramente, eu não poderia dizer nada com segurança.

— Desculpe, mas isto veio sem qualquer aviso. Se me permite, eu ficarei sentado aqui um instante, depois irei. O senhor foi muito bom dizendo-me a verdade. Sem qualquer aviso; sem qualquer aviso. Obrigado.

Dick desceu para a rua e foi entusiasticamente recebido por Binkie.

— Estamos muito mal, cãozinho! Tão mal quanto é possível estar. Vamos até ao Parque para refletir.

Dirigiram-se para uma certa árvore que Dick conhecia bem e sentaram-se para pensar, porque ele tinha as pernas trêmulas e sentia um medo frio na boca do estômago.

— Como pôde vir assim sem aviso? É tão súbito como um tiro.

É a morte em vida, Binkie, vamos ser fechados em um quarto escuro daqui a um ano, se formos cautelosos, e não veremos mais ninguém, nunca mais teremos nada do que desejamos, ainda que vivamos um século.

Binkie abanou a cauda alegremente.

— Precisamos pensar, Binkie. Vamos ver que impressão se tem de ser cego.

Dick fechou os olhos, e dentro das pálpebras flutuavam vírgulas flamejantes e rodas de fogo. Mas, quando olhou através do Parque, o alcance de sua visão não estava diminuído. Pôde ver perfeitamente, até que um cortejo de fogos de artifício, girando lentamente, começou a desfilar diante dos globos oculares.

— Cãozinho, não estamos nada bem. Vamos para casa. Se ao menos Torp estivesse de volta!

Mas Torpenhow estava no sul da Inglaterra inspecionando estaleiros em companhia do Nilgó. Suas cartas eram breves e cheias de mistério.

Dick nunca tinha pedido o auxílio de ninguém nas alegrias nem nos pesares. Na solidão de seu estúdio, ora decorado com uma película de gaze cinza a um canto, ele argumentou que, se o seu destino fosse ficar cego, nem todos os Torpenhow do mundo poderiam salvá-lo.

— Não posso fazê-lo voltar da sua viagem para que fique sentado aqui ao meu lado tendo pena de mim. Preciso arranjar-me nisto sozinho — disse.

Estava deitado no sofá, comendo o bigode e perguntando-se como seria a escuridão da noite. E então veio à memória uma cena fantástica ocorrida no Sudão. Um soldado fora quase cortado ao meio pela larga lança de um árabe. Por um instante o homem não sentiu dor. Olhando para baixo viu que o sangue da vida o abandonava. A estúpida perplexidade que se estampou na fisionomia foi tão intensamente cômica que Dick e Torpenhow, ainda arquejantes e enervados da luta pela vida, riram às gargalhadas. O homem pareceu que ia rir com eles, mas quando seus lábios se abriram em um sorriso constrangido, foi subjugado pela agonia da morte e tombou gemendo aos pés deles. Dick riu de novo ao recordar aquele horror. Parecia-se tanto com o seu próprio caso!

— Mas eu tenho um pouco mais de tempo — concluiu.

Começou a passear pela sala, a princípio calmamente, mas depois com os passos apressados do medo. Era como se uma sombra negra estivesse ao seu lado e o impelisse a caminhar para a frente; e havia apenas círculos ondulantes e manchinhas flutuantes diante dos seus olhos.

— Devemos ter calma, Binkie; devemos ter calma. — Falava alto para se distrair. — Isto não é nada agradável. Que vamos fazer? Precisamos fazer alguma coisa. Nosso tempo é curto. Ainda hoje de manhã eu não teria acreditado nisto, mas agora as coisas são diferentes. Binkie, onde estava Moisés quando a luz se apagou?

Binkie sorriu de orelha a orelha, como convinha a um terrier bem-educado, mas não deu sugestão alguma.

— “Se mundo houvesse ao menos e tempo sobrado, a minha timidez, Binkie, não era pecado..., mas bem atrás de mim escuto sempre...” Limpou a testa desagradavelmente úmida.

— Que posso fazer? Que posso fazer? Não me resta mais ideia nenhuma e não consigo pensar coerentemente, mas preciso fazer alguma coisa, do contrário perco o juízo.

Recomeçou a caminhada apressada, parando de vez em quando para examinar telas há muito esquecidas e velhos livros de apontamentos, pois instintivamente ele se voltou para o seu trabalho, como a única coisa que não podia falhar.

— Você não serve, e você não serve — dizia a cada inspeção.

— Nada de soldados mais. Eu não poderia pintá-los. A morte súbita toca-me muito de perto, e isto é ao mesmo tempo batalha e assassinato para mim.

Escurecia, e Dick pensou por um momento que o crepúsculo da cegueira tinha chegado subitamente.

— Alá Todo-Poderoso! — exclamou em desespero — ajudai-me a atravessar o tempo de espera, e eu não me queixarei quando chegar o meu castigo. Que posso fazer agora antes que a luz se vá?

Não obteve resposta. Esperou até que pudesse readquirir alguma espécie de domínio sobre si mesmo. Tremiam as mãos, ele que se orgulhava de sua firmeza; sentia os lábios tremendo e o suor a escorrer pelo rosto. O medo acicatava-o e era movido pelo desejo de começar a trabalhar imediatamente e realizar alguma coisa, e exasperava-o a recusa de seu cérebro de fazer outra coisa afora repetir a notícia de que ele ia ficar cego. “É uma exibição humilhante”, pensou”, e alegro-me que Torp não esteja aqui para ver. O médico disse que eu devia evitar preocupação”.

— Venha aqui, Binkie. Quero afagá-lo.

O cachorrinho ganiu, pois Dick por pouco não espremeu a pele para fora do corpo. Depois ouviu o homem falar no crepúsculo e, cachorro que era, compreendeu que a aflição o abandonava...

— Alá é bom, Binkie. Não tão gentil como poderíamos desejar, mas discutiremos isso mais tarde. Creio que já vejo o que devo fazer. Todos estes estudos da cabeça de Bessie foram uma tolice, e quase meteram o seu dono em uma enrascada. Agora tenho a ideia clara como cristal — “a Melancolia que transcende todo o entendimento”. Será Maisie que aparecerá nessa cabeça, porque eu nunca terei Maisie.

E Bessie também, naturalmente, porque ela sabe tudo a respeito da Melancolia, embora não saiba que sabe, e haverá um pouco de estilização, e acabará com um gargalhada. Isso é por mim. Deverá rir ou sorrir apenas? Não, ela rirá a bandeiras despregadas, e todo homem ou mulher que tiver uma dor própria...

que diz o poema?...

Entenderá a linguagem e experimentará um sentimento De solidariedade em toda luta desastrosa.

“Em toda luta desastrosa?” Isto é melhor do que pintar a coisa apenas para provocar Maisie. Agora posso fazê-la porque a tenho dentro de mim. Binkie, vou segurá-lo pela cauda. Você será um augúrio. Venha cá.

Binkie ficou pendurado de cabeça para baixo por um momento sem um latido.

— É mais ou menos como segurar uma cobaia; mas você é um bravo cachorrinho e não gane quando o penduram pela cauda. É um bom augúrio.

Binkie foi para a sua própria cadeira e toda vez que olhava via Dick andando para um lado e para o outro, rindo. Nessa noite Dick escreveu uma carta a Maisie cheia de terno cuidado por sua saúde, mas dizendo muito pouco a respeito da própria, e sonhou com a Melancolia que ia nascer. Só de manhã se lembrou de que alguma coisa devia acontecer no futuro.

Começou a trabalhar, assobiando baixinho, e mergulhou completamente no prazer limpo e claro da criação, que não vem ao homem com demasiada frequência para que ele não se considere igual ao seu Deus e assim se recuse a morrer na hora aprazada.

Esqueceu Maisie, Torpenhow e Binkie aos seus pés, mas lembrouse de provocar em Bessie, que precisava de muita pouca provocação, uma tremenda raiva, a fim de poder observar as chamas que ardiam nos olhos. Atirou-se sem reserva ao seu trabalho e não pensou no destino que iria atingi-lo, pois estava possuído da sua ideia e as coisas deste mundo não tinham poder sobre ele.

— O senhor está satisfeito hoje — observou Bessie.

Dick fez uns círculos místicos no ar com a vara de pintor e foi ao armário tomar um gole. À noite, quando a exaltação do dia havia morrido, foi de novo ao armário e, depois de algumas visitas mais, convenceu-se de que o oculista era um mentiroso, pois ele via tudo com muita clareza. Era de opinião que ainda poderia construir um lar para Maisie e que, gostasse ela ou não, ainda seria sua esposa.

O estado de espírito passou na manhã seguinte, mas o armário e o que havia nele continuavam lá para seu consolo. De novo começou a trabalhar e a vista incomodava-o com pontos, traços e manchas, até que resolveu consultar o armário, e a Melancolia tanto na tela como em sua mente pareceu mais encantadora do que nunca.

Havia nele um delicioso sentimento de irresponsabilidade, como aqueles que, andando entre os seus semelhantes, sabem que a sentença de morte da doença paira sobre eles e, sabendo que o medo é apenas desperdício do pouco tempo que resta, mostram-se tumultuosamente felizes. Os dias passavam sem incidentes. Bessie chegava sempre à hora certa, a voz dela parecia a Dick vir de longe e seu rosto estava sempre muito perto, e a Melancolia começou a resplandecer na tela sob a forma de uma mulher que conhecera todos os sofrimentos do mundo e ria de tudo.

Era verdade que os cantos do estúdio se envolviam numa película cinzenta e se retiravam para a escuridão, que as manchas nos olhos e as dores de cabeça eram incômodas e que as cartas de Maisie eram difíceis de ler e ainda mais difíceis de responder. Dick não podia falar do seu mal e não podia rir das descrições que ela fazia da própria Melancolia, que ia mesmo ser concluída. Mas os furiosos dias de trabalho e as noites de sonhos loucos compensavam tudo, e o armário era o seu melhor amigo neste mundo. Bessie mostrava-se singularmente apática. Antes ela gritava de raiva quando Dick a fitava com os olhos semicerrados.

Ultimamente mostrava-se amuada ou observava-o com repugnância, falando muito pouco.

Torpenhow estava ausente havia seis semanas. Um bilhete incoerente anunciou o seu regresso.

“Novas, grandes novas!” escrevia. “O Nilgó sabe e Keneu sabe também. Estaremos todos de volta na quinta-feira. Tenha o almoço à nossa espera e limpe o seu equipamento.” Dick mostrou a carta a Bessie, e ela insultou-o por ter mandado Torpenhow embora e arruinado a sua vida.

— Bem — respondeu Dick brutalmente — você está melhor como está do que aceitando as carícias de um bêbedo qualquer na rua.

Dick sentia que tinha salvado Torpenhow de uma grande tentação.

— Eu não sei se isso é pior do que ficar sentada aqui posando para um bêbedo em um estúdio. Há três semanas que o senhor não está em seu estado normal. Bebe o tempo todo, e pretende ser melhor do que eu!

— Que quer dizer com isso? — perguntou Dick.

— Que quero dizer? Verá quando o Sr. Torpenhow voltar.

A espera não foi longa. Torpenhow encontrou-se com Bessie na escada sem o menor sinal de sentimento. Tinha notícias que significavam mais para ele do que muitas Bessie. Keneu e o Nilgó subiam atrás dele, chamando por Dick.

— É a você que estou vendo? — perguntou Torpenhow.

— O que resta de mim. Sente-se. Binkie está perfeitamente bem e eu estive trabalhando.

E cambaleou.

— Você esteve fazendo o pior trabalho que já fez em toda a sua vida. Homem de Deus, você...

Torpenhow voltou-se para os seus companheiros com um gesto suplicante, e eles saíram do estúdio e foram procurar almoço em outra parte. Depois falou. Mas como a censura de um amigo é uma coisa demasiado sagrada e íntima para ser impressa e como Torpenhow usou de imagens e metáforas inconvenientes e desprezo intraduzível, nunca se saberá o que ele disse a Dick, que pestanejava e piscava, tentando segurar as mãos. Depois de algum tempo o réu sentiu que precisava afirmar um pouco a sua dignidade.

Tinha a certeza de que não fizera nada imoral e de que havia razões que Torpenhow não conhecia. Tentaria explicar.

Levantou-se, tentou endireitar os ombros e falou ao rosto que mal podia ver.

— Você tem razão — disse. — Mas eu também tenho razão.

Depois que você partiu, comecei a sentir qualquer coisa nos olhos.

Fui a um oculista e ele me examinou a vista com um gasogênio...

digo, com um microscópio de gás para a vista. Isso foi há muito tempo. Ele disse: “Cicatriz na cabeça... corte de espada e nervo óptico”. Tome nota disso. De modo que vou ficar cego. Tenho algum trabalho para fazer antes de ficar cego e creio que devo fazê-lo. Já não vejo muito agora, mas vejo melhor quando estou embriagado.

Eu só soube que estava embriagado depois que me disseram..., mas devo continuar com o meu trabalho. Se você quer vê-lo, aí está.

Apontou para a Melancolia já quase concluída e esperou o aplauso.

Torpenhow não disse nada, e Dick começou a gemer debilmente, de alegria por tornar a ver Torpenhow, de pesar pelos malfeitos — se realmente houvera malfeitos — que induziam Torpenhow a mostrar-se alheio e frio, e pela infantil vaidade ferida, porque Torpenhow não dissera uma palavra de louvor sobre o seu quadro maravilhoso.

Após uma longa espera, Bessie olhou pelo buraco da fechadura e viu os dois andando para um lado e para o outro como de costume, Torpenhow com a mão no ombro de Dick. Diante disso, ela proferiu uma coisa tão imprópria que escandalizou o próprio Binkie, que estava no patamar babando pacientemente com a esperança de tornar a ver o dono.


Capítulo XI

Cacareja a perdiz chamando os filhos,
Eleva a Deus seu hino a cotovia,
Enquanto eu esqueço os campos onde andava.
Enquanto esqueço os matos que corria.
É triste confundir dia com noite,
Porém a mágoa que mais me devora
É ouvir o som da buzina de caça,
Que eu usava também tocar outrora.
O Filho Único

Era o terceiro dia depois da volta de Torpenhow e ele sentia o coração pesado.

— Quer dizer que você não pode ver para trabalhar sem uísque? Geralmente é o contrário.

— Pode um bêbedo dar a sua palavra de honra? — perguntou Dick.—

Pode, se foi sempre um homem bom como você.

— Então dou a minha palavra de honra — declarou Dick, falando rapidamente por entre os lábios ressequidos. — Neste momento eu mal posso ver o seu rosto. Há dois dias que você não me deixa beber — não sei se eu estive mesmo embriagado alguma vez — e não tenho feito nada. Não me impeça mais. Eu não sei quando meus olhos falharão completamente. As manchas, os pontos são as dores e o resto estão ficando cada vez mais intensos.

Juro que vejo perfeitamente quando estou moderadamente embriagado. Permita-me mais três sessões com Bessie e toda... a bebida que eu quiser, e terminarei o quadro. Não poderei matar-me em três dias. Poderei ter quando muito um pequeno ataque de delirium tremens.

— Eu darei mais três dias se me prometer parar de trabalhar e...

o resto... quer o quadro esteja pronto quer não!

— Não posso. Você não sabe o que esse quadro significa para mim. Mas você poderia pedir a ajuda do Nilgó e juntos derrubaremme e amarrarem-me. Eu não lutaria pelo uísque, mas lutaria pelo meu trabalho.

— Está bem. Dou três dias; mas você corta-me o coração.

Dick voltou ao seu quadro, trabalhando como um possesso; e o demônio amarelo do uísque estava com ele e afugentava as manchas dos olhos. A Melancolia estava quase concluída e era tudo ou quase tudo o que ele esperara que fosse. Dick pilheriava com Bessie, que lembrava que ele era um “bêbedo”, mas a censura não o alterava.

— Você não pode compreender, Bessie. Nós estamos à vista de terra e logo descansaremos e poderemos contemplar o que fizemos.

Vou dar três meses de pagamento quando o quadro estiver pronto, e na próxima vez que eu tiver mais trabalho para fazer... bem, mas isso não vem ao caso. Três meses de pagamento não a farão odiarme menos?

— Não! Odeio-o e continuarei a odiá-lo. O Sr. Torpenhow não quer mais falar comigo. Está sempre olhando mapas e uns livros de capa vermelha.

Bessie não disse que tinha assediado Torpenhow novamente, nem que ele, ao fim de sua súplica apaixonada, a tomara nos braços, dera um beijo e a colocara fora da porta com a recomendação de que deixasse de ser bobinha. Torpenhow passava a maior parte do tempo em companhia de Nilgó, a conversa deles era sobre guerra em futuro próximo, fretamento de transporte e preparativos secretos nos estaleiros. Ele não queria ver Dick enquanto o quadro não estivesse concluído.

— Ele está fazendo trabalho de primeira — disse ao Nilgó — e completamente fora do seu gênero regular. Mas a quantidade de bebida que ingere também está fora dos hábitos dele.

— Não se preocupe. Deixe-o em paz. Quando voltar a si novamente, nós o tiraremos deste lugar e o levaremos a respirar ar puro. Pobre Dick! Não o invejo, Torp, quando os olhos dele houverem falhado!

— É, será um caso de “Deus ajude o homem que está encadeado ao nosso Davi”. O pior é que não sabemos quando acontecerá, e eu creio que a incerteza da espera, mais do que qualquer outra coisa, foi que levou Dick ao uísque.

— Como riria, se soubesse, o árabe que cortou a cabeça!

— Ele pode rir quanto quiser: está morto. Mas isso é um pobre consolo agora.

Na tarde do terceiro dia Torpenhow ouviu Dick chamá-lo.

— Está pronto! — gritou. — Consegui! Entre! Não é uma beleza? Não é um encanto? Sofri o diabo para consegui-lo, mas não valeu a pena?

Torpenhow olhou a cabeça de uma mulher que ria — uma mulher de lábios cheios, olhos fundos, que se projetava para fora da tela, rindo, como Dick desejara.

— Quem o ensinou a fazer isso? — exclamou Torpenhow. — O estilo e a ideia não têm nada a ver com o seu trabalho regular. Que rosto! Que olhos e que insolência!

Inconscientemente, Torpenhow jogou a cabeça para trás e riu com ela.

Ela foi até ao fim do jogo e não creio que tenha gostado ... e agora não se importa mais. Não é essa a ideia?

— Exatamente.

— Onde foi buscar a boca e o queixo? Não são de Bessie.

— São... de outra pessoa. Mas não está bom? Não está formidável? Não valeu o uísque? Eu o consegui. Eu o fiz sozinho, e é o melhor que posso fazer. — Aspirou vivamente e murmurou: — Justo Deus! O que eu não poderia fazer daqui a dez anos, se posso fazer isto agora! A propósito, que é que você acha dela, Bessie?

— Eu acho a coisa mais horrível e brutal que já vi respondeu a moça, voltando-se para o outro lado.

— Muitas outras pessoas serão dessa opinião, moça... Dick, há uma espécie de sugestão sanguinária e viperina na atitude da cabeça, e isso eu não compreendo — observou Torpenhow.

— É um truque — explicou Dick, rindo de satisfação por se ver completamente compreendido. — Não pude resistir a um pouco de exibicionismo. E um truque francês e você não compreenderia, mas consegue-se fazendo girar um pouco a cabeça e encurtando um nadinha um lado do rosto, do ângulo do queixo ao alto da orelha esquerda. Isso, e carregando um pouco na sombra sob o lobo da orelha. Foi truque pura e simplesmente, mas, como a minha ideia já estava fixada, senti-me com o direito de usá-lo... Ó minha beleza!

— Amém! É mesmo uma beleza. Eu próprio o sinto.

— E assim o sentirá todo aquele que tiver alguma dor própria — declarou Dick, dando uma palmada na coxa. — Ele verá seu mal nesse rosto e, com a breca, quando começar a sentir pena de si mesmo, jogará a cabeça para trás e rirá... como ela ri. Eu pus nesse quadro a vida de meu coração e a luz dos meus olhos e não me importa o que venha... Estou cansado... terrivelmente cansado.

Acho que vou dormir. Leve o uísque, que já cumpriu a sua função, e dê a Bessie trinta e seis libras e mais três de gratificação. Cubra o quadro.

E adormeceu na espreguiçadeira, com o rosto branco desfigurado, quase antes de haver acabado a frase. Bessie tentou segurar a mão de Torpenhow.

— Não vai mais falar comigo? — perguntou, mas Torpenhow olhava para Dick.

— Que enorme reserva de egotismo tem esse homem! Amanhã vou tomar conta dele e o cuidarei. Ele merece... Hein? Que é isso, Bessie?

— Nada. Vou dar uma arrumação aqui, depois saio. O senhor não poderia dar-me os três meses de pagamento? Ele disse que nos desse.

Torpenhow deu um cheque e voltou para o seu quarto. Bessie limpou o estúdio meticulosamente, deixou a porta aberta para poder fugir, despejou meia garrafa de aguarrás em um pano e começou a esfregar furiosamente o rosto da Melancolia. A tinta não borrava com bastante facilidade. Ela pegou numa espátula e raspou-a, seguindo cada raspagem de uma esfregadela com o pano úmido.

Dentro de cinco minutos o quadro era um borrão informe de cores.

Bessie jogou o pano manchado de tinta na estufa do estúdio, pôs a língua de fora para o dormente e, voltando-se para correr escada abaixo, murmurou: “Tapeado!” Ela não veria mais Torpenhow, mas pelo menos tinha feito mal ao homem que se metera entre ela e seu desejo, e que costumava escarnecê-la. O recebimento do cheque foi o requinte da ironia para Bessie. Depois a pequena pirata atravessou o Tâmisa e desapareceu no sertão cinzento do Sul-do- Rio.

Dick dormiu até de noite, quando Torpenhow o forçou a ir para a cama. Tinha os olhos brilhantes e a voz rouca.

— Vamos dar mais uma olhadela ao quadro — disse, no jeito insistente de uma criança.

— Você... vai... dormir — ordenou Torpenhow. — Você não está nada bem, embora não o saiba. Está nervoso como um gato.

— Amanhã me reformarei. Boa noite.

Quando atravessava o estúdio para sair, Torpenhow levantou o pano que cobria o quadro e quase se traiu gritando: “Apagado!... — Raspado e borrado com aguarrás! Se Dick souber isto esta noite, ficará completamente louco. Assim mesmo ele já está à beira do colapso nervoso. Foi Bessie... um demônio! Só uma mulher seria capaz de fazer isto... e ainda com a tinta fresca do cheque! Dick vai ficar desvairado amanhã. A culpa foi minha por tentar ajudar uma filha da sarjeta, ó meu pobre Dick, Nosso Senhor o está ferindo com muita severidade!” Nessa noite Dick não pôde dormir, em parte de tanta alegria e em parte porque as conhecidas rodas de fogo dentro de seus olhos tinham dado lugar a vulcões estrepitosos de chamas multicores.

