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Healing a Man Born Blind -
Edy Legrand
Meditando sobre os
descaminhos do mundo, surge o desejo de que a verdade pudesse, alguma
vez, mostrar-se de forma totalmente irrefutável, como algo simplesmente
irresistível, pela sua própria força arrebatadora.
Mas, quão incertos são
tais desejos e quão sinistras podem ser as formas em que, na realidade,
dá-se a liberdade e também a fraqueza dos homens e como a verdade de
modo algum "se impõe", tudo isto torna-se manifesto na história que
narraremos a seguir.
Nela se descreve uma
experiência. Uma experiência que, aliás, não pode ser repetida por todo
mundo. Mas, talvez, esse "todo mundo" reconheça que pode muito bem
ocorrer uma repetição em qualquer época, de modo igual ou semelhante.
Trata-se de uma experiência com a cegueira; um dos protagonistas é um
homem cego. Ao final, ficará evidente que também um olho que vê pode ser
cego.
Aliás, esse tipo
especial de cegueira é bem o tema de nossa história.
Um dos protagonistas é,
como dizia, um cego, um homem ainda relativamente jovem. Todos o
conheciam, pois ele não sabia fazer outra coisa a não ser ficar sentado
na rua pedindo esmola.
Porém, que significa
exactamente: "todos o conheciam"? Conheciam, sim, seu jeito, sua voz e
aquele seu rosto um tanto vazio e rígido. Mas será que seriam capazes de
reconhecê-lo em um outro ambiente, digamos, no jantar em casa de seus
pais - com quem ele mora - ou no caminho, guiado por um menino? Isto é
duvidoso, e este detalhe tem sua importância em nossa história.
Para ir directo ao ponto
mais importante: aconteceu que, um dia, esse homem, repentinamente,
recobrou a visão. Não, "recobrou", não, mas pela primeira vez pôde ver
(pois ele era cego de nascença...). O mendigo lavou-se numa água parada
e, de repente, ganhou a visão.
Talvez esse lavar-se
não tenha sido o decisivo: algo tinha ocorrido antes. E, por isso,
precisamos falar também de um outro personagem principal. Mas este não
pode ser caracterizado tão facilmente.
O povo andava falando
do "homem milagroso", muitos o chamavam "o bom" e outros até o
"Bendito". Mas, para nossa história, isto não é lá muito importante.
Mais importante é que ele era suspeito. Suspeito ante quem? E suspeito
de quê? Também isto - esta última pergunta - é difícil de responder. Ele
era suspeito para os poderosos. Mas por que? Bem, isto só eles é que
sabiam. Diziam que ele desprezava as leis e os costumes. Mas claramente
não era essa a razão da suspeita, ainda que a conduta daquele homem,
para muitos, parecesse fora do comum, fora da ordem.
Aliás, "suspeita" não é
também a palavra certa; o que havia era inveja e quase ódio. Os
detentores do poder temiam a crescente popularidade do homem dos
milagres, sua influência sobre a massa insensata. E isso com razão, se
bem que a gente do povo, que não quer cair na antipatia dos poderosos,
já começava a acautelar-se em manifestar de maneira demasiadamente clara
sua admiração - admiração um tanto inconsiderada - por aquele homem,
pois não era totalmente isento de perigo fazê-lo. E, por fim, não sabiam
realmente a quantas andavam com ele.

O facto é que esse homem
- também ele relativamente jovem, pouco mais de trinta anos - tinha-se
encontrado com o cego na rua. Deu-se um curto diálogo entre os dois no
qual o mendigo ouviu, misturadas com a dele, algumas outras vozes. E,
então, o cego sentiu um dedo sobre seus olhos que parecia esfregá-los
com uma espécie de pomada. Ao mesmo tempo, uma das vozes lhe dizia que
ele devia ir lavar-se numa tal piscina. E então, como dissemos,
tornou-se capaz de ver.
E assim começa a
experiência.
"Caminhando, viu Jesus um cego de
nascença. Os seus discípulos indagaram dele: 'Mestre, quem pecou, este
homem ou seus pais, para que nascesse cego?' Jesus respondeu: 'Nem este
pecou, nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras
de Deus. Enquanto for dia, cumpre-me terminar as obras daquele que me
enviou. Virá a noite, na qual já ninguém pode trabalhar. Por isso,
enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo'. Dito isto, cuspiu no chão,
fez um pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego.
Depois lhe disse: 'Vai, lava-te na piscina de Siloé (que significa
Emissário)'. O cego foi, lavou-se e voltou com vista'".
