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Do Essencial
Invisível: Arte e Beleza entre os Cegos

Minotauro cego conduzido por uma
rapariguinha na noite -
Picasso, 1934
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Em 1998, quando dirigia o Centro de Pesquisa, Documentação e
Informação (IBCENTRO) no Instituto Benjamin Constant, conheci o
Professor João Vicente Ganzarolli de Oliveira. Naquela época ele havia
começado a freqüentar nossa instituição, buscando subsídios teóricos
referentes à cegueira e à deficiência visual em geral. João Vicente
estava começando a desenvolver uma pesquisa que voltava-se para o estudo
da experiência estética dos cegos e deficientes visuais. Percebi, desde
o início, as possibilidades que o assunto trazia. Assunto este que
carecia de um tratamento objetivo e que, ao menos em nosso país, era
inédito.
Possuidor de alta formação acadêmica, professor das cadeiras de Estética
e Filosofia da Arte da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, conferencista e autor de diversos artigos, João Vicente
uniu com propriedade a teoria e a prática: aliou a consulta
bibliográfica feita em nossa biblioteca a contatos freqüentes com
profissionais que trabalham na área da cegueira, além dos próprios
cegos, muitos dos quais artistas. Parte dos resultados de sua pesquisa
já se encontra publicada em números diversos da nossa revista, Benjamin
Constant, e tem sido apresentada em congressos de abrangência nacional e
internacional. O presente ensaio, além de aprofundar o assunto,
apresenta também vários aspectos até então não tratados pelo autor sobre
o tema da arte e da beleza entre os cegos.
Cada ser humano tem sua particularidade, sua identidade. Um indivíduo é
diferente de todos os demais. Em outras palavras, é inédito. Às vezes
isto parece não ser tão claro. Estigmatizar o "diferente" é uma atitude
comum ao longo da história. Segregados durante muito tempo, os cegos
cada vez mais têm provado a possibilidade de atuar com eficiência nos
mais diversos setores da sociedade. Mas ainda assim os preconceitos
existem. E também os mitos. Opondo-se a ambos, o livro
"Do essencial invisível: arte e beleza entre o
cegos", que tenho a honra de apresentar, oferece uma rara
oportunidade de esclarecimento a respeito de um tema complexo e, sob
vários aspectos, ainda inexplorado.
Antonio João Menescal Conde
Chefe de Gabinete do Instituto Benjamin Constant
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– Adieu, dit le renard. Voici mon secret. Il est très simple:
on ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisible pour les
yeux.
– L'essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince,
afin de se souvenir.
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Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince
Este livro trata da cegueira a partir da sua relação com a beleza e a
arte. O plano inicial previa uma abordagem mais ampla. Incluía, além da
cegueira, outras formas de deficiência, tais como a surdez, as
deformidades físicas e os distúrbios mentais. Seu ponto de partida foi a
palestra que pronunciei no XIV Congresso Internacional de Estética,
realizado em 1998, na Eslovênia. Não obstante, meu interesse por tais
questões é mais antigo. Falarei sobre isso adiante. O projeto primitivo
foi modificado, tornando a abordagem limitada à cegueira. Não que as
outras formas de deficiência sensorial, física, mental ou psíquica sejam
menos importantes do que a cegueira. Aliás, não há consenso quanto à
terminologia mais adequada para a designação das diferentes modalidades
de deficiência. Na década de 70, por exemplo, Marcos José da Silveira,
no seu estudo sobre educação especial, falava em impedimentos visuais,
auditivos, mentais e motores. Atualmente, entre alguns especialistas,
cada tipo de deficiência é definido com base na relação entre o
indivíduo deficiente e o ambiente ao seu redor. Gera-se assim, na área
de educação para as crianças deficientes, "o modelo ecológico funcional,
que percebe a criança em interações complexas com as forças ambientais".
No caso particular da cegueira, prefiro considerá-la uma deficiência do
tipo sensorial – distinguindo-a assim da deficiência física, com a qual
a cegueira é muitas vezes identificada, mas que convém mais ao homem
paraplégico, por
exemplo.
Para a Estética, ramo da Filosofia que estuda a beleza, a cegueira é a
mais importante de todas de todas as deficiências. Isso porque se choca
com o privilégio natural que o homem confere ao olhar, sempre que se
fala da beleza: o belo é, em grande parte, um assunto visual. É claro
que os problemas enfrentados pelo cego não se limitam ao campo da
experiência estética; o homem que não vê é muitas vezes vítima da
suposição de que a cegueira faz dele um ser totalmente inválido. É um
preconceito; amplia desmesuradamente os males da cegueira, tornando-a um
estigma e dificultando a prática social da pessoa cega.
O preconceito, via de regra, nasce das generalizações indevidas: dizer
que os franceses são xenófobos é uma sentença tão imprecisa quanto a que
diz que os brasileiros são alegres.
Ainda que superficialmente, o livro não deixa de se referir a outras
formas de
deficiência afora a cegueira; através de comparações, elas contribuem
para o melhor
esclarecimento do tema da cegueira. Também são abordadas, de forma
sintética, questões
atinentes à sensibilidade em geral. Ora, o sentido primitivo do conceito
de "estética"
engloba o processo de percepção como um todo, e não apenas a parcela do
nosso universo
perceptivo tida como bela. Por ser um livro que tematiza a cegueira, ele
também concerne à
visão. Como faces de uma mesma moeda, essas realidades se complementam e
se
esclarecem de forma recíproca.
Dada a semelhança existente entre a situação da pessoa cega e a da que
tem visão
subnormal, freqüentemente incluo ambas no mesmo contexto. Sempre que
possível abro
mão do conceito de visão subnormal, que é excessivamente técnico, em
prol da maior
agilidade do discurso. Assim, preferi usar de forma genérica os
conceitos de "cegueira" e
de "cego", sem dúvida mais acessíveis ao público em geral, desde que
isso não comprometa
a precisão semântica requerida pelo contexto em tela.
A cegueira evidencia-se facilmente na prática quotidiana. Através dos
movimentos
do cego ela se mostra aos olhos de quem vê, pois a ausência de visão
compromete a
habilidade motora: o homem não vidente caminha e move-se com certo
embaraço. Pode-se
ver que um homem é cego ao acompanhá-lo com os olhos enquanto ele se
move. Cabem
aqui estas palavras de Vieira: "A maior graça da natureza – e o maior
perigo da graça – são
os olhos. Tanto aqueles com que vemos, quanto aqueles com que somos
vistos." Alvo de
preconceitos que se acumulam desde a Antiguidade, o cego ainda hoje
depara muitas vezes
com sérias dificuldades de aceitação no meio em que vive:
As borboletas nascem lindas e livres,
Senhoras dos seus destinos breves...
Enquanto nós, escravas pacientes,
Asas atadas pelo preconceito,
Permanecemos quietas na sombra
O não-vidente é propenso a integrar o mundo dos excluídos, coletivo
referente aos homens
que estão à margem da sociedade. A proposta aqui desenvolvida é árdua,
sujeita a muitos
tipos de enganos. Um dos mais freqüentes diz respeito ao modo como nós,
investigadores,
nos colocamos diante do assunto a investigar. Em momento algum se pode
esquecer que se
está a lidar com homens como todos nós, com sentimentos e aspirações
fundamentais
semelhantes às nossas.
Tenho a consciência de estar pisando num solo temático que, ao menor
descuido,
pode perder a solidez e se transformar em areia movediça. Durante a
realização da
pesquisa, os temas tratados foram mesclando-se espontaneamente entre si.
Isso permitia
uma colaboração recíproca entre eles, no que tange ao seu
esclarecimento. O livro
privilegia assuntos voltados para a especificidade humana. O que é o
homem? – tal é a
pergunta diretora neste ensaio. O homem, respondiam os gregos antigos
com certa ironia,
"é o que nós todos já conhecemos". A assertiva é irônica exatamente por
destacar o
paradoxo que acompanha a nossa realidade. Sabemos por intuição o que
seja o homem, mas
não nos é possível defini-lo com precisão absoluta. Do animal rationale
de Aristóteles ao
animal symbolicum de Cassirer e ao animal ridens de Huizinga,
avolumam-se as
definições. Mas nenhuma delas vale como resposta última, capaz de
esgotar a pergunta
sobre o que venha a ser o homem: a definição de Pijoan, que vê no homem
"o animal que
tem capacidade estética" tampouco é decisiva. Claro está que a busca
pela beleza é
essencial para o homem. Mas nem por isso a vida humana pode ser resumida
à sua
dimensão estética. De igual modo, a privação de uma faculdade
fisiológica não basta para
definir um indivíduo. Isso vale, naturalmente, para o cego e o
deficiente visual: na vida, de
forma geral, o estado de visão é apenas um dos muitos elementos a serem
tidos em conta,
no que tange ao conhecimento de um indivíduo.
A interrogação sobre o sentido da essência humana segue provocadora,
perseguindo-nos, ainda que nem sempre notemos a sua presença, a cada
momento de
nossas vidas. Tema nuclear deste ensaio, a realidade humana, quando
indagada sobre o que
ela efetivamente é, torna-se fonte geradora de novas perguntas. Dentre
elas, destacam-se
aqui perguntas sobre a cegueira, a deficiência, a beleza, a arte. Tal
como ocorre com a
pergunta inicial - o que é o homem? -, essas outras perguntas também
parecem, a um
primeiro olhar, encontrar resposta evidente. Olhando-as com atenção
maior, vê-se que a
realidade é outra: as divergências que marcam as respostas são muitas e
profundas.
No âmbito pedagógico, a experiência estética dos não-videntes costuma
ser
direcionada para a visita a museus e para artes como a dança, a música,
o teatro, a
literatura. Falta em nossa cultura uma obra que analise a fundo todas
essas possibilidades,
e que trace o percurso histórico da cegueira. Não é o que faço aqui. Meu
alvo é mais
limitado: se este ensaio contribuir de alguma forma para o
esclarecimento das
possibilidades dos cegos no referente à beleza e à arte, facilitando
assim a sua integração
social, o esforço para realizá-lo não terá sido em vão.
O problema
1.1 O primeiro cego
Foi há quase vinte anos, na cidade peruana de Cuzco. Trata-se de um
cego, o primeiro de
que este ensaio fala especificamente; um cego que jamais cheguei a ver e
de que não ouvi
falar outra vez. Voltava de uma visita às ruínas de Machupicchu. No
decorrer de uma
conversa com outros viajantes, algum de nós mencionou que, naqueles
dias, a cidadela inca
seria visitada por um cego. Ao que seguiu-se, de forma imediata, a
pergunta: "O que um
cego fará em Machupicchu?" A pergunta, ainda que pareça justificável por
si mesma, não
encerra uma resposta simples. Comporta, isto sim, um sem-número de novas
perguntas. A
cegueira, das muitas formas de deficiência que atingem o homem, é das
mais temíveis.
Eratóstenes preferiu a morte a viver como cego, impedido de olhar para
as estrelas que
tanto o fascinavam. Para o homem que não vê, o mundo apresenta severos
limites e
enormes obstáculos dos quais os videntes amiúde não se dão conta. O
simples ato de
caminhar de um lugar para outro pode constituir um objeto de difícil
aprendizado.
Desde que, em 1911, Machupicchu foi descoberta, multidões de viajantes
sobem a
montanha escarpada dos Andes para admirar a beleza dessa obra-prima da
arquitetura
incaica. Excetuando os arqueólogos e demais especialistas, o motivo
principal que leva os
visitantes à cidadela é de ordem estética: vão para ver como é bela a
arquitetura e a
paisagem ao redor, bem como o modo admirável como uma e outra se
misturam. Sendo
assim, a pergunta sobre o que o homem cego fará em Machupicchu aponta
para duas
prerogativas: que ele deseja desfrutar dessa beleza; que ela lhe é
inacessível, uma vez que
Machupicchu apresenta-se bela apenas aos olhos capazes de ver.
O problema é bem mais amplo do aparenta. Diz respeito não só à cidadela
peruana e
aos que não a vêem. Atinge o núcleo do próprio pensamento estético
ocidental, que tem nos
olhos o sentido por excelência para a percepção do belo. Santo Tomás de
Aquino chega a
reduzir o fenômeno estético à órbita da visualidade: belo, para o sábio
escolástico, é "o que
agrada quando visto" . Não é por acaso que, quando falamos em "arte",
torna-se quase
inevitável pensarmos numa atividade de caráter visual. Os próprios
livros que tratam de
História da Arte têm por implícita essa tendência. A não ser que o
título traga
especificações referentes a artes não visuais, o leitor sabe que
encontrará uma abordagem
prioritariamente destinada à arquitetura, à pintura e à escultura: as
três grandes artes que se
desenvolvem no espaço, dirigindo-se por isso aos olhos. Essa primazia
visual no campo
da arte foi problematizada, há algumas décadas, na obra de Herbert Read.
Segundo o
ensaísta inglês,
A palavra arte associa-se em geral àquelas artes que chamamos
"plásticas" ou "visuais";
mas, usada com propriedade, deveria incluir também as artes da
literatura e da música.
Há certas características comuns a todas as artes (...).
Embora todas as artes pertençam ao mesmo gênero, o artístico,
continuamos referindo o
conceito de arte preferencialmente ao plano da visão. Ora, se a arte
fosse um fenômeno
apenas visual, ela seria impossível para o cego. Mas não é. Pedagogos
especializados no
ensino de crianças com deficiência visual afirmam que o aprendizado
artístico delas não
precisa ser diferente daquele direcionado às videntes. Lowenfeld, por
exemplo, crê que
"A habilidade para dar forma objetiva às criações da imaginação não
depende da
capacidade de ver e observar as coisas".
Usualmente, por estranho que possa parecer, os próprios cegos aceitam
essa redução
implícita da arte ao circuito da visualidade. É o que mostra Irwin
Winkler com sutileza e
sagacidade no filme À primeira vista (At first sight), em especial na
seqüência em que Amy
(Mira Sorvino) tenta explicar o significado da palavra "arte" a Virgil (Val
Kirmer), cego
que havia recobrado provisoriamente a visão. Diante de uma obra plástica
de Dubuffet,
Virgil pergunta, sem grande entusiasmo: "O que é isto?" Ao que Amy
responde: "Isto é
arte". Em seguida, Virgil vê um muro rabiscado com grafites de
diferentes cores, que lhe
causam uma impressão estética mais favorável. Diz então a Amy: "Isto tem
que ser arte. É
bonito!". Amy, ela mesma confusa, contesta: "Isto não é arte. É apenas
uma forma
destrutiva de expressão."