— Jorrai à vontade! — disse em voz alta. — Eu fiz o meu trabalho e agora podeis fazer o que quiserdes.

Ficou quieto, com os olhos fitos no teto, sentindo nas veias o delírio da bebida há muito represado, o cérebro em fogo com pensamentos precipitados que não se detinham para deixar-se examinar e as mãos crispadas e secas. Acabava de descobrir que estava pintando o rosto da Melancolia numa abóbada giratória com milhões de nervuras de luz e que todos os seus pensamentos prodigiosos estavam encarnados centenas de metros abaixo de seu minúsculo andaime oscilante, gritando todos em sua honra, quando de repente qualquer coisa estalou dentro das têmporas como uma corda de arco excessivamente retesada, e a rutilante abóbada desabou e ele ficou só na noite densa.

— Vou dormir. O quarto está muito escuro. Vamos acender uma lâmpada e ver que aspecto tem a Melancolia. Devia haver luar esta noite. Foi então que Torpenhow ouviu seu nome chamado por uma voz que ele não conhecia... o som estertorante do pavor extremo.

Seu primeiro pensamento enquanto corria para o quarto de Dick foi: “Ele viu o quadro!” Encontrou Dick sentado na cama agitando os braços no ar.

— Torp! Torp! Onde é que você está? Em nome de Deus, venha cá!

— Que aconteceu?

Dick segurou o ombro.

— Aconteceu? Estou aqui deitado no escuro há horas e você não me ouve! Torp, meu velho, não se vá! Estou completamente no escuro, no escuro, estou dizendo!

Torpenhow aproximou a vela dos olhos de Dick: não havia luz naqueles olhos. Acendeu o gás, e Dick ouviu a chama pegar. O aperto dos dedos no ombro de Torpenhow fez este se encolher.

— Não me deixe. Você não me deixaria sozinho agora, não é?

Eu não vejo. Você compreende? Está negro... completamente negro... e sinto como se estivesse caindo através da escuridão.

— Firme.

Torpenhow lançou o braço em volta de Dick e começou a embalá-lo delicadamente.

— Isso é bom. Não fale agora. Se eu ficar quieto algum tempo, esta escuridão desaparecerá. Psiu!

Dick contraiu as sobrancelhas e arregalou os olhos procurando desesperadamente ver. O ar da noite regelava os pés de Torpenhow.

— Você não pode ficar assim uns momentos? — perguntou. — Vou buscar o meu chambre e uns chinelos.

Dick apegou-se ao espaldar da cama com as duas mãos e esperou que a escuridão desaparecesse.

— Quanto tempo você demorou! — gritou quando Torpenhow voltou. — Está tão negro como sempre. Que está batendo aí na porta?

— Espreguiçadeira... manta... travesseiro. Vou dormir junto de você. Deite-se agora. Amanhã de manhã estará melhor.

— Não! — A voz elevou-se em um lamento. — Meu Deus!

Estou cego! Estou cego, e a escuridão nunca mais se dissipará!

Fez menção de saltar da cama, mas Torpenhow envolveu-o nos braços, apertando o queixo contra o ombro e exprimia a respiração para fora do corpo. Dick mal podia murmurar “Cego!” em voz sufocada e debater-se debilmente.

— Firme, Dick, firme! — dizia a voz profunda em seu ouvido, e o aperto aumentava. — Morda a bala, meu velho, e não deixe que eles pensem que você está com medo.

O aperto atingiu o máximo. Ambos respiravam ruidosamente.

Dick jogava a cabeça de um lado para o outro e gemia.

— Largue-me! — arquejou. — Você quebra-me as costelas.

Não... não devemos deixar que eles pensem que estamos com medo, não é?... todas as forças da escuridão e essa raça!

— Deite-se. Já passou.

— Sim — concordou Dick obediente. — Mas você poderia deixar-me segurar a sua mão? Eu sinto que preciso de alguma coisa a que me agarrar. Sinto-me cair através da escuridão.

Do lugar onde estava na espreguiçadeira Torpenhow estendeu a grande mão cabeluda. Dick apertou-a com força e dentro de meia hora dormia. Torpenhow retirou a mão e, inclinando-se sobre Dick, beijou-o de leve na testa, como às vezes os homens costumam beijar um camarada ferido na hora da morte para aliviar a partida.

Quando a aurora começava a acinzentar o ar, Torpenhow ouviu Dick falar consigo mesmo. Vogava à deriva nas ondas sem fim do delírio, falando rapidamente...

— É uma pena... uma grande pena, mas ajudou e é preciso se conformar, Mestre George. Para cobrir o dia basta a cegueira e, além disso, pondo de parte todas as Melancolias e falsos humores, é de evidente notoriedade — tal como foi a minha — que a rainha não pode errar. Torp não sabe. Eu direi quando tivermos avançado um pouco mais pelo deserto. Que confusão estão fazendo os barqueiros com c cordame do vapor! Eles vão rebentar em um instante aquele cabo de quatro polegadas! Eu não disse?... Lá se vai o barco! Espuma branca em água verde, e o vapor girando. Que bela cena! Vou desenhá-la. Não, não posso. Estou atacado de oftalmia. Essa foi uma das dez pragas do Egito, e estende-se Nilo acima sob a forma de cataratas. Ah! que pilhéria, Torp! Ria, ídolo, e afaste-se desse cabo... Ele o derrubará na água e sujará toda a sua roupa, Maisie querida.

— Oh! — exclamou Torpenhow. — Isto já aconteceu antes.

Aquela noite no rio.

— Ela vai dizer, sem dúvida, que eu tenho a culpa de você se enlamear, e você está bem perto do quebra-mar! Maisie, isso não é justo. Ah! Eu sabia que você ia errar. Baixo e para a esquerda, querida! Eu seria capaz de cortar a minha mão se isso servisse para dar alguma coisa mais do que obstinação. A minha mão direita, se isso servisse.

— Agora precisamos escutar. Aqui está uma ilha gritando através de mares de incompreensão. Mas creio que está gritando verdades — observou Torpenhow.

O delírio continuou. Tudo girava em volta de Maisie. Algumas vezes prelecionava longamente sobre a sua arte, depois amaldiçoava-se pela idiotice de se deixar escravizar. Suplicava um beijo a Maisie — só um beijo — antes de partir, e pedia que voltasse de Vitry-sur-Marne, se ela quisesse. Mas através de todos os seus delírios ele tomava o céu e a terra por testemunhas de que a rainha não podia errar.

Torpenhow escutava atentamente, e soube todos os detalhes que desconhecia sobre a vida de Dick. Durante três dias Dick variou falando sobre o seu passado, depois dormiu um sono natural.

— Em que tensão ele tem vivido, o pobre rapaz! — disse Torpenhow. — Quem diria? Dick entregar-se como um cão! E eu acusando-o de arrogante! Eu devia saber que não devemos julgar os outros. Mas eu o julguei! Que demônio de moça que ela deve ser! Dick deu a sua vida — diabos o levem! — e ela deu um beijo, ao que parece!

— Torp — disse Dick da cama — vá dar um passeio. Você está metido aqui há muito tempo. Vou levantar-me. Oh! Isto é aborrecido!

Não posso vestir-me! É absurdo!

Torpenhow ajudou-o a vestir-se e conduziu-o até à poltrona do estúdio. Ele ficou sentado muito quieto esperando com os nervos tensos que a escuridão se dissipasse. Mas não se dissipou nesse dia nem no dia seguinte. Aventurou-se então a viajar em volta das paredes. Bateu com as canelas na estufa e isso sugeriu que seria melhor andar de gatas com uma mão na frente. Torpenhow encontrou-o no chão.

— Estou tentando aprender a geografia dos meus novos domínios — informou Dick. — Lembra-se daquele negro a quem você vazou um olho lá no quadrado? Pena que não tivesse ficado com o outro olho. Teria sido útil. Alguma correspondência para mim?

Dê-me todas as cartas grossas, em envelope cinza, com uma espécie de coroa do lado de fora. Não têm importância.

Torpenhow deu uma carta com um “M” preto no verso do envelope. Dick guardou-a no bolso. Não havia nada nela que Torpenhow não pudesse ler, mas pertencia a ele e a Maisie, que nunca pertenceria.

“Quando verificar que eu não respondo, ela deixará de escrever.

É melhor assim. Agora eu não servira para nada”, argumentava Dick, e o tentador sugeria que devia informá-la do seu estado. Mas todos os seus nervos se revoltavam. “Já caí bastante baixo. Não vou pedir piedade. Além disso, seria cruel para ela.” Esforçava-se por afastar Maisie de seus pensamentos, mas os cegos têm muitas oportunidades para pensar, e, à medida que as forças voltavam nos longos dias inativos da completa escuridão, sentia-se angustiado até ao mais fundo da alma. Chegou mais uma carta de Maisie, depois outra. A seguir veio o silêncio, e Dick ficava sentado à janela, sentindo o pulso do verão no ar, e imaginava-a sendo conquistada por outro homem, mais forte do que ele. Sua imaginação, mais viva contra o fundo escuro em que se apoiava, não o poupava a nenhum detalhe, e punha-se a andar desvairado pelo estúdio, tropeçando na estufa, que parecia estar em quatro lugares ao mesmo tempo. Pior que tudo, o fumo não tinha gosto na escuridão. A arrogância do homem havia desaparecido e em seu lugar instalou-se o desespero que Torpenhow conhecia e a paixão cega, que Dick confiava ao travesseiro à noite. Os intervalos entre o paroxismo eram enchidos pela espera intolerável e o peso da intolerável escuridão.

— Vamos até ao Parque — convidou Torpenhow. — Você não se mexe daí desde o começo dos tempos.

— Que adianta? Não há movimento na escuridão e, além disso... — Fez uma pausa de irresolução ao cimo da escada — alguma coisa passará por cima de mim.

— Não se eu estiver com você. Vá com cuidado.

O fragor das ruas encheu Dick de um terror nervoso. Agarrou-se ao braço de Torpenhow.

— Imagine ter de procurar a valeta com o pé! — disse ele irritado quando se voltaram para entrar no Parque. — Amaldiçoemos Deus e morramos.

— Oh! Aí estão os Guardas! — exclamou Torpenhow.

Dick endireitou-se.

— Vamos para junto deles. Vamos olhar. Vamos passar para a relva e correr. Sinto o cheiro das árvores.

— Cuidado com a cerca baixa. Ótimo!

Torpenhow arrancou um tufo de erva com o salto do sapato.

— Sente o cheiro? — perguntou. — Não é bom?

Dick cheirou voluptuosamente.

— Agora levante os pés e corra.

Aproximaram-se do regimento o mais possível. Dick ouviu o calar das baionetas e suas narinas tremeram.

— Vamos chegar mais perto. Eles estão em coluna, não estão?

— Estão. Como soube?

— Senti-o. Ó meus soldados... meus belos soldados!

Aproximou-se mais, como se pudesse ver. — Outrora eu podia desenhar esses rapazes. Quem os desenhará agora?

— Eles vão partir dentro de alguns momentos. Não salte quando a banda atacar.

— Hein? Eu não sou corcel novo. É o silêncio que fere. Mais perto, Torp!... mais perto! Ó meu Deus, o que eu não daria para vêlos por um minuto!... meio minuto!

Ele podia ouvir a força armada quase ao seu alcance, podia ouvir as bandoleiras se repuxarem através do peito do homem da banda quando levantou o grande bombo do chão.

— Baquetas cruzadas acima da cabeça — murmurou Torpenhow.

— Eu sei... eu sei! Quem poderia saber melhor do que eu? Psiu!

As baquetas caíram com ruído e os homens partiram ao compasso da banda. Dick sentiu no rosto o deslocamento de ar do movimento da massa, ouviu o ruído enlouquecedor dos pés e a fricção das cartucheiras nas cinturas. O bombo marcava o compasso. Era um refrão de music-hall que permitia um perfeito passo acelerado...

Deve ser de boa altura, Deve ser bem parecido, Voltar no sábado à noite Sem parecer ter bebido; Deve saber afagar-me E beijar-me com ardor; Se for capaz de manter-nos, Terá todo o meu amor.

— Que foi? — perguntou Torpenhow vendo Dick deixar pender a cabeça quando se distanciaram as últimas filas do regimento.

— Nada. Sinto-me um pouco cansado da corrida... somente.

Torp, leve-me de volta. Por que me trouxe aqui para fora?

 

Capítulo XII

Eram três amigos que o quarto enterrou,
Com lodo na boca, poeira nos olhos;
E foram para o sul, o norte, o oriente...
O forte combate, o enfermo sucumbe.
Eram três amigos; falavam do morto...
O forte combate, o enfermo sucumbe.
“Estivesse ele aqui conosco”, suspiravam,
“O sol em seu rosto, o vento nos olhos.”
Balada

O Nilgó estava irritado com Torpenhow. Dick fora mandado para a cama — os cegos estão sempre sob as ordens dos que veem — e desde que voltara do Parque havia amaldiçoado Torpenhow por estar vivo e todo o mundo por estar vivo e poder ver, ao passo que ele, Dick, estava morto com a morte dos cegos, que, no mínimo, são fardos para aqueles com quem convivem. Torpenhow fizera qualquer referência à Sra. Gummidge, a lamurienta personagem de Dickens, e Dick retirara-se para o seu quarto em um acesso de fúria para manusear interminavelmente as três cartas de Maisie, que não abrira.

O Nilgó, gordo, corpulento e agressivo, estava no apartamento de Torpenhow. Atrás dele estava sentado Keneu, a Grande Águia de Guerra, e entre os dois havia um grande mapa embelezado com alfinetes de cabeça branca e preta.

— Eu estava enganado a respeito dos Bálcãs — disse o Nilgó.

— Mas não estou enganado a respeito disto. Todo o nosso trabalho no sul do Sudão tem que ser refeito. O público não se importa, naturalmente, mas o governo importa-se e está fazendo preparativos na surdina. Vocês sabem disso tão bem como eu.

— Lembro-me de como o povo nos amaldiçoava quando as nossas tropas se retiraram de Omdurman. Tinha que estourar mais cedo ou mais tarde. Mas eu não posso ir — declamou Torpenhow, apontando através da porta aberta. Era uma noite quente. — Vocês podem censurar-me?

Keneu ronronou acima do cachimbo como um gato grande e muito feliz...

— Eu não o censuro absolutamente. É uma bondade incomum da sua parte e tudo o mais, mas todo homem, até mesmo você, Torp, deve pensar no seu trabalho. Eu sei que parece brutal, mas Dick está fora da corrida — caído, gasto, liquidado. Tem um pouco de dinheiro. Não morrerá de fome, e você não pode deixar o seu trabalho por causa dele. Pense na sua própria reputação.

— A de Dick era cinco vezes maior do que a minha e a de vocês juntas.

— Isso era porque punha o nome dele em tudo o que fazia.

Agora tudo terminou. Você deve estar pronto para partir. Hoje está em condições de impor os seus preços, e você faz melhor trabalho do que qualquer um de nós.

— Não me diga quanto isso é tentador. Eu ficarei aqui para cuidar de Dick por algum tempo. Ele está tão alegre como um urso com dor de cabeça, mas acho que gosta de me sentir perto.

O Nilgó disse qualquer coisa descortês a respeito dos idiotas que jogavam fora suas carreiras por causa de outros idiotas.

Torpenhow irritou-se. A constante tensão de cuidar de Dick tinha esgotado os nervos.

— Resta uma terceira possibilidade — interveio Keneu meditativamente. — Pensem nisto e não sejam mais idiotas do que o necessário. Dick é — ou era — um homem robusto, relativamente atraente e dotado de certa dose de audácia.

— Oh! — fez o Nilgó, que se lembrou de um certo caso no Cairo. — Começo a compreender. Sinto muito, Torp.

Torpenhow acenou com a cabeça em um gesto de perdão.

— Mas você sentiu mais quando ele tomou aquela mulher.

Continue, Keneu.

— Eu tenho pensado com frequência, ao ver homens morrerem no deserto, que, se fosse possível mandar as notícias através do mundo e os meios de transporte fossem bastante rápidos, haveria pelo menos uma mulher à cabeceira de cada homem moribundo.

— E haveria algumas revelações bastante curiosas. Demos graças por serem as coisas como são — observou o Nilgó.

— Consideremos antes se os préstimos de Torp são exatamente o que Dick precisa neste momento. Que acha você mesmo, Torp?

— Eu sei que não o são. Mas que posso fazer?

— Exponha o assunto à junta. Nós somos todos amigos de Dick. Você conhece a vida dele melhor do que nós.

— Mas eu descobri tudo quando ele não estava em seu juízo.

— Tanto mais provável que seja verdade. Eu pensei que descobriríamos. Quem é ela?

E então Torpenhow contou a história em palavras simples, com toda a arte de um correspondente que sabe fazer um précis verbal.

É possível que um homem possa voltar através dos anos até ao amor de infância? — exclamou Keneu. — É possível?

— Eu contei o que ouvi. Ele agora não diz nada, mas fica sentado manuseando três cartas dela quando pensa que eu não estou olhando. Que devo fazer?

— Fale com ele — aconselhou o Nilgó.

— Oh, sem dúvida! Escrevo à moça — eu não sei o nome todo dela, lembre-se — e peço que o aceite por piedade! Creio que uma vez você disse a Dick que tinha pena dele, Nilgó. Lembra-se do que aconteceu? Entre lá no quarto dele e sugira uma confissão completa e um apelo à sua Maisie, quem quer que ela seja. Eu creio sinceramente que Dick tentaria matá-lo; e olhe que a cegueira o tornou deveras musculoso!

— O rumo que Torpenhow tem a seguir é perfeitamente claro — declarou Keneu. — Ele irá a Vitry-sur-Marne, que fica na estrada de ferro Bézières-Landes — linha simples desde Tourgas. Os prussianos bombardearam-na em 1870 porque havia um choupo no alto de uma colina a mil e oitocentos metros da torre da igreja. Há um esquadrão de cavalaria aquartelado lá... ou devia haver. Onde fica esse estúdio de que Torp falou não sei. Isso é negócio de Torp.

Eu indiquei o caminho. Ele explicará a situação à moça, friamente, e ela voltará para Dick — tanto mais que, nas palavras do próprio Dick, “não há nada mais que a maldita obstinação dela para mantêlos separados”.

— E, juntos, os dois têm quatrocentos e vinte libras anuais. Dick nunca perde o juízo quando se trata de números, nem mesmo durante o delírio. Você não tem a menor desculpa para não ir — declarou o Nilgó.

Torpenhow estava muito constrangido.

— Mas é absurdo e impossível. Eu não posso arrastá-la aqui pelos cabelos.

— A nossa profissão — a profissão de que tiramos o nosso dinheiro — é fazer coisas absurdas e impossíveis... geralmente sem a menor razão a não ser a de divertir o público. Aqui nós temos uma razão. O resto não importa. Eu compartilharei este apartamento com o Nilgó até à volta de Torpenhow. Daqui a pouco começará a vir à cidade uma batelada de “especiais” e isto aqui servirá de quartelgeneral para eles. Outra razão para mandar Torpenhow embora.

Assim a Providência ajuda aqueles que ajudam os outros e — neste ponto Keneu pôs em parte o seu tom cadenciado — nós não podemos deixá-lo amarrado pela perna a Dick quando começar o barulho. É a sua única oportunidade de escapar, e Dick ficará agradecido.

— Ele ficará... infelizmente! Não posso deixar de tentar. Não posso conceber uma mulher em seu juízo perfeito que rejeite Dick.

— Discuta isso com a moça. Eu já vi você convencer uma irritada mulher madista a dar tâmaras. Isso será muito menos difícil.

É melhor você não estar aqui amanhã à tarde, porque eu e o Nilgó já teremos tomado posse. É uma ordem. Obedeça.

— Dick — disse Torpenhow na manhã seguinte — posso fazer alguma coisa por você?

— Não, deixe-me em paz. Quantas vezes tenho de lembrar que estou cego?

— Não quer que vá buscar alguma coisa?

— Não. Tire daqui essas infernais botas rangedoras.

“Pobre rapaz”, pensou Torpenhow. “Devo estar atacando os nervos ultimamente. Ele quer um passo mais leve. Depois falou: — Está bem. Uma vez que está tão independente, vou partir por uns quatro ou cinco dias. Diga adeus pelo menos. O zelador da casa cuidará de você, e Keneu ficará ocupando meu apartamento.

Dick teve uma expressão de profundo abatimento.

— Não vai ficar fora mais de uma semana, pois não. Eu sei que ando irritadiço, mas não posso arranjar-me sem você.

— Não pode mesmo? Terá de se arranjar sem mim dentro de algum tempo, e ficará satisfeito quando eu me for.

Dick voltou às apalpadelas para a poltrona e ficou pensando no que significariam aquelas coisas. Não queria ser cuidado pelo zelador, mas a constante ternura de Torpenhow irritava-o. Não sabia exatamente o que queria. A escuridão não se dissipava e as cartas fechadas de Maisie estavam gastas e velhas de tanto manuseio. Ele nunca poderia lê-las enquanto a vida durasse, mas Maisie poderia mandar mais algumas para brincar. O Nilgó entrou com um presente — pedaço de cera vermelha de modelagem. Imaginou que Dick talvez achasse interesse no uso das mãos. Dick manuseou aquilo durante alguns minutos, depois disse melancolicamente: — Parece-se com alguma coisa no mundo? Pode levar isto.

Pode ser que daqui a uns cinquenta anos eu tenha adquirido o tato dos cegos. Sabe onde foi Torpenhow?

O Nilgó não sabia nada.

— Nós estamos ocupando o apartamento até que ele volte.

Podemos fazer alguma coisa por você?

— Eu gostaria de ficar só, por favor. Não pense que sou ingrato, mas estou melhor sozinho.

O Nilgó deu uma risadinha e Dick voltou à sua sonolenta meditação e surda rebelião contra o destino. Havia muito tempo que tinha deixado de pensar no trabalho que fizera nos velhos tempos e o desejo de fazer mais abandonara-o. Sentia uma imensa pena de si mesmo e apaziguava-o acariciar a sua dor. Mas todo o seu corpo e toda a sua alma clamavam por Maisie, que compreenderia. Seu bom senso dizia que Maisie, tendo seu próprio trabalho para fazer, não se importaria. Sua experiência ensinara que, quando o dinheiro se esgotava, as mulheres partiam e quando um homem era derrubado na corrida, os outros passavam por cima dele.