Como dizia, com este
facto inicia-se a experiência com a cegueira. No decorrer dessa
experiência, mostrar-se-á o que acontece com a irrefutabilidade de uma
verdade límpida.

Jesus cura o cego de Jericó - Nicolas
Poussin
Já entre os primeiros
que viram o mendigo passar pela rua, até mesmo entre seus vizinhos, não
foram poucos os que simplesmente questionavam se este homem seria o
mesmo que, há anos, tinha estado sentado, cego, na rua. Outros afirmavam
que sim, que apesar de tudo era ele, inconfundível. Pois não se
via no rosto, no cabelo, nos andrajos? Tudo exactamente o mesmo! Outros,
ainda, teimavam: não, certamente há determinadas semelhanças, mas
trata-se de uma outra pessoa.
Ora, podia-se perguntar
a ele mesmo. E sua resposta, naturalmente, foi contar o que tinha
ocorrido. Mas, o que sabia ele do ocorrido? Se o tal do "Bendito" neste
instante passasse diante dele, o mendigo não o teria reconhecido, pois
nem sequer o tinha visto. E assim, à irónica pergunta: "Onde
está, então, o que te curou?", ele teve que responder que não sabia. Não
se pode imaginar a envolvente satisfação com que os espíritos críticos
constataram o carácter já nem sequer duvidoso do caso: então um cego, um
sujeito sempre tido por cego, e, além disso claramente um marginalizado,
pretende ter sido curado por aquele de quem tanto se fala; e então
verifica-se que a coisa nem sequer se deu na presença do tal taumaturgo;
o rapaz só ouviu falar dele e absolutamente não o conhece. Não,
esta história está muito esquisita, mal arranjada.
"Então os vizinhos e aqueles que
antes o tinham visto mendigar perguntavam: 'Não é este aquele que
sentado mendigava?' Respondiam alguns: 'É ele'. Outros contestavam: 'De
modo algum, não é ele, mas alguém parecido com ele'. Ele, porém, dizia:
'Sou eu mesmo'. Perguntaram-lhe então: 'Como te foram abertos os olhos?'
Respondeu ele: 'Aquele homem que se chama Jesus fez lodo, ungiu-me os
olhos e disse-me: Vai à piscina de Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e
vejo'. Interrogaram-no: 'Onde está esse homem?' Respondeu: 'Não sei'".
A experiência continua.
Porém, deve-se falar ainda de uma circunstância especial e, na
realidade, um tanto desconcertante. O milagroso era tido, como já ficou
dito, como um detractor dos costumes. E não só havia muitos
costumes, mas também cuidava-se com especial rigor de observá-los. Por
exemplo, havia dias em que, por motivo algum, se podia sujar as mãos:
isso era tido quase como sacrilégio. Ora, por que aquele homem tinha que
fazer, precisamente num desses dias, uma imunda pomada de cuspe e pó da
rua para esfregar os olhos do mendigo? O facto é que o fez e isto basta!
E não é surpreendente que, portanto, a coisa ganhasse o aspecto de
provocação pública.
Em todo caso, o mendigo
- ainda meio atordoado pelo ocorrido - foi conduzido ante os detentores
do poder. E, novamente, contou de modo breve e já um tanto impaciente o
que lhe havia ocorrido.
A partir daí,
formaram-se dois partidos entre os poderosos: um, que julgava que o
decisivo era o desprezo pelos costumes e, portanto, tinha por impossível
a cura; enquanto o outro indagava se alguém capaz de curar um cego pode
ser um mau homem. E ele mesmo, o pretensamente curado, que dizia? Bem,
ele o considerava um grande homem. E isso é compreensível. Mas, ele nem
sequer conhecia o seu "grande homem"... O resultado foi que já ninguém
mais acreditava no facto. Não era verdade, não podia ser verdade.
"Levaram então o que fora cego aos
fariseus. Ora, era sábado quando Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos.
Os fariseus indagaram dele novamente de que modo ficara vendo.
Respondeu-lhes: 'Pôs-me lodo nos olhos, lavei-me e vejo'. Diziam alguns
dos fariseus: 'Este homem não é de Deus, pois não guarda o sábado'.
Outros replicavam: 'Como pode um pecador fazer tais prodígios?' E havia
desacordo entre eles. Perguntaram ainda ao cego: 'Que dizes tu daquele
que te abriu os olhos?' 'É um profeta', respondeu ele. Mas os judeus não
quiseram admitir que aquele homem tivesse sido cego e que tivesse
recobrado a vista".