É oportuno frisar que esse privilégio da visão no campo da estética não
tem
amplitude universal, ao menos de maneira explícita. Tomemos o exemplo de
uma cultura
distante da nossa: os turcos, primos étnicos dos mongóis. "Estética" em
turco diz-se
güzelduyu, palavra derivada do adjetivo güzel ("belo", "agradável",
"bom") e do verbo
duymek, que significa "ouvir", ou simplesmente "sentir", na acepção
genérica: duyum é a
sensação, e duyulur é o perceptível. Tão enraizada em nossa cultura é a
idéia de que a arte
restringe-se à visualidade (por isso mesmo não constituindo um campo de
atuação para
quem não vê) que notamos a sua vigência inclusive entre profissionais da
área pedagógica
que se dedicam a auxiliar os cegos. Não admira, portanto, que as teorias
estéticas ocidentais
deixem de contemplar especificamente a situação daqueles que não vêem.
Eis o que escreve
Rona Shaw:
Arte e escultura não são as únicas áreas que proporcionam expressão
criativa. Há
também a dança, atividade que concede aos indivíduos o poder de explorar
e descobrir
seus corpos e expressar seus sentimentos.
Ora, não é a dança uma arte? A autora parece considerar que "arte",
"dança" e "escultura"
pertencem a gêneros distintos. Além disso, não são todas as artes
modalidades do fazer
humano, e que expressam seus sentimentos? Da forma como é posta a
situação, as
fronteiras semânticas se confundem. Todo tipo de arte pertence ao âmbito
da
expressividade humana; a arte é sempre uma forma de expressão. Mas nem
todas as formas
de expressão humana são, forçosamente, artísticas. O indivíduo expressa
algo de si através
do modo como acende seu cigarro. Nem por isso o ato de acender cigarros
precisa ser tido
como evento artístico: fora dos palcos, longe das câmaras fotográficas e filmadoras, não é.
Se houvesse realmente uma coincidência entre a vida e a arte, como se
repete muitas vezes
desde o Romantismo, não precisaríamos de duas palavras diferentes para
designá-las.
Há um assentimento tácito que contribui para que o cego seja excluído do
circuito
da Estética. Se o belo pode ser resumido metaforicamente àquilo que
agrada quando é
visto, como de fato resume Santo Tomás de Aquino, não surpreende que as
fórmulas que o
definem privilegiem a visão. É o que se evidencia nesta sentença do
próprio Santo Tomás:
"(...) chamamos belas as coisas que apresentam uma luminosidade".
Tampouco
surpreende que a falta de visão seja tida como impedimento insuperável
para o contato com
o belo. Daí a estranheza causada pela atitude do cego que desejava
comparecer ao mais
impressionante de todos os sítios arqueológicos da América do Sul : "O
que um homem
cego fará em Machupicchu?" Retorna-se ao paradoxo do início deste
capítulo, que seria
comparável à situação do homem surdo presente à realização de um
concerto: um "ouvinte"
que não ouve.
Mesmo na obra de Pierre Villey, dedicada especificamente à cegueira e
sem dúvida
esplêndida, manifesta-se o problema da imprecisão terminológica. O autor
toma a palavra
"arte" no circuito semântico exclusivo da percepção visual e da
auditiva: "A arte endereça-se aos sentidos mais elevados do homem, ao ouvido pela música, à visão
principalmente
através da pintura, da escultura e da arquitetura." Ocorre que a
literatura pode ser
transmitida ao cérebro graças à mediação do tato, em braille, sendo este
recurso comumente
empregado pelos cegos. E a passagem de Pierre Villey não considera essa
possibilidade.
Além do que, hoje em dia, a literatura tem se tornado acessível ao cego
através não apenas
do braille, mas também do "livro falado": gravações em fita magnética de
obras escritas.
O optacon, outro aparelho moderno, permite reproduzir sobre uma tela,
para o uso táctil, a
forma de caracteres manuscritos ou datilografados, a serem decifrados
por uma câmera. O
problema, quanto a essas inovações, é a fabricação e o aproveitamento em
grande escala.
Mas isso ainda está longe de ser uma realidade.
1.2 Beleza e feiúra: aproximações iniciais
Todos nós temos um certo conhecimento prévio da beleza. Tanto que,
muitas vezes, fala-se
do belo sem defini-lo. É o que acontece no Hippias Maior de Platão. O
primeiro ensaio
que, em nossa cultura, trata especificamente do belo termina por uma
aporia. À pergunta de
Sócrates sobre o que seja o belo, ele mesmo responde de forma evasiva,
dizendo que as
coisas belas são difíceis. Faltando à Estética um grau de precisão
comparável ao de uma
ciência como a Matemática, ou mesmo a Física, carece também de uma
definição precisa e
universalmente válida para o que seja a beleza. Mesmo deixando de lado fatores de ordem
subjetiva, que este ensaio não se propõe discutir, são muitas as
variáveis a considerar. O
belo para um pode não o ser para outro, como insiste Kant. Questões como
a relatividade
das preferências estéticas, as imprecisões que marcam o juízo de gosto e
outras correlatas
exigiriam uma abordagem especial, que escapa às metas aqui priorizadas.
O livro volta-se
para o aspecto objetivo da beleza, no plano genérico, em sua relação com
a arte e a cegueira
em particular. Não serão discutidas as diversas definições de beleza já
propostas no campo
da Estética. Ainda que nos restringíssemos às principais e nos
detivéssemos à cultura
ocidental, seria infrutífero colocá-las aqui: isso em nada contribuiria
para a abordagem, e
nos colocaria à margem da dispersão temática.
Resolvi adotar uma única fórmula e segui-la ao longo de toda a obra. O
belo
entende-se aqui como o resultado da unidade na diversidade, síntese que
descende da
Antiguidade e que reaparece, de forma explícita ou implícita, em
diversos autores
subseqüentes. A escolha de tal fórmula deve-se tanto à sua boa adequação
aos assuntos
priorizados na abordagem, bem como à sua eficácia e credibilidade
comprovadas. Sua
aceitação costuma estar acima das variantes subjetivas suscitadas pelo
fenômeno estético.
Há, de fato, uma propensão ao consenso universal face à necessidade de
que as coisas se
apresentem devidamente equilibradas à nossa sensibilidade. Via de regra,
preferimos uma
roupa sem manchas a outra que esteja manchada. A mancha quebra o
equilíbrio estético do
objeto; perde-se a noção de unidade. E a prova de que tal preferência
tende a ser unânime
temos na prática universal de aplicar removedores de manchas sobre
roupas manchadas.
O princípio de unidade em meio à variedade (que também pode ser
entendido como
harmonia, simetria, ordem) não é privativo da visão. O mesmo princípio
pode ser percebido
pelo cego, através do tato. As mãos percebem os contornos e texturas de
objetos
tridimensionais que tenham dimensões compatíveis com o alcance táctil: o
galho de uma
árvore pode ser acessível ao tato, permitindo ao cego usufruir de sua
eventual beleza Mas
isso dificilmente já não se dá com a árvore inteira, faltando ao cego a
possibilidade de
apreensão do todo. É a mesma situação que teríamos ao comparar uma pedra
com uma
montanha. No mundo tridimensional, comumente o que interessa
esteticamente aos olhos
não encontra correspondência no tato. A beleza de um aposento bem
mobiliado é algo que
só os olhos podem perceber com propriedade. Por mais apurado que seja o
tato, a
percepção precisa de cada móvel ou objeto isolado não confere ao homem
cego a idéia de
conjunto – e é dessa idéia que emerge a beleza do ambiente. A
experiência da unidade na
diversidade também pode ser apreendida pela audição: basta que se trate
de um discurso ou
de um composto sonoro cujas partes estejam unidas com harmonia. No caso
da literatura,
arte que mais diretamente se dirige à inteligência, são três os sentidos
passíveis percebê-la:
a audição, que é o veículo originário para este fim, uma vez que toda
literatura deriva
primeiramente da oralidade; a visão, através da escrita e da leitura
convencionais; o tato,
mediante recursos especialmente adaptados, como é o código braille.
(Considere-se,
contudo: o braille, como sistema, possui lógica própria, o que lhe
permite ser aprendido às
vezes com relativa rapidez – e isso coloca-o em situação de vantagem
face aos sistemas de
escrita fonética, que têm configuração puramente arbitrária, e que por
sua vez diferem dos
sistemas hieroglíficos e ideogramáticos, baseados que são na semelhança
visual entre o
símbolo e a coisa simbolizada.)
As coisas belas são íntegras, enfatizam a dinâmica de unificação que
mantém juntas
as partes de um composto. A beleza caracteriza-se pela boa composição.
Todas as coisas
acessíveis aos sentidos, belas ou não, são feitas de partes: compostas,
portanto. E a boa
composição é aquela em que as suas partes são arranjadas de maneira
conveniente. Compor
é pôr em conjunto (cf. lat. com-ponere), regra que se aplica a todas as
espécies de
composição, pertençam elas à natureza ou à arte: temos na natureza e na
arte as duas
instâncias fundamentais de onde derivam não apenas os seres belos, mas
também o próprio
conjunto das criaturas existentes. A beleza é uma forma de integridade
que se manifesta de
modo mais ou menos intenso nos compostos naturais e artísticos. A falta
ou mesmo o baixo
grau de integridade aponta para o que denominamos feiúra. Feio é aquilo
que se mostra
desagregado, cujas partes componentes parecem estar fora do lugar,
apresentando-se como
se pertencessem a outra coisa. E isso depende sempre da natureza
específica daquilo de que
se fala, bem como do contexto em que se encontra. A corcova recebe sinal
estético negativo
no homem, mas não no camelo. Assim como o ser corcunda torna o homem
feio, ao camelo
que faltasse uma corcova, diríamos que ele perdeu parte da sua beleza.
No ser belo, suas
partes constitutivas convivem de forma equilibrada: por isso, num caso,
a corcunda é
excesso; noutro é falta.
Nas coisas belas, as partes demonstram estar unidas por um elo
indissolúvel. Cada
uma tem a sua razão de ser. É o que confere ao conjunto o caráter de
unidade. Existindo
elas em variedade, juntas, dão a idéia de um único ser. Se isso não
ocorre, é porque as
partes aparecem desagregadas, como pertencentes a totalidades distintas.
Daí a incoerência
que caracteriza o feio: num mesmo ser, percebe-se um elemento (ou
vários) que mais
parece pertencer a outro. E isso manifesta-se, muitas vezes, através da
carência ou do
excesso. É a contrapartida lógica que se constata a partir de outra
fórmula, inferida a partir
daquela escolhida: nas coisas belas, nada se acrescenta, nada se
suprime. A beleza dos
seres aumenta ou diminui em função do maior ou menor cumprimento dessa
mesma
inferência. Quanto mais ela é seguida, mais nos aproximamos do belo; em
caso contrário,
caminhamos rumo ao feio. Se a mão amputada compromete a beleza de um
homem, é
porque, pela nossa própria natureza, esperamos encontrar esse órgão na
extremidade do
braço humano. Faltando a mão ao braço que vemos, é praticamente
inevitável que a
recriemos com a imaginação, dizendo para nós mesmos: ficaria melhor
assim. Isso porque a
mão é um órgão que pertence ao conjunto das perfeições do homem. A
ausência de mãos
não compromete a beleza do golfinho, pois a natureza não o incumbe de
possuí-las. De
igual modo, a posse de barbatanas não enriqueceriam os dotes estéticos
de um ser humano.
Em ambas as hipóteses, seu efeito estético, se realizável, seria
inevitavelmente desastroso.
Não se contraria impunemente a natureza. Se a obesidade recebe sinal
estético negativo, é
nossa natureza que causa isso. Trata-se de um excesso a ser evitado, por
prerrogativa
espontânea da nossa parte. Ao vermos uma pessoa obesa, a sua massa
corpórea excessiva
leva-nos a reduzi-la mentalmente, adaptando-a a um padrão mais
condizente com as
proporções que lhe convêm. Aliás, não se trata apenas de uma questão
estética. A
obesidade é hoje reconhecida como doença.
Eventuais aprovações estéticas dos obesos, simplesmente por serem
obesos, estão
inevitavelmente equivocadas. O mesmo se diga em relação ao extremo
oposto da
obesidade. Enquanto esta contraria a beleza através do excesso de massa
corpórea, o
raquitismo – também uma enfermidade – o faz através da carência. Um
cânone estético que
contrarie a natureza não pode estar correto. Existiu na Tunísia o
costume de as noivas
comerem quantidades enormes de arroz antes do casamento, engordando ao
ponto de não
poderem se levantar do chão por si mesmas. O equivocado desse critério
de beleza
feminina prova-se através do fato de que, se fosse aplicado em escala
universal, a
humanidade provavelmente se extinguiria.
Liga-se a essas experiências o conceito de perfeição, que, tal como o de
composição, decorre diretamente da primeira fórmula, que fala do belo
como resultante da
unidade na diversidade. Perfeita é a coisa bem acabada, feita em
completude (cf. lat. per-fectus). A beleza caminha no sentido da perfeição; a feiúra, no sentido
contrário a ela.
Ainda duas palavras. O que consideramos feio na natureza pode não sê-lo
na arte.
Faltam braços à Venus de Milo, e isso não a faz menos bela do que é. Os
olmecas faziam
estátuas representativas de homens obesos, e nem por isso elas deixam de
ser belas. Mesmo
em sua modalidade figurativa, a arte nunca pode ser entendida como mera
cópia do real; a
transfiguração da realidade natural pertence à própria essência da arte.
Além de todos esses
fatores, cabe ter em conta: um ser é tido como belo quando nos agrada,
independentemente
de qualquer interesse eventual que venha a suscitar. Em outras palavras,
ele agrada por si
mesmo. Sua beleza, se existe, há de ser uma qualidade gratuita.
1.3 Ver e conhecer
Toda pergunta parte de uma postura radical frente à realidade. O
simples ato de perguntar
nasce da capacidade especificamente humana de descobrir no real uma
fonte de
interrogações. Daí podermos definir o homem como um animal que pergunta.
A própria
definição aristotélica do homem como animal racional tem como
pressuposto a capacidade
unicamente humana de dirigir perguntas à realidade que tem ao seu redor
e em si mesmo.
Conforme já foi dito, a pergunta inicial, motivadora deste ensaio,
refere-se à
presença de um cego nas ruínas de Machupicchu. Primeiramente limitada à
esfera da
cegueira, ela nos conduz a perguntar pelo próprio homem, visto na sua
generalidade. Não
há surpresa nisso, considerando que todo questionamento sobre o real, na
medida em que
parte do ser humano e apenas dele, traz implícita uma interrogação
primeira, relativa ao que
venha a ser o homem em sua essência.