— Mas — dizia Dick em resposta — ao menos ela poderia utilizar-me como eu utilizava Binat... para alguma espécie de estudo.

Eu não pediria mais do que estar perto dela novamente, embora soubesse que outro homem a amava. Ui! Que indivíduo vil que eu sou!

Uma voz na escada começou a cantar alegremente: Quando daqui nós formos... formos... formos, Nossos credores chorarão de dor, Sentindo nossa ausência ao descobrir Que partimos no último vapor.

A seguir ao ruído de passos, ao bater da porta de Torpenhow e ao som de vozes em discussão exaltada, alguém guinchou: — E vejam, meus bons amigos, eu descobri um novo tipo de cantil para água... de primeira classe... Que tal? Abre e fecha sozinho.

Dick pôs-se em pé de um salto. Ele conhecia bem aquela voz.

— Esse é Cassavetti, de volta do Continente. Agora sei por que Torp partiu. Há barulho em alguma parte e... eu não estou lá.

Em vão o Nilgó ordenava silêncio.

— Isso é por minha causa — comentou Dick amargamente. — Os pássaros preparam-se para voar e não querem dizer-me. Estou ouvindo as vozes de Morten-Sutherland e Mackaye. Metade dos correspondentes de guerra de Londres estão aí... e eu estou fora disso!

Atravessou tropeçando o patamar e mergulhou na sala de Torpenhow. Pôde logo sentir que estava cheia de homens.

— Onde é a encrenca? — perguntou. — Nos Bálcãs finalmente? Por que alguém não me disse?

— Nós achamos que você não estaria interessado — explicou o Nilgó envergonhado. — É no Sudão, como de costume.

Felizes de vocês! Deixem-me ficar sentado aqui enquanto vocês conversam. Eu não estragarei a festa... Cassavetti, onde é que você está? O seu inglês continua tão ruim como sempre.

Dick foi conduzido para uma cadeira. Ouviu o ruído de mapas e a conversa prosseguiu, arrebatando-o. Todo o mundo falava ao mesmo tempo, discutindo a censura à imprensa, rotas ferroviárias, transporte, abastecimento de água, as capacidades dos generais — isto em linguagem que horrorizaria o público confiante — perorando, afirmando, denunciando e rindo a plenos pulmões. Havia a maravilhosa certeza de guerra no Sudão a qualquer momento. O Nilgó dissera-o, e convinha estarem preparados. Keneu havia telegrafado para o Cairo encomendando cavalos; Cassavetti furtara uma lista completamente incorreta das tropas que seriam enviadas e lia-a entre interrupções grosseiras; Keneu apresentou Dick a um homem desconhecido que seria empregado como artista de guerra pelo Sindicato Central Meridional.

— É a primeira expedição dele — disse Keneu. — Dê alguns palpites... sobre a arte de montar camelos.

— Ah! Os camelos! — gemeu Cassavetti. — Terei que aprender a montá-los novamente, e agora estou muito mais mole! Ouçam, meus bons amigos! Eu conheço muito bem as disposições militares que estão sendo tomadas. Irão os Royal Southerlanders de Argalshire. Fui informado pela melhor autoridade.

Foi interrompido por uma imensa gargalhada.

— Sente-se — aconselhou o Nilgó. — O Ministério da Guerra ainda nem fez as listas.

— Vai haver alguma força em Suaquém? — perguntou uma voz.

Depois os gritos redobraram e tudo se misturou assim: — Que quantidade de tropas egípcias vão utilizar? — Deus salve os felás! — Nos pântanos de Plumstead há agora uma estrada de ferro. — Finalmente teremos a linha Suaquém-Berber construída.

— Os viajantes canadenses são cautelosos demais. Prefiro um kruman meio ébrio em uma baleeira.

— Quem comanda a coluna do deserto? — Não, eles nunca fizeram explodir a grande rocha na curva de Ghineh. Teremos de ser içados por cima, como de costume. — Alguém vai dizer-me se teremos um contingente indiano, ou terei que quebrar a cabeça de todo o mundo? — Não rasgue o mapa ao meio. — É uma guerra de ocupação, estou dizendo, para interligar as companhias africanas no sul. — Há vermes de filaria na maior parte dos poços de água do caminho.

E então o Nilgó, incapaz de manter a ordem, começou a berrar como uma buzina de nevoeiro e a esmurrar a mesa com as duas mãos.— Mas que é feito de Torpenhow? — perguntou Dick no silêncio que se seguiu.

No momento Torp está de férias. Acho que anda por aí namorando — respondeu o Nilgó.

— Ele disse que ia ficar em casa — informou Keneu.

— Vai, não é? — replicou Dick com uma praga. — Pois não ficará. Eu não presto para grande coisa agora, mas se você e o Nilgó o obrigarem a ficar, eu darei um jeito de que ele veja a razão.

Torp ficar, era o que faltava! Ele é o melhor de todos vocês. Vai haver o diabo perto de Omdurman. Chegaremos lá e, desta vez, ficaremos! Oh! Eu me esqueci! Quisera poder ir com vocês.

— Também nós todos gostaríamos, Dick — respondeu Keneu.

— E eu mais que todos — declarou o novo artista do Sindicato Central Meridional. — O senhor poderia dizer-me...

— Vou dar um pequeno conselho — interrompeu Dick, dirigindose para a porta. — Se acontecer darem um golpe na cabeça em uma escaramuça, não se defenda. Diga ao homem que continue cortando. Você achará que, no fim, é mais barato. Obrigado por me deixarem assistir.

— Dick tem coragem — observou o Nilgó uma hora depois, quando todos haviam saído, exceto Keneu.

— Foi o clangor sagrado do clarim chamando à guerra. Você notou como ele se apresentou? Pobre homem! Vamos falar com ele — propôs Keneu.

A excitação da conversa havia morrido. Dick estava sentado à mesa do estúdio com a cabeça apoiada nos braços quando eles entraram. Não mudou de posição.

— Isto mágoa — gemia. — Deus me perdoe, porém, mágoa cruelmente, e, entretanto, o mundo continua girando como sempre.

Verei Torp antes de partir?

— Oh, sim. Você o verá — respondeu o Nilgó.


Capítulo XIII

O sol se pôs faz uma hora;
Volto para casa...
Todavia,
Se eu me perdi na luz do dia,
Como é que vou guiar-me agora?
Canção Antiga

— Maisie, venha para a cama.

— Está tão quente, que não consigo dormir. Não se preocupe.

Maisie apoiou os cotovelos no peitoril da janela e olhou o luar na estrada reta flanqueada de choupos. O verão tinha chegado a Vitry-sur-Marne e queimava tudo. A relva nos prados estava ressequida, o barro na margem do rio duro como tijolo cozido, as flores da beira da estrada haviam morrido há muito tempo e as rosas do jardim pendiam murchas de seus caules. O calor no pequeno dormitório sob os beirais era quase intolerável. O próprio luar batendo na parede do estúdio de Kami, do outro lado da estrada, parecia tornar a noite mais quente e a sombra do grande puxador da sineta junto do portão fechado projetava um traço negro como tinta que chamou a atenção de Maisie e a contrariou.

— Coisa horrível! Devia ser tudo branco — murmurou. — E o portão não fica no meio do muro! Nunca notei isso antes.

Maisie era difícil de contentar a essa hora. Primeiro, o calor das poucas semanas passadas esgotara-a; segundo, seu trabalho, e particularmente o estudo de uma cabeça de mulher que visava a representar a Melancolia e não ficara pronto a tempo para o Salon, era insatisfatório; terceiro, Kami dissera isso mesmo dois dias antes; quarto — mas não tão completamente que valesse a pena pensar a respeito — Dick, sua propriedade, não escrevia há mais de seis semanas. Estava irritada com o calor, com Kami e com seu trabalho, mas estava sobretudo irritadíssima com Dick.

Ela escrevera três vezes, de cada vez propondo um novo tratamento da sua Melancolia. Dick não tomara conhecimento dessas comunicações. Resolvera não escrever mais. Quando voltasse à Inglaterra no outono — por uma questão de brio não podia voltar antes — falaria com ele. Maisie sentia falta das conferências das tardes de domingo mais do que gostava de admitir.

A única coisa que Kami dizia era: "Continuez, mademoiselle, continuez toujours”, e repetia esse conselho enfadonho durante todo o cálido verão, tal qual uma cigarra — uma velha cigarra grisalha de casaco preto de alpaca, calças brancas e grande chapéu de feltro.

Dick caminhava imperiosamente para um lado e para o outro em seu pequenino estúdio ao norte do fresco e verdejante Parque de Londres e dizia coisas dez vezes piores do que continuez antes de tirar o pincel da mão e mostrar onde estava o erro. Sua última carta, Maisie lembrava-se, continha alguns conselhos triviais sobre não pintar ao sol nem beber água em fazendas da beira da estrada, e dizia isso não uma vez, mas três vezes... como se Dick não soubesse que Maisie sabia tomar conta de si mesma.

Mas que estaria ele fazendo, que não podia tirar tempo para escrever? Um murmúrio de vozes na estrada fê-la debruçar-se para fora da janela. Um cavalariano da pequena guarnição da cidade conversava com a cozinheira de Kami. O luar brilhava na bainha do sabre, que ele segurava na mão para impedir que fizesse ruído inoportuno. O chapéu da cozinheira projetava sombras profundas no seu rosto, que estava perto do rosto do militar. Ele passou o braço pela cintura e seguiu-se o ruído de um beijo.

— Fu! — fez Maisie, recuando.

— Que foi? — perguntou a ruiva, que se agitava desassossegadamente na cama.

— Apenas um soldado beijando a cozinheira — respondeu Maisie. — Já se foram.

Debruçou-se de novo para fora da janela e pôs um xale sobre a camisa de dormir por causa do sereno da noite. Soprava uma brisa muito leve lá fora e uma rosa murcha em baixo acenava com a cabeça como quem sabia segredos indizíveis. Seria possível que Dick desviasse seus pensamentos do trabalho dela e do próprio e descesse à degradação de Suzanne e o soldado? Ele não podia fazer isso! A rosa acenou com a cabeça e com uma folha. Parecia um duendezinho travesso coçando a orelha. Dick não podia “porque”, pensou Maisie, “ele é meu... meu... meu. Ele disse que era. Eu sei que não me importo com o que ele faça. Isso só servirá para estragar o trabalho dele se o fizer, e estragará o meu também”.

A rosa continuava acenando à maneira fútil característica das flores. Não havia razão alguma no mundo para que Dick não se divertisse como bem entendesse, a não ser o fato de ter sido destinado pela Providência, que era Maisie, a ajudar Maisie em seu trabalho. E o trabalho dela era a preparação de quadros que iam algumas vezes para exposições provincianas inglesas, como o provavam as notas do seu álbum de recortes, e que eram invariavelmente rejeitados pelo Salon quando Kami era importunado para que permitisse enviá-los. Seu trabalho no futuro seria, ao que parecia, a preparação de quadros em moldes exatamente iguais, que seriam rejeitados de maneira exatamente igual...

A moça ruiva debatia-se angustiada em cima dos lençóis.

— Está quente demais para dormir — gemeu, e a interrupção feriu os nervos de Maisie.

De maneira exatamente igual. Então ela dividiria seus anos entre o pequeno estúdio na Inglaterra e o grande estúdio de Kami em Vitry-sur-Marne. Não, iria para outro mestre, que a forçasse a alcançar o sucesso a que tinha direito, se trabalho paciente e esforço desesperado davam direito a alguma coisa. Dick dissera que tinha trabalhado dez anos para compreender a sua arte. Ela trabalhara dez anos, e dez anos não eram nada. Dick dissera que dez anos não eram nada..., mas isso era com relação a ela apenas.

Ele tinha dito — esse mesmo homem que não podia arranjar tempo para escrever — que esperaria dez anos por ela e que, mais cedo ou mais tarde, ela voltaria para ele. Dissera isso na carta absurda sobre insolação e difteria, e depois deixara de escrever. Devia andar passeando para um lado e para outro por ruas enluaradas beijando cozinheiras. Maisie gostaria de fazer um sermão nesse momento — não como estava, de camisa de dormir, mas convenientemente vestida, severamente, de cima. Mas se Dick andava beijando outras moças, certamente não se importaria que Maisie o admoestasse ou não. Ela voltaria para o seu estúdio e prepararia quadros que iriam etc. A roda de moinho do pensamento girava lentamente para que todas as suas seções passassem perfeitamente visíveis, e a ruiva agitava-se e virava-se na cama.

Maisie apoiou o queixo nas mãos e concluiu que não havia dúvida alguma quanto à vilania de Dick. Para se justificar, começou, de maneira nada feminina, a ponderar as provas. Havia um menino, e ele dissera que a amava. E beijou-a — beijou-a na face — junto de uma papoula amarela, que acenava com a cabeça exatamente como aquela irritante rosa seca no jardim. Depois houve um intervalo, e alguns homens tinham dito que a amavam... justamente quando ela andava mais ocupada com seu trabalho. Depois o rapaz voltou e logo no segundo encontro disse que a amava. Depois..., mas eram intermináveis as coisas que ele fizera! Dedicara o seu tempo e o seu talento. Falara sobre arte, administração doméstica, técnica, chávenas, o abuso das conservas como estimulante — isso foi grosseiro — pincéis de pelo de zibelina... dera os melhores de sua coleção... ela usava-os diariamente; dera conselhos que serviam e, de vez em quando... um olhar. E que olhar! O olhar de um cão espancado que espera uma palavra para se arrastar aos pés da dona. Em troca ela não dera absolutamente nada, salvo — neste ponto limpou a boca contra a manga larga da camisa de dormir — o privilégio de beijá-la uma vez. Um beijo na boca! Ignominioso! Não foi isso bastante e mais do que bastante? E se não o foi, não tinha ele já cancelado a dívida não escrevendo e... provavelmente beijando outras moças?

— Maisie, você vai ficar resfriada. Vá deitar-se por favor — pediu sua companheira em voz cansada. — Não consigo pregar olho com você à janela.

Maisie encolheu os ombros e não respondeu. Refletia sobre a mesquinharia de Dick e outras mesquinharias que não tinham nada a ver com ele. O luar implacável não a deixava dormir. Dava à claraboia do estúdio do outro lado da estrada um tom frio de prata; ficou a olhá-lo fixamente e seus pensamentos começaram a embaralhar-se. A sombra do grande puxador da sineta na parede ficou mais curta, alongou-se de novo e desapareceu quando a Lua se escondeu atrás do pasto. Uma lebre apareceu saltitando através da estrada. Depois o vento da aurora soprou através das relvas dos outeiros e trouxe consigo frialdade, e o gado mugiu junto ao rio apequenado pela seca. A cabeça de Maisie caiu para a frente sobre o peitoril da janela e o emaranhado de cabelo negro cobriu os braços.

— Acorde, Maisie, você vai resfriar-se.

— Sim, meu bem; sim, meu bem.

Dirigiu-se cambaleando para a cama como uma criança cansada e, quando mergulhou o rosto nos travesseiros, murmurou; — Creio... creio....... Mas ele devia ter escrito.

O dia trouxe consigo a rotina do estúdio, o cheiro de tintas e aguarrás e a monótona sabedoria de Kami, que era um artista pesado, mas um professor excelente se o aluno tinha afinidade com ele. Maisie não tinha afinidade com ele nesse dia e esperou com impaciência o fim do trabalho. Ela sabia quando isso ia chegar; pois Kami ajuntava o casaco negro de alpaca em um molho atrás das costas e, com os pálidos olhos azuis que não viam alunos nem telas, olhava através do passado para lembrar a história de um tal Binat.—

Vocês todas não se têm saído mal — dizia — Mas devem lembrar-se de que não é suficiente ter o método, a arte, o talento, nem mesmo isso que se chama toque. Deve-se ter também a convicção que prende o quadro à parede. De tantos que já ensinei — aqui as estudantes começavam a tirar os percevejos das pranchetas ou a juntar os seus tubos de tinta — dos muitíssimos que tenho ensinado, o melhor foi Binat. Tudo o que provém do estudo, do trabalho e do conhecimento já existia nele quando veio.

Depois que me deixou, devia estar em condições de fazer tudo o que é possível fazer com cores, forma e conhecimento. Mas... ele não tinha convicção. De modo que hoje não ouço mais falar de Binat — o melhor de meus alunos — e isso foi há muito tempo. De modo que por hoje, também, vocês terão o prazer de não me ouvir mais.

Continuez, mesdemoiselles, e, sobretudo, com convicção.

Depois disso, ia para o jardim fumar e lamentar a perda de Binat, enquanto as alunas se dispersavam para suas diversas habitações ou ficavam por ali no estúdio fazendo planos para o frescor da tarde.

Maisie olhou a sua muito infeliz Melancolia, reprimiu o desejo de fazer uma careta e atravessava rapidamente a estrada para escrever uma carta a Dick, quando notou um homem corpulento montado em um cavalo branco da tropa. Como no decurso de vinte horas Torpenhow conseguira conquistar os corações dos oficiais de cavalaria do quartel de Vitry-sur-Marne, discutir com eles a certeza de uma gloriosa vingança da França, reduzir o coronel a lágrimas de pura afabilidade e tomar emprestado o melhor cavalo do esquadrão para fazer a viagem até o estúdio de Kami, eis um mistério que só um correspondente de guerra poderá desvendar.

— Desculpe, senhorita — disse ele. — Esta é aparentemente uma pergunta absurda, mas o fato é que eu não a conheço por qualquer outro nome; há alguma senhorita aqui chamada Maisie?

— Eu sou Maisie — respondeu a moça das profundezas de um grande chapéu-de-sol.

— Permita que me apresente — tornou Torpenhow, enquanto o cavalo caracolava na poeira branca cegante. — Meu nome é Torpenhow. Dick Heldar é o meu melhor amigo e... e... o fato é que ele ficou cego.

— Cego? — exclamou Maisie perplexa. — Ele não pode estar cego!

— Está completamente cego há quase dois meses.

Maisie ergueu o rosto, e estava de um branco de nácar.

— Não! Não! Eu não acredito que esteja cego!

— Quer ver com os próprios olhos? — perguntou Torpenhow.

— Agora... imediatamente?

— Oh, não! O trem de Paris só passa aqui pelas oito da noite.

Haverá tempo de sobra.

— Foi o Sr. Heldar que o mandou falar comigo?

— Claro que não. Dick não faria esse tipo de coisa. Ele está sentado lã no estúdio virando nas mãos umas cartas que não pode ler porque está cego.

Houve um ruído de sufocação no fundo do chapéu-de-sol.

Maisie inclinou a cabeça e entrou na casinha, onde a moça ruiva estava em um sofá queixando-se de dor de cabeça.

— Dick está cego! — disse Maisie, respirando rapidamente e apoiando-se ao espaldar de uma cadeira. — O meu Dick está cego!

— O quê?

A moça não estava mais no sofá.

— Veio um homem da Inglaterra para me dizer. Ele não escreve há seis semanas.

— Você vai ao encontro dele?

— Preciso pensar.

— Pensar?! Eu voltaria a Londres para vê-lo e beijava os olhos, beijava, beijava, até que eles pudessem ver novamente! Se você não vai, eu vou! Oh! Que estou dizendo? Idiotazinha malvada que você é! Vá ao encontro dele imediatamente. Vá!

Torpenhow sentia o pescoço em fogo sob o sol, mas conservava um sorriso de enorme paciência quando Maisie apareceu ao sol com a cabeça descoberta.

— Eu irei — disse ela, de olhos baixos.

— Então esteja na estação de Vitry às sete da noite.

Era uma ordem, dada por uma pessoa acostumada a ser obedecida. Maisie não respondeu nada, mas sentiu-se agradecida por não ter oportunidade de discutir com aquele homenzarrão que tomava tudo como coisa estabelecida e governava um cavalo recalcitrante com uma mão. Voltou para junto da ruiva, que chorava amargamente, e por entre lágrimas, beijos — muito poucos destes — mentol, arrumação de malas e uma entrevista com Kami, passouse a tarde de canícula. Depois se pensaria. Seu dever no momento era ir ao encontro de Dick... Dick, que tinha o amigo maravilhoso e que ficava sentado no escuro brincando com suas cartas por abrir.

— Mas que é que você irá fazer? — perguntou à sua companheira, — Eu? Oh, ficarei aqui... terminarei a sua Melancolia — respondeu ela, sorrindo Iastimosamente, — Escreva-me depois.

Nessa noite correu em Vitry-sur-Marne a lenda de um inglês maluco, indubitavelmente atacado de insolação, que tinha bebido com os oficiais da guarnição até embebedá-los a todos, tomara emprestado um cavalo da tropa e, logo a seguir, fugira, segundo o costume inglês, com uma daquelas mais do que malucas moças inglesas que pintavam quadros sob a direção daquele bom Monsieur Kami.

— São muito esquisitas — disse Suzanne ao seu cavalariano junto ao muro do estúdio, ao luar. — Ela andava sempre sem ver nada com aqueles grandes olhos e, no entanto, beijou-me nas duas faces como se fosse minha irmã e deu-me ... veja... dez francos!

O cavalariano cobrou uma taxa sobre os dois presentes, pois se prezava de ser um bom soldado.

Torpenhow falou pouco com Maisie durante a viagem até Calais. Teve, entretanto, o cuidado de atender a todas as suas necessidades, de arranjar um compartimento para ela só e de deixála em paz. Estava espantado da facilidade com que a coisa se tinha resolvido.

— O mais acertado é deixá-la entregue aos próprios pensamentos. Pelo que Dick deixou entrever — quando estava variando — ela deve ter feito dele gato e sapato. Gostaria de saber como se sente recebendo ordens.

Maisie nada disse. Ia sentada no seu compartimento vazio, muitas vezes com os olhos fechados para experimentar a sensação de cegueira. Era por uma ordem que ela estava voltando rapidamente a Londres, e por fim surpreendeu-se quase começando a gostar da situação. Era melhor assim do que cuidar da bagagem e ter uma amiga ruiva que nunca se interessava por coisa alguma do que a rodeava. Mas parecia haver no ar uma impressão de que ela, Maisie — logo ela! — estava em desvalimento. Por conseguinte, justificou sua conduta perante si mesma com grande sucesso, até que Torpenhow a procurou no vapor e, sem prefácio, começou a contar a história da cegueira de Dick, suprimindo alguns detalhes, mas detendo-se longamente nas angústias do delírio. Parou antes de terminar, como se houvesse perdido o interesse pelo assunto, e foi para a proa fumar. Maisie ficou furiosa com ele e consigo mesma.