Mas não haveria algum
modo de descobrir se aquele mendigo que costumava ficar sentado na rua,
aos olhos de todos, era o mesmo que este jovem cujos olhos claramente
estavam sãos e que afirmava ter sido cego e subitamente curado? (Talvez
até ele nunca tivesse realmente sido cego!). Onde se podia obter
informações sobre o que realmente tinha ocorrido? Bem, se há alguém que
pode dizer algo são os pais do homem.
Foram pois trazidos e
indagados. Não, não foram simplesmente indagados, foi um autêntico
interrogatório. E precisamente isto foi o que pôs tudo a perder. Essas
pessoas simples do povo, não acostumadas ao rebuscado linguajar
jurídico, ficaram amedrontadas. Já tinham ouvido dizer que quem falasse
a favor do taumaturgo seria proscrito, o que era algo que não se podia
subestimar. E, além disso, que é que eles tinham que ver com aquele
homem? Nada, absolutamente nada. De modo que simplesmente recusaram-se a
informar sobre o assunto. Em todo caso, não negaram que era seu filho e
admitiram também que tinha sido cego desde o nascimento, pois isso não
poderia ser mal interpretado. Agora, de que modo ele hoje vê - disso,
não sabiam nada, absolutamente nada. Ele, aliás, já não é nenhuma
criança e mudo também não é.
"Então, chamaram os seus pais e
interrogaram-nos: 'É este o vosso filho? Afirmais que ele nasceu cego?
Pois como é que agora vê?' Seus pais responderam: 'Sabemos que este é o
nosso filho, e que nasceu cego. Mas não sabemos como agora ficou vendo,
nem quem lhe abriu os olhos. Perguntai a ele. Tem idade. Que ele mesmo
explique'. Seus pais disseram isto, porque temiam os judeus, pois os
judeus tinham ameaçado expulsar da sinagoga todo aquele que reconhecesse
Jesus como o Cristo. Por isso é que responderam: 'Ele tem idade,
perguntai a ele'".
Mas para que,
exactamente, era necessário saber o que os pais pensavam da cura? Se eles
não tinham deixado nenhuma dúvida sobre o facto de que este homem, hoje
com visão, realmente lhes tinha nascido cego; era seu filho e até ontem
cego.
O que então não estava
claro? Naturalmente, o que "não estava claro" era como se podia
explicar essa cura. Mas que tinha havido cura... Por isso, convocaram,
ainda outra vez, o próprio mendigo a interrogatório. Evidentemente, já
não se tratava de ouvir e "entender", mas precisamente de não ouvir,
de abafar. Numa palavra: o mendigo devia ser reduzido ao silêncio.
Tal
objectivo - como
todo mundo sabe - pode ser atingido de diversos modos, ou melhor,
pode-se tentar atingi-lo (no caso, não se conseguiria...).
"Você não pode - assim
disseram os poderosos ao mendigo - você não pode, naturalmente, entender
nossas razões, por isso seu erro é compreensível. Mas nós estamos muito
bem informados de que você se engana. Seria bom para você considerar
isso. E, principalmente, grave bem na memória uma coisa: quem está
dizendo isto a você não é um qualquer, mas somos nós, nós que
somos não só os sábios, mas também os poderosos. Então, pense bem,
medite com calma e quando você tiver compreendido conte-nos pela última
vez: o que é que realmente aconteceu?"
Não é totalmente certo
que o mendigo se tivesse apercebido das ameaças que se encerravam nessas
palavras: ele era demasiadamente simples para isso. Mas sentiu-se
subitamente irritado com tanto palavreado e deixou-se arrastar pela ira.
Ajudou-o a isso (por
assim dizer) o facto de não ter nenhuma destreza na arte de ter direitos:
tudo o que ele tinha "aprendido" era unicamente levar o transeunte a dar
esmola, e isto lhe bastava.
Seja como for, o
mendigo opôs à intimação dos "eruditos" uma resposta inesperadamente
atrevida, não lhes poupou sequer a marota e irónica pergunta de se por
acaso também eles não estavam querendo se tornar adeptos do Bendito. E,
em vez de atender-lhes o desejo de uma vez mais contar o ocorrido,
começou a demonstrar-lhes que não era ele quem se enganava, mas
eles, os poderosos.
Naturalmente, a coisa
terminou com a expulsão do mendigo.
"Tornaram a chamar o homem que fora
cego, dizendo-lhe: 'Dá glória a Deus! Nós sabemos que este homem é
pecador'. Disse-lhes ele: 'Se esse homem é pecador, não o sei... Sei
apenas isto: sendo eu antes cego, agora vejo'. Perguntaram-lhe ainda uma
vez: 'Que foi que ele te fez? Como te abriu os olhos?' Respondeu-lhes:
'Eu já vo-lo disse, e não me destes ouvidos. Por que quereis tornar a
ouvir? Quereis vós porventura tornar-vos também discípulos dele?...'