A pergunta sobre o primeiro cego remete-nos a Homero, marco inaugural da
cultura
do Ocidente. É na sua obra que encontramos as bases do nosso pensamento
estético, o que
inclui a tendência a privilegiar a visão. Esse privilégio – convém
frisar desde já – não
decorre de uma mera escolha cultural, que, por isso, poderia
simplesmente ter tomado outro
rumo. O que se tem é um imperativo originário da natureza. No caso, a
explicação vem da
constituição fisiológica do nosso aparelho visual, bem como da sua
superioridade face aos
outros sentidos que temos. Os sentidos trazem-nos as primeiras
informações sobre o mundo
circundante. Constituem a nossa abertura inicial para a realidade. Sobre
a divisão dos
sentidos exteriores em cinco, trata-se de uma particularidade
interessante, que Aristóteles
sintetiza nesta passagem:
Como os sentidos são em número ímpar e o número ímpar possui um termo
médio, o
olfato parece ocupar um lugar central entre os sentidos que têm a
propriedade de tocar o
seu objeto, i.e., o tato e o paladar, e aqueles que agem graças a um
intermediário, ou
seja, a visão e a audição.
A constatação de Aristóteles relativa ao modo através do qual os
sentidos se comunicam
com os seus objetos, mostra-se fundamental para o estudo das doenças que
atingem a
sensibilidade. Há doenças e ilusões próprias para cada sentido. As
ilusões visuais,
sobretudo quando tomam a forma de alucinações, merecem atenção médica,
tal a gravidade
dos seus efeitos. A pessoa que vê em excesso é sujeita a perigos
semelhantes aos que
afligem aquela que não pode ver. O cego arrisca-se a uma queda fatal se
não evitar o
abismo que tem à sua frente, seja através da bengala ou de qualquer
outro recurso não
visual. O vidente que, sob efeito de um alucinógeno, preenche
visualmente o abismo com
uma paisagem que não existe e lança-se no vazio, expõe-se igualmente à
morte.
Recorrendo novamente à passagem de Aristóteles, vê-se que, de fato, o
sentido táctil
e o palatal não requisitam mediadores no contato com os seus objetos,
assemelhando-se por
esse motivo. Ainda que de forma muitas vezes imperceptível para nós, o
tato imprime
modificações no objeto tocado; eis o porquê das restrições que os museus
impõem a que as
obras de arte sejam apalpadas. Já no paladar, o contato é de tal maneira
direto e intenso
que a sensação, para manifestar-se, exige a destruição do objeto que a
provoca: para saber o
sabor da maçã, é necessário que ela deixe de existir como tal. A visão,
sentido que atua a
distância, requer a presença da luz; sem ela não vemos. (É o que dá à
visão uma
peculiaridade interessante: trata-se do único sentido cujo poder de atuação varia de acordo
com o movimento do Sol. A capacidade de ver tende a aumentar quanto mais
o dia se torna
claro, diminuindo quando a situação se inverte. Já os outros sentidos
funcionam
independentemente do curso do Sol.) De modo análogo em relação ao
sentido visual, a
audição solicita o ar, já que sem ele não se ouve. No meio-termo está o
olfato: embora não
precise do toque direto para chegar aos seus objetos, capta para si
através do ar substâncias
químicas que deles emanam. Isso nos permite dizer que os objetos que
atingem o olfato
modificam-se, embora subtilmente, à medida que seu odor é percebido.
Os olhos são responsáveis por pelo menos 4/5 das informações que a nossa
sensibilidade capta do real. A superioridade visual face aos outros
sentidos também se
manifesta através do nosso mecanismo de prevenção contra agressões do
exterior. Isso se
deve principalmente ao seu longo alcance de observação, que por sua vez
compensa o fato
de os olhos, diferentemente dos ouvidos, não captarem impressões
oriundas de todas as
regiões do espaço circundante. Liga-se ainda à enorme desproporção que
há entre a
velocidade da luz e a do som, considerando serem a visão e a audição os
dois sentidos que
mais nos relacionam com a exterioridade.
Num homem com visão normal, os outros quatro sentidos, juntos,
trazem-lhe apenas
1/5 do material informativo originário do mundo que o rodeia. Cabe à
visão a tarefa de
unificar as informações sensórias trazidas pelos outros sentidos,
estruturando-as. Os olhos
são o sentido mais apto para nos revelar as diferenças entre os seres. E
o próprio ato de
conhecer é, em essência, um processo de diferenciar. Daí a visualidade
estar tão ligada à
instância cognitiva, como insiste acertadamente Aristóteles:
Todos os homens são, por natureza, vocacionados para o conhecimento.
Prova disso é o
prazer que nos causam as percepções fornecidas pelos nossos sentidos.
Agradam-nos por
si mesmas, independentemente de sua utilidade, sobretudo as [percepções]
visuais. De
fato, não apenas quando temos a intenção de agir, mas até mesmo quando
não nos
propomos nenhum objeto prático, preferimos, por assim dizer, o
conhecimento visível a
todos os demais conhecimentos que nos dão os sentidos. E o motivo é que
a visão, mais
do que os outros sentidos, nos descobre um grande número de diferenças.
Quase dois mil anos após Aristóteles ter escrito essas linhas, Descartes
manifestaria a
mesma opinião:
Toda a conduta da nossa vida depende dos nossos sentidos, dos quais a
visão é o mais
universal e o mais nobre, não havendo dúvida de que as invenções que
sirvam para
aumentar a sua potência não possam ser mais úteis do que o são. E é
difícil encontrar
algum invento que aumente mais o poder visual do que essas maravilhosas
lunetas que,
estando em uso há pouco tempo, já nos permitiram a descoberta de novos
astros no céu,
e de outros novos objetos sob a terra, em número superior ao daqueles
que víamos antes
nesses mesmos lugares. De sorte que, levando a nossa vista muito além do
que ia
habitualmente a imaginação dos nossos pais, essas lunetas parecem ter
aberto a nós o
caminho para chegarmos a um conhecimento da natureza muito maior e mais
perfeito do
que aquele que eles tiveram.
Que a visão é o sentido ao qual damos mais importância, pode-se inferir
através de um
simples autoquestionamento. Perguntemo-nos qual dos sentidos mais
desejaríamos
preservar diante da possibilidade hipotética de precisarmos abrir mão de
quatro dentre eles.
Salvo exceções que não comprometem a regra, todos nós escolheríamos
manter a visão. No
que teríamos o efeito lógico da nossa própria constituição fisiológica,
regida que é pela
maior importância da visão como órgão voltado para o conhecimento da
realidade.
Quanto mais valioso o órgão, mais problemática é a sua ausência. O drama
da
cegueira consiste fundamentalmente na incapacidade de estabelecer as
devidas diferenças
visíveis entre os seres. Para o cego, o mundo visível tende a
igualar-se: via de regra, é o
mesmo estar diante de um quadro de Botticelli ou de uma tela em branco.
Nem sempre a
capacidade de diferenciar da visão predomina sobre a dos outros
sentidos. Tratando-se dos
olhos, isso depende das relações de semelhança entre o objeto visto e a
realidade espacial
que o circunda. Para um homem com os cinco sentidos em condição normal,
o tato tende a
ser mais útil para encontrar um lápis verde sobre um tapete que tenha
exatamente a mesma
coloração. Nesse caso, ele se encontra em situação próxima à do cego,
porque a cegueira,
como se viu há pouco, impede que se notem as diferenças entre os seres
no que se refere à
sua cor e à sua forma – desde que esta não esteja ao alcance do tato. As
mãos podem tocar
um chapéu e perceber-lhe convenientemente as formas no seu detalhamento
e na sua
composição integral. Mas isso já não ocorre quando se trata de uma
montanha ou de
estruturas tridimensionais muito pequenas e complexas nos detalhes, como
são certas
gravuras de Dürer. Isso sem falar em objetos que podem ser vistos, mas
que estão
absolutamente fora do alcance das mãos humanas: a Lua, por exemplo. Por
depender do
contato direto, a percepção táctil também se torna inviável diante de
certas realidades que
ameaçam a nossa sobrevivência ou o bem-estar físico. É o que impede o
cego de conhecer
os movimentos das labaredas de uma fogueira. Não obstante, os olhos a
vêem sem risco
para o nosso corpo.
Na cultura ocidental, o parentesco teórico entre a visão e o
conhecimento descende
da Grécia antiga. Homero desenvolve nove modalidades distintas do verbo
ver, diretamente
aparentadas com o verbo conhecer. Justamente ele, que, segundo a
tradição, era cego.
Lemos em Cícero:
Diz a tradição que Homero era cego; contudo, sua obra mais se assemelha
à pintura do
que à poesia. Que região, que praia, que local da Grécia, que tipo de
batalha, que
exército, que armada, que mobilização de homens, que aspecto e variedade
de animais
não nos pinta, levando-nos a ver o que ele mesmo não viu?
Muitas vezes, essa tradição é aceita sem reservas. Assim ocorre na obra
de María de
los Ángeles Soler, que considera Homero "o mais ilustre de todos os
cegos". Aliás, o
próprio nome "Homero" pode ter se originado de hó maurós, que quer dizer
"o cego".
Ainda que tal etimologia não seja completamente confiável, evoca uma
realidade
expressiva. Sobretudo se relacionarmos esse sentido com outro, em que hómeros designa
aquele que acompanha, que é forçado a seguir, e tivermos em conta que o
cego segue seu
guia. Revela-se aí uma outra possibilidade, ainda mais plausível que a
anterior. "Homero"
não viria de "o cego"; seria o contrário: o nome do poeta, através de
antonomásia, é que
teria causado o uso da expressão hómeros (sempre nascida de hó maurós)
no sentido de "o
cego". Seja como for, sabe-se que nas mais diversas épocas houve cegos
que se
destacaram no âmbito social. Assim, na Espanha medieval, encontramos
Jehuda Halevi,
considerado o príncipe dos poetas judeus espanhóis. Já na Era Moderna,
viveu Kepler, que,
além de ser quase cego, não podia utilizar as mãos – obstáculos que não
o impediram de ser
um dos maiores astrônomos de todos os tempos. Segue-se o matemático
Saundersen, fonte
de inspiração para Diderot escrever a importantíssima
Lettre sur les
aveugles. Pode-se
acrescentar músicos como Landino, Antonio de Cabezón, Fuenllana,
Elizabeth Valdrich,
Maria Teresa von Paradis; cientistas como Lamarck e assim por diante.
Isso sem falar em
Louis Braille, discípulo de
Valentin Haüy, que, inspirando-se na
invenção do mestre, criou
o sistema hoje mundialmente reconhecido como o melhor para dar ao cego
acesso à leitura.
As biografias de todos os cegos brilhantes da história esperam por um
Vasari que as reúna e
comente: falta em nossa cultura um livro dedicado à história da
cegueira.
Voltemos à Antiguidade. É de notar que, séculos depois da morte de
Homero, o
latino Ênio, julgando-se reencarnação do poeta grego, afirmasse que seu
antecessor teria
anteriormente assumido a forma de pavão real. Talvez fosse uma tentativa
de compensação
relativa à suposta cegueira de Homero, já que as formas coloridas na
cauda do pavão fazem
com que ela se assemelhe a uma constelação formada por olhos. A
circunstância torna-se
ainda mais surpreendente se levarmos em conta que o belo, em Homero,
circunscreve-se
substancialmente ao plano visível. Falta na sua poesia o adjetivo
kallíphonos ("que tem
uma bela voz"), referente à beleza invisível, manifesta através da
sonoridade. O belo
auditivo é assunto que caberia a Platão desenvolver. Muito embora, já em
Hesíodo, apareça
uma distinção clara entre a forma musical e o mundo visível. Seja como
for, Platão é o
primeiro a tratar filosoficamente do assunto. Sedimenta-se a partir do
filósofo ateniense a
tese de que o contato com a beleza nos vem unicamente através dos olhos
e dos ouvidos.
E Aristóteles confirma.
Conforme veremos posteriormente, essa tese apóia-se em argumentos
fortes. Não é
mera arbitrariedade ter a visão e a audição como os sentidos mais aptos
a nos transmitir o
belo. É, isto sim, uma decorrência da nossa natureza fisiológica. E que
se traduz através da
maior capacidade de diferenciar que têm esses órgãos sensoriais. No que
se refere ao poder
perceptivo das diferenças, os olhos são imediatamente seguidos pelos
ouvidos. Para o cego,
75% das impressões sensórias são transmitidas ao cérebro por via
auditiva. E isso é
muitíssimo significativo, sobretudo se levarmos em conta que, para o
vidente, no mínimo
80% desse mesmo potencial sensório são percebidos e endereçados ao
cérebro através dos
olhos. São estatísticas que corroboram o papel dos olhos e dos ouvidos
como sentidos
nobres. Ajudam também a justificar que as artes se dividam em visuais e
auditivas – e que
não exista uma arte especificamente voltada para o tato, o que
favoreceria o não-vidente.
As impressões estéticas que chegam ao tato são sempre pobres se
comparadas com aquelas
que nos fornecem as cores e os sons. Ainda como efeito espontâneo dessa
superioridade
dos olhos e dos ouvidos, tem-se que as deficiências mais nitidamente
impeditivas no campo
da Estética são a cegueira e a surdez.
Como afirmavam os escolásticos, amparando-se em Aristóteles, "nada
existe no
intelecto sem que tenha estado antes nos sentidos". É fato que o
conhecimento vem a nós
através dos sentidos. Mas não se detém neles. O material percebido é
enviado ao cérebro,
onde se dá a sua elaboração intelectual. É altamente representativo que
o cérebro humano,
dentre todos os sistemas conhecidos no Universo, seja o mais complexo.
Nem por isso a
apreensão da beleza pode ser tida como fenômeno puramente intelectual, o
que seria tão
equivocado quanto dizer que ela pertence apenas à órbita sensível. É a
partir desse contexto
que se deve entender a passagem de Plotino em que, após reafirmar (em
consonância com
Platão, Aristóteles, Possidônio, Plutarco e a tradição antiga em geral)
o privilégio da visão e
da audição como sentidos especificamente destinados a perceber a beleza,
o filósofo
egípcio acrescenta que eles, por si mesmos, não podem explicá-la.
2.1 Definição e ocorrência da cegueira
As restrições sensórias impostas pela deficiência visual dependem do
modo como que esta
se manifesta. Em geral, as impressões visuais registram-se na memória
apenas a partir dos
seis anos de idade, aproximadamente; se uma pessoa torna-se cega antes
dessa faixa etária,
na prática, é como se tivesse nascido sem ver.
Costuma-se definir tecnicamente a cegueira a partir de dois parâmetros.