Foi levada rapidamente de Dover para Londres quase sem ter tempo de pedir o café da manhã e — nessa altura estava incapaz de indignação — Torpenhow pediu secamente que esperasse em um vestíbulo ao fundo de uma escada coberta de chumbo enquanto ele subia para investigar. De novo a percepção de que estava sendo tratada como uma garotinha travessa afogueou as faces pálidas.

Tudo por Dick ter feito a estupidez de ficar cego.

Torpenhow conduziu-a até uma porta fechada, que abriu com muito cuidado. Dick estava sentado junto da janela, com a cabeça caída sobre o peito. Tinha na mão três envelopes, que virava e revirava. O homenzarrão que dava ordens não mais se encontrava ao seu lado e a porta fechou-se atrás dela.

Ouvindo o ruído, Dick guardou as cartas no bolso.

— Olá, Torp! É você? Tenho estado tão só!

Sua voz havia adquirido a monotonia própria da voz dos cegos.

Maisie encolheu-se em um canto da sala. Seu coração batia furiosamente e ela pôs uma mão sobre o peito para aquietá-lo. Dick olhou na sua direção, e Maisie compreendeu pela primeira vez que ele estava cego. Fechar os olhos em um vagão de estrada de ferro para abri-los quando agradasse era brincadeira de criança. Aquele homem estava cego, embora tivesse os olhos completamente abertos.

— Torp, é você? Disseram-me que ia voltar.

Dick pareceu intrigado e um pouco irritado com o silêncio.

— Não; sou apenas eu — respondeu Maisie em um murmúrio forçado.

Mal podia mover os lábios.

— Hum! — fez Dick serenamente, sem se mexer. — Isto é um novo fenômeno. À escuridão já me estou habituando; mas protesto contra ouvir vozes.

Estaria também louco, além de cego, ao ponto de falar sozinho?

O coração de Maisie bateu mais descompassadamente e sua respiração era ofegante. Dick levantou-se e começou a atravessar a sala às apalpadelas, tocando cada mesa e-cadeira ao passar. Uma vez enganchou o pé no tapete e praguejou, pondo um joelho no chão para apalpar o obstáculo. Maisie lembrou-se de o ter visto andar pelo Parque como se a terra inteira pertencesse, marchar para um lado e para o outro no seu estúdio, dois meses antes, e subir como um foguete a prancha do vapor do Canal. As batidas de seu coração faziam-na sentir-se mal, e Dick aproximava-se, guiado pelo som de sua respiração. Ela estendeu uma mão maquinalmente para afastá-lo ou puxá-lo para si, não saberia dizer. Tocou no peito, e Dick recuou como se tivesse recebido um tiro.

— É Maisie! — disse com um suspiro seco. — Que está fazendo aqui?

— Eu vim... vim... para vê-lo... por favor.

Dick fechou a boca com firmeza.

— Não quer sentar-se? Você sabe, eu tive qualquer coisa na vista e...

— Eu sei... eu sei. Por que não me disse?

— Eu não podia escrever.

— Podia ter falado com o Sr. Torpenhow.

— Que tem ele a ver com a minha vida?

— Ele... trouxe-me de Vitry-sur-Marne. Ele achou que eu devia vê-lo.— Por quê? Que aconteceu? Posso fazer alguma coisa por você? Não, não posso. Esqueci-me.

— Ó Dick, sinto tanto! Vim para dizer e... Deixe-me conduzi-lo de volta à sua cadeira.

— Não! Eu não sou criança. Você só faz isso por piedade. Eu não tencionava dizer nada. Agora não presto para nada. Sou um homem caído, liquidado. Deixe-me em paz!

Voltou às apalpadelas para a sua cadeira e seu peito arfava quando se sentou.

Maisie observava-o e o medo abandonou-a, seguido de uma dolorosa vergonha. Ele falara uma verdade que fora ocultada durante todo o trajeto da impetuosa viagem para Londres; pois Dick era de fato um homem caído, liquidado... não mais dominador, mas antes um pouco abjeto; nem um artista mais forte do que ela, nem um homem para ser admirado — apenas um ceguinho sentado numa cadeira e parecendo a ponto de chorar. Maisie sentiu uma imensa e sincera pena dele, uma pena maior do que já havia sentido por qualquer outra pessoa na vida, mas não bastante grande para negar as palavras dele. Ficou, pois, onde estava, sentindo-se envergonhada e um pouco magoada, porque fora ali com a sincera intenção de que sua viagem terminasse triunfalmente, e, em vez disso, sentia apenas uma enorme piedade, completa e surpreendentemente distinta do amor.

— Então? — fez Dick, com o rosto continuamente voltado para o outro lado. — Eu não tencionava aborrecê-la mais. Que foi?

Teve consciência de que Maisie suspendera a respiração, mas estava tão pouco preparado como ela para a torrente de emoção que se seguiu. As pessoas que não choram com facilidade choram desenfreadamente quando se rompem as fontes das grandes profundezas. Maisie tinha-se deixado cair numa cadeira e soluçava com o rosto escondido nas mãos.

— Não posso... não posso! — chorava desesperadamente. — É-me impossível! Não é culpa minha. Eu o sinto tanto! Ó Dick, eu o sinto tanto!

Dick endireitou os ombros novamente. Aquelas palavras feriram-no como um chicote. Os soluços continuaram. Não é agradável perceber que a gente falhou na hora da provação ou titubeou ante a mera possibilidade de fazer sacrifícios.

— Eu me desprezo. . de todo o coração. Mas não posso. Ó Dick, você não vai pedir-me... não é? — gemeu Maisie.

Levantou a vista por um momento e por acaso os olhos de Dick encontraram os seus. O rosto por barbear estava muito branco e contraído, e os lábios tentavam sorrir. Mas foram os olhos sem vida que assustaram Maisie. O seu Dick tinha ficado cego e em seu lugar ficara uma pessoa que ela mal podia reconhecer enquanto não falava.

— Quem está pedindo que faça alguma coisa, Maisie? Eu disse como seria. Que adianta afligir-se? em nome de Deus, não chore assim; não vale a pena.

— Você não sabe quanto me detesto. Ó Dick, ajude-me... ajudeme!

O choro tinha ido além do controle dela e estava começando a alarmar o homem. Dick adiantou-se aos tropeções e lançou um braço em volta e a cabeça da moça repousou no seu ombro.

— Psiu, querida, psiu! Não chore. Você tem toda a razão e não tem nada de que se censurar... nunca teve. Está apenas um pouco agitada por causa da viagem e acho que nem comeu nada de manhã. Que animal que foi o Torp trazendo-a aqui.

— Eu quis vir. Sinceramente — protestou ela.

— Muito bem. E agora veio e viu e eu estou-lhe... imensamente grato. Quando estiver melhor, poderá ir comer alguma coisa. Fez boa viagem?

Maisie chorava mais moderadamente, contente pela primeira vez na sua vida de ter alguma coisa a que se apoiar. Dick deu umas palmadinhas no ombro ternamente, mas sem jeito, pois não tinha bem a de onde estava o ombro dela.

Maisie desprendeu-se dos seus braços finalmente e esperou, trêmula e profundamente infeliz. Dick havia-se afastado até à janela para colocar toda a largura do quarto entre eles e para acalmar um pouco o tumulto de seu coração.

— Está melhor agora? — perguntou.

— Estou, mas... Você não me odeia?

— Eu odiá-la? Meu Deus! Eu?

— Não... não há nada que eu possa fazer por você então? Eu ficarei aqui na Inglaterra, se você quiser. Talvez eu pudesse vir vê-lo algumas vezes.

— Acho que não, querida. Seria mais bondoso da sua parte não me ver mais, por favor. Eu não quero parecer grosseiro..., mas não acha... talvez fosse melhor você partir... agora mesmo.

Tinha consciência de que não poderia comportar-se como um homem se a tensão continuasse muito mais tempo.

— Não mereço outra coisa. Eu vou, Dick. Oh, sinto-me tão desprezível!

— Tolice. Você não tem nada por que se afligir; eu diria a você se tivesse. Espere um momento, querida. Primeiro tenho aqui uma coisa para dar. Fi-la pensando em você o tempo todo desde que começou este pequeno inconveniente. É a minha Melancolia; era uma beleza quando a vi pela última vez. Pode ficar com ela para mim e, se alguma vez ficar pobre, pode vendê-la. Deve valer algumas centenas de libras em qualquer mercado. — Tateou entre as telas. — Está emoldurada em preto. Isto que eu tenho na mão é uma moldura preta? Aí está. Que é que você acha dela?

E voltou para Maisie um borrão informe de tinta, e seus olhos fixaram-se intensamente como para perceber a maravilha e a surpresa. Uma coisa e só uma ela podia fazer por ele.

— Então?

A voz era mais cheia e sonora, porque o homem sabia que estava falando de sua melhor obra. Maisie olhou o borrão, e um desejo louco de rir subiu à garganta. Mas por causa de Dick — fosse o que fosse que pudesse significar aquela coisa maluca — ela não devia trair-se. Sua voz sufocou com as lágrimas retidas a custo quando respondeu, ainda olhando a ruína...

— Ó Dick, é ótimo!

Dick ouviu o pequeno soluço histérico e tomou-o por um tributo.

— Quer ficar com ele então? Eu o mandarei para sua casa se você quiser.

— Eu? Oh, sim... obrigada. Ah-ah!

Se não fugisse imediatamente, o riso, pior do que as lágrimas, seria capaz de matá-la. Voltou-se e correu, engasgada e cega, pela escada abaixo, vazia de vida a essa hora, procurou refúgio em um cabriolé e correu para casa do outro lado do Parque. Aí sentou-se na sala de estar quase desmantelada e pensou em Dick cego, inútil até ao fim da vida, e em si mesma aos próprios olhos. No fundo da dor, da vergonha e da humilhação havia medo da fria cólera da moça ruiva quando voltasse para ela. Maisie nunca até então temera sua companheira. Só quando se surpreendeu dizendo: “Bem, ele não me pediu nem uma vez”, percebeu o desprezo que sentia por si mesma.

E este é o fim de Maisie.

Para Dick estava reservado um tormento mais profundo. A princípio não pôde compreender por que Maisie, que ele havia mandado embora, o tinha deixado sem uma palavra de adeus. Ficou furioso contra Torpenhow, que causara aquela humilhação e perturbara a sua triste paz. Então chegou a sua hora sombria e ele ficou a sós consigo mesmo e seus desejos de extrair todo o auxílio que pudesse da escuridão. A rainha não podia errar, mas, fazendo a coisa certa no sentido que convinha ao seu trabalho, ela prejudicara a própria causa mais profundamente do que o próprio Dick conseguia perceber.

— Era tudo o que eu tinha e perdi-o — disse Dick quando a angústia permitiu pensar claramente. — E Torp há de pensar que foi tão infernalmente esperto, que eu não terei coragem de dizer.

Preciso refletir nisto com calma.

— Olá! — saudou Torpenhow, entrando no estúdio depois de Dick haver gozado duas horas de meditação. — Estou de volta.

Está-se sentindo alguma coisa melhor?

— Torp, eu não sei o que dizer. Venha aqui.

Dick tossiu rouco, sem saber realmente o que deveria dizer e como dizê-lo comedidamente.

— Que adianta falar? Levante-se e marche.

Torpenhow estava completamente satisfeito.

Puseram-se a andar para um lado e para o outro como de costume, Torpenhow com a mão no ombro de Dick e Dick mergulhado nos seus pensamentos.

— Como diabo você descobriu tudo? — perguntou Dick finalmente.

— Você não devia delirar, Dick, se queria guardar segredos. Foi uma impertinência intolerável da minha parte, mas se você me visse balançando em cima dum cavalo meio bravo do exército francês, sob um sol tórrido, havia de rir. Vai haver uma pândega no meu apartamento esta noite. Sete outros demônios...

— Eu sei... a encrenca no sul do Sudão. Eu surpreendi os concílios deles o outro dia, e fiquei triste. Você já bruniu as suas armas para partir? Para quem vai trabalhar?

— Ainda não assinei contrato com ninguém. Primeiro eu queria ver como as suas coisas se resolviam com você.

— Você ficaria comigo então se... as coisas tivessem corrido mal?

Fez a pergunta cautelosamente.

— Não me pergunte demais. Eu sou apenas um homem.

— Você tentou ser um anjo e com bastante sucesso.

— Ah, sim?... Então, você vai assistir à função esta noite? Antes de amanhecer estaremos todos meios embriagados. Todos acreditam que a guerra é uma certeza.

— Creio que não irei, meu velho, se você não se incomodar.

Ficarei sossegado aqui.

— Meditando? Não o censuro. Ninguém mais do que você merece ser feliz.

Nessa noite houve tumulto na escada. Os correspondentes chegaram ao apartamento de Torpenhow depois do teatro, do jantar e do music-hall para discutirem seus planos de campanha caso as operações militares se tornassem uma realidade. Torpenhow, Keneu e o Nilgó tinham convidado para a orgia todos os homens com quem haviam trabalhado, e o Sr. Beeton, o zelador, declarou que nunca em toda a sua vida acidentada tinha visto um grupo tão fantástico de cavalheiros. Eles acordavam o resto da casa com gritos e canções: e os velhos eram tão desordeiros como os jovens. Pois as possibilidades de guerra estavam à frente deles e todos sabiam o que isso significava.

Sentado no seu quarto, um pouco confuso pelo ruído do outro lado do patamar, Dick subitamente começou a rir sozinho.

— Pensando bem, a situação é intensamente cômica. Maisie tem toda a razão... pobrezinha. Eu não sabia que era capaz de chorar daquele jeito, mas agora sei o que Torp pensa e sei que ele seria tolo bastante para ficar em casa e tentar consolar-me... se soubesse. Além disso, não é agradável confessar que a gente foi jogado fora como uma cadeira quebrada. Devo aguentar este negócio sozinho... como de costume. Se não houver guerra e Torp descobrir, eu farei um papel de bobo, nada mais. Mas, se houver guerra, não devo atrapalhar a oportunidade dele. Negócio é negócio e eu quero ficar só... quero ficar só. Que barulho que estão fazendo!

Alguém bateu fortemente à porta do estúdio.

— Venha de aí divertir-se, Dick! — convidou o Nilgó.

— Eu gostaria, mas não posso. Não sinto disposição para divertir-me.

— Vou dizer aos rapazes e eles virão aqui desentocá-lo.

— Não, por favor, meu velho. Sinceramente, prefiro ficar só no momento.

— Muito bem. Podemos mandar alguma coisa? Champanha, por exemplo? Cassavetti está começando a cantar canções meridionais.

Por uns instantes Dick meditou seriamente sobre a proposta.

— Não, obrigado. Já estou com dor de cabeça.

— Menino virtuoso. É o efeito das emoções juvenis. Meus parabéns, Dick. Eu também estive envolvido na conspiração para o seu bem-estar.

— Va para o diabo e... Ah, mande Binkie para aqui.

O cãozinho entrou em pés elásticos, agitado por terem brincado muito com ele durante toda a noite. Ele tinha ajudado a cantar os coros; mas logo que entrou no estúdio percebeu que aquilo não era lugar para abanar a cauda e acomodou-se no colo de Dick até à hora de dormir. Depois foi para a cama com Dick, que contou todas as horas que bateram e acordou de manhã com a cabeça dolorosamente clara para receber as congratulações mais formais de Torpenhow e uma narrativa minuciosa da festança da noite anterior.

— Você não parece muito feliz para um homem que acaba de ficar noivo — observou Torpenhow.

— Esqueça isso... é assunto meu, e eu estou bem. Você vai realmente?

— Vou. Com o velho Sindicato Central, como de costume.

Telegrafaram-me e aceitei, em condições melhores do que antes.

— Quando vai partir?

— Depois de amanhã... para Brindisi.

— Graças a Deus.

Dick falou do fundo do coração.

— Essa não é uma maneira muito bonita de dizer que está contente por se ver livre de mim. Mas os homens no seu estado têm o direito de ser egoístas.

Não foi isso que eu quis dizer. Você pode sacar cem libras no banco para mim antes de partir?

— Não é uma quantia muito grande para montar casa, é?

— Oh, isso é só para... as despesas de casamento.

Torpenhow foi buscar o dinheiro, separou-o em notas de cinco e dez e guardou-o cuidadosamente na escrivaninha.

“Agora acho que vou ter de ouvi-lo delirar a respeito da sua noiva até à hora de partir. Deus nos dê paciência com um homem apaixonado!” pensou Torpenhow.

Mas Dick jamais disse uma única palavra sobre Maisie ou o casamento. Ficou parado à porta do apartamento de Torpenhow enquanto este arrumava a bagagem, fazendo inúmeras perguntas sobre a próxima campanha, até que Torpenhow começou a ficar aborrecido.

— Você é um indivíduo terrivelmente reservado, e consome a sua própria fumaça, não é? — disse na última noite.

— Eu?... é possível. A propósito, quanto tempo acha que vai durar a guerra?

— Dias, semanas ou meses. Nunca se sabe. Poderá durar anos.—

Quisera poder ir.

— Santo Deus! Você é a criatura mais inexplicável! Não ocorreu por acaso que você vai se casar... graças a mim?

— Claro, claro. Eu vou casar... é verdade. Vou casar-me. Estou imensamente grato. Ainda não disse isso?

— Pelo seu jeito, você mais parece um homem condenado à força — replicou Torpenhow.

E no dia seguinte Torpenhow disse adeus e deixou-o entregue à solidão que ele tanto desejava.


Capítulo XIV

Entanto, alfim, antes que os lanceiros pudessem achá-lo,
Entanto, alfim, antes que as espadas pudessem salvá-lo,
Entanto, alfim, rodeado por seus senhores,
Ele, o crente, falou como senhor a escravo;
Entanto, alfim, muito embora mutilado pelos cafres,
Quebrado pela servidão, pisado por salteadores
— Entanto, alfim, embora as sombras o reclamassem já,
Ele invocou Alá e morreu como crente.
Kizilbashi

— Desculpe, Sr. Heldar, mas... não vai acontecer nada? — perguntou o Sr. Beeton.

— Não!

Dick acabava de acordar para outra manhã de árido desespero e estava de muito mau humor.

— Não é da minha conta, claro, meu senhor, e, como eu digo sempre: “cuida da tua própria vida e deixa os outros cuidarem da deles”, mas, antes de partir, o Sr. Torpenhow deu-me a entender mais ou menos que o senhor talvez se mudasse para uma casa sua, por assim dizer... uma espécie de casa com quartos em cima e embaixo, onde o senhor seria mais bem cuidado, embora eu procure tratar bem todos os nossos inquilinos. Não é?

— Oh! Essa casa deve ser o manicômio. Por enquanto não o incomodarei para me levar para lá. Traga-me o café, por favor, e deixe-me em paz.

— Espero não ter feito nada errado, meu senhor, e creio que, dentro dos limites das possibilidades, eu tenha procurado fazer o que se deve para todos os cavalheiros inquilinos... e mais especialmente para aqueles que são vítimas de alguma infelicidade... como o senhor, Sr. Heldar. O senhor gosta de ovar de peixe? A ova de peixe é difícil de encontrar, mas eu digo: “Não tem importância um pouco de trabalho extra, se isso servir para dar satisfação aos inquilinos.” O Sr. Beeton retirou-se e deixou Dick entregue a si mesmo.

Torpenhow partira há muito tempo; não havia mais algazarra no edifício e Dick tinha-se acomodado à sua nova vida, que ele era fraco bastante para considerar nada melhor do que a morte.

É difícil viver no escuro, confundindo o dia com a noite, adormecendo de puro tédio ao meio-dia e levantando-se inquieto no frio do alvorecer. No princípio, quando acordava, Dick seguia às apalpadelas pelos corredores até que ouvia alguém ressonar. Então ficava sabendo que o dia ainda não havia chegado e voltava desanimado para o seu quarto. Mais tarde aprendeu a não se mexer enquanto não houvesse ruído e movimento na casa e o Sr. Beeton o aconselhasse a levantar-se. Uma vez vestido — e vestir-se, agora que Torpenhow estava ausente, era uma tarefa demorada, porque os colarinhos, as gravatas e essas coisas escondiam-se em cantos distantes no quarto e a busca significava cabeçadas em cadeiras e arcas — uma vez vestido não tinha absolutamente nada que fazer a não ser ficar sentado e meditar até à chegada de cada uma das três refeições do dia. Decorriam séculos entre o café e o almoço e entre o almoço e o jantar, e, embora ele rezasse durante centenas de anos para perder o juízo, Deus nunca o ouvia.

Ao contrário, a sua mente tornava-se mais lúcida e revolvia os pensamentos uns contra os outros como pedras de moinho moendo sem grão de permeio, e o cérebro não se cansava nem dava repouso. Continuava a pensar, a pensar, fantasiando e recordando toda a sorte de coisas. Recordava Maisie e sucessos passados, viagens temerárias por terra e por mar, a glória de realizar trabalho e sentir que era bom, e sugeria tudo o que poderia ter acontecido se os olhos se houvessem mantido fiéis ao seu dever. Quando o pensamento cessava por absoluto cansaço, descia sobre a alma de Dick onda após onda de um medo invencível e indefinido — medo de passar fome sempre, terror de que o teto invisível caísse sobre ele e o esmagasse, medo de fogo no prédio e uma morte miserável nas chamas vermelhas, e agonias de horror mais terríveis que nada tinham a ver com o medo da morte. E então Dick baixava a cabeça e, agarrando os braços da poltrona, lutava desesperadamente com o seu íntimo até que o tinir de pratos dizia que alguma coisa de comer estava sendo posta na sua frente.

O Sr. Beeton levava a refeição quando tinha tempo de folga e Dick acostumou-se a esperar com interesse a sua conversa, que tratava de bicos de gás defeituosos, de canos de esgoto estragados, de pequenos truques para pregar quadros nas paredes e dos pecados da mulher, da limpeza e das copeiras. À falta de coisas melhores, a pequena bisbilhotice de um encarregado de pensão torna-se imensamente interessante e o atarraxar de uma torneira um acontecimento que dá motivo a comentários durante dias.

Uma vez ou duas por semana o Sr. Beeton levava Dick com ele quando ia ao mercado de manhã e ficava discutindo com os vendedores sobre peixe, pavios de lampião, mostarda, tapioca etc., enquanto Dick descansava o peso do corpo ora em um pé ora no outro e brincava com as latas e o rolo de barbante do balcão. Às vezes encontravam por acaso um amigo do Sr. Beeton e Dick, afastando-se um pouco, esperava pacientemente até que o Sr.

