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excerto

Blind Pew - ilustração de N. C. Wyeth para »The Treasure Island«
Era um cego, pois tacteava o caminho com uma bengala e trazia nos olhos e no nariz uma venda grande e verde; e tinha uma corcunda como se fosse velho ou fraco, dentro dum velho e imenso capote remendado, de marinheiro, com um capuz que o fazia parecer absolutamente deformado. Nunca na minha vida vi figura mais medonha. Parou a pouca distância e ergueu a voz, dirigindo-se ao ar à frente dele, num velho estribilho:
— Quem quer dizer ao pobre cego, que perdeu a vista preciosa dos olhos na defesa voluntária da sua terra-mãe, a Inglaterra, "e que Deus abençoe o rei Jorge!", onde ou em que parte desta terra se encontra?
— Aqui é a "Almirante Benbow", na enseada do Monte Negro, meu bom homem — declarei.
— Oiço uma voz — tornou ele —, uma voz jovem. Podes dar-me a mão, meu amiguinho, e levar-me para dentro?
Quando estendi a mão, fui num ápice agarrado como numa tenaz por aquela criatura horrível, sonsa e cega. Fiquei tão aterrado que lutei para me libertar, mas o cego puxou-me para si com um só movimento do braço.
— Agora, rapaz — disse —, leva-me ao capitão.
— Senhor — respondi —, palavra que não me atrevo.
— Oh — troçou ele —, então é isso! Leva-me já, senão parto-te o braço.
E deu-me um torcegão que me fez gritar de dor.
— Senhor — acrescentei —, é por si que tenho medo. O capitão já não é o mesmo. E está sentado com o sabre desembainhado.
Outro senhor...
— Vamos lá, anda para a frente — atalhou ele, e nunca ouvi uma voz tão cruel e fria, tão feia como a daquele cego. Fez-me arrepiar mais do que a dor, e logo lhe fui fazendo a vontade, passando pela porta e em direcção à sala onde estava o pirata velho e doente, entontecido de rum.
O cego mantinha-se colado a mim, com uma garra de ferro, e derreava-me com um peso superior às minhas forças. — Leva-me direito a ele, e quando lá chegares grita "Bill, está aqui um seu amigo". Senão, olha o que te faço
— e deu-me outra torcidela que pensei que me ia fazer desmaiar. Com tudo isto eu já estava tão aterrado pelo pedinte cego que me esqueci do medo que tinha do capitão e, ao abrir a porta da sala, gritei em voz trémula o que me fora mandado.
O pobre do capitão ergueu os olhos, e no mesmo instante o álcool desapareceu para dar lugar a um olhar fixo e sóbrio.
A expressão daquele rosto era menos de terror do que de um sofrimento de morte. Fez um movimento para se levantar, mas penso que
lhe não restava no corpo força suficiente.
— Agora deixa-te estar sentado onde estás, Bill — disse o mendigo. — Se não posso ver, posso ouvir um dedo a mexer.
Negócio é negócio. Deixa ver a mão esquerda.
Rapaz, segura-lhe a mão esquerda e chega-a aqui à minha direita.
Ambos lhe obedecemos à letra, e vi-o passar algo da palma da mão que trazia a bengala para a do capitão, que logo se fechou.
— E pronto, já está feito — declarou o cego, e com estas palavras largou-me de chofre, para com incrível exactidão e agilidade se escapar da sala para a estrada onde, paralisado ali dentro, fiquei a ouvir as pancadas da bengala desaparecerem ao longe.
FIM

Robert Louis Stevenson escritor britânico de finais do século XIX, deixou-nos como legado algumas narrativas que se tornaram clássicas entre as quais se salienta
A Ilha Do Tesouro, uma deliciosa história de piratas cheia de emoções e perigo. Nela são contadas as peripécias vividas por Jim Hawkins, um jovem que se vê envolvido na busca do tesouro enterrado do maldoso capitão Flint. O enredo cativante, delineado com mestria, e a caracterização inigualável das personagens contribuem para que este romance de aventuras continue a ser um dos mais apreciados da literatura universal.
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A ILHA DO TESOURO
[excerto]
Autor: Robert Louis Stevenson
Título original: Treasure Island, 1883
Tradução: João C. Martins
Tradução cedida por Vega Editora
COLECÇÃO NOVIS
BIBLIOTECA VISÃO — 29
Edipresse, Agosto de 2000
15.Maio.2014
Publicado por
MJA
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