Um deles é
a acuidade visual, que diz respeito à distância através da qual um
objeto pode ser visto: na
escala de Snellen, a fração 60/60 corresponde à visão normal
propriamente dita. O outro
parâmetro é o campo visual, relacionado com a amplitude angular em que
os objetos são
enquadrados para que possam ser vistos. As possibilidades são quatro: 60
graus para a
visão superior; 76 graus para a inferior; 100 graus para a horizontal na
altura das têmporas;
60 graus na região do nariz. Sendo essas as condições preliminares, a
cegueira define-se
como a deficiência visual em nível máximo: é o estado de amaurose, em
que a visão
absolutamente não ocorre, ou então acha-se reduzida quanto à acuidade
visual central a um
patamar igual ou inferior a 6/60 na escala Snellen; em situação de
cegueira, o campo visual
não excede a 20 graus, sempre tomando como parâmetro o melhor olho,
tendo sido
realizada correção ótica.
A visão subnormal dá-se quando a acuidade visual central se reduz à
faixa
intermediada pelas frações 6/20 e 6/60, na escala Snellen, feita
correção máxima no melhor
olho. O campo visual é também bastante reduzido, geralmente em nível
próximo ao que
caracteriza a cegueira. Em casos assim, a pessoa pode ler impressos em
tinta, desde que as
letras sejam suficientemente grandes e que ela use lentes especiais.
É comum que os estabelecimentos educacionais para os cegos também
atendam às
pessoas que têm visão subnormal. Não obstante, na prática quotidiana, a
cegueira pode
diferir bastante da visão subnormal, haja vista a flexibilidade que essa
noção comporta.
Aliás a própria definição da cegueira é, por natureza "evasiva e
complexa", como esclarece
René Gouarné, cego e atual presidente da GIAA (Groupement des
Intelectuels Aveugles ou
Amblyopes), na França. De fato,
É da função visual que se deve partir. A cegueira, com efeito, não é
apenas a ausência de
toda função visual. Ela é a alteração grave ou total de uma das funções
elementares que
constituem a função visual, de uma delas ou de várias ao mesmo tempo, a
saber, por
exemplo, a capacidade de apreciar a cor, a distância, a forma ou o
movimento, e isso
num campo mais ou menos estendido. Assim, aquele que não distingue o
verde do
vermelho não pode conduzir um automóvel, impedido que está de observar a
sinalização
das ruas, o que já constitui uma deficiência visual grave.
Os homens são sujeitos a impedimentos que lhes alteram o físico e a
mente, não
importando os lugares, as épocas, a faixa etária, a posição social ou o
nível econômico. A
deficiência não faz necessariamente distinções dessa ordem. Perguntar
pela situação
específica da cegueira evoca uma realidade atinente a todos os homens.
Realmente, a deficiência não apresenta relação obrigatória com nenhum
desses
referenciais. Porém, tais relações muitas vezes existem. O isolamento
geográfico, aliado a
fenômenos de natureza genética, favoreceu a propagação do daltonismo
entre a população
das ilhas Pingelap e Pohnpei, na Micronésia. Um exemplo paralelo tem-se
em Cruz,
povoado do Nordeste brasileiro onde a prática reiterada de casamentos
consangüíneos
contribuiu para a disseminação de problemas auditivos entre a população.
A ignorância e a
falta de recursos financeiros são fatores que, quase invariavelmente,
favorecem a
ocorrência e a propagação de fatalidades que afligem o homem. No fim dos
anos 60,
estimativas divulgadas pela ONU afirmavam que, em certos países do
Terceiro Mundo, "o
percentual da população que sofria deficiências era muito elevado e, na
maioria das vezes,
tratava-se de pessoas sumamente pobres".
Em escala mundial, o crescimento demográfico é fator que alia-se à
pobreza e à
precariedade das condições de vida. Três quartas partes da população da
Terra concentram-se nos continentes onde há maior incidência de problemas
sócio-econômicos: a Ásia, a
América Latina e a África. No que tange à deficiência em geral e à
cegueira em particular,
tampouco causa surpresa que sejam justamente em países pertencentes a
esses três
continentes que encontramos os índices mais altos de pessoas atingidas.
E, no mais das
vezes, por motivos que poderiam ser neutralizados.
O tracoma, ou conjuntivite granulosa, espalha-se por contágio na África
e no
Oriente Médio, vindo muitíssimas vezes a se transformar em cegueira.
Além do tracoma, a
conjuntivite, algumas doenças venéreas, o sarampo e a lepra podem
concorrer para a
instauração de deficiências oculares graves e irreversíveis. Outras
vezes, os condicionantes
estão na deficiência alimentar, sendo a desnutrição um fator crítico.
Doença ocular
caracterizada pela falta de vitamina A, a xeroftalmia (em sua forma
avançada, a
queratomalacia) torna-se causa direta da cegueira em certas áreas
densamente povoadas da
Ásia, da América Latina e da África. No início da década de 70, quando
Dacca, a capital de
Bangladesh, abrigava meio milhão de habitantes, 259 crianças cegaram na
cidade, por
haverem contraído queratomalacia. E isso num único ano. Na mesma época,
a xeroftalmia
era uma das doenças mais comuns entre as crianças da Indonésia; em 8%
dos casos,
transformou-se em queratomalacia, causando cegueira.
O fator geográfico também pode exercer papel decisivo, mercê da
localização
específica de insetos transmissores de doenças causadoras da cegueira. É
o caso do
mosquito Similium damnosum, que tem seu habitat na África, havendo ainda
outras
espécies do mesmo inseto na América Central e do Sul. Sua picada
transmite o verme
Onchocerca volvulus, causador da lesão ocular conhecida como oncocercose
e que tende a
se traduzir patologicamente como cegueira. Em grande parte da África a oncocercose chega
a ser endêmica.
Outro problema é a falta de médicos. Em cada país, a incidência da
cegueira
causada por glaucoma e catarata é inversamente proporcional ao número de
oftalmologistas
em condições de combater esses males. Ainda no início da década de 70,
havia nos EUA
um oftalmologista para cada grupo de 30 mil pessoas; já na Nigéria do
Norte, na mesma
época, quatro oftalmologistas atendiam a população inteira do país, que
era de 30 milhões
de pessoas. Disso pode-se inferir que, assim como a pobreza concorre
para a difusão da
cegueira, a riqueza favorece a sua prevenção e até mesmo a cura. Não
surpreende que a
demografia do Afeganistão apresente um percentual enorme de cegos e a da
Alemanha, um
mínimo. Entretanto, por paradoxal que venha a parecer, o fator econômico
pode
indiretamente ocasionar a cegueira. É nos países mais desenvolvidos que
encontramos um
maior progresso tecnológico, responsável, por exemplo, pela invenção das
incubadoras, que
permitem salvar a vida de bebês prematuros. Mas a que preço! No interior
das incubadoras,
o excesso de oxigênio tende a comprometer de forma irremediável o
desenvolvimento da
retina, causando assim a cegueira. Entre 1940 e 1954, foram milhares os
bebês prematuros
que saíram cegos das incubadoras. Embora a causa tenha sido descoberta
em 1954, o
problema ainda não tem solução satisfatória: existe o risco de cegar nas incubadeiras. Por
serem elas um invento muitas vezes raro ou inexistente em países pobres,
dado que sua
aquisição e uso exigem um alto custo financeiro, é nos países ricos que
esse agente
causador da cegueira se manifesta com mais freqüência.
Para a pessoa que vê, normalmente a cegueira é entendida a partir de
duas
possibilidades mutuamente excludentes: ver ou não ver. Sob o ponto de
vista cultural, a
compreensão da cegueira liga-se a fatores diversos, muitos deles
geradores do estigma da
exclusão vivenciado pelo cego. Uma análise etimológica mostra-se
esclarecedora. As
vantagens desse procedimento apóiam-se no fato de ser a língua o único
sistema de códigos
que tem a propriedade de atuar como intérprete para outros sistemas
codificados, como
perceberam Saussure e Benveniste. Partindo da etimologia, percebe-se
que, na cultura
ocidental, o conceito de "cegueira" desdobra-se em quatro vertentes
semânticas principais.
Falemos de cada uma delas. Antes, porém, convém lembrar a inevitável
inadequação entre
as palavras e as coisas que elas significam. A compreensão da origem das
palavras ajuda-nos a compreender-lhes o significado. Mas sempre devem ser tidos em
conta os limites
inerentes à linguagem, bem como o enorme abismo que existe entre o
abstrato da fala e o
concreto do real. Tenhamos em mente o conteúdo destas linhas de Borges:
"(...) exigiam-lhe maravilhas e a maravilha é incomunicável: a Lua de Bengala não é
igual à Lua do
Yemen, porém se deixa descrever com as mesmas palavras".
2.1.1 Cegueira e "escuridão"
Encontramos no século XIII, na obra do francês Gautier de Coincy, a
palavra cécité
(cegueira), empregada em vínculo estreito com os conceitos de "negro",
"sombra", "noite",
"sombrio" e "trevas". É a mesma acepção da palavra que, na Era Moderna,
seria utilizada
por Montaigne. Sua origem está no termo latino caecitas, que por sua vez
parece descender
do indo-europeu *ska-i-ko : escuro, escurecido, o que não tem luz.
Segundo o lingüista
Aloïs Vanicek, a raiz indo-européia *ska, designativa das noções de
"cobrir" e "esconder",
explicaria os termos gregos skia (sombra) e skitos (obscuridade). Na
mesma linha de
abordagem, Juret relaciona a palavra latina caecus (cego) com a raiz *sk,
sinal fonético que
indica as idéias de "sombra", "noite", "negro" e "cego". Na mesma raiz
estariam
igualmente a origem do termo sânscrito aktu-la ("obscuridade", "noite"),
a do grego
kneiphas ("crepúsculo"), a do latino crepusculum ("crepúsculo") e a do
inglês gloom
("obscuridade).
Como percebe F. Kluge, os diversos termos empregados nas línguas
indo-européias
para a designação de uma mesma doença, como é o caso da cegueira,
geralmente têm sua
origem em raízes distintas. Note-se que o termo gótico haihs, da mesma
raiz que o latino
caecus, passou a designar o zarolho, ou seja, aquele que enxerga com
apenas um olho. A
antiga acepção de haihs, designativa do homem cego propriamente dito,
foi assumida por
blinds. O elo semântico entre o "zarolho" e o "cego" perdura ainda hoje
na cultura
ocidental: "Em terra de cegos quem tem um olho é rei", diz o provérbio
popular. No francês
a correspondência é total: Au royaume des aveugles les borgnes
[zarolhos] sont rois.
O vínculo entre a cegueira e a escuridão apóia-se na relação essencial
que se dá
entre a luz e a visualidade. É ela, inclusive, que serve de prerrogativa
para algumas
definições dadas à cegueira, como esta de Santo Isidoro de Sevilha: Caecus appellatus,
quod careat visum. Est enim luminibus amissis. Aproveitando o vastíssimo
caudal
semântico dos termos empregados, Santo Isidoro deu a "luzes" o sentido
figurado de
"olhos". Séculos antes de Isidoro, Tertuliano associava metaforicamente
as trevas à
cegueira, à dispersão e ao erro. No século XI, Papias, no seu
Vocabularium latinum, usa
praticamente as mesmas palavras do autor visigótico: Caecus dictus: quod
careat visu.
A ligação entre a cegueira e a escuridão ocorre fundamentalmente nos
planos
figurativo e simbólico. A cegueira não se caracteriza, necessariamente,
pelo enegrecimento
da visão. O que exatamente é dado ao cego perceber com os olhos? Varia
de um indivíduo
para outro. Há circunstâncias em que o não-vidente pode diferenciar
certos graus de
luminosidade, discernindo entre a noite e o dia, e conhecendo um pouco
algumas cores –
desde que não haja ruptura do nervo ótico, pois é dele que depende a
percepção luminosa.
Acontece isso em certos casos de catarata, sempre conforme o nível de
comprometimento
do globo ocular. Pode-se até falar da possibilidade de que alguns cegos
desfrutem, ainda
que minimamente, da beleza das cores de uma pintura, sobretudo se esta
apresentar
contrastes fortes. Evidentemente, como se vem de apontar, tal
experiência submete-se a
grandes limitações. E trata-se de uma situação excepcional. Em termos
genéricos, portanto,
é correto afirmar a inviabilidade da arte pictórica para o cego. É claro
que a situação seria
outra se a percepção colorística fosse acessível através do tato. Mas
isso não ocorre; as
cores destinam-se apenas aos olhos, sendo por isso intraduzíveis ao tato.
Da mesma forma
como certos sentimentos que se manifestam na fala (e.g., alegria,
tristeza, ansiedade, ironia)
muitas vezes são perceptíveis apenas pelos ouvidos. Geralmente a
linguagem escrita é
incapaz de captá-los e, por esse mesmo motivo, de transmiti-los aos
olhos através da
leitura.
Vale a pena frisar que, nesse contexto apresentado há pouco, referente à
pintura,
refiro-me especificamente ao cego. Não à pessoa de visão subnormal, que
pode, graças ao
uso de lentes possantes e estando a uma proximidade adequada, perceber
com razoável
nitidez tanto as cores quanto as formas e os contornos presentes numa
pintura.
2.1.2 Cegueira e "confusão"
É principalmente nas línguas anglo-germâncias que encontramos o
parentesco semântico
entre o conceito de cegueira e as idéias de "confusão", "mistura" e
"perturbação". Em
inglês, a palavra blind (cego), além de referir-se ao que é "escuro" (dark),
inclui a acepção
indicativa daquilo que é "confuso". A origem indo-européia, de acordo
com os autores do
Oxford Dictionary of English Etymology, é *bhlendlos. Kluge, da sua
parte, prefere
relacionar blind com a raiz pré-germânica *bhlandh, que pode ser
traduzida por "confuso",
"misturado" ou "perturbado". Nela teriam origem o verbo alemão blenden
("cegar",
"ofuscar") e o substantivo Blendling ("bastardo", "mestiço"). A carga
pejorativa é
evidente; fala por si mesma, portanto. Mas não se pode esquecer a
dualidade contida no
verbo blenden: além das significações apontadas, também se traduz por
"deslumbrar"; e o
adjetivo blendend indica aquilo que é "brilhante", "deslumbrante"
- nestes casos, como
também se evidencia, a carga semântica é toda ela positiva.
Ainda de acordo com F. Kluge, a mesma raiz pré-germânica *bhlandh
explicaria o
verbo anglo-saxônico blendan, ancestral do verbo inglês to blind
("cegar") e do adjetivo
blind ("cego"); explicaria também, no inglês moderno, o verbo to blend,
que significa
"misturar" ou "confundir". A mesma análise de Kluge leva-o a ver no
causativo germânico
primitivo *bhandjan, do qual derivaria o verbo alemão blenden, uma
ligação com as
palavras lituanas blandyti ("abaixar os olhos"), [blendzu-s, blesti]
("obscurecer-se", "privar-se de luz") e blisti ("assombrar-se", "tornar-se sombrio"). Essa última
interpretação, vê-se
nitidamente, faz-nos retornar à cegueira entendida como "escuridão".