Então eles o cobriram de injúrias e disseram: 'Tu que és discípulo dele!
Nós somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés; mas,
este não sabemos de onde é'. Respondeu aquele homem: 'O que é de admirar
em tudo isto é que não saibais de onde ele é, e no entanto ele me abriu
os olhos. Sabemos, porém, que Deus não ouve a pecadores, mas atende a
quem lhe presta culto e faz sua vontade. Jamais se ouviu dizer que
alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se este homem não
fosse de Deus, não poderia fazer nada'. Responderam eles: 'Tu nasceste
todo em pecado e queres nos ensinar?... E expulsaram-no'".
Mas o mendigo ainda não
tinha visto o homem a quem devia a luz dos olhos...
E não demorou muito até
que se encontrassem. Todas as audiências e também o desfecho do último
interrogatório não eram desconhecidos pelo Bendito. E, de propósito, fez
com que o mendigo inesperadamente deparasse com ele no meio da agitação
e barulho do mercado. Falou ao curado e perguntou-lhe de modo totalmente
directo se ele cria no homem capaz de fazer coisas sobre-humanas.
O indagado, de início,
mal se surpreendeu, cansado que estava de perguntas que não levam a
nada, e sua resposta foi um tanto evasiva: que lhe mostrassem afinal
este homem e então examinaria o assunto da fé. Mal, porém, acabava de
falar, interrompeu-se e fechou os olhos - num máximo esforço de escutar
- fechou os olhos, para nas trevas - que lhe eram tão familiares -
reconhecer, ou melhor, reconhecer a voz do outro. E quando a voz
lhe disse: "Este homem está diante de ti" - então, num instante, o
mendigo compreendeu tudo. Soube, de um só golpe, que só naquele preciso
momento é que tinha realmente começado a ver. E essa felicidade
atravessou-o como um raio e lançou-o ao solo, enquanto o Bendito,
inclinando-se sobre o mendigo prostrado, disse algo muito obscuro a
respeito de cegos que vêem e de gente que vê mas é cega.
É quase certo que
ninguém ali compreendeu o que ele queria dizer. E quando um dos que por
lá estavam, um do partido dos poderosos, disse, irónico e ameaçador, que
então, segundo isso, eles, os poderosos, seriam também cegos, obteve a
resposta de que precisamente isto é que era o mal: que eles não
eram cegos. Aí já não houve mais ninguém que perguntasse o que isso
significava; perguntavam-se, sim, se tinha afinal algum significado, se
havia, afinal, algo a ser compreendido.
E assim termina a
experiência com a cegueira.
"Jesus soube que o tinham expulsado
e, havendo-o encontrado, perguntou-lhe: 'Crês no Filho do Homem?'
Respondeu ele: 'Quem é ele, Senhor, para que eu creia nele?' Disse-lhe
Jesus: 'Tu o vês, é o mesmo que fala contigo'. - 'Creio, Senhor', disse
ele. E, prostrando-se, o adorou. Jesus então disse: 'Vim a este mundo
para fazer uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem
tornem-se cegos'. Alguns dos fariseus que estavam com ele, ouviram-no e
perguntaram-lhe: 'Também nós somos acaso cegos?...' Respondeu-lhes
Jesus: 'Se fosseis cegos, não teríeis pecado, mas agora pretendeis ver,
e o vosso pecado subsiste'".
Disse eu que termina a
experiência com a cegueira? Não, essa seria uma formulação um tanto
imprecisa, e até mesmo injusta. O que terminou foi o relato; a
experiência..., a experiência continua...
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Josef Pieper (1904-1997) nasceu em Elte (Westfália). Cursou
Filosofia, Sociologia e Direito nas Universidades de Berlim e Münster.
Doutorou-se em Filosofia em 1928 pela Universidade de Münster.
Estudioso da
teologia, Pieper é considerado o principal pesquisador da obra de Santo Tomás de
Aquino neste século. Também é apontado como o pensador católico mais notável do pós-guerra e um dos mestres da filosofia da religião cristã. in
Geocities
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Josef Pieper:
"Das Experiment mit der Blindheit"
Conferência de 1979
Tradução: Luiz Jean
Lauand
dedicada à Prof.ª
Dr.ª María de la Concepción Piñero
Valverde
Fonte:
http://www.hottopos.com.br/
29.Out.2007
Publicado por
MJA
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