Beeton se resolvesse a prosseguir.

A vida não aumentava o amor-próprio dele. Desistiu de se barbear por ser um exercício perigoso e porque barbear-se na barbearia significava denunciar a sua enfermidade. Como nunca havia dado atenção alguma ao seu aspecto pessoal, nessa situação, não podendo nem ao menos escovar a roupa convenientemente, passou a viver em um desleixo extremo. Um cego não pode comer limpamente enquanto não se acostuma à escuridão, o que leva meses. Se exige assistência e fiquei irritado quando não dão, ele precisa afirmar-se e manter-se ereto. Então o mais insignificante dos criados pode ver que é cego e que, portanto, não oferece perigo. O cego sensato fica de olhos baixos e imóvel.

Para se divertir ele pode com os tenazes tirar carvões um por um da caixa de carvão e fazer uns montezinhos deles no guarda-fogo, contando-os meticulosamente e repondo-os no seu lugar um por um e com muito cuidado. Pode armar somas e fazê-las, se isso interessar; pode conversar sozinho ou com a gata, se ela resolver visitá-lo, e, se foi artista de profissão, pode desenhar no ar com o indicador, mas isso é mais ou menos como desenhar um porco com os olhos fechados. Pode ir à estante e contar os livros, pondo-os em ordem pelo tamanho, ou ao guarda-roupa e contar as camisas, pondo-as em pilhas de duas ou três sobre a cama, separando as que têm os punhos esfiapados e falta de botões. Mas até mesmo este divertimento cansa depois de algum tempo, e todos os tempos são muito, muito longos.

Dick teve licença para arrumar uma caixa de ferramentas em que o Sr. Beeton guardava martelos, torneiras e porcas, pedaços de cano de gás, almotolias e barbante.

— Se eu não tenho tudo no lugar exato em que sei que devo procurá-lo, não consigo encontrar nada quando o preciso. O senhor não imagina a quantidade de pequeninas coisas de que esta pensão precisa — comentou o Sr. Beeton.

E, mexendo na maçaneta da porta, preparando-se para sair: — É duro para o senhor, eu sei que é duro. O senhor não vai fazer alguma coisa?

— Eu pago o meu aluguel e a pensão. Não basta isso?

— Eu não estava duvidando que o senhor pudesse pagar a sua manutenção, meu senhor, mas muitas vezes tenho dito à minha mulher; “É duro para ele, porque não se trata de um velho nem mesmo de um homem de meia-idade, mas de um cavalheiro em plena mocidade. É por isso que é tão duro”.

— Creio que sim — concordou Dick distraidamente.

Essa impertinência a poder de se repetir tinha deixado de o magoar... muito.

— Eu estive pensando — continuou o Sr. Beeton, sempre fazendo menção de sair — que o senhor talvez gostasse de ouvir o meu filho Alf ler os jornais uma vez por outra à noite. Ele lê maravilhosamente, dado que tem só nove anos.

— Eu ficaria imensamente grato — respondeu Dick. — Mas não desejo que ele faça isso por nada.

— Eu não estava pensando nessa questão, meu senhor, mas, naturalmente, isso está nas suas mãos. Dá gosto ouvir Alf cantar: “A melhor Amiga de um Menino é Mamãe!” Ah!

— Ouvirei também Alf cantar isso. Mande-o aqui esta noite com os jornais.

Alf não era um menino agradável, pois se sentia muito ufano de seus inúmeros certificados escolares de boa conduta e tinha um orgulho excessivo do seu canto. O Sr. Beeton ficou ali todo risonho enquanto o garoto cantou uma canção de oito estrofes de oito versos em um tom agudo e lamentoso, e, depois de elogiá-lo, deixou-o a ler os telegramas estrangeiros para Dick. Dez minutos depois Alf voltava para junto de seus pais muito pálido e assustado.

— Ele disse que não podia suportar mais — explicou.

— Ele disse que você lia mal, Alf? — perguntou a Sra. Beeton.

— Não. Ele disse que eu lia maravilhosamente, que nunca ouviu ninguém ler assim, mas disse que não podia suportar o que estava nos jornais.

— Talvez tenha perdido algum dinheiro na Bolsa. Você esteve lendo sobre títulos, Alf?

— Não; era tudo a respeito das lutas lá aonde foram os soldados — um grande trecho com todas as linhas muito juntas e palavras muito difíceis. Ele deu-me meia coroa por eu ler tão bem. E disse que na próxima vez que houver alguma coisa que ele queira mandará chamar-me.

— É bom ouvir isso, mas acho que por toda essa meia coroa — vá guardá-la no burrinho, Alf, e quero ver você guardá-la — ele poderia ocupá-lo mais tempo. Ora, ele nem teve tempo de ver como você lê maravilhosamente.

— É melhor deixá-lo em paz... os cavalheiros preferem isso quando estão abatidos — observou o Sr. Beeton.

A capacidade rigorosamente limitada de Alf para compreender a correspondência especial de Torpenhow não impedira de despertar em Dick o demônio da inquietação. Ele podia ouvir, através da cantilena anasalada do menino, os camelos resmungando nos quadrados atrás dos soldados, fora de Suaquém; podia ouvir os homens praguejando e brincando em redor dos caldeirões do rancho e sentir o cheiro acre da fumaça de lenha que o vento do deserto impelia através do campo.

Nessa noite pediu a Deus que tirasse o juízo, oferecendo como prova de ser digno desse favor o fato de não se haver matado há muito tempo. Essa prece não foi atendida e, na realidade, Dick sabia no fundo de seu coração que só um resto de senso de humor e não qualquer virtude especial o mantinha ainda vivo. O suicídio, persuadira-se, seria não só um ridículo insulto à gravidade da situação, mas também uma confissão frouxa de medo.

— Unicamente pelo divertido da coisa — disse à gata que tinha tomado o lugar de Binkie no seu apartamento — eu gostaria de saber quanto tempo isto vai durar. Posso viver um ano com as cem libras que Torp sacou para mim. Devo ter pelo menos duas ou três mil no Banco... isto é, mais vinte ou trinta anos garantidos. Depois começarei a gastar das minhas cento e vinte por ano, que já serão mais nessa altura. Pensemos. Vinte e cinco... trinta e cinco — um homem no vigor da idade segundo dizem — quarenta e cinco — um homem de meia-idade começando a entrar na política... cinquenta e cinco... “morreu na idade relativamente jovem de cinquenta e cinco anos”, segundo os jornais. Puf! como estes cristãos fogem à morte!

Setenta e cinco... estamos apenas envelhecendo. Mas setenta e cinco é possível. Com todos os diabos! Cinquenta anos mais de prisão solitária no escuro! Você morrerá, Beeton morrerá, Torp morrerá e mai... todos os outros morrerão, mas eu continuarei vivo e sem nada que fazer. Sinto muita pena de mim mesmo. Eu gostaria que alguém mais tivesse pena de mim. Evidentemente não vou ficar louco antes de morrer, mas a dor continua tão ruim como sempre.

Algum dia, quando você for vivissectada, gatinha, eles amarrarão você numa mesinha e a abrirão..., mas não tenha medo; eles tomarão o máximo cuidado para que você não morra. Você viverá e então terá muita pena de não ter tido pena de mim. Talvez Torp volte e... Quisera poder ir ao encontro de Torp e do Nilgó, embora os atrapalhasse.

O bichano saiu do quarto antes que ele terminasse o seu discurso, e Alf, quando entrou, encontrou Dick falando ao tapete vazio da lareira.

— Está aqui uma carta para o senhor — anunciou o rapaz. — O senhor quer que eu a leia?

— Entregue-me por um instante e eu direi.

A mão estendida tremia um pouco e a voz não era de todo segura. Estava dentro dos limites da possibilidade humana que...

essa não era carta de Maisie. Ele conhecia demasiado bem o peso dos três envelopes fechados. Fora uma esperança tola a de que a moça escrevesse. Ele não percebia que há uma ofensa que não admite reparação, embora o ofensor com lágrimas nos olhos e o mais profundo amor de seu coração procure corrigi-la. É melhor esquecer essa ofensa, quer seja causada quer sofrida, pois é tão irremediável como trabalho malfeito depois de divulgado.

— Leia-a então — disse Dick, e Alf começou a entoar de acordo com as regras da escola pública...

— Eu poderia ter dado amor, poderia ter dado lealdade, tal como você nunca sonhou. Acha que eu me importaria com o que você fosse? Mas você resolveu desprezar tudo por nada. A única desculpa que tenho a dar é você ser tão jovem.

— É só — disse o rapaz, devolvendo o papel para ser jogado ao fogo.—

Que dizia a carta? — perguntou a Sra. Beeton quando Alf voltou.

— Não sei. Acho que era uma circular ou anúncio a respeito de jogar tudo fora para não ganhar nada.

— Devo ter pisado em alguma coisa quando estava vivo e andava por aí e a coisa ressaltou e atingiu-me. Deus me ajude, seja o que for... a não ser que fosse tudo uma pilhéria. Mas eu não sei de ninguém que se desse ao trabalho de fazer pouco de mim... Amor e lealdade por nada. Parece bastante tentador. Quem sabe se eu não perdi de fato alguma coisa?

Dick pensou durante muito tempo, mas não conseguiu lembrarse de quando ou como se colocara em condições de conquistar essas bagatelas das mãos de uma mulher.

Contudo, a carta tão tocante sobre uma questão em que ele preferia não pensar provocou em Dick um ataque de frenesi que durou um dia e uma noite. Quando seu coração estava tão cheio de desespero que não podia conter mais, o corpo e alma juntos pareciam cair interminavelmente através da escuridão. Então vinha o medo da escuridão e as tentativas desesperadas para alcançar a luz outra vez. Mas não havia luz para alcançar. Depois que a agonia o deixava suado e ofegante, a queda recomeçava até que a tortura acumulada o incitava a nova luta tão improfícua como a primeira.

Seguiam-se alguns minutos de sono em que sonhava que via.

Depois o cortejo de acontecimentos repetia-se até que ele ficava completamente exausto e o cérebro retomava as suas eternas considerações sobre Maisie e as coisas que podiam ter sido.

Ao fim de tudo o Sr. Beeton entrou no seu quarto e ofereceu-se para levá-lo a passear.

— Desta vez não irei fazer compras. Iremos ao Parque se o senhor quiser.

— Absolutamente não quero — respondeu Dick. — Quero ficar pelas ruas e andar para um lado e para o outro. Gosto de ouvir as pessoas em volta de mim.

Isso não era inteiramente verdade. O cego nos primeiros estádios de sua enfermidade detesta aqueles que podem andar a passo largo e com os braços caídos..., mas Dick não tinha desejo algum de ir ao Parque. Uma vez e só uma vez depois que Maisie fechara a porta, ele tinha ido lá, guiado por Alf. Alf esqueceu-se dele e foi pescar barrigudinhos com alguns companheiros. Depois de meia hora de espera, Dick, quase chorando de raiva, chamou um passante, que o apresentou a um policial afável, e este conduziu-o a uma carruagem de aluguel do lado oposto ao Palácio Alberto. Ele nunca contou ao Sr. Beeton o esquecimento de Alf, mas... essa não era a maneira como ele estava acostumado a passear pelo Parque noutro tempo.

— Em que ruas o senhor quer passear então? — perguntou o Sr. Beeton compassivamente.

A sua concepção de um feriado alegre era um piquenique na relva do Parque com a família e meia dúzia de sacos de papel cheios de comida.

— Acompanhe o rio — disse Dick.

Assim fizeram, e ele teve continuamente o ruído da água nos ouvidos até que chegaram a Blackfriars Bridge e entraram em Waterloo Road. O Sr. Beeton ia explicando as belezas do cenário à medida que caminhavam.

— E, se não estou muito enganado — observou o Sr. Beeton — do outro lado da rua está passando aquela moça que costumava ir ao seu apartamento para ser pintada. Eu nunca esqueço uma cara e nunca recordo um nome, a não ser os dos inquilinos que pagam, naturalmente!

— Mande-a parar! — pediu Dick. — É Bessie Broke. Diga que eu gostaria de falar com ela. Depressa, homem!

O Sr. Beeton atravessou a rua na frente dos ônibus e deteve Bessie, que seguia para os lados do norte. Ela reconheceu-o como o encarregado da pensão, que costumava olhá-la com maus olhos quando passava para subir ao apartamento de Dick, e seu primeiro impulso foi fugir.

— Você não era o modelo do Sr. Heldar? — perguntou o Sr.

Beeton, plantando-se na frente dela. — Você era, sim. Ele está do outro lado da rua e gostaria de falar com você.

— Para quê? — perguntou Bessie em voz sumida.

— Lembrou-se — na verdade, nunca tinha esquecido por muito tempo — de um caso relacionado com um quadro recém-concluído.

— Porque ele me pediu, e porque está completamente cego.

— Bêbedo?

— Não. Cego mesmo. Ele não vê. É aquele acolá.

Dick estava debruçado sobre o parapeito da ponte quando o Sr.

Beeton o apontou, uma criatura curvada, com a barba por fazer, usando um sujo cachecol cor de magenta por cima do casaco empoeirado. Não havia nada a temer de uma pessoa assim. Mesmo que a perseguisse, pensou Bessie, ele não poderia ir longe.

Atravessou até onde ele estava e o rosto de Dick iluminou-se. Havia muito tempo que nenhuma mulher de qualquer espécie se dava ao trabalho de dirigir a palavra.

— Como está, Sr. Heldar? — saudou Bessie, um pouco perplexa.

O Sr. Beeton deteve-se a pouca distância com um ar de embaixador e respirando responsabilidade.

— Eu estou perfeitamente bem, e, por Deus, tenho um prazer imenso em vê-la... quero dizer, em ouvi-la, Bessie. Você nunca achou que valia a pena aparecer por lá para ver nos depois que recebeu o seu dinheiro. Não sei mesmo por que devia ir. Vai a algum lugar neste momento?

— Eu ia dar um passeio — respondeu Bessie.

— Não ao antigo negócio?

Dick falou isto entre dentes.

— Oh, não! eu comprei um emprego de garçonete, com dormida, e trabalho em um balcão, um lugar muito respeitável. Pode crer.

O Sr. Beeton não tinha razão alguma especial para acreditar na elevação da natureza humana. Por isso dissolveu-se como um nevoeiro e voltou aos seus bicos de gás sem uma palavra de explicação. Bessie olhou essa fuga com certa inquietação, mas, como Dick parecia completamente ignorante do mal que fora feito...

— É trabalho pesado puxar os punhos da bomba da cerveja — continuou ela — e eles têm uma daquelas máquinas registradoras, de modo que se houver engano de um pêni ao fim do dia..., mas eu não creio que a máquina funcione direito. Não acha?

— Eu só a vi funcionar. Sr. Beeton!

— Ele foi-se embora.

— Então acho que vou ter de pedir a você que me ajude a ir para casa. Eu darei uma recompensa. Como vê...

Os olhos sem vida voltaram-se para ela e Bessie viu.

— Não irei desviá-la do seu caminho? — perguntou Dick com hesitação. — Nesse caso, eu posso pedir a um guarda.

— Absolutamente. Eu entro às sete e saio às quatro. Estou nas minhas horas de folga.

Ai de mim!... eu estou de folga o tempo todo. Quisera ter alguma coisa que fazer. Vamos para casa, Bessie.

Voltou-se e esbarrou na calçada com um homem, recuando com uma praga. Bessie tomou o braço e não disse nada... como não dizia nada quando ele ordenava que voltasse o rosto um pouco mais para a luz. Caminharam por algum tempo em silêncio, e a moça conduzia-o habilmente através da multidão.

— E onde está... onde está o Sr. Torpenhow? — perguntou ela finalmente.

— Ele partiu para o deserto.

— Onde é isso?

Dick apontou para a direita.

— Para leste... partindo da boca do rio — respondeu. — Depois para oeste, depois para o sul e, finalmente, para leste de novo, ao longo de toda a parte inferior da Europa. Depois para o sul novamente, Deus sabe até que distância.

A explicação não esclareceu Bessie nem um pouco, mas ela guardou silêncio, conduzindo os passos de Dick, até que chegaram ao apartamento.

— Tomaremos chá com bolinhos de manteiga — disse ele com satisfação. — Você não imagina, Bessie, como estou contente de havê-la encontrado novamente. Por que partiu tão de repente?

— Eu pensava que o senhor não me queria mais — respondeu Bessie, animada pela ignorância dele.

— A verdade é que eu não queria mesmo..., mas depois... de qualquer modo, alegro-me de que você tenha vindo. Você conhece a escada.

Bessie conduziu-o até ao apartamento — ninguém atalhou os passos — e fechou a porta do estúdio.

— Que bagunça! — exclamou. — Estas coisas todas não são cuidadas há meses e meses!

— Não, há apenas semanas, Bessie. Não se pode esperar que eles se importem.

— Eu não sei o que o senhor espera deles. Eles deviam saber que o senhor pagou. A quantidade de poeira é horrível. Cobre inteiramente o cavalete.

— Eu não o uso muito agora.

— Está tudo coberto, os quadros, o chão, o seu casaco. Eu gostaria de falar com as arrumadeiras.

— Toque a campainha então e peça chá.

Dick encaminhou-se para a cadeira a que estava acostumado.

Bessie viu o ato e, na medida em que era capaz disso, ficou comovida. Mas permanecia sempre um vivido sentimento da recémachada superioridade, e esta estava na sua voz quando falou.

— Há quanto tempo o senhor está assim? — perguntou furiosamente, como se a cegueira fosse culpa das arrumadeiras.

— Como?

— Como o senhor está.

— Desde o dia seguinte àquele em que você se foi embora com o cheque, logo depois que terminei o meu quadro; eu mal pude vê-lo pronto.

— Então eles estão enganando o senhor desde essa época. Eu conheço as manhazinhas deles.

Uma mulher poderá amar um homem e desprezar outro, mas, com base em certos princípios femininos, ela fará tudo o que puder para impedir que o homem que despreza seja ludibriado. O bemamado poderá cuidar de si mesmo, mas o outro, evidentemente um idiota, precisa de proteção, — Não creio que o Sr. Beeton me engane muito — observou Dick.

Bessie andava resolutamente de um lado para o outro na sala, e Dick teve consciência de um vivido sentimento de prazer ouvindo o roçar de suas saias, e, de mistura com isso, o ligeiro passo feminino.

Chá e bolinhos de manteiga — ordenou ela laconicamente quando atenderam ao chamado. — Duas colheres de chá e uma para o bule. Não quero o bule que usavam quando eu costumava vir aqui. O bico está entupido. Traga outro.

A copeira saiu escandalizada e Dick riu. Depois começou a tossir. Bessie andava para um lado e para o outro agitando a poeira.

— Que está fazendo?

— Pondo as coisas em ordem. Isto é como quarto sem mobília.

Como pôde deixá-lo chegar a este ponto?

— Como é que eu podia evitá-lo? Pode espanar.

Bessie pôs-se a espanar furiosamente e, no meio daquela nuvem de pó, entrou a Sra. Beeton. O marido ao voltar tinha explicado a situação, concluindo com o provérbio especialmente feliz: “Faze aos outros o que desejarias que os outros te fizessem.” A Sra. Beeton desceu para pôr no seu lugar a pessoa que exigia bolinhos de manteiga e um bule inteiro, como se tivesse direito a ambas as coisas.

— Os bolinhos já estão prontos? — perguntou Bessie, sem parar de espanar.

Não era mais uma vagabunda das ruas. Era uma senhorita que, graças ao cheque de Dick, comprara o seu emprego e tinha direito a dar à bomba de cerveja com as melhores. Convenientemente vestida de preto, não hesitou em enfrentar a Sra. Beeton, e passaram-se entre as duas mulheres certos olhares que Dick teria apreciado. A situação resolveu-se com olhares. Bessie venceu, e a Sra. Beeton voltou para preparar os bolinhos de manteiga e fazer observações mordazes sobre modelos, sirigaitas, rameiras, etc., para seu marido.

— Não adianta nada a gente se meter na vida dele, Liza — observou o marido. — Alf, vá para a rua brincar. Quando não está zangado, ele é a bondade em pessoa, mas quando está zangado é o demônio em figura de gente. Nós tiramos lá do apartamento dele muitas coisinhas depois que ficou cego. Não temos o direito de ser muito exigentes sobre o que ele faz. Não eram coisas que servissem a um cego, é claro, mas, se o fato fosse levado à justiça, seríamos despedidos. Sim, eu apresentei-o a essa moça porque sou um homem compassivo, — Compassivo demais!

A Sra. Beeton pôs os bolinhos no prato com ruído e pensou em copeiras bonitas há muito tempo demitidas por suspeita.

— Eu não me envergonho disso, e não compete a nós julgá-lo severamente desde que ele pague pontualmente como tem feito até agora. Eu sei como me entender com jovens cavalheiros, você sabe cozinhar para eles, e o que eu digo é: cuide cada um da sua vida e não haverá dificuldades. Leve os bolinhos, Liza, e evite troca de palavras com a moça. A sorte dele já é bem cruel, e quando provocado ele é capaz de praguejar pior do que qualquer outra pessoa que eu já servi.

— Assim está um pouco melhor — observou Bessie, sentandose para o chá. — A senhora não precisa esperar, Sra. Beeton.

Obrigada.

— Eu não tinha intenção de fazer semelhante coisa, posso garantir-lhe.

Bessie não deu resposta. Era assim, ela o sabia, que as damas de verdade esmagavam suas inimigas, e quando a pessoa é garçonete de uma taverna de primeira classe sabe transformar-se em uma dama de verdade de um momento para o outro.

Seu olhar deteve-se sobre Dick sentado na sua frente e ficou escandalizada e descontente. Ele tinha manchas de comida em toda a frente do casaco; a boca sob a barba crescida desigual decaía nos cantos em uma expressão sombria; tinha a testa vincada e contraída, e nas têmporas fundas o cabelo era de uma cor indeterminada de poeira que poderia ser ou não grisalho. A completa miséria e abandono do homem impressionaram-na, e no fundo de seu coração havia o sentimento maligno de ver humilhado e decaído o homem que outrora a humilhara.

— Oh! É realmente bom ouvir você andando por aqui — exclamou Dick, esfregando as mãos. — Fale-me dos seus sucessos no bar, Bessie, e do modo como você vive agora.

— Isso não vem ao caso. Eu vivo perfeitamente respeitável, como o senhor poderia ver olhando para mim. O senhor é que parece não estar vivendo muito bem. Por que ficou cego assim tão de repente? Por que não há ninguém aqui para cuidar do senhor?