2.1.3 Cegueira e "oclusão"
A cegueira também pode ser entendida em afinidade com as noções de
"encobrir",
"esconder", "fechar" e "ocultar". É a relação que prevalece nas línguas
eslavas. No termo
eslavo slêpù (cego) temos a origem da palavra que assume esse
significado em russo,
tcheco, búlgaro e assim por diante. De acordo com Franz Miklosich, slêpù
liga-se aos
vocábulos lituanos slépti (esconder) e slapus (secreto), bem como aos
letônios slêpt e
slepêt, que significam "manter escondido, dissimular". Em algumas
línguas eslavas, a
mesma raiz dá origem à palavra designativa de "galinha" - que, em tcheco,
por exemplo,
diz-se slepice, slipka. Ao que tudo indica, essa relação decorre da
possibilidade que tem
esse animal de utilizar a membrana nictitante (ou seja, a terceira
pálpebra) como se fosse
um véu, cobrindo assim os olhos. Mladenov argumenta que o verbo búlgaro
zalopiti
(fechar) e o grego kléptein (roubar) descendem ambos da raiz *slep.
Porém, tal
argumentação carece de fundamentação concreta.
O mesmo tipo de afinidade semântica pode ser verificado na relação entre
a visão e
a verdade, que tem por conseqüência paralela o vínculo entre a cegueira
e a ocultação.
Nota-se isso em Merleau-Ponty, ao frisar que ver é "(...) aprofundar-se
nas coisas sem
esperar delas nada além da verdade". E também em Heidegger, ao insistir
no resgate do
sentido grego da palavra "verdade", entendida como "não-ocultação". Já
na Antiguidade,
aliás, Platão considerava igualmente difícil "implantar a verdade na
alma de um homem" e
"dar a visão a quem nasceu cego".
2.1.4 Cegueira e "fumaça"
A língua grega relaciona a cegueira com a fumaça. "Cego" em grego é
tyflós, derivado do
verbo tyflomai, que indica um lugar enfumaçado ou obscurecido. Daí vêm
os termos
"tiflologia" ("tratado de instrução dos cegos") e "tiflografia" ("arte
de escrever em relevo
para uso dos cegos"). A origem desse potencial semântico está na raiz indo-européia
*dhub, indicativa da noção de "fumaça", e também, no sentido figurado,
de obscuridade
espiritual. Assim se compreende por que, durante a Patrística, o termo
grego tyfos, da
mesma família que tyflós, significava "vaidade humana" e "presunção".
Também é
importante notar que tyflós, no próprio sentido literal de "cego",
filia-se (através do sufixo –lós) a outras palavras gregas que designam enfermidades: siflós é o
louco; phaulós é o
gago; cholós é o manco. Vê-se, ademais, que as mesmas fontes
indo-européias que dão
origem ao grego tyflós, uma vez desdobradas, produziram no sânscrito a
palavra dhupa
(fumaça) e no alemão arcaico o termo toub, que serve para indicar tanto
o "surdo" quanto o
"estúpido" .
É expressivo que se atribua uma origem etimológica comum para o grego
tyflós, o
alemão dauf e o inglês deaf ("surdo"), o inglês dumb ("mudo",
"estúpido") e o alemão
dumpf ("mudo", "estúpido"). Sobre isso, eis o que diz Pierre Henri:
Parece que tudo se passou como se, havendo considerado as enfermidades
sensoriais
obscuredoras da inteligência, perturbadoras do espírito, falseadoras da
realidade externa,
o homem fosse levado a confundi-las e a designá-las por palavras que
traduzem fatos
materiais: fechado, obscuro, perturbado.
Essa observação é de suma importância. Além de resumir o conteúdo e as
conseqüências
das três vertentes interpretativas abordadas nos itens anteriores,
aponta para uma relação
essencial: assim como a visão é propensa a representar a sensibilidade
como um todo, sua
ausência tende a ser encarada como uma perda integral do poder sensório.
A existência de
uma mesma raiz etimológica para os conceitos de "cego" e "surdo" liga-se
diretamente à
supremacia fisiológica exercida pelos olhos e os ouvidos. Partilhando do
privilégio de
serem os sentidos superiores, a visão e a audição tornam-se
espontaneamente os veículos
sensórios mais preciosos para o homem. Daí a sua perda ser tão difícil
de suportar, o que
por sua vez justifica haver um parentesco etimológico tão próximo entre
os conceitos de
"cegueira" e "surdez". Por outro lado, embora a cegueira seja uma
deficiência mais
limitante do que a surdez, geralmente o surdo aparta-se mais do convívio
social que o cego.
Porque a surdez tende a vir acompanhada do mutismo. Impedido de falar, o
homem priva-se de uma faculdade nuclear para a vida em sociedade, que é justamente a
linguagem oral.
A definição aristotélica do homem como animal que fala complementa-se
através de
outra, também de Aristóteles, que vê nele um animal social. Desde a
Antiguidade, a
cultura ocidental tem definido com recorrência o homem através da fala.
É seguindo as
mesmas diretrizes de Aristóteles que, no século XX, Noam Chomsky vê na
linguagem um
traço exclusivo do homem, "sem um correspondente significativo no mundo
animal".
Não deixa de ser pararadoxal: o homem é definível através da fala, mas
não da visão – não
existe definição do homem como um "animal que vê"; em contrapartida, é
possível que
haver uma sociedade composta somente por surdos-mudos, mas não por
cegos.
Confirmando o que facilmente se infere, o vínculo estreito entre não ver
e não ouvir
ocorre noutros contextos culturais além do ocidental. Assim, por
exemplo, lemos no Antigo
Testamento um canto de triunfo em que a exploração de metáforas
relativas à cegueira e à
surdez mistura-se a uma crítica à idolatria escultórica:
Eu sou o Senhor, que te chamou em justiça, e te tomei pela mão e te
conservei. E te pus
para ser a reconciliação do povo, para luz das gentes: para abrires os
olhos dos cegos, e
para tirares da cadeia o preso, do cárcere os que estavam sentados nas
trevas. (...)
E encaminharei os cegos para a estrada, que não sabem, e fá-los-ei andar
por
veredas, que sempre ignoraram: mudarei as trevas diante deles em luz, e
os caminhos
torcidos em direitos. Essas maravilhas fiz a favor deles, e não os
desampararei.
Voltaram para trás: confundidos sejam com extraordinária confusão os que
põem a
sua confiança em imagens de escultura, os que dizem às estátuas de
fundição: vós sois os
nossos deuses.
Surdos, ouvi, e vós cegos, abri os olhos para ver. Quem é o cego, senão
o meu
servo? E o surdo, senão aquele a quem eu enviei os meus profetas? Quem é
o cego,
senão o que foi vendido? E quem é o surdo, senão o servo do Senhor? Tu
que vês tantas
coisas, não as observarás? Tu que tens os ouvidos abertos, não ouvirás?
2.2 Entre a luz e as trevas
Os comentários às quatro vertentes etimológicas predominantes na
cultura ocidental
mostram com evidência a forte dimensão pejorativa que se concentra no
conceito de
cegueira. As relações exploradas não esgotam o tema; antes apontam para
a quantidade
enorme de questões suscitáveis a respeito. Mas neste momento, importa
sobretudo
relembrar que todas essas relações nascidas das quatro vias etimológicas
aproximam-se e
até coincidem nalguns pontos. Assim, em todas as vertentes é implícita a
filiação da
visualidade à luz, que tem como contrapartida a da cegueira às trevas.
Milton compara a verdade ao Sol e o erro às nuvens que tentam
encobri-la: as the
sun, who often shows himself to human eyes obscured and darkened by
clouds. Já nos
primeiros versos de Paraíso perdido, vê-se a oposição entre a luz e a
escuridão: What in me
is dark illumine, what is low raise and support". Nos últimos versos de Lycidas, Milton
recorre ao topos tradicional que faz coincidir o arremate do poema com o
pôr-do-sol,
dando-lhe assim o caráter de conversa ao ar livre: And now the Sun had
strech'd out all the
hills, and now was dropt into the Western Bay.
Sob o ponto de vista da plástica, o preto e o branco representam os dois
extremos da
gama colorística. Fisicamente falando, a realidade é outra: o branco
consiste na união de
todas as cores, ao passo que o negro constitui-se a partir da ausência
de cor. Isso explica,
em parte, a carga semântica positiva que se concentra metaforicamente no
conceito de
"branco", assim como as metáforas negativas que se relacionam com a
noção de "negro".
Nos mitos antigos do Oriente Médio, existia a associação semântica entre
a cor negra e o
demoníaco, o fúnebre, o misterioso. A deusa Ishtar dos mesopotâmios, a
Astaroth dos
fenícios e a Afrodite dos gregos descendem todas elas, quanto aos nomes,
da mesma raiz
etimológica. São deusas que habitam a noite, pois personificam a Lua, e
que possuem
poderes maléficos. Foi baseando-se em associações desse tipo que a
ideologia escravista da
Era Moderna procurou justificar a utilização do negro africano como
escravo nas terras do
Novo Mundo. Opondo-se a ela e defendendo o estatuto de humanidade dos
africanos,
Vieira , escreveu palavras como estas: "Estes homens não são filhos do
mesmo Adão e da
mesma Eva? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram
o mesmo
ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol?".
Não chega a ser universal esse fenômeno que associa o negro ao mal e o
branco ao
bem. Marco Polo refere-se a uma população na Índia que pintava seus
demônios de branco
e os seus santos de negro. Mas o que se tem é uma situação atípica, que
por isso mesmo
não altera a tendência predominante, que, como se acabe de ver, segue
rumo contrário a ela.
A palavra frâncica blanc ("branco"), originária do germânico blank,
substitui o antigo
adjetivo latino albus. No latim, albus atua freqüentemente como sinônimo
de candidus,
sendo ater e niger seus respectivos antônimos. Naqueles, a cor clara
aponta para valores
morais positivos, como a pureza; nestes, a escuridão indica
metaforicamente a morte e a
infelicidade. Já a cegueira associa-se à cor negra, evocativa das trevas
causadas pela
ausência de visão: uma situação que se acha curiosamente invertida no
romance Ensaio
sobre a cegueira, em que José Saramago fala de uma cegueira "branca":
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo
mesmo, na
adolescência, ao jogo do "E se eu fosse cego", e chegara à conclusão, ao
cabo de cinco
minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma
terrível
desgraça, poderia, ainda assim, ser relativamente suportável se a vítima
de tal
infelicidade tivesse conservado uma lembrança suficiente, não só das
cores, mas também
das formas e dos planos, das superfícies e dos contornos, supondo, claro
está, que a dita
cegueira não fosse de nascença. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a
escuridão em
que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz,
que o que
chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos
seres e das coisas,
deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário,
ei-lo que se
encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que
devorava, mais do
que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres,
tornando-os, por essa
maneira, duplamente invisíveis.
Evidentemente, o paradoxo exposto por Saramago é intencional. Não
podemos esquecer
que se trata de um discurso literário, onde a fabulação é não só um
direito, mas quase um
dever do autor.
Mais uma vez no plano da metáfora, nota-se uma ligação muito próxima
entre a
claridade e a inteligência, assim como entre a escuridão e a estupidez.
Mente luminosa é
a que apreende as coisas com facilidade. Dizemos que um homem é lúcido
quando ele
demonstra pensar com exatidão. Esse sentido metafórico já se acha
contido na palavra
latina lux e nos seus correlatos. Que manifestam uma conotação
intelectual que tende a
se aproximar do contexto estético: em Ovídio, a expressão lucida puella
indica a beleza de
uma jovem. Temos no léxico português a palavra "amaurose", indicativa da
deficiência
visual e também da cegueira. Seu ancestral etimológico encontra-se no
grego: amáurosis
designa originariamente os problemas de ordem estritamente visual, como
ocorre em
Hipócrates; por analogia e metáfora, o conceito é empregado por
Aristóteles no sentido de
obscurecimento da inteligência; Plutarco, por sua vez, fala em amáurosis
simplesmente
como ação causadora do escurecimento. Na Bíblia, é freqüentíssimo o uso
metafórico da
luz no sentido do bem e, em oposição, o da escuridão no sentido do mal.
No Evangelho de
São João, por exemplo, lemos:
(...) a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz,
porque suas ações
eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para
que as suas
ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se
da luz,
para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus.
Uma inferência nuclear para a Estética nasce dessa dicotomia entre a
claridade e a
escuridão. Ora, a luz é condição física basilar para que se dê o
fenômeno da visão. Daí a
recorrência com que a luz é tida como elemento central para a
manifestação da beleza.
Lemos em Santo Tomás de Aquino: "(...) chamamos belas as coisas que
apresentam uma
certa luminosidade". Trata-se ao mesmo tempo de uma decorrência natural
da nossa
sensibilidade. De todos os nossos sentidos, os olhos são os mais aptos a
absorverem a
beleza. Eis porque a luz, fator que possibilita a visão, atua muitas
vezes como elemento-chave para as teorias estéticas. Um exemplo explícito disso encontramos
na obra de
Marcílio Ficino, mais especificamente nesta passagem em que concede
estética aos olhos
em relação aos ouvidos: "(...) os olhos adaptam-se mais à beleza que os
ouvidos, pois a
visão e a luz assemelham-se mais à inteligência que a audição e o som".
O fato de estar excluído do mundo visual não impede ao cego que fale da
luz de
modo metafórico. Para
Helen Keller, "A estrela do pensamento brilha na
escuridão; a
imaginação tem um olho luminoso, e a mente, uma visão gloriosa". Essa
oposição entre
luz e trevas comparece inclusive nos nomes de instituições importantes e
destinadas aos
cegos: na França, a Lux in Tenebris; na Inglaterra, a Ex Tenebris Lux.
2.3 Cegueira e sociedade
Os significados vistos há pouco nos desdobramentos etimológicos
relativos à cegueira não
se restringem à cultura ocidental. As afinidades entre significados e
tendências metafóricas
costumam ser fundamentalmente as mesmas em outras culturas que não a
nossa. As
definições dadas à cegueira precisam expressá-la de forma negativa. É
natural que seja
assim: sendo a cegueira a ausência de uma qualidade, é desta que se deve
partir para a
compreensão daquela. Antes de atender às necessidades semânticas
atinentes à cegueira, a
língua volta-se para a evocação da visualidade.