Dick ficou demasiado grato por ouvir o som da voz de Bessie para se ofender com o tom em que ela falou.

— Eu recebi um corte na cabeça há muito tempo e isso arruinou-me a vista. Não creio que alguém pense que vale a pena cuidar de mim. Por que haviam de se importar comigo?... e o Sr.

Beeton faz tudo o que eu preciso, realmente.

— O senhor não conhecia alguns cavalheiros e senhoras quando estava... bem?

— Alguns, mas não desejo que eles me vejam.

— Creio que é por isso que deixou crescer a barba. Tire-a: não fica bem.

— Valha-me Deus, menina! Você pensa que eu me importo com o que me fica bem hoje em dia?

— Devia importar-se. Mande tirar isso antes de eu voltar aqui.

Acho que eu posso voltar, não é?

— Eu ficaria imensamente grato se voltasse. Acho que eu não a tratava muito bem nos velhos tempos. Costumava irritá-la.

— Muito, é verdade.

— Então desculpe-me. Venha ver-me quando puder e todas as vezes que puder. Deus sabe que não há alma viva que se dê a esse trabalho a não ser você e o Sr. Beeton.

— Grande trabalho que ele tem com o senhor e ela também! — disse isto com um sacudir de cabeça. — Eles o têm deixado entregue a si mesmo, essa é que é a verdade. Basta dar uma olhadela para ver isso. Eu virei e terei prazer em vir, mas o senhor deve ir fazer a barba e vestir outra roupa... essa não está apresentável.

— Eu tenho montes de roupas por aí — disse ele vagamente.

— Eu sei que tem. Diga ao Sr. Beeton que dê um novo terno e eu o escovarei e conservarei limpo. O senhor poderá ser cego como uma porta, Sr. Heldar, mas isso não é desculpa para parecer um lixeiro.— Então eu pareço um lixeiro?

— Oh, eu tenho pena do senhor! Tenho uma pena imensa! — exclamou Bessie impulsivamente, tomando as mãos de Dick.

Maquinalmente Dick baixou a cabeça como para beijar... Bessie era a única mulher que tivera pena dele, e ele já não era orgulhoso demais para não aceitar um pouco de pena. Bessie levantou-se para sair.

— Nada disso, enquanto o senhor não estiver mais apresentável. Será perfeitamente fácil quando estiver barbeado e bem-vestido.

Dick pôde ouvi-la pondo as luvas e levantar-se para despedirse.

Passou por trás dele, Bessie beijou-o na nuca e fugiu com tanta rapidez como no dia em que destruíra a Melancolia.

“Imagine eu beijar o Sr. Heldar depois de tudo o que ele me fez!” pensou. “Bem, eu tenho pena dele e, se estivesse de barba feita, ele não teria muito mal aspecto, mas... Oh, esses Beetons, como o têm tratado vergonhosamente! Eu sei que Beeton está usando hoje a camisa dele, tão certo como se eu mesmo a tivesse lavado. Amanhã verei... Quanto é que ele terá de seu? Poderia ser melhor do que o bar... eu não teria de trabalhar... e viveria igualmente respeitável, se ninguém soubesse.” Dick não ficou agradecido a Bessie pelo presente de despedida.

Teve a mais vivida consciência dele na nuca durante toda a noite, mas parecia-lhe, entre outras coisas, reforçar a conveniência de fazer a barba. Assim, de manhã foi barbear-se e sentiu-se melhor depois disso. Um terno limpo, roupa branca, saber que alguém no mundo dissera que se interessava pelo seu aspecto pessoal, essas coisas faziam-no andar quase direito, pois o cérebro foi aliviado por algum tempo de pensar em Maisie, que, em outras circunstâncias, poderia ter dado aquele beijo e um milhão de outros.

— Reflitamos — disse depois do almoço. — A moça não pode interessar-se por mim e tanto pode voltar como não voltar, mas se o dinheiro puder comprá-la para cuidar de mim, eu a comprarei.

Ninguém mais no mundo teria esse trabalho, eu posso compensá-la bem. É uma filha das ruas com patente de garçonete, de modo que eu darei tudo o que ela quiser pelo simples trabalho de vir conversar comigo e cuidar de mim.

Esfregou o queixo recém-barbeado e começou a pensar com temor que talvez ela não voltasse.

— Acho que eu devia parecer mesmo um lixeiro — continuou.

— Não tenho razão alguma para parecer outra coisa. Eu sabia que me caíam coisas na roupa, mas não tinha importância. Seria cruel se não voltasse. Ela deve vir. Maisie veio uma vez, e isso bastou.

Maisie tinha razão. Tinha coisa mais importante que fazer. Esta criatura tem apenas alavancas da bomba de cerveja para puxar, a não ser que haja induzido algum moço a fazer companhia. Imagine ser ludibriado por causa de um caixeiro de botequim! Estamos caindo bem baixo!

Algo gritou alto dentro dele: “Isto ferirá mais do que tudo o que aconteceu antes. Isto te fará lembrar, te sugerirá e tantalizará e no fim te fará perder o juízo.” — Eu sei, eu sei! — exclamou Dick, fechando as mãos desesperadamente. — Mas, santo Deus, será que um mísero cego nunca poderá ter na vida mais que três refeições por dia e um colete gorduroso? Quisera que ela viesse.

De tarde, ainda cedo, Bessie voltou, porque no momento não havia nenhum moço na sua vida, e ela pensou nas vantagens materiais que permitiriam viver ociosa o resto de seus dias.

— Eu não o teria reconhecido — disse à guisa de elogio. — O senhor tem o mesmo aspecto de antigamente — um cavalheiro orgulhoso de si mesmo.

— Você? não acha que mereço outro beijo por isso? — sugeriu Dick, corando um pouco.

— Talvez..., mas não o receberá ainda. Sente-se e vamos ver como poderei ajudá-lo. Tenho certeza de que o Sr. Beeton o engana, agora que o senhor não pode tomar conta das suas coisas.

Não é verdade?

— Então é melhor você vir e administrar a casa para mim, Bessie.

— Eu não poderia fazer isso aqui neste apartamento... o senhor sabe disso tão bem como eu.

— Eu sei, mas nós poderíamos ir para qualquer outro lugar, se você achasse que valia a pena.

— Eu tentaria cuidar do senhor, mas eu não gostaria de trabalhar para nós ambos.

Isto foi dito para sondá-lo.

Dick riu.

— Lembra-se do lugar onde eu guardava a minha caderneta de Banco? — perguntou. — Torp levou-a ao Banco para acerto pouco antes de partir. Veja lá.

— Geralmente estava debaixo do pote de fumo. Ah!

— Então?

— Oh! Quatro mil duzentas e dez libras, nove xelins e um pêni!

Puxa!— Você pode ficar com o quebradinho. Não é mau por um ano de trabalho. Acha que isso e mais cento e vinte libras por ano é suficiente?

A ociosidade e bonitos vestidos estavam quase ao seu alcance nessa altura, mas Bessie devia provar que merecia essas coisas mostrando-se boa dona de casa.

— É, mas o senhor terá de se mudar, e, se fizermos um inventário, acho que verificaremos que o Sr. Beeton andou furtando pequenas coisas aqui e além. Não me parece tão cheio como estava.

— Não faz mal, que ele fique com elas. A única coisa que eu estou especialmente ansioso por levar é aquele quadro para o qual você me serviu de modelo... quando você me rogava pragas.

Sairemos daqui, Bessie, e iremos morar o mais longe possível.

— Ah, sim? fez ela, inquieta.

— Eu não sei aonde poderei ir para fugir de mim mesmo, mas tentarei, e você terá todas as roupas bonitas que quiser. Você vai gostar. Dê-me esse beijo agora, Bessie. Deuses! É bom lançar outra vez os braços em volta da cintura de uma mulher.

E então seu pensamento voltou naturalmente ao trilho antigo.

Se aquele braço estivesse assim em volta da cintura de Maisie e acabasse de ser dado e recebido um beijo entre os dois... ah, então... Apertou mais a moça contra si, porque a dor o acicatava.

Ela perguntava a si mesma como poderia explicar o pequeno incidente da Melancolia. De qualquer modo, se aquele homem desejava realmente o consolo da sua companhia — e ele certamente recairia no primitivo atoleiro se ela retirasse — ficaria apenas um pouquinho contrariado. Seria pelo menos delicioso ver o que aconteceria, e, de acordo com a sua teoria, era bom que um homem conservasse um certo temor da sua companheira.

Bessie riu nervosamente e escapou dos braços.

— Eu no seu lugar não me preocuparia com esse quadro — começou, na esperança de desviar a atenção.

— Está em alguma parte, atrás de todas as outras telas.

Encontre-o, Bessie; você conhece-o tão bem como eu.

— Eu sei..., mas...

— Mas o quê? Você é bastante esperta para vendê-lo a um negociante. As mulheres regateiam muito melhor do que os homens. Seriam mais umas oitocentas ou novecentas libras para...

para nós. Durante muito tempo eu não gostei de pensar nele.

Estava de tal modo confundido com a minha vida! Mas nós apagaremos os nossos rastos e nos livraremos de tudo... hein?

Começaremos tudo de novo, Bessie.

E então ela começou a arrepender-se sinceramente, pois conhecia o valor do dinheiro. Era, contudo, provável que o cego estivesse sobrestimando o valor de seu trabalho. Os cavalheiros, ela o sabia, eram absurdamente exagerados quando se tratava de suas próprias coisas. E riu nervosamente como ri uma copeira quando tenta explicar a quebra de um cachimbo.

— Sinto imensamente, mas lembra-se como eu... como eu fiquei zangada com o senhor antes de o Sr. Torpenhow partir?

— Você ficou muito zangada, menina; e, sinceramente, eu acho que com alguma razão.

— Então eu..., mas tem a certeza de que o Sr. Torpenhow não disse?— Não me disse o quê? Valha-me Deus, por que essa conversa toda a respeito do assunto? Ande, dê-me outro beijo.

Ele estava começando a descobrir, e não era a primeira vez na vida, que o beijo é um veneno cumulativo. Quanto mais se toma, mais se quer. Bessie deu o beijo imediatamente, murmurando ao fazê-lo: — Eu fiquei tão zangada que apaguei aquele quadro com aguarrás. O senhor não está zangado, está?

— O quê? Diga isso de novo.

A mão do homem fechou-se no pulso.

— Apaguei-o com aguarrás e com a espátula — balbuciou Bessie. — Pensei que o senhor só teria de o fazer novamente. O senhor o fez de novo, não é? Oh, largue-me o pulso; está-me machucando.

— Não resta nada dele?

— Nada que se pareça com alguma coisa. Sinto muito... eu não sabia que o senhor ficaria aflito por isso; eu fiz de brincadeira. O senhor não vai bater-me?

— Bater-lhe? Não! Deixe-me pensar.

Mas não afrouxou a mão do pulso dela, e ficou com os olhos fitos no tapete. Depois sacudiu a cabeça como faz o garrote quando a pancada de chicote através do focinho o adverte que deve voltar ao corredor do matadouro de onde tentou fugir. Durante semanas Dick tinha feito força para não pensar na Melancolia, porque era parte de sua vida morta. Com a volta de Bessie e certas novas perspectivas que se formaram, reaparecera a Melancolia — mais maravilhosa na sua imaginação do que jamais o fora na tela. Com o auxílio dela poderia obter mais dinheiro para divertir Bessie e esquecer Maisie, sem falar de outra prova de um sucesso quase esquecido. Então, graças à insensatez de uma perversa garçonetezinha, não havia nada a esperar... nem mesmo a esperança de vir algum dia a conceber um interesse duradouro por ela. Pior que tudo, ele tinha feito um papel ridículo aos olhos de Maisie. Uma mulher pode perdoar ao homem que arruinou a sua vida desde que dê amor: um homem pode perdoar àqueles que arruinaram o amor de sua vida, mas jamais perdoará a destruição de sua obra.

— Tch... tch... tch — fez Dick entre dentes, e depois riu baixinho.

— É um presságio, Bessie, e, levando em conta uma porção de coisas, é bem-feito por eu ter feito o que fiz Por Júpiter! Isso explica a fuga de Maisie. Ela deve ter-me julgado completamente maluco...

e com razão! O quadro inteiramente arruinado, não é? Por que fez isso?

— Porque estava muito, muito zangada. Mas agora não estou zangada... estou muito arrependida.

— Talvez..., mas não tem importância. A culpa é minha por ter cometido o erro.

— Que erro?

— Uma coisa que você não compreenderia, querida. Santo Deus! Pensar que um pedacinho de lama como você pôde desviarme do meu caminho!

Dick falava consigo mesmo e Bessie tentava livrar-se da mão que prendia o pulso.

— Eu não sou pedaço de lama, e o senhor não deve chamarme assim! Eu fiz aquilo porque o odiava, e agora estou arrependida porque o senhor... porque o senhor está...

— Exatamente... porque estou cego. Não há nada como a delicadeza em pequeninas coisas.

Bessie começou a soluçar. Ela não gostava de ser manietada contra a sua vontade; tinha medo do rosto cego e da expressão dele e não agradava que a sua grande vingança apenas tivesse servido para fazer Dick rir.

— Não chore — disse ele, e tomou-a nos braços. — Você só fez o que pensava que era direito.

— Eu... eu não sou pedacinho de lama, e, se o senhor disser isso, nunca mais voltarei.

— Você não sabe o que me fez. Eu não estou zangado...

realmente não estou. Fique quieta um momento.

Bessie ficou nos braços dele toda encolhida. O primeiro pensamento de Dick foi relacionado com Maisie, e feriu-o como fere o ferro em brasa numa chaga aberta.

Não é impunemente que um homem se liga a uma mulher errada. A primeira angústia — o primeiro sentimento de coisas perdidas é apenas o prelúdio da peça, pois a mui justa Providência que se compraz em causar dor decretou que a agonia volte e isso no meio do mais vivo prazer. Conhecem igualmente essa dor aqueles que abandonaram ou foram abandonados pelo amor de sua vida e nos braços de sua nova esposa são compelidos a senti-lo. É melhor ficar só e sofrer apenas o tormento de estar só, desde que seja possível encontrar distração no trabalho diário. Quando esse recurso desaparece, o homem deve ser deplorado e deixado em paz.

Dick pensou estas e outras coisas enquanto apertava Bessie contra o peito.

— Embora você talvez não o saiba — disse, levantando a cabeça — Nosso Senhor é um Deus justo e terrível, Bessie... com um grande senso de humor. Bem-feito para mim... muito bem-feito!

Torp poderia ter compreendido se estivesse aqui; ele deve ter sofrido algo nas suas mãos, menina, mas só por alguns momentos.

Eu salvei-o. Lancem isso no meu crédito, alguém.

— Deixe-me ir! — disse Bessie em tom ameaçador. — Deixeme ir.—

Tudo a seu tempo. Você alguma vez frequentou a escola dominical?

— Nunca. Deixe-me ir, estou dizendo; o senhor está fazendo pouco de mim.

— Sinceramente, não estou. Estou fazendo pouco de mim mesmo... Assim. “Ele salvou outros, mas não pôde salvar-se a si mesmo.” Não é propriamente um texto escolar.

Soltou o pulso, mas, como estava entre ela e a porta, a moça não podia escapar.

— Que enorme quantidade de mal pode fazer uma mulherzinha!

— Sinto muito; estou imensamente arrependida do que fiz com o quadro.

— Eu não. Estou agradecido por tê-lo estragado... De que estávamos falando antes de você mencionar a coisa?

— De mudar daqui... e de dinheiro. Eu e o senhor irmos embora.

— Ah, sim. Nós iremos embora... isto é, eu irei.

— E eu?

— Você receberá cinquenta libras por ter estragado um quadro.

— Então o senhor não...

— Acho que não, querida. Pense em cinquenta libras para coisas bonitas só para você.

— O senhor disse que não podia fazer nada sem mim.

— Isso era verdade há poucos momentos. Agora estou melhor, obrigado. Dê-me o meu chapéu.

— E se eu não der?

— Beeton o dará, e você perderá cinquenta libras. Só isso.

Apanhe-o.

Bessie praguejou entre dentes. Tivera pena do homem sinceramente, beijara-o quase com igual sinceridade, pois ele não era malparecido, agradara ser de certo modo e por algum tempo protetora dele, e sobretudo havia quatro mil libras a serem manobradas por alguém. E eis que por uma palavra impensada e um pequenino desejo feminino de fazer sofrer um pouquinho, não muito, ela havia perdido o dinheiro, a bendita ociosidade e as coisas bonitas, o companheirismo e a oportunidade de parecer exteriormente tão respeitável como uma senhora de verdade.

— Agora encha o meu cachimbo. O fumo não tem gosto, mas não tem importância, e eu preciso pensar. Que dia da semana é hoje, Bessie?

— Terça-feira.

— Então quinta-feira é dia de navio. Que idiota... que cego idiota eu tenho sido! Vinte e duas libras cobrem a minha passagem de volta à pátria. Ponhamos mais dez para despesas adicionais.

Devemos hospedar-nos com Madame Binat em honra dos velhos tempos. Trinta e duas libras ao todo. Acrescentemos cem para o preço da última viagem... Deus, como Torp vai olhar-me espantado!

De cento e trinta e duas ficam setenta e oito para a gorjeta ou bacxixe... vou precisar dele... Por que está chorando, Bessie? Não foi culpa sua, menina; foi minha inteiramente. Animalzinho estranho que você é! Enxugue os olhos e conduza-me para fora! Preciso da minha caderneta bancária e do livro de cheques. Espere um momento. Quatro mil libras a quatro por cento — é juro moderado — representam cento e sessenta libras por ano... com mais cento e vinte libras fazem duzentas e oitenta, que juntas a trezentas representarão alto luxo para uma mulher só. Bessie, vamos ao Banco.

Com mais duzentas e dez libras no cinto, Dick fez Bessie, nessa altura completamente confusa, levá-lo apressadamente do Banco até aos escritórios da Companhia Peninsular e Oriental, onde explicou as coisas sucintamente.

— Port Said, uma passagem, primeira classe; camarote o mais perto possível do compartimento das bagagens. Qual é o navio que sai?

— O Colgong — respondeu o funcionário.

— É um xaveco incômodo. Sai de Tilbury ou das Docas?

— Das Docas. Dia vinte e quatro, quinta-feira.

— Obrigado. Troco, por favor. Eu não vejo muito bem... pode ter a bondade de contá-lo na minha mão?

— Se todos comprassem passagens como esse em vez de conversarem sobre a bagagem, a vida seria bem melhor — comentou o funcionário para o seu vizinho, que estava tentando explicar a uma atarantada mãe de muitos filhos que o leite condensado era exatamente tão bom para os bebês como o leite fresco entregue diariamente à porta. Com dezenove anos e solteiro, ele falava com convicção.

— Agora — disse Dick, quando voltaram ao estúdio, dando palmadinhas no lugar onde seu cinto cobria a passagem e o dinheiro — estamos fora do alcance de homem, demônio ou mulher... o que é muito mais importante. Tenho três pequenos assuntos a resolver antes de quinta-feira, mas não precisarei da sua ajuda, Bessie. Esteja aqui na quinta-feira às nove da manhã.

Tomaremos café e você me levará às Docas.

— Que vai fazer?

— Vou-me embora, naturalmente. Para que devia ficar aqui?

— Mas o senhor não pode cuidar de si mesmo!

— Eu posso fazer qualquer coisa. Antes não o sabia, mas agora sei. Já fiz muito. E tudo isto vale um beijo de Bessie, se ela não se opuser.

Estranhamente, porém, Bessie opôs-se e Dick riu.

— Acho que você tem razão. Bem, venha às nove depois de amanhã e receberá o seu dinheiro.

— Receberei mesmo?

— Eu não minto, e você não poderá saber se minto ou não se não vier. Oh, mas é uma longa espera! Até à vista, Bessie... E, de passagem, quando sair, mande Beeton aqui.

O zelador apresentou-se.

— Quanto vale toda a mobília do meu apartamento? — perguntou Dick imperiosamente.

— Não compete a mim dizer, senhor. Algumas coisas são muito bonitas e outras estão completamente estragadas.

— Está tudo segurado por duzentas e setenta libras.

— As apólices de seguro não servem de critério, embora eu não diga...

— Ao diabo o seu palavrório! O senhor já tirou o que pôde daqui e dos outros inquilinos. Ora, ainda o outro dia estava falando de se aposentar e comprar uma taverna. Responda diretamente a uma pergunta direta.

— Cinquenta — disse o Sr. Beeton sem a menor hesitação.

— Dobre isso, do contrário quebro metade da minha mobília e queimo o resto.

Dirigiu-se a uma estante de livros que sustentava uma pilha de álbuns de desenhos e arrancou uma das colunas de mogno.

— Isso é um pecado, senhor — exclamou o estalajadeiro, alarmado.

— É propriedade minha. Cem ou...

— Está bem, cem. Vai me custar três xelins e seis pence para consertar essa coluna.

— Foi o que pensei. Que rematado vigarista você deve ser para pagar esse preço sem pestanejar!

— Espero não ter feito nada para descontentar qualquer um dos inquilinos, muito menos o senhor.

— Isso não vem ao caso. Arranje-me o dinheiro para amanhã e providencie para que toda a minha roupa seja arrumada na malinha marrom de couro de boi. Eu vou partir.

— E o aviso prévio?

— Pagarei a multa. Cuide da arrumação e deixe-me em paz.

O Sr. Beeton discutiu essa nova partida com sua mulher, que achou que Bessie era a causa de tudo. O marido foi de um ponto de vista mais benévolo.

— Foi muito súbito..., mas a verdade é que ele sempre foi repentino nas suas coisas. Ouça-o agora!

Dick começara a cantar lá no seu quarto.

Nunca mais voltaremos, rapazes, Nunca mais, nunca mais, voltaremos; Nós iremos para os quintos por certo E jamais e jamais voltaremos!

Seja em terra ou no mar, ó rapazes, Onde quer que estejamos e andemos, Nunca mais voltaremos, rapazes, Nunca mais, nunca mais voltaremos!

— Sr. Beeton! Sr. Beeton! Onde diabo está a minha pistola?

— Depressa, ele vai suicidar-se... enlouqueceu! — exclamou a Sra. Beeton.

O Sr. Beeton falou a Dick brandamente, mas este, que andava para um lado e para o outro remexendo tudo no quarto, levou algum tempo a compreender a intenção das promessas de “encontrar tudo amanhã, senhor”.

— Velho idiota de nariz acobreado... impotente acadêmico! — gritou finalmente. — Pensa que quero matar-me? Se você pegar nessa pistola com essa mão boba e trêmula, ela dispara, porque está carregada. Está em alguma parte na minha mochila de campanha... no embrulho que se encontra no fundo da mala.

Havia muito tempo Dick se munira de um equipamento de campanha de vinte quilos, construído segundo a própria experiência. Era esse tesouro guardado que estava tentando encontrar e recondicionar. O Sr. Beeton apanhou rapidamente o revólver de cima do pacote, e Dick introduziu a mão entre o casaco e o culote de cáqui, as perneiras de pano azul e as grossas camisas de flanela dobradas sobre um par de esporas em forma de pescoço de cisne. Debaixo dessas coisas e do cantil de água havia um álbum de desenhos e uma caixa de couro de porco para papel de carta.—

Destas coisas não vamos precisar. Pode ficar com elas, Sr.

Beeton. Eu ficarei com tudo o mais. Arrume tudo do lado direito da minha mala, em cima. Depois que terminar, venha ao meu estúdio com sua senhora. Quero os dois. Espere um momento. Arranje-me uma caneta e uma folha de papel de carta.

Não é coisa fácil escrever para quem não vê, e Dick tinha motivos particulares para desejar que sua escrita fosse bem clara.

Começou, portanto, seguindo a mão direita com a esquerda: — “A irregularidade da minha escrita é devido ao fato de eu ser cego e não poder ver a pena com que escrevo.” Hum!... Nem mesmo um advogado pode deixar de entender isto. Creio que deve ser assinado, mas não precisa de testemunhas. Agora três centímetros mais abaixo — por que é que nunca aprendi a escrever a máquina? — “Este é o testamento e a última vontade de Richard Heldar. Estou de perfeita saúde física e mental e não há testamento anterior para revogar.” Assim está bem. Diabos levem a pena! Em que ponto do papel eu estava?... “Deixo tudo o que possuo no mundo, inclusive quatro mil libras, e duas mil setecentas e vinte e oito libras depositadas em meu nome...” Oh, não consigo redigir isto direito!

Rasgou metade da folha de papel e começou de novo, caprichando na letra. Depois: — “Deixo todo o dinheiro que possuo no mundo a...” — e aqui vinham o nome de Maisie e os nomes dos dois Bancos em que o dinheiro estava depositado.

— Poderá não ser inteiramente regular, mas ninguém tem a mais leve sombra de direito de disputá-lo e eu dei o endereço de Maisie. Entre, Sr. Beeton. Esta é a minha assinatura; o senhor a tem visto com bastante frequência para conhecê-la; quero que o senhor e sua esposa assinem aqui como testemunhas. Obrigado. Amanhã o senhor me levará ao senhorio e eu pagarei por deixar o apartamento sem aviso prévio, e deixarei este papel com ele para o caso de me acontecer alguma coisa quando estiver fora. Agora vamos acender o fogareiro do estúdio. Fique comigo e dê-me os papéis à medida que eu os for pedindo.

Ninguém pode saber, enquanto não experimenta, que bela fogueira faz o monte de contas, cartas e outra papelada acumuladas durante um ano. Dick enfiou no fogareiro todos os documentos existentes no estúdio — salvo as três cartas por abrir — destruiu álbuns de desenhos, cadernos de rascunho, telas em branco e pinturas a meio fazer.

— Quanto lixo um inquilino acumula em volta de si, se fica bastante tempo em um lugar! — observou finalmente o Sr. Beeton.

— Não há dúvida. Não resta mais nada?

Dick tateou em volta das paredes.

— Absolutamente nada, e o fogareiro está quase em brasa.

— Excelente, e o senhor perdeu perto de mil libras em desenhos. Ah-ah! Nada menos de mil libras, se bem me lembro do que eu era.

— Sim, senhor —1 respondeu o Sr. Beeton cortesmente.

O Sr. Beeton estava absolutamente convencido de que Dick havia perdido o juízo, do contrário não teria vendido sua excelente mobília por uma ninharia. As telas ocupavam espaço e era muito melhor destruí-las.

Restava apenas deixar o pequeno testamento em mãos seguras: não poderia fazer isso antes do dia seguinte. Dick apalpou o chão, apanhando os últimos pedaços de papel, certificou-se repetidamente de que não restava uma palavra escrita ou qualquer sinal de sua vida passada em qualquer gaveta ou na escrivaninha, depois sentou-se diante do fogareiro até que o fogo se apagou e o ferro, contraindo-se, começou a estalar no silêncio da noite.

 

Capítulo XV

O coração cheio de ardentes fantasias
De que sou capitão;
Com lança de chamas e cavalo de ar,
Demando a imensidão.
Com um cavaleiro de sombra, um fantasma, Incitam-me a lutar...
São dez léguas somente além do fim do mundo: Não me custa chegar.
Canção de Tom O’Bedlam

— Adeus, Bessie. Prometi cinquenta libras. Aqui tem cem...

tudo o que arranquei de Beeton pela minha mobília. Isso permitirá comprar bonitos vestidos para algum tempo. Pesadas todas as coisas, você é uma boa pequena, mas deu-nos bastante dores de cabeça, a mim e a Torpenhow.

— Dê recomendações minhas ao Sr. Torpenhow, se o vir, está bem?— Claro que darei, querida. Agora conduza-me pela prancha e até ao camarote. Uma vez a bordo do navio, você estará... isto é, eu estarei livre.

— Quem cuidará do senhor no navio?

— O despenseiro-chefe, se o dinheiro tem alguma utilidade. O médico, quando chegarmos a Port Said, se conheço algo sobre os médicos da Peninsular e Oriental. Depois disso, o Senhor proverá, como sempre fez.

Bessie encontrou o camarote de Dick através da confusão do navio cheio de viajantes e de parentes chorosos. Depois ele beijou-a e estendeu-se no beliche até que as cobertas ficaram desimpedidas.

Ele, que tinha levado tanto tempo a aprender a movimentar-se no seu apartamento escuro, conhecia perfeitamente a geografia de um navio, e a necessidade de prover ao seu próprio bem-estar era vinho capitoso para ele. Antes de a hélice haver começado a puxar o navio ao longo das docas, já ele tinha sido apresentado ao despenseiro-chefe, gratificando-o regiamente, garantira um lugar à mesa, abrira sua bagagem e instalara-se com satisfação no camarote. Quase nem precisava tatear para andar pelo navio, tão bem conhecia tudo. E Deus era muito bom: quando ia pensar em Maisie, invadiu-o um profundo sono de fadiga, e dormiu até que o navio já tinha saído da foz do Tâmisa e balançava e oscilava ao pulsar do Canal.

O ruído dos motores, o cheiro de óleo e pintura e um som muito familiar no camarote ao lado despertaram-no para o seu novo mundo.

— Oh, é bom estar vivo novamente!

Bocejou, espreguiçou-se vigorosamente e saiu para o convés, onde disseram que se encontravam quase à altura das luzes de Brighton. Aquilo não era mais mar aberto do que Trafalgar Square era baldio, não obstante Dick já podia sentir a ação curativa do mar agindo sobre ele. Uma vaga ruidosa balançou desrespeitosamente o navio pela frente, e uma onda quebrando contra a popa esparrinhou o tombadilho e uma pilha de cadeiras de bordo novas. Ouviu a espuma cair com um estalo de vidro quebrado, foi atingido no rosto por um pouco e, aspirando luxuriosamente, dirigiu-se para o fumatório perto da roda. Aí foi surpreendido por um vento forte que levou o boné e o deixou de cabeça descoberta à porta, e o encarregado do fumatório, percebendo que ele era um viajante experimentado, disse que nas “pontas”, ao largo do Canal, o tempo devia estar forte, alcançando quase a força de vendaval na Baía.

Essas coisas ocorreram como foram previstas, e Dick experimentou uma satisfação enorme. É permissível e até mesmo necessário no mar segurar-se com firmeza às mesas, às pilastras e às cordas quando se vai de um lugar para outro. Em terra o homem que tateia com as mãos é evidentemente cego. No mar até um cego que não fique mareado pode brincar com o médico a respeito da fraqueza de seus companheiros de viagem. Dick contou ao médico muitas histórias — e estas são moeda de mais valor do que prata quando adequadamente tratadas — fumava em companhia dele até horas mortas da noite e conquistou de tal modo a sua efêmera consideração, que o homem prometeu a Dick algumas horas de seu tempo quando chegassem a Port Said.

E o mar rugia ou ficava calmo conforme o capricho dos ventos, e os motores cantavam sua canção dia e noite, e o sol tornava-se mais quente dia a dia, e Tom, o barbeiro lascarino, barbeou Dick uma manhã sob o xadrez da escotilha aberto onde sopravam ventos frios, os toldos foram abertos, os passageiros divertiam-se e, finalmente, chegaram a Port Said.

— Leve-me à hospedaria de Madame Binat... se sabe onde fica — pediu Dick ao médico.

— Uf! — fez o médico. — Eu sei onde é. Não há muito que escolher entre uns e outros, mas essa, creio que o senhor sabe, é uma das piores casas da cidade. Para começar, eles o roubarão, mais tarde metem uma faca nas costas.

— Oh, não, eles não farão nada disso. Leve-me lá. Eu sei cuidar de mim.

E assim foi conduzido à casa de Madame Binat e encheu as narinas com o conhecido cheiro do Oriente, que se estende imutável da cabeceira do Canal até Hong Kong, e a boca com a horrenda língua franca do Levante. O calor bateu entre as espáduas com a tapa forte de velho amigo, seus pés escorregavam na areia, e a manga do casaco estava quente como pão tirado do forno quando a levava ao nariz.

Madame Binat sorriu com esse sorriso que não conhece espanto quando Dick entrou na taverna, que era uma de suas fontes de lucro. Tirando o pequeno incidente da completa escuridão, ele mal podia capacitar-se de que alguma vez havia abandonado a velha vida que rumorejava em seus ouvidos. Alguém abriu uma garrafa de fortíssimo Schiedam. O cheiro fez Dick recordar-se de Monsieur Binat, que nessas ocasiões costumava falar de arte e degradação. Binat tinha morrido. Madame disse isso quando o médico partiu, escandalizado, tanto quanto um médico de navio pode ficar escandalizado, com a calorosa recepção feita a Dick. Dick ficou encantado.

— Lembram-se de mim aqui depois de um ano. Do outro lado do mar, a esta altura, já me esqueceram. Quando estiver livre, Madame, preciso ter uma longa conversa com a senhora. É bom estar de volta!

À noite ela mandou colocar uma mesa de café com tampo de ferro lá fora nas areias e Dick e ela ficaram sentados ali enquanto a casa atrás deles se enchia de balbúrdia, alegria, pragas e ameaças.

Surgiram as estreias e as luzes dos navios amarrados na cabeceira do Canal piscavam.

— Sim. A guerra é boa para os negócios, meu amigo; mas que é que tu vens fazer aqui? Nós não te esquecemos.

— Eu fui para a Inglaterra e fiquei cego.

— Mas houve a glória primeiro. Nós ouvimos o rumor dela aqui, até mesmo aqui... eu e Binat, e tu usaste a cabeça de Tina Amarela — ela ainda vive — com tanta frequência e tão bem, que Tina ria quando chegavam os jornais pelos navios. Havia sempre alguma coisa daqui que nós podíamos reconhecer nos quadros. E depois houve a glória e o dinheiro para ti.

— Eu não sou pobre... posso pagar bem.

— Não a mim. Tu já pagaste tudo. — E entre dentes: “Mon Dieu, tão jovem e ser cego! Que horror!” Dick não podia ver o rosto com a expressão de pena, como não podia ver o seu próprio com o cabelo descorado nas têmporas. Ele não sentia necessidade de pena; estava demasiado ansioso para ir imediatamente para a frente e explicou o seu desejo.

— Aonde? O Canal está cheio de navios ingleses. Algumas vezes eles fazem fogo, como faziam quando a guerra chegou aqui há dez anos. Além do Cairo tem havido luta, mas como poderás ir até lá sem passaporte de correspondente? E no deserto há sempre luta, mas isso é impossível também — disse ela.

— Eu tenho de ir até Suaquém.

Ele sabia, graças às leituras de Alf, que Torpenhow estava com a coluna que protegia a construção da linha Sua-quém-Berber. Os vapores da Companhia Peninsular e Oriental não tocavam nesse porto e, além disso, Madame Binat conhecia todo o mundo cujo auxílio ou conselho poderia valer alguma coisa. Não eram gente respeitável, mas eram capazes de fazer coisas, o que é muito mais importante quando há trabalho a fazer.

— Mas em Suaquém há luta continuamente. Aquele deserto gera homens sempre... e sempre mais homens. E são tão arrojados!

Por que Suaquém?

— Meu amigo está lá.

— Teu amigo! Tch! Então teu amigo é a morte.

Madame Binat deixou cair um braço gordo sobre o tampo da mesa, encheu de novo o copo de Dick e olhou-o atentamente sob as estreias. Não havia necessidade de que ele baixasse a cabeça em assentimento e dissesse: — Não. Ele é um homem, mas... se ela viesse... tu me censurarias?

— Eu censurar? — exclamou Madame Binat, rindo estridentemente. — Quem sou eu para censurar quem quer que seja... a não ser aqueles que procuram lesar-me na despesa? Mas é muito terrível.

— Eu tenho de ir para Suaquém. Pense por mim. As coisas mudaram muito no espaço de um ano e os homens que eu conhecia não estão aqui. O vapor-farol egípcio vai descer o Canal até Suaquém... e os barcos-correios..., mas assim mesmo...

— Não pense mais. Eu sei e compete a mim pensar. Tu irás...

irás e verás teu amigo. Tem calma. Fica sentado aqui até que a casa fique um pouco mais sossegada... eu preciso atender os meus hóspedes ... e depois irás para a cama. Tu irás, sim, tu irás.

— Amanhã?

— Tão cedo quanto for possível.

Falava como a uma criança.

Ele ficou sentado à mesa ouvindo as vozes no porto e nas ruas e perguntando-se quando terminaria, até que Madame Binat o levou para a cama e ordenou que dormisse. A casa gritava, cantava e foliava, e Madame Binat movia-se através de tudo aquilo com um olho nos pagamentos da bebida e nas moças e o outro nos interesses de Dick. Por causa deste último fim ela sorria para carrancudos e furtivos oficiais turcos de regimentos felás, era gentil com esbirros do Comissariado cipriota e mais do que bondosa para cameleiros sem nacionalidade de qualquer espécie.

De manhã cedo, tendo posto adequadamente um vestido de baile de seda de um vermelho vivo, com bordados de ouro desbotado na frente e um colar de contas de vidro lapidadas, Madame Binat fez chocolate e levou-o a Dick.

— Sou apenas eu, e eu sou de uma idade discreta, hein? Beba e coma a rosca também. Assim as mães na França levam o chocolate da manhã a seus filhos, quando se comportaram bem.

Sentou-se na beira da cama murmurando: — Está tudo resolvido. Irás pelo navio-farol. Isto representa um suborno de dez libras inglesas. O comandante nunca é pago pelo governo. O barco leva quatro dias até Sua-quém. Irá contigo George, um arrieiro grego. Outro suborno de dez libras. Eu pagarei; eles não devem saber do teu dinheiro. George irá contigo até onde puder com as mulas. Depois ele voltará para mim, porque a bemamada dele está aqui, e, se eu não receber um telegrama de Suaquém dizendo que tu estás bem, a moça responderá por George.

— Obrigado. — Dick estendeu a mão sonolentamente para a xícara. — A senhora é boa demais, Madame.

— Se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer, eu diria: fica aqui e tem juízo, mas eu não creio que isso fosse melhor para ti.

— Olhou com um sorriso triste o seu vestido manchado de bebida.

— Quando estiveres vestido, falaremos a George e aprontaremos tudo. Mas primeiro precisamos abrir a malinha. Dá-me as chaves.

Inclinou-se e beijou Dick entre os olhos.

— A quantidade de beijos que tenho recebido ultimamente é simplesmente escandalosa. Não me admirarei se Torp me beijar a seguir. Mas é mais provável que ele me rogue pragas por vir atrapalhá-lo. Bem, não durará muito... Olá, Madame, ajude-me a fazer a minha toilette da guilhotina! Acolá não terei oportunidade de me vestir convenientemente.

Revolvia a sua mochila de campanha e cortava as mãos nas esporas. Há duas maneiras de usar botas bem envernizadas, perneiras azuis impecáveis, casaco e culote cáqui e capacete perfeitamente branqueado. A maneira certa é a do homem descansado, senhor de si mesmo, preparando-se para uma expedição com entusiasmo.

— Deve estar tudo bem correto — explicou Dick. — Depois ficará sujo, mas agora é bom sentir-se bem-vestido. Está tudo como deve estar?

Deu umas palmadinhas no revólver bem escondido debaixo da aba da blusa sobre a anca direita e passou os dedos na gola.

— Não posso fazer mais — declarou Madame entre rindo e chorando. — Olha para ti... oh, esqueci!

— Estou muito contente.

Acariciou as espirais bem lisas das perneiras.

— Agora vamos ver o comandante, George e o navio-farol.

Vamos rápido, Madame.

— Mas tu não podes ser visto andando pelo porto comigo em pleno dia. Imagina se algumas damas inglesas...

— Não há damas inglesas e, se houve, esqueci-as. Leve-me lá.

Malgrado a sua ardente impaciência, era quase noite quando o navio-farol se pôs em movimento. Madame tinha falado muito a George e ao capitão sobre as providências que deviam ser tomadas para o bem de Dick. Muitos poucos homens que tinham a honra de conhecer Madame se atreviam a desprezar as suas advertências.

Essa espécie de desprezo podia resultar em a pessoa ser apunhalada por um estranho em uma casa de jogo em consequência de uma provocação extremamente fútil.

Durante seis dias — dois deles perderam-se no apinhado Canal — o pequeno vapor navegou a caminho de Suaquém, onde deveria apanhar o superintendente dos faróis, e Dick tratou de propiciar George, que estava cheio de temores pela segurança da sua bemamada e meio disposto a tornar Dick responsável por seu próprio mal-estar. Quando chegaram, George tomou-o debaixo da sua asa e juntos entraram no ardente porto de mar, atravancado com o material estragado da linha Suaquém-Berber, de locomotivas em desconsolados fragmentos a montões de cadeiras e trempes de panelas.

— Se o senhor se conservar junto de mim — disse George — ninguém pedirá passaporte ou perguntará o que faz. Andam todos muito atarefados.

— Compreendo, mas eu gostaria de ouvir alguns dos ingleses falarem. Talvez se lembrem de mim. Eu era conhecido aqui há muito tempo... quando era alguém.

— Aqui “há muito tempo” é um tempo imenso. Os cemitérios estão cheios. Agora escute. Esta nova estrada vai até tanar-al- Hassan, isto é, até onze quilômetros daqui. Depois há um acampamento. Dizem que além de tanai-al-Hassan as tropas inglesas avançam e que tudo o que eles precisam é levado por esta linha.—

Ah! Acampamento base. Compreendo. Assim é melhor do que combater os Fuzzies em campo aberto.

— Por essa razão até mesmo as mulas são embarcadas no trem de ferro.

— Trem de quê?

— É todo revestido de ferro porque fazem fogo contra ele.

— Um trem blindado. Cada vez melhor! Continue, fiel George.

— E eu sigo com as minhas mulas esta noite. Só os que são especialmente requisitados para ir ao acampamento viajam no trem.

Eles começam a atirar logo à saída da cidade.

— Esses anjinhos... eles sempre fizeram isso!

Dick aspirou com satisfação o cheiro de pó seco, ferro aquecido e tinta descascada. Não havia dúvida que a velha vida o estava acolhendo de volta da maneira mais generosa.

— Quando eu tiver reunido as minhas mulas, embarcarei com elas, mas o senhor deve primeiro mandar um telegrama para Port Said declarando que eu não fiz mal.

— Madame tem você nas mãos. Você me cravaria uma faca no corpo se tivesse uma oportunidade?

— Eu não tenho oportunidade — respondeu o grego. — Ela está lá com aquela mulher.

— Compreendo. É desagradável ver-se dividido entre o amor de uma mulher e a oportunidade de saque. Tenho pena de você, George.

Foram ao telégrafo sem obstáculo, pois todo o mundo estava desesperadamente atarefado e mal tinha tempo para voltar a cabeça, e Suaquém era o último lugar debaixo do sol que poderia ser escolhido para recreio. Quando voltavam, a voz de um oficial inglês perguntou a Dick o que estava fazendo. Os óculos azuis cobriam os olhos de Dick e ele caminhava com a mão no cotovelo de George quando respondeu: — Governo egípcio... serviço de mulas. Tenho ordem de entregá-las no acampamento de tanai-al-Hassan. Deseja ver os meus documentos?

— Não, absolutamente. Desculpe. Eu não tinha o direito de perguntar, mas como nunca vi o senhor por aqui...

— Creio que devo seguir no trem esta noite — acrescentou Dick ousadamente. — Não vai haver dificuldade em embarcar as mulas, pois não?

— O senhor pode ver daqui as plataformas dos cavalos. Deve embarcá-las cedo.

E o moço afastou-se pensando que espécie de infeliz seria aquele que falava como um cavalheiro e se associava a arrieiros gregos. Dick ficou desconsolado. Arrostar um oficial inglês não era pouca coisa, mas o blefe perdia um pouco do prazer quando se executava na escuridão completa e a pessoa caminhava tropeçando por terreno acidentado, pensando e pensando eternamente no que poderia ter sido se as coisas houvessem corrido de outro modo e tudo houvesse sido como não era.

George dividiu sua refeição com Dick e foi para o lugar onde as mulas estavam presas. Dick ficou só no barracão com o rosto escondido nas mãos. Diante de seus olhos fortemente fechados dançou o rosto de Maisie, rindo, com os lábios abertos. Havia grande agitação e algazarra em seu redor. Ele ficou com medo e quase gritou por George.

— Suas mulas já estão prontas?

Era a voz do oficial por cima do seu ombro.

— O meu empregado está cuidando delas. O.... o fato é que estou atacado de oftalmia e não vejo. muito bem.

— Homem, isso é ruim? O senhor devia descansar no hospital durante algum tempo. Eu já tive isso. É tão ruim como estar cego.

— É o que eu verifico. Quando parte esse trem blindado?

— Às seis horas. Levamos uma hora para percorrer os onze quilômetros.

— Os Fuzzies atacam... hein?

— Mais ou menos três vezes por semana. O fato é que eu sou o comandante do trem da noite. Geralmente ele volta vazio a Tanai.