De todas as criaturas, o homem é, de certo modo, a menos preparada para
a
sobrevivência. É a única cujos conhecimentos principais dependem
fundamentalmente do
aprendizado e não da carga genética. Nesse processo de aprender, o
sentido visual
desempenha papel central. É o mais útil para a importantíssima prática
da imitação,
responsável direta pela aquisição do nosso acervo cognitivo durante os
primeiros anos de
vida. "Falta à criança cega o instrumento básico da imitação, que é o
olho", disse-me Maria
da Glória de Souza Almeida, que é cega e professora de português e
espanhol do Instituto
Benjamin Constant. Isso causa grandes dificuldades no aprendizado dos
gestos e da sua
aplicação social. Falta ao cego a possibilidade de "educar-se
[visualmente] pelo exemplo do
outro". Eis por que, nos hábitos alimentares, o não-vidente costuma
enfrentar problemas
que inexistem para o homem que vê. Via de regra, é difícil para o cego
aprender a portar-se
à mesa de modo aceitável perante a sociedade. Daí existirem métodos
voltados de forma
específica para esse aprendizado. No início do século XX, Émile Javal
elaborou um modelo
de treinamento de normas de etiqueta, a fim de que os cegos aprendessem
"a comer
adequadamente, podendo desse modo aceitar um convite de outra pessoa".
A imitação pertence ao cerne do fenômeno artístico. É o que estabelece
com
precisão Aristóteles, logo nas primeiras linhas da Poética. Por ser
inato ao homem, o dom
de imitar exige a existência de artistas em todas as sociedades; uma vez
que os homens se
comprazem na imitação, a arte precisa encontrar um público-alvo.
Aristóteles chama
também a atenção para o fato de que um objeto artístico pode agradar
esteticamente aos
olhos, ainda que se ache desvinculado de qualquer parâmetro de
comparação com algo que
seja previamente conhecido; é o caso do prazer estético devido à
execução, à cor ou a
alguma outra causa desse tipo. Guardando as devidas proporções, essa
idéia aponta para
uma face extraordinariamente inovadora do pensamento de Aristóteles: é
como se
antecipasse a divisa da pintura abstrata preconizada no início do século
XX, por artistas
Maurice Denis, que define o quadro pintado como "uma superfície plana
recoberta de cores
reunidas com uma certa ordem". São mais do que justas, portanto, estas
palavras que
Borges dedica ao autor da Poética: "Esse grego, manancial de toda a
Filosofia, fora dado
aos homens para ensinar-lhes tudo o que se pode saber".
Em condições normais, sentidos como o olfato, o paladar e o tato são
muito menos
importantes do que a visão, durante a fase de aprendizado e o
desenvolvimento cognitivo
da criança. Além disso, a sua utilização choca-se muitas vezes com
barreiras sociais
intransponíveis ao longo da vida. É o que ocorre, por exemplo, no plano
da afetividade e
que Pierre Henri retrata com precisão nesta passagem:
É socialmente legítimo que uma mulher se empenhe em atrair os olhares de
um homem,
da mesma forma como é permitido a um homem admirar publicamente o que a
mulher
exibe da sua pessoa. Nisto reside a dupla inferioridade do cego: ele não
pode admirar
visualmente uma mulher e, em decorrência, perde o interesse para ela; só
poderia fazê-lo
apalpando-a, mas o ato de apalpar é repelido como anti-social (sobretudo
em público).
Pierre Henri fala ainda do caso da esposa de um cego que, julgando-se
feia, preferia
que o marido jamais recobrasse a vista, por medo de que ele desmaiasse
de decepção assim
que a visse. O caráter estético do problema é evidente. Qual o valor da
beleza humana
quando não há quem a possa admirar visualmente? Ao dizermos que uma
pessoa é bela,
está implícito tratar-se da beleza visual, mais especificamente daquela
que há em seu rosto - que, geralmente, representa a primeira imagem em que se concentram
nossos olhos
quando começamos a ver. No Egito antigo, o hieróglifo com o desenho
representativo da
cabeça evocava todo o ser do homem. Certamente por estarem concentrados
nela os traços
mais marcantes da nossa individualidade. Isso também explica por que um
retrato humano
pode ser resumido à região da cabeça, mas não às outras partes do corpo.
A fotografia de
um corpo inteiro a que falte a cabeça deixa de ser um retrato; o seu
tamanho reduzido em
relação ao restante do corpo humano é compensado pela sua maior
capacidade de
representar o indivíduo. E, na cabeça, o traço mais expressivo
localiza-se principalmente na
região dos olhos. Daí serem eles considerados, de maneira praticamente
universal, como
"janelas da alma", metáfora que já existia entre os egípcios da
Antiguidade. Numa
conversa entre duas pessoas videntes, o grau de atenção e interesse pode
ser mensurado a
partir do comportamento dos olhos de cada uma. Embora a fala seja
endereçada
originariamente à audição (podendo ser interpretada visualmente através
da leitura labial,
como fazem os surdos), é através dos olhos do nosso ouvinte que
percebemos em que
medida ele se interessa pelo que falamos. Caso ele não esteja a prestar
atenção, mesmo
quando não desvia o olhar, isso se evidencia pelo modo como nos olha.
Bem se pode dizer
que, de certo modo, "ouvimos com os olhos".
É por motivos como esses que, quando uma pessoa deseja esconder a
identidade, os
olhos são o elemento principal a ser encoberto. Dentre todos os animais,
nenhum apresenta
tantas diferenças individuais quanto o homem; são diferenças que por sua
vez se
concentram fundamentalmente na região facial. Se quisermos destacar
qualidades estéticas
não visuais numa pessoa, cabe-nos esclarecer: diremos, por exemplo, que
a sua voz é bela.
Quase sempre a beleza traz em si, de forma metaforicamente implícita, o
endereço da visão.
Tanto que, mesmo no caso de querermos enfatizar a beleza vocal de
alguém, dizemos: vê
como a sua voz é bela? A passagem seguinte, de José Saramago, sintetiza
ao mesmo tempo
as dimensões afetivas e estéticas do problema da cegueira:
Mais calma, a mulher do médico pensava, olhando-a de frente, Já quase
não se lhe
notam vestígios da conjuntivite, que não poder dizer-lho, ela ficaria
contente.
Provavelmente, sim, ficaria contente, embora um tal contentamento fosse
absurdo, não
tanto por estar ela cega, mas porque toda a gente ali o estava também,
de que servirá ter
os olhos límpidos, e belos, como estes são se não há ninguém para os
ver.
Pode-se complementar as palavras de Saramago com estas, de Stephan
Kuusisto, o escritor
cego de origem finlandesa do qual já se falou:
Eu recito a partir de páginas que não posso ler, ou então aponto sinais
que não posso ver,
simplesmente porque gosto de ser admirado. Já que a impressão que tenho
de mim,
enquanto deficiente, é a de que sou feio, torna-se difícil para mim o
entendimento de
como esses literatos e essas jovens mulheres tranqüilas podem achar-me
atraente.
Vê-se que os conflitos estéticos inerentes à cegueira não se concentram
necessariamente no sexo feminino, tal como poderíamos ser levados a crer
pelo que lemos
nas outras duas citações anteriores, de José Saramago e Pierre Henri.
Além disso, a
passagem de Kuusisto convida a refletir sobre um aspecto central do
costume que tem o ser
humano de embelezar a si mesmo – destaque-se, ademais, a correlação
traçada pelo autor
entre a deficiência e a feiúra, atuando aí justamente como antítese da
beleza. Esse costume
decorre, via de regra, do olhar do outro. Desejamos parecer belos
perante os olhos da
sociedade em que estamos; seu juízo é importante para nós. O problema da
exclusão social
dos cegos tem amplitude universal.
Feitas essas considerações, importa agora que nos detenhamos noutro
assunto: a
deficiência, no seu aspecto genérico, e algumas das suas implicações.
3.1 Deficiência e exclusão
Conforme já foi referido, desde Platão e Aristóteles, é praticamente
absoluto o primado da
visão e da audição no campo da Estética ocidental (cf. supra). Os dois
filósofos mostraram-se também partidários de uma outra tese, que concerne diretamente às
pessoas portadoras
de deficiências, como é o caso dos cegos e dos surdos. Os deficientes,
para Platão e
Aristóteles, comprometem o bem-estar social, na medida em que contrariam
as bases de
uma sociedade idealizada, onde não há lugar para doenças e deformidades.
Também se
falou da aceitação tácita acarretada pela valorização extrema do olhar:
sendo o belo assunto
exclusivamente visual, não estaria acessível ao cego. Assim como a
Estética tende a excluir
o cego da sua esfera de possibilidades, a sociedade muitas vezes
nega-lhe o direito à própria
existência.
O cego pertence ao território semântico da alteridade; fugindo aos
padrões
fisiológicos esperados, choca-se com a normalidade. Para a pessoa
normal, muitas vezes, o
deficiente parece pertencer a um outro mundo: é como se a deficiência
fosse algo que só
acontece aos outros. A deficiência filia-se à dor, em suas múltiplas
acepções. Geralmente,
os que se mostram mais solidários face à dor sofrida por outros homens
são aqueles que, de
alguma forma, ao menos em algum momento de suas vidas, também a
sofreram. Pois a
única maneira de efetivamente conhecer a dor é sentindo-a. E senti-la
significa sofrê-la.
Visando evitar o crescimento exagerado da população, Platão preconiza,
ainda que
de forma sutil, a prática do infanticídio. Aristóteles admite a
exposição (entenda-se o
abandono) das crianças disformes: "Quanto à exposição e criação dos
filhos, deve haver
uma lei que proíba criar um filho defeituoso (...". É uma postura que
se enraíza no
mundo ocidental. Dois milênios depois, no seu tratado sobre educação,
Rousseau
defende basicamente o mesmo ponto de vista:
Eu não me encarregaria de uma criança doentia e caquética, ainda que
devesse viver
oitenta anos. Não quero saber de um aluno sempre inútil a si mesmo e aos
outros, que só
se ocupe com se conservar e cujo corpo prejudique a educação da alma.
Que faria
prodigalizando em vão meus cuidados senão dobrar o prejuízo da
sociedade, arrancando-lhe dois homens em vez de um só? Que outro em meu lugar se encarregue
desse
enfermo, concordo e aprovo sua caridade; mas meu ofício não é este: não
sei ensinar a
viver a quem pensa apenas em não morrer.
Às portas do século XX, Nietzsche afirmava:
A vida, em si, não reconhece solidariedade nem "direitos iguais" entre
as partes
saudáveis e as degeneradas de um organismo: é preciso que esta última
seja eliminada,
ou a totalidade perecerá. Compaixão pelos decadentes, direitos iguais
para os de
natureza débil: isso seria a mais profunda imoralidade, seria a própria
antinatureza da
moralidade.
Essa atitude repressiva face ao deficiente não se verifica apenas na
cultura ocidental. No
dialeto avikan, falado na Costa do Marfim, "um cego" diz-se èwambo-nuin,
que significa
"um homem privado de olhos". E, ao que parece, significava,
possivelmente há menos de
um século, "alguém que teve os olhos perfurados". Segundo a tradição,
antes da chegada
dos franceses, havia o costume de vazar os olhos dos guerreiros vencidos
e o de matar as
crianças nascidas cegas, bem como os velhos que tivessem perdido a
vista, não obstante o
respeito que concediam à velhice. Na China, apenas no século XX teve fim
a prática
tradicional de eliminar as crianças nascidas cegas, principalmente as do
sexo feminino.
A pessoa portadora de deficiência é o outro; rejeitado tantas vezes pela
sociedade
em que vive, falta-lhe também um lugar específico no campo da Estética.
É uma ausência
que prevalece na Antiguidade, mantendo-se durante a Idade Média e o
Renascimento. Mas
não se pode esquecer que, no plano social, a Idade Média representa um
progresso face ao
problema da exclusão social dos cegos. É durante o século XIII, na
França, que ocorre a
fundação da Institution des Quinze-Vingts, por iniciativa do rei Luis IX
(posteriormente São
Luis), na qual os cegos viviam em comunhão de bens e dedicados à vida
religiosa.
Originariamente, a instituição destinava-se a abrigar 300 homens que
haviam ficado
cegos guerreando contra os muçulmanos durante as cruzadas. O que veio em
seguida foi
conseqüência da atitude pioneira de São Luis:
Posteriormente, vários mosteiros, hospitais cristãos, refúgios, asilos
ou retiros foram
criados na Síria, Jerusalém, Itália e Alemanha. A sociedade começava a
dar ao deficiente
condições mínimas de sobrevivência; contudo, ainda o mantinha isolado,
segregado, por
vê-lo como um indivíduo digno de piedade e sem a menor potencialidade.
Era preciso
estudar uma maneira de educar os cegos. No século XVI apareceram as
primeiras
publicações sobre a educação dos cegos. Nesta mesma época surgiram
várias tentativas
de escrita para cegos, mas foi
Valentin Haüy, quem na realidade fez algo
de concreto
neste sentido. Um dia, em 1784, Haüy descobriu um cego esmoler, de nome
François
Lesueur, que, através do tato, era capaz de discernir um sou de um
escudo. Desse
binômio, Haüy-Lesueur, surgiu o protótipo da leitura táctil.
Diderot, já no período iluminista, afirma que o homem cego pode ser
plenamente
bem sucedido em atividades que não dependam diretamente da visão. No
campo
intelectual, pensa Diderot, o cego acha-se em igualdade de condições
relativamente ao
homem que vê. Mas Diderot ainda está apegado a certas noções
equivocadas; diz que a
beleza é um conceito desprovido de significado para o cego. Obviamente,
Diderot está
falando aqui em beleza visual, tomando-a como representante da
experiência estética como
um todo – atitude, aliás, recorrente na cultura ocidental, conforme
temos visto aqui.
Tende-se a pensar que o cego seja naturalmente impedido de desfrutar de
todas as
formas de beleza. A causa disso, como já foi indicado, deriva do papel
preponderante que
desempenham os nossos olhos no plano da sensibilidade. E se a apreensão
da beleza pode
ser sintetizada metaforicamente no olhar – conforme faz Santo Tomás de
Aquino e todos
nós também somos propensos a fazer –, o efeito esperado é que se
considere o cego incapaz
de apreender o belo. Além disso, há de se considerar que a cegueira é
uma das deficiências
que mais impedimentos causam ao homem; daí, como também já foi falado, a
propensão a
projetar sobre o cego o estigma da incapacidade geral (cf. supra). E não
só sobre ele.
Embora reconhecido como um dos grandes físicos da atualidade, Stephen
Hawking sabe
que a impossibilidade de falar normalmente – conseqüência da
traqueotomia, doença que o
atinge há vários anos – torna-o passível de ser considerado deficiente
mental: "A voz é
muito importante, pois se temos uma fala inexpressiva é muito provável
que as pessoas nos
tratem como deficiente mental".
Segundo A. G. Gowman, para as pessoas que vêem, a cegueira costuma ser
considerada uma deficiência que atinge o organismo como um todo. Pode-se
até dizer
que há, em certas crianças cegas, uma tendência a que apresentem
defasagem no seu
desenvolvimento cognitivo. Mas a cegueira não é causa direta desse outro
problema. Ele
torna-se praticamente inevitável, isto sim, quando há inadaptação da
criança cega no
próprio ambiente familiar e quando lhe são diminuídas as possibilidades
de experiência que
costuma ter uma criança com a visão normal.
Não há obstáculos fisiológicos para que o cego desfrute da beleza
literária e sonora,
ou mesmo que a produza? A qualidade artística de obras como as de
Borges e
Joaquín
Rodrigo, que foram cegos, fala por si mesma. O fato de alguns cegos se
destacarem no
campo da música (a cantora e pianista vienense Maria Teresa von Paradis
[1759-1829]
tornou-se o exemplo clássico) não nos autoriza a pensar que a cegueira
contribua,
necessariamente, para o desenvolvimento da habilidade musical. É através
da análise
objetiva dos problemas que devemos buscar soluções que permitam a plena
aceitação da
pessoa deficiente na sociedade. Se não for assim, corre-se o risco de
substituir o
preconceito pelo mito. Deixando, além disso, os problemas sem solução.
Por uma exigência própria do organismo humano, os ouvidos do cego
costumam ser
mais requisitados que os de uma pessoa que vê. Isso normalmente se
traduz
fisiologicamente por um desenvolvimento maior da sensibilidade auditiva.
Mas que não
tem qualquer relação direta com o dom propriamente musical. Do
contrário, como explicar
que Homero, supondo-o cego, concentre-se na beleza visível, não
desenvolvendo o
potencial estético da sonoridade? E que Borges, cego e talvez o escritor
mais completo do
século XX, nem sequer gostasse de música? O aprendizado da música entre
alunos cegos
alcança basicamente os mesmos índices de aproveitamento que podem ser
observados entre
alunos videntes.
O cerne da questão relativa às potencialidades artísticas do cego reside
na órbita da
plástica. É injustificável, portanto, que as instituições de ensino de
música se neguem a
aceitar alunos com insuficiência visual ou mesmo cegueira. É o problema
enfrentado
atualmente pelo jovem chileno Ricardo Guerra, que é deficiente visual, e
demonstra forte
aptidão para a música, havendo-a escolhido como profissão. A diferença
entre o ensino
da música para os videntes e o que se dirige aos cegos é de ordem
fundamentalmente
metodológica; não é uma questão de talento. Inclusive no campo
específico da plástica –
em princípio, direcionado a videntes –, é necessário que as instituições
especializadas se
aparelhem devidamente para atender à demanda de alunos que não vêem.
Mesmo que as
finalidades do aprendizado sejam exclusivamente terapêuticas. Pois a
experiência do fazer
artístico, além de contribuir para o desenvolvimento das potências
perceptivas, motoras,
sociais e afetivas do cego, no caso da criança "(...) realça a
percepção, capacitando-a a ter a
experiência de conceitos como tamanho, forma, distância, igualdade,
diferença, textura,
temperatura, som, cor e peso".
Apenas em tempos mais recentes esses assuntos começaram a despertar
maior
interesse por parte dos estudiosos da cegueira e da arte. Helen Keller,
falecida há algumas
décadas, cega e surda desde os primeiros anos de vida, ao adquirir
renome mundial,
contribuiu de modo particular para isso. Em sua biografia, rara é a
página em que Helen
Keller não fala em "beleza", "felicidade" e outros termos que nos podem
parecer
surpreendentes, dadas as circunstâncias.
Iniciaram-se na década de 1980 as medidas oficiais de longo alcance,
relativas à
questão da deficiência, por parte de instituições internacionais. Não
obstante, as
providências que vêm sendo tomadas nas últimas duas décadas resultam de
um processo
que começou há cerca de dois séculos. Podemos retroceder ainda mais,
indo às fontes
contidas na Bíblia. É expressivo que a lei mosaica proíba que seja
colocado "tropeço diante
do cego" , vindo inclusive a amaldiçoar o homem que "faz com que o cego
erre o
caminho" . Isso não apenas aponta para a incidência freqüente da
cegueira no Oriente
Médio durante a Antiguidade; também indica que os cegos deveriam ser, ao
menos
esporadicamente, vítimas de maus tratos e zombarias. Do contrário, como
explicar que o
assunto tenha merecido a atenção do legislador? Numa sociedade
hipotética em que
nunca tenha ocorrido um assassinato e que se desconheça a sua
ocorrência, é virtualmente
impossível que as suas leis internas se refiram a tal delito, e muito
menos que o condenem.
Além disso, para que uma sociedade mencione em suas leis um determinado
procedimento
humano, não basta que ele seja conhecido pelos seus membros; é preciso
que se trate de
algo importante para eles e que, possivelmente, ocorra com certa
freqüência. Portanto, se
a antiga lei hebraica faz referência à cegueira, isso demonstra que ela
deveria ser
relativamente comum no eixo geográfico entre a Mesopotâmia e o Egito
durante a
Antiguidade; e que a exclusão social do cego era um problema de
dimensões consideráveis,
ao menos para os hebreus que habitavam a região naquela época.
A Organização das Nações Unidas destaca a necessidade de que, em todos
os
países, sejam dadas às pessoas deficientes as mesmas oportunidades que
têm os demais
cidadãos de desfrutar da dinâmica econômica e social. É na década de
1980 que, pela
primeira vez, a deficiência se vê definida a partir da relação que há
entre a pessoa deficiente
e o mundo ao seu redor. Sempre sublinhando a importância da conscientização global
face à situação da deficiência, a ONU prevê, no campo da cultura que
Os Estados devem velar para que as pessoas portadoras de deficiência se
integrem
socialmente e possam participar de atividades culturais em condições de
igualdade. Os
Estados velarão para que as pessoas portadoras de deficiência tenham a
chance de
utilizar seu potencial criativo, artístico e intelectual, não apenas
para o seu próprio
benefício, mas também para enriquecer a sua comunidade (...). São
exemplos de tais
atividades a dança, a música, a literatura, o teatro, as artes
plásticas, a pintura e a
escultura.
3.2 O que é a deficiência?
A cegueira é uma forma de deficiência sensorial. O conteúdo dessa
afirmação é evidente.
Mas não desnecessário. Pois a clareza manifesta da identificação entre a
cegueira e a
deficiência não deixa de encobrir um desconhecimento profundo, relativo
tanto à realidade
particular dos cegos, quanto à realidade genérica das pessoas
deficientes. Não bastasse o
fato de a deficiência ser, tantas vezes, objeto de preconceitos e
discriminações diversas, a
situação é agravada devido a um outro problema: a desinformação por
parte de um
segmento expressivo da sociedade em geral, quanto ao que venha a ser
propriamente um
deficiente. Essa falta de esclarecimento é ao mesmo tempo causa e efeito
do estigma da
exclusão. Soma-se a isso o problema da imprecisão terminológica, ainda
hoje não
resolvido: os próprios termos "incapacidade", "invalidez",
"deficiência", já transmitem, de
modo praticamente inevitável, uma noção preconceituosa e confusa acerca
do assunto. Isso
é importante. Pois a imprecisão conceitual relativa à deficiência
demonstra o pouco
interesse demonstrado pela sociedade, ao longo dos séculos, para
compreendê-la e aceitá-la.
Referindo-se especificamente à cegueira, Pierre Henri escreve:
Enquanto a sociedade não esteve especialmente interessada nos cegos e,
mais
precisamente, enquanto não haviam sido promulgadas leis sociais em seu
benefício, não
foi necessário delimitar o conteúdo da palavra [cegueira].
Consoante a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de
Deficiências,
proclamada pela ONU em 1975, considera-se "deficiente"
(...) o indivíduo que, devido a seus "déficits" físicos ou mentais, não
está em pleno gozo
da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial,
suas necessidades
vitais e sociais, como faria um ser humano normal.
Movidos pela iniciativa da ONU, vários países vêm tentando aplicar leis
específicas que
favoreçam a integração social das pessoas deficientes. Assim, por
exemplo, lemos na
legislação chilena um artigo meticuloso sobre as formas de deficiência,
bem como sobre as
suas implicações:
Artigo 3º. Considera-se que uma pessoa se encontra diminuída em um terço
de sua
capacidade nos campos educativo, profissional e social quando apresenta
ao menos uma
das seguintes deficiências nas áreas psíquica, mental, física ou
sensorial :
a) Deficiências psíquicas ou mentais: São aquelas apresentadas pelas
pessoas cujo
rendimento intelectual é igual ou inferior a 70 pontos no coeficiente
intelectual, medido
por um teste validado pela Organização Mundial da Saúde e administrado
individualmente; e [apresentadas também por] pessoas que tenham
transtornos no que
tange ao comportamento adaptativo, de forma previsivelmente constante.
O item, ao falar em "deficiências psíquicas ou mentais", parece
identificar as noções.
Quando na verdade trata-se de noções distintas. A doença psíquica diz
respeito a problemas
de caráter psicológico e psiquiátrico; já a deficiência mental refere-se
à falta de inteligência
e ao déficit cognitivo. O item mostra-se duplamente ambíguo, na medida
em que, além da
identificação equivocada, apresenta as características de cada
enfermidade na ordem
inversa. E cumpre destacar que essas instâncias, confundidas na
legislação chilena,
podem apresentar-se em franca oposição. Os distúrbios psíquicos muitas
vezes manifestam-se em pessoas com capacidade mental bastante elevada. A enfermidade
psíquica não tem
nenhuma relação com a falta de inteligência; pode, isto sim, estar
ligada a um excesso.
Chesterton, com a sua ironia peculiar, costumava chamar a atenção para
isso, destacando
que o homem louco, ao contrário do que muitas vezes se pensa, é aquele
que perdeu tudo,
menos a razão:
A imaginação não gera a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente
a razão. (...) a
mais sinistra qualidade (da loucura) é uma horrível clareza nos
detalhes; é a conexão de
uma coisa com outra numa espécie de mapa mais elaborado que um
labirinto. (...)
Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um
equívoco. O
louco não é o homem que perdeu a razão. O louco é o homem que perdeu
tudo, exceto a
razão.
A loucura costuma ter a marca da lógica irrefutável, fruto de uma
racionalidade conduzida
ao extremismo. É o que muitas vezes torna os loucos adversários
imbatíveis numa disputa
verbal. Aprofundando o assunto, Chesterton esclarece e exemplifica:
Suas explicações de cada coisa são sempre completas e muitas vezes, num
sentido
puramente racional, satisfatórias. Ou então, mais exatamente, a
explicação do louco, se
não é convincente, pelo menos é irrespondível. E isso se pode ver em
dois ou três dos
casos mais comuns de loucura. Se um homem diz, por exemplo, que o resto
da
humanidade conspira contra ele, não podemos discutir senão dizendo que
todos os
homens negam unanimemente que sejam conspiradores; ora, se eles o fossem
diriam
exatamente isso. A explicação do louco, portanto, está de acordo com os
fatos tão bem
quanto a nossa. Se um homem diz que é o legítimo rei da Inglaterra, não
será satisfatório
dizer-lhe que as autoridades existentes o consideram louco; porque se
ele fosse o rei da
Inglaterra as autoridades usurpadoras não teriam melhor coisa a dizer.
Ou então, se um
homem diz que é Jesus Cristo, não adianta responder que o mundo nega sua
divindade,
pois de fato o mundo muitas vezes nega a divindade do Messias.
Vê-se que loucura e debilidade mental são noções não apenas distintas,
mas também, até
certo ponto, contrastantes. Nem por isso o louco deixa de sofrer o
estigma da
discriminação, tal como se dá com os deficientes em geral. Na Idade
Média, a loucura
esteve associada à possessão demoníaca e à bruxaria. Posteriormente,
vistos como
perigosos para a sociedade, os loucos eram encarcerados em lugares onde
"eram tratados de
maneira cruel e desumana". Erradicada a lepra no fim da Idade Média, a
cultura européia
projetou sobre os loucos o estigma da exclusão, vendo-os como seres a
temer, uma
autêntica "encarnação do mal". Quanto ao reconhecimento da loucura como
enfermidade, ocorrido no século XIX, Foucault escreve:
As imagens são conhecidas. Elas são familiares a todas as histórias da
psiquiatria, onde
elas têm por função ilustrar essa época feliz em que a loucura foi enfim
reconhecida e
tratada segundo uma verdade para a qual nós estivemos durante longo
tempo cegos.
A situação foi atenuada no decurso da história ocidental. Porém, ainda
hoje, muito
resta por fazer para que o louco seja tratado de forma igualitária em
nossa cultura. É
freqüente que a loucura sirva de pretexto para a aplicação de medidas
repressivas em
regimes tirânicos. Assim a utilizou Stalin na ex-União Soviética e é
como tem procedido o
atual governo chinês para impedir a difusão do movimento budista Falun
Gong. Após
prenderem os religiosos, as autoridades declaram que os presos são doentes mentais e, em seguida, trancam-nos em
institutos
psiquiátricos. Foi o que aconteceu com Wang Wanxing, que ficou sete anos
preso junto
com doentes mentais por ter tentado organizar uma manifestação de
protesto na praça
Tiananmen para comemorar o massacre de estudantes de 4 de julho de 1989.
Em escala menor, encontramos o mesmo tipo de problema retratado no filme
O estranho no
ninho de cucos, de Milos Forman. Lembremo-nos de que o protagonista, interpretado
por Jack
Nicholson, não sofria de distúrbios mentais antes de ser internado no
asilo de loucos. A
loucura, no seu caso, foi intencionalmente provocada pela diretora do
hospital. Lê-se em
José Saramago uma passagem expressiva, em que a loucura é associada à
cegueira:
Então, para simplificar, aconteceu tudo ao mesmo tempo, a mulher do
médico anunciou
em altas vozes que estavam livres (...) O portão está aberto de par em
par, os loucos
saem. Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava
do mundo, Vai,
estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no
meio da rua, ele e os
outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há
comparação entre viver
num labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e
aventurar-se, sem mão
de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a
memória para nada
servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os
caminhos para
lá chegar.
O conceito de "manicômio" conduz a uma dualidade importante. Sua origem
está na
palavra grega manía, que pode simplesmente referir-se à demência, como
faz Heródoto;
mas que também pode indicar o delírio profético ou mesmo a inspiração
poética, como em
Platão. O mesmo tipo de dualidade manifesta-se noutras formas de
deficiência. A própria
cegueira mostra-se, aos olhos da cultura ocidental, uma característica
geralmente
reprovável; noutras ocasiões, porém, é associada a algum dom incomum,
que coloca o cego
acima dos homens videntes. Essa valorização esporádica da cegueira
também pode ser
verificada na cultura hebraica. No caso de Saulo, a cegueira momentânea
que o aflige
durante o caminho de Damasco é, na verdade, uma bênção, recurso divino
para a
persuasão. Há, inclusive, culturas que projetam sistematicamente
atributos divinos sobre
a deficiência; na América Central pré-colombiana, os olmecas, os
teotihuacanos e os maias
cultuavam os anões.
Voltando à lei chilena relativa à deficiência, vejamos o que diz o
segundo item do
artigo 3º:
b) Deficiências sensoriais: São aquelas deficiências visuais, auditivas
ou da fonação, que
diminuem ao menos em um terço a capacidade do indivíduo para desenvolver
as
atividades próprias de uma pessoa não incapacitada, em
igualdade de
condições quanto à idade, ao sexo, à formação, à capacitação, à condição
social,
familiar, bem como à localidade geográfica.
As deficiências visuais e auditivas serão ponderadas, considerando o
potencial
remanescente do melhor olho ou ouvido, corrigido o defeito.
Considero o eufemismo da expressão pessoa não incapacitada dispensável e
até
inconveniente. Não é dessa forma que se minimizam os traumas e nem os
preconceitos
inerentes à deficiência. Por que não dizer, simplesmente, "pessoa
normal", como pede a
espontaneidade? O item estipula as deficiências sensoriais como
pertencentes unicamente
aos setores da visão, da audição e da fala. Muito embora existam
deficiências relativas ao
olfato e ao paladar, que podem ser parciais e integrais; a deficiência
táctil também pode
ocorrer, ainda que muitíssimo mais rara na sua forma plena. A meu ver,
justificam-se as
omissões porque as eventuais deficiências presentes nos campos do olfato
e do paladar
costumam representar impedimentos de muito menor gravidade (tanto no
plano individual
quanto no coletivo) do que aqueles decorrentes da cegueira ou da surdez.
Tanto que, para a
ausência do paladar e a do tato, a medicina nem sequer estabeleceu um
nome específico. A
falta de sensibilidade táctil, se integral, representa na verdade um
impedimento gravíssimo:
priva o homem da possibilidade de perceber os limites do seu próprio
corpo, impedindo-o
também de se proteger do contato com objetos que lhe causam dano físico
– pois o tato
permite a transmissão da dor, que não deixa de ser uma forma de defesa
para o organismo.
Tratando-se de uma deficiência tão terrível, felizmente a natureza
encarregou-se de torná-la
extremamente incomum. De fato, a perda completa do tato só ocorre em
situações
extraordinárias de lesão cerebral, fenômeno que gera uma série de outros
problemas para o
organismo como um todo.
Retornando mais uma vez ao artigo da lei chilena, encontramos no
terceiro e último item:
c) Deficiências físicas: São aquelas que produzem um decréscimo de no
mínimo um
terço da capacidade física para a realização das atividades próprias de
uma pessoa não
incapacitada [o grifo é meu], em igualdade de condições em relação a uma
pessoa com
deficiência [o grifo é meu] quanto à idade, ao sexo, à formação, à
capacitação, à
condição social, familiar, bem como à localidade geográfica.
Evidencia-se aqui, mais uma vez, o problema da terminologia imprecisa. O
texto original
opõe a expressão persona no discapacitada (que traduzi por pessoa não
incapacitada),
servindo-se novamente do mesmo eufemismo dispensável e impróprio, à
expressão
"persona con discapacidad" (que traduzi por pessoa com deficiência). Não
quero dizer com
isso que os termos buscados por mim, na língua portuguesa, sejam
forçosamente mais
precisos e devidamente depurados quando à sua carga semântica
pejorativa. O problema
referente aos conceitos utilizados está longe de uma solução plenamente
satisfatória. A
própria legislação chilena demonstra ter consciência da necessidade de
que sejam
estabelecidas fronteiras entre os conceitos-chave empregados. Cito ipsis
litteris um trecho
de uma publicação recente, editada pelo FONADIS (Fondo Nacional de la
Discapacidad):
(...) se define la discapacidad como toda restricción o ausencia, devido
a una
deficiencia, de la capacidad de realizar una actividad en la forma y
dentro del margen
considerado normal para un ser humano. De esta idea matriz se desprende
que la
deficiencia es la pérdida o anormalidad de una estructura o función
psicológica,
fisiológica o anatómica de la persona; deficiencia que se puede traducir
en una
situación de la desventaja para un individuo determinado en función de
su edad, sexo y
de los factores sociales y culturales concurrentes. Este último aspecto
representa el
concepto de minusvalía de las personas com discapacidad en relación a su
medio
social.
No circuito particular da cegueira, usa-se freqüentemente o par
dicotômico formado
por videntes e não-videntes. Isso funciona bem para o cego, na medida em
que elimina uma
eventual interpretação pejorativa decorrente de outros conceitos que
relatam a circunstância
própria de quem não vê; mas que gera outro problema: a ambigüidade
contida na palavra
"vidente", causando assim a confusão entre a pessoa que tem a visão
normal e a que "vê ou
imagina ver o que não existe ainda", como é o caso do profeta.
Tratando-se, por
exemplo, da pessoa que se locomove em cadeira de rodas, já não é
possível utilizarmos
uma dicotomia análoga: embora retrate com precisão as duas
circunstâncias opostas, falar
em "andante" e "não-andante" mostra-se inviável na prática.
Precisamos lidar com o vocabulário de que dispomos, aceitando as suas
falhas
inevitáveis.
Voltemos à definição formulada pela ONU, citada no início deste tópico.
Considera-se, como vimos, que deficiente é
(...) o indivíduo que, devido a seus "déficits" físicos ou mentais, não
está em pleno gozo
da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial,
suas necessidades
vitais e sociais, como faria um ser humano normal.
A definição é correta e amplamente acessível na sua precisão. Opõe, como
premissa, a
deficiência à normalidade: "normal" é o homem que não apresenta
deficiências; em caso
contrário tem-se o "deficiente". Mas isso não basta para que se alcance
em larga escala o
esclarecimento devido e a solução dos problemas sociais relacionados à
deficiência. É
comum que a pessoa portadora de deficiência, seja esta física ou mental,
se torne vítima do
estigma da incapacidade completa. As pessoas normais são propensas a
projetar sobre as
deficientes uma visão erroneamente ampliada face ao problema. Tende-se,
por exemplo,
a considerar o homem paraplégico e o cego incapazes de desempenhar
outras funções que
em nada se relacionam com a paralisia física e a cegueira,
respectivamente. No que tange à
experiência estética, muitas vezes considera-se o cego incapaz de
desfrutar da beleza:
"Aqueles que nunca freqüentaram os cegos são levados a crer que a
cegueira causa um
distúrbio tão profundo na personalidade que chega a envenenar as
próprias fontes da
fruição estética".
É comum que, nos restaurantes, o garçon evite se dirigir diretamente a
um cego.
Não obstante, a legislação municipal do Rio de Janeiro determina que
todo restaurante
possua cardápios em braille, exigência que quase nunca é cumprida.
Parte-se do
pressuposto de que é o deficiente que deve adaptar-se ao mundo das
pessoas normais; a
recíproca raras vezes é cogitada. Em outras palavras, tem-se por
implícito que as pessoas
normais não precisam das deficientes; é como se estas estivessem sempre
na condição de
requisitar a ajuda daquelas. Falo aqui em pessoas "normais"
principalmente por ser o
termo utilizado de forma oficial pela ONU, e também em obediência à exatidão que o
assunto requer. O parâmetro natural e necessário para se aferir a
deficiência é a
normalidade. É desnecessário e até indevido recorrer ao eufemismo da "não-deficiência".
Penso que boa parte dos estigmas sociais sofridos pelo deficiente seria
vencida ou pelo
menos atenuada se todos os membros da sociedade deixassem de lado o zelo
excessivo
quando da referência a esse tipo de realidade. Tal procedimento não se
restringe ao campo
da deficiência. Quem de nós não conhece pessoas que evitam dizer a
palavra "câncer",
trocando-a por "aquela doença"? E que, no lugar de "negro" ou "negra"
dizem "pessoa de
cor"? No primeiro caso, trata-se de um retrocesso cultural
injustificável, pois a crença de
que as palavras pronunciadas são capazes de evocar as coisas por elas
representadas é típica
de sociedades em estágio tribal - incompatível, geralmente, com a
realidade social daquelas
mesmas pessoas. No segundo caso, também injustificável, é um escrúpulo
extremo que,
longe de dirimir o preconceito racial, antes o acentua. Deparamos muitas
vezes com
atitudes semelhantes da parte das próprias pessoas deficientes. Durante
anos, um amigo
logrou ocultar-me que lhe faltava metade de uma perna, perdida durante
um acidente
sofrido na infância. Mais de uma vez justificou o fato de mancar como
decorrência de um
simples "problema na perna".
Vejo em tais atitudes um erro, que mais atrapalha do que ajuda, e no
qual incorri
mais de uma vez, principalmente na época em que dei início às minhas
pesquisas sobre a
cegueira, em 1998. Um exemplo basta. Certa vez, entrevistei Vitor
Alberto da Silva
Marques, cego de nascença e professor de Geografia do Instituto Benjamin
Constant, no
Rio de Janeiro. Dias depois, li para ele a versão preliminar de um
artigo meu, em que
constavam alguns trechos da entrevista. Por receio de feri-lo, referi-me
a ele como
"deficiente visual", não como "cego". Durante a leitura, o Professor
Vitor corrigiu meu
equívoco, salientando haver diferença entre a deficiência visual e a
cegueira (cf. supra), e
dizendo-me ainda que geralmente o cego prefere ser considerado como tal.
O fundamental, em questões dessa ordem, é ver o ser humano com a
dignidade que
lhe é própria, independentemente de quaisquer fatores circunstanciais,
como é a deficiência.
O simples fato de que o tema da deficiência mereceu a atenção da ONU
demonstra que a
aceitação social do deficiente é, em si, problemática. Passados mais de
vinte anos desde a
proclamação oficial dos direitos da pessoa portadora de deficiência, a
conscientização
ampla e as medidas objetivas necessárias ainda se encontram em fase
embrionária, não
apenas se considerarmos o contexto mundial, mas também em muitos dos
países que
integram as Nações Unidas. No Brasil, ainda que a Constituição preveja o
pleno exercício
dos direitos individuais e sociais para o deficiente, isso não costuma
ocorrer na prática. De
fato, conforme expressa o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da
Pessoa Portadora
de Deficiência,
Atualmente, registra-se nos estados e municípios um grande número de
leis que
contemplam as pessoas portadoras de deficiência. Poucas estão em vigor.
Conseqüentemente, o desconhecimento desses direitos e deveres ainda
discrimina e
exclui o deficiente.
De onde vêm os preconceitos, as discriminações, a exclusão social,
enfim? A
deficiência, no plano social, não é uma matéria puramente abstrata, a
ser discutida por
legisladores. Trata-se, ao contrário, de um fato concreto, que, direta
ou indiretamente, diz
respeito a todos os setores da sociedade. Que relação há entre o vigor
físico de jovens
atraentes e a melhor ou pior qualidade de uma marca de refrigerantes? Em
princípio,
nenhuma. Contudo, no mundo da propaganda, cujo poder de convencimento e
influência
nunca deve ser subestimado, a relação é imediata. Pode-se inclusive
dizer que a própria
relação é ultrapassada, tornando-se pura identidade. Com efeito, para a
cultura de massa, os
dotes da juventude identificam-se espontaneamente com a boa qualidade de
um produto a
vender. E isso independe de ele ser bom ou mau como produto. O que
importa é a
referência imediata entre uma e outra formas de realidade: a perfeição
física do homem e a
boa qualidade das coisas de que ele se serve. A contrapartida é óbvia e
igualmente
importante: a imperfeição física confunde-se com o que se considera mau.
Cegos e
paraplégicos poderiam protagonizar o mesmo anúncio de refrigerante, já
que, como
qualquer pessoa normal, eles são igualmente aptos a ingerir bebidas.
Entretanto, não são
eles os escolhidos para esse gênero de atividade. Por quê? Serão a
cegueira e a paralisia
incompatíveis com a beleza física ou com a boa qualidade da mercadoria a
ser vendida? O
discurso massificado, típico da propaganda consumista, visa meramente a
vendagem de
produtos, não importando serem eles benéficos ou nocivos para o homem.
Detendo-se nos
recursos da Retórica, esse discurso abstém-se de qualquer compromisso
ético na construção
dos argumentos. Com efeito, nas palavras de Olavo de Carvalho,
Para a retórica, o que importa não é o que o objeto é realmente, mas o
que o público
imagina que ele seja. A retórica não tem meios de julgar a veracidade do
seu próprio
discurso, do mesmo modo que a boa qualidade de um produto para os fins a
que se
destina não tem o menor vínculo de implicação recíproca com a eficácia
do marketing
que o veicula. O número de vítimas da talidomida, por exemplo, confirma
a eficácia do
seu marketing na mesma medida em que atesta a má qualidade do produto.
Seria prematuro afirmar que esse problema é característico
exclusivamente da nossa
era, e que a cultura de massa é o seu causador ou principal
beneficiário. As raízes são mais
antigas e profundas. As origens do mesmo problema podem ser detectadas
já nos
primórdios da cultura ocidental. E o que está em jogo não é somente a
deficiência, mas
também o seu oposto, a saber, a normalidade. Procura-se entender o que
venha a ser o
homem na sua própria essência. O homem a quem falta um braço continua
sendo um
homem. O mesmo se diga do indivíduo acometido por qualquer outra forma
de deficiência.
É oportuno sublinhar mais uma vez (cf. supra) a diferença entre a doença
mental - concernente a problemas de ordem psicológica e psiquiátrica - e a
deficiência mental,
relativa à inteligência e ao déficit cognitivo. Em ambos os casos, o
estatuto de humanidade
é mantido: um homem não é inferior aos outros simplesmente porque age
contrariamente às
prerrogativas da razão ou por não ser capaz de desenvolver as suas
aptidões intelectuais.
Resta-lhe sempre a espiritualidade. Assim como a deficiência já se
revelava um problema
entre os antigos, as suas implicações sociais não passavam
despercebidas. Lemos em Santo
Agostinho:
Na cidade de Hipona há um homem que tem os pés em forma de lua, e em
cada um deles
apenas dois dedos, ocorrendo o mesmo nas suas mãos. Se houvesse algum
povo dotado
dessa imperfeição, ela seria contada entre as histórias curiosas e
admiráveis. Pergunto,
pois: negaremos por isso que este homem descende daquele que Deus criou
primeiramente?
Vê-se que o autor não apenas percebe a alteridade. Busca também a sua
aceitação, no que
se pode ver uma tentativa pioneira de inclusão social do outro, no caso
o deficiente.
Proporções guardadas, não deixa de ser um prelúdio para as iniciativas
oficiais tomadas
pela ONU e por tantos países na atualidade. Principalmente se tivermos
em conta que Santo
Agostinho é dos autores que mais atuaram na construção do pensamento
ocidental.
A deficiência, como temos visto