— É grande o acampamento em Tanai?

— Bem grande. Tem de abastecer as colunas do deserto.

— E ficam muito longe?

— Entre cinquenta e sessenta quilômetros... numa região infernalmente seca.

— A região entre tanai e os nossos homens é tranquila?

— Mais ou menos. Eu não gostaria de atravessá-la sozinho, nem mesmo com os homens sob o meu comando, mas os batedores passam de maneira verdadeiramente milagrosa.

— Eles sempre passaram.

— O senhor já esteve aqui antes?

— Eu vivi no meio da maior parte do barulho quando estourou aqui pela primeira vez.

“Era do exército e foi desligado”, pensou o oficial e reprimiu-se de fazer perguntas.

— Aí vem o seu empregado com as mulas. Acho deveras estranho...

— Que eu esteja conduzindo mulas? — completou Dick.

— Eu não queria dizer isso, mas é verdade. Desculpe-me... isto é de uma impertinência sem nome, mas o senhor fala como homem que teve boa educação. Não há dúvida quanto ao tom.

— Eu estudei em bom colégio.

— Foi o que pensei. Escute, eu não quero ofendê-lo, mas o senhor anda um pouco sem sorte, não é? Vi-o sentado com a cabeça nas mãos e foi por isso que falei.

— Obrigado. Eu estou tão completamente sem sorte quanto um homem pode estar.

— Se eu... isto é... se o senhor aceitasse, a título de empréstimo...

— O senhor é muito generoso, mas, pode crer, eu tenho todo o dinheiro que preciso..., mas vou dizer o que o senhor poderia fazer por mim e conquistar a minha eterna gratidão. Deixe-me viajar no truque do trem. Vai um truque na frente do trem, não vai?

— Vai. Como sabe?

— Eu já viajei em um trem blindado. Mas deixe-me ver... quero dizer, ouvir, um pouco da brincadeira, e eu ficarei agradecido.

O moço pensou um momento.

— Está bem — disse — Oficialmente nós viajamos vazios e não há ninguém no fim da linha para me repreender.

George e uma horda de ruidosos arrieiros amadores tinham embarcado as mulas, e o trem blindado, de bitola estreita, revestido de chapa de caldeira de um centímetro de espessura, parecendo um longo esquife, estava pronto para partir.

Os dois truques que corriam à frente da locomotiva eram completamente cobertos de blindagem, salvo por um buraco na frente do primeiro para a passagem do cano de uma metralhadora e buracos dos lados do segundo para fogo lateral. Os truques juntos formavam uma longa câmara de ferro abobadada dentro da qual uma vintena de artilheiros fazia grande algazarra.

— Último trem de Whitechapel! Oh, vejam! Estão-se beijando lá na primeira classe! — gritou alguém no momento exato em que Dick subia para o truque da frente.

— Céus! Aqui vem um passageiro vivo de verdade para o trem de Kew, Tanai, Acton e Ealin. O Echo, cavalheiro? Edição especial!

O Star, cavalheiro?

— Deseja uma garrafa de água quente para os pés? — perguntou outro.

— Obrigado. Eu cuido de mim — respondeu Dick, e já haviam sido estabelecidas as mais cordiais relações entre todos quando se fez silêncio com a chegada do subalterno e o trem partiu aos solavancos pelos trilhos desiguais.

— Isto é um grande progresso sobre o velho método de atirar contra o impávido Fuzzy em campo aberto — observou Dick do seu lugar ao canto.

— Oh, ele continua impávido. Aí vem! — disse o oficial quando uma bala bateu no exterior do truque. — Nós temos sempre pelo menos uma demonstração contra o trem noturno. Geralmente atacam o truque da retaguarda onde comanda o meu subordinado.

O divertimento é todo para ele.

— Mas não está noite! Ouça! — observou Dick.

Houve uma saraivada de balas pesadas, seguida de berraria.

Os filhos do deserto apreciavam o seu divertimento noturno e o trem era um excelente alvo.

— Vale a pena dar meia carga de metralhadora? — perguntou o oficial ao tenente de sapadores que manejava a locomotiva.

— Acho que sim! Esta é a minha seção da linha. Se não os detivermos eles são capazes de causar transtornos no meu caminho permanente.

— Certo!

— Hrrmph! — disse a metralhadora através de todos os seus cinco orifícios quando o oficial apertou a alavanca. Os cartuchos queimados caíram no chão e a fumaça voou para trás através do truque. Houve tiroteio indiscriminado na retaguarda do trem, fogo em resposta da escuridão lá fora e gritaria ilimitada. Dick estendeuse no chão, louco de prazer ao ouvir os sons e sentir os cheiros.

— Deus é muito bom... Nunca pensei que tornaria a ouvir isto.

Fogo neles, rapazes. Fogo neles! — gritou.

O trem parou por causa de alguma obstrução na linha à frente e um grupo saiu a fazer reconhecimento, mas voltou praguejando a fim de apanhar as pás. Os filhos do deserto tinham amontoado areia e cascalho sobre os trilhos e vinte minutos se perderam para desimpedir o caminho. Depois recomeçou o avanço lento, animado por mais tiros, mais gritos, o ra-ta-tá das metralhadoras e uma dificuldade final com um trilho meio levantado antes de o trem atingir a proteção do ruidoso acampamento de tanai-al-Hassan.

— Agora vê por que levamos hora e meia para trazê-lo até aqui — comentou o subalterno, colocando o alimentador sobre a sua metralhadora favorita.

— Mas foi uma pândega. Só quisera que tivesse durado duas vezes mais. Como deve ter parecido formidável olhado de fora! — disse Dick, suspirando com pesar.

— Perde a graça depois das primeiras noites. A propósito, quando tiver resolvido o negócio das suas mulas, venha procurarme para ver o que podemos arranjar de comer na minha tenda. Meu nome é Bennil, da Artilharia, e cuidado para não tropeçar nas cordas da minha tenda no escuro.

Mas para Dick era tudo escuro. Ele só podia cheirar os camelos, os fardos de feno, a cozinha, as fogueiras fumegantes e as lonas marrons enquanto esperava ali imóvel, no lugar onde saltara do trem, gritando por George. Houve um som de alegres coices na blindagem dos truques da retaguarda, acompanhado de rinchos e roncos. George estava desembarcando as mulas.

O motor soprava fumaça quase no ouvido de Dick, um vento frio do deserto dançava entre as pernas, e ele tinha fome e sentia-se cansado e sujo — tão sujo que procurou sacudir o casaco com as mãos. Era uma situação desesperadora. Meteu as mãos nos bolsos e começou a contar as muitas vezes que tinha esperado em lugares estranhos ou remotos por trens ou camelos, mulas ou cavalos, para levá-lo onde desejava. Naqueles tempos ele podia ver — poucos homens viam com mais clareza — e o espetáculo de um acampamento armado ao jantar sob as estreias era um prazer sempre renovado para os seus olhos. Havia cor, luz e movimento, sem o que nenhum homem pode ter muito prazer na vida. Nessa noite só restava mais uma viagem através da escuridão que nunca se dissipa para que um homem possa ver até onde viajou. Depois apertaria a mão de Torpenhow novamente — Torpenhow, que estava vivo e forte e vivia no meio da ação que outrora fizera a reputação de um homem chamado Dick Heldar... que não devia ser confundido absolutamente com o vagabundo cego e desnorteado que parecia atender pelo mesmo nome. Sim, encontraria Torpenhow e chegaria tão perto quanto fosse possível da antiga vida. Depois esqueceria tudo; Bessie, que destruíra a Melancolia e, desse modo, quase arruinara a sua vida; Beeton, que vivia numa estranha cidade irreal cheia de rebites, bicos de gás e coisas que ninguém precisava; aquele ser irracional que tinha oferecido amor e lealdade por nada, mas que não havia assinado o nome; e sobretudo Maisie, que, sob o próprio ponto de vista dela, estava inegavelmente certa em tudo o que fazia, mas, oh! àquela distância, tão tentadoramente bela!

A mão de George no seu braço fê-lo voltar à realidade.

— E agora? — perguntou George.

— Ah, sim, naturalmente. E agora? Leve-me para junto dos cameleiros. Leve-me onde ficam os batedores quando voltam do deserto. Eles ficam sentados junto dos camelos e os camelos comem grão de uma manta negra pendurada pelos quatro cantos e os homens comem ao lado deles tal qual os camelos. Leve-me lá!

O acampamento era desigual e sulcado por rodas de carros, e Dick tropeçou muitas vezes nos tocos dos arbustos. Os batedores estavam sentados junto de suas bestas como Dick sabia que estariam. A luz das fogueiras de esterco lampejava nas caras barbudas e os camelos escumavam e mastigavam ao lado deles tranquilamente. Não fazia parte do programa de Dick ir para o deserto com um comboio de abastecimentos. Isso conduziria a perguntas indiscretas, e como um não combatente cego não era necessário na frente, provavelmente seria obrigado a voltar para Suaquém. Devia ir só e ir imediatamente.

— Agora um último blefe, o maior de todos — disse. — A paz seja convosco, irmãos!

O vigilante George conduziu-o para o círculo da fogueira mais próxima. As cabeças dos xeques, donos de camelos, inclinaram-se gravemente, e os camelos, farejando um europeu, olharam de esguelha com curiosidade como galinhas no choco, quase prontos para se levantarem.

— Uma besta e um condutor para ir à linha de combate esta noite — disse Dick.

— Um mulaid? — perguntou uma voz, citando desdenhosamente a melhor raça de carga que ele conhecia.

— Um bisharin — replicou Dick com perfeita gravidade. — Um bisharin sem escoriações de sela. Portanto, nenhum dos teus, guedelhudo.

Dois ou três minutos se passaram. Depois: — Os animais estão encabrestados para o resto da noite. Não se pode sair do acampamento.

— Nem por dinheiro?

— Hum... Ah! Dinheiro inglês?

Outro deprimente intervalo de silêncio.

— Quanto?

— Vinte e cinco libras inglesas pagas na mão do condutor ao fim da minha jornada e outro tanto na mão do xeque aqui, a ser pago quando o condutor voltar.

Era pagamento régio, e o xeque, que sabia que recebia sua comissão sobre o depósito, tendeu em favor de Dick.

— Por menos de uma noite de jornada... cinquenta libras! Terra, poços, boas árvores e esposas para contentar um homem pelo resto de seus dias. Quem fala? — perguntou Dick.

— Eu — disse uma voz. — Eu irei..., mas não há saída do acampamento.

— Idiota! Eu sei que um camelo pode quebrar o cabresto e as sentinelas não fazem fogo contra quem vai atrás dele. Vinte e cinco libras e outras vinte e cinco libras. Mas a besta deve ser um bom bisharin, não aceitarei besta de carga.

Então começou a negociação e, ao fim de meia hora, foi pago o primeiro depósito ao xeque, que falou em voz baixa com o cameleiro. Dick ouviu o último dizer: — Só um pedaço do caminho. Uma besta de carga servirá. Sou algum idiota para desperdiçar o meu gado com um cego?

— Embora eu não possa ver — observou Dick, levantando um pouco a voz — possuo uma coisa que tem seis olhos e o cameleiro irá na minha frente. Se eu não chegar às tropas inglesas ao alvorecer, ele será um homem morto.

— Mas onde, em nome de Deus, estão as tropas?

— Se você não sabe, que vá outro homem. Você sabe?

Lembre-se de que será vida ou morte para você.

— Eu sei — declarou o cameleiro sombriamente. — Afaste-se da minha besta. Vou fazê-la escapar.

— Mais devagar. George, segure a cabeça do camelo um momento. Quero a palpar a face.

Passou as mãos pelo couro do animal até que encontrou o semicírculo marcado a ferro que é o sinal do bisharin, o camelo leve e ligeiro de montaria.

— Este está bem. Solte este. Lembre-se de que não há bênção de Deus para os que tentam enganar um cego.

Os homens que estavam junto das fogueiras riram da derrota do cameleiro. Ele tivera intenção de substituir o bisharin por um camelo de carga cheio de escoriações de sela.

— Afaste-se — gritou um, chicoteando o bisharin sob a barriga com um relho. Dick obedeceu logo que sentiu retesar-se a corda que prendia o nariz do camelo... e um grito se elevou: — Illaha! Aho! Ele está solto!

Com um ronco e um gemido o bisharin levantou-se e disparou para o deserto, seguido do cameleiro, que soltava gritos e lamentações. George pegou o braço de Dick e conduziu-o aos tropeções e solavancos para fora, passando junto a uma sentinela que estava acostumada à fuga de camelos.

— Que barulho é esse? — gritou a sentinela.

— Tudo o que há na minha mochila está naquele maldito dromedário — respondeu Dick, à maneira do soldado comum.

— Vá e tome cuidado para que não cortem o pescoço lá fora...

a você e ao seu dromedário.

A gritaria cessou quando o camelo desapareceu atrás de um outeiro e o cameleiro o chamou de volta e o fez ajoelhar.

— Monte primeiro — ordenou Dick. Depois, subindo para o segundo assento e espetando delicadamente o cano do revólver no vazio das costas de seu companheiro, urgiu: — Siga, em nome de Deus e depressa. Adeus, George. Dê lembranças minhas a Madame e seja feliz com a sua pequena. Avante, filho do inferno!

Alguns minutos depois ele havia mergulhado em um grande silêncio, debilmente interrompido pelo ranger da sela e o pisar macio dos pés incansáveis do camelo. Dick acomodou-se confortavelmente para acompanhar as oscilações do animal, apertou mais o cinto e sentiu a escuridão deslizar para trás. Durante uma hora teve apenas consciência da sensação de avanço rápido.

— Um bom camelo — disse finalmente.

— Ele nunca foi mal alimentado. É meu e de raça pura — respondeu o cameleiro.

— Prossiga.

Sua cabeça pendeu para o peito e ele tentou pensar, mas o fio de seus pensamentos foi interrompido pela necessidade de dormir.

Na meia sonolência imaginou que estava aprendendo um hino que a Sra. Jennett costumava dar de castigo. Ele havia cometido algum crime tão grave como desrespeitar o domingo e ela o trancara em um quarto de dormir. Mas ele nunca conseguiu repetir mais que os dois primeiros versos do hino: Quando Israel do Senhor bem-amado Veio da terra do seu cativeiro.

Repetiu os versos milhares de vezes. O cameleiro virou a cabeça para ver se havia alguma possibilidade de apoderar-se do revólver e pôr fim à viagem. Dick despertou, deu na cabeça com a coronha e acordou completamente. Alguém escondido numa moita de espinheiro gritou quando o camelo subia lentamente uma ladeira.

Um tiro foi disparado, e o silêncio voltou novamente, trazendo o desejo de dormir. Dick não pôde mais pensar. Estava demasiado cansado, rígido e entorpecido para fazer mais do que cochilar inquieto de vez em quando, acordando com um estremecimento e cutucando o cameleiro com o revólver.

— Há luar? — perguntou sonolento.

— A lua está quase desaparecendo.

— Quisera poder vê-la. Pare o camelo. Ao menos quero ouvir o deserto falar.

O homem obedeceu. Do silêncio completo veio um sopro de vento. Marulhou nas folhas secas de um arbusto a alguma distância, e cessou. Um punhado de terra seca desprendeu-se da beira de uma ravina e rolou, desfazendo-se, até o fundo.

— Continue. A noite está muito fria.

Os que já têm ficado acordados a noite inteira sabem como a última hora antes do alvorecer se prolonga eternamente. Dick tinha a impressão de que desde o começo da escuridão original nunca tinha feito outra coisa senão sacudir-se através do ar. Uma vez cada mil anos ele dedilhava as cabeças dos pregos na frente da sela e contava-os cuidadosamente. Séculos depois mudava o revólver da mão direita para a mão esquerda e deixava pender o braço para descansá-lo. Da distância segura de Londres ele se observava com atenção crítica, empenhado nessa ocupação. Entretanto, toda vez que estendia a mão para a tela que ele poderia ter pintado: o deserto amarelo fulvo sob o clarão da Lua no poente, a sombra negra do camelo e as duas figuras curvadas no alto, essa mão empunhava um revólver e o braço estava entorpecido do pulso à clavícula. Além disso, ele se encontrava no escuro e não podia ver tela de qualquer espécie.

O cameleiro resmungou e Dick teve consciência de uma mudança no ar.

— Sinto o cheiro do amanhecer — murmurou.

— Ele está aqui, e acolá estão as tropas. Comportei-me bem?

O camelo esticou o pescoço e bramiu quando o vento trouxe o cheiro penetrante dos camelos no quadrado.

— Continue. Precisamos chegar lá depressa. Continue.

— Há movimento lá no acampamento. Há tanta poeira que não consigo ver o que fazem.

— E eu estou em melhor situação? Prossiga.

Podiam ouvir o murmúrio de vozes à frente, o uivar e mastigar das bestas e os gritos ásperos dos soldados preparando-se para o dia. Houve dois ou três tiros.

— É contra nós? Certamente eles devem ver que eu sou inglês!

— observou Dick com irritação.

— Não, vêm do deserto — respondeu o cameleiro, encolhendose na sela. — Avante, meu filho! Bom foi que a aurora não nos descobrisse há uma hora.

O camelo correu diretamente para a coluna e os tiros atrás multiplicaram-se. Os filhos do deserto tinham preparado a mais desagradável das surpresas — um ataque ao amanhecer contra as tropas inglesas — e atiravam contra os únicos objetos móveis fora do quadrado.

— Que sorte! Que sorte maravilhosa! — exclamou Dick. — É “imediatamente antes da batalha, mãe”. Oh, Deus foi extremamente bom para mim! Somente... — a angústia do pensamento fê-lo apertar os olhos por um instante — Maisie...

— Allahu! Chegamos — gritou o homem quando alcançou a retaguarda e o camelo se ajoelhou.

— Quem diabo são vocês? Trazem despachos ou o quê? Qual é a força do inimigo atrás dessa elevação? Como conseguiram passar? — perguntaram várias vozes ao mesmo tempo.

Como única resposta Dick aspirou profundamente, desafivelou o cinto e gritou de cima da sela com toda a força de sua voz cansada e empoeirada: — Torpenhow! Ei, Torpenhow! Olá, Torpenhow! Um homem barbudo que remexia as cinzas de uma fogueira à procura de um tição para acender o cachimbo dirigiu-se com rapidez para esse grito, enquanto a retaguarda, voltando-se, começava a fazer fogo contra as nuvenzinhas de fumaça que apareciam nos outeiros em volta. Gradualmente as nuvenzinhas ligaram-se formando longas linhas esbranquiçadas que pairavam pesadamente na quietude da aurora antes de deslizarem como ondas e correrem para os vales.

Os soldados no quadrado tossiam e praguejavam quando sua própria fumaça obstruía a visão e avançavam para a frente com cautela para passarem além dela. Um camelo ferido pôs-se em pé de um salto e bramiu alto e o grito terminou em um grunhido gorgolejante. Alguém cortara a garganta para evitar a confusão. A seguir veio o soluço rouco de um homem que recebeu um ferimento mortal de bala, depois um grito de angústia e fogo redobrado.

Não havia tempo para fazer qualquer pergunta.

— Desça daí, homem! Esconda-se atrás do, camelo!

— Não. Por favor, coloquem-me na frente da batalha.

Dick voltou o rosto para Torpenhow e ergueu a mão para endireitar o capacete, mas calculou mal e derrubou-o.

Torpenhow viu que ele tinha o cabelo grisalho nas têmporas e o rosto era o de um velho.

— Desça daí, idiota! Dick, desça daí!

E Dick, obedientemente, desceu, mas como uma árvore que cai, tombando para um lado da sela do bisharin aos pés de Torpenhow. A sorte tinha-o acompanhado até ao fim, concluindo com a misericórdia final de uma bala compassiva através da cabeça.

Torpenhow ajoelhou-se ao abrigo do camelo com o corpo de Dick nos braços.

FIM

 

Notas e Referências
1 Continuem meus filhos
2 Nilgó é um antílope de grandes proporções, muito comum na Índia.
3 Existe sentimento, mas não existe preconceito
4 O verso de Juvenal (Sátira VI, 223) é um pouco diferente: Hoc volo, sic jubeo, sic pro ratione voluntas (Quero-o, ordeno-o, que a minha vontade substitua a razão)

 


O AUTOR
Rudyard Kipling foi um dos escritores mais populares da Inglaterra no início do XX. Laureado com o Nobel de Literatura de 1907, tornou-se o primeiro autor de língua inglesa a receber esse prêmio sendo, até hoje, o mais jovem escritor a recebê-lo.
Entre outras distinções, foi sondado em diversas ocasiões para receber a Láurea de Poeta Britânico e um título de Cavaleiro, as quais rejeitou. Ainda assim, Kipling tornou-se conhecido (nas palavras de George Orwell) como um "profeta do imperialismo britânico".
Muitos viam preconceito e militarismo em suas obras, e a controvérsia sobre esses temas em sua obra perdurou por muito tempo ainda no século XX. De acordo com o crítico Douglas Kerr: "Ele ainda é um autor que pode inspirar discordâncias apaixonadas e seu lugar na história da literatura e da cultura ainda está longe de ser definido. Mas à medida que a era dos impérios europeus retrocede, ele é reconhecido como um intérprete incomparável, ainda que controverso, de como o império era vivido. Isso, e um reconhecimento crescente de seus extraordinários talentos narrativos, faz dele uma força a ser respeitada". Seu poema "If" (Se) é símbolo dos Cadetes da Academia da Força Aérea.

SOBRE A OBRA
A luz que se apagou - The Light That Failed - é um romance do escritor inglês, vencedor do Prémio Nobel, Rudyard Kipling, que foi publicado pela primeira vez na Lippincott's Monthly Magazine em Janeiro de 1891. A maior parte do romance passa-se em Londres, mas muitos eventos importantes ao longo da história ocorrem no Sudão. A narrativa acompanha a vida de Dick Heldar, um artista e pintor que fica cego, e o seu amor não correspondido pela colega de infância, Maisie.
É o primeiro romance de Kipling, escrito quando ele tinha 26 anos, baseando-se no seu próprio amor não correspondido por Florence Garrard. Mesmo sem o apoio dos críticos, o romance teve excelente recepção do público e vem sendo repetidamente publicado há mais de um século. Também foi adaptado para uma peça de teatro e três filmes para cinema e TV.

 

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A LUZ QUE SE APAGOU
Rudyard Kipling
[texto integral]
Título original: “The Light That Failed“ (1890)
edição Le Books, 1.ª edição

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26.Dez.2021
Publicado por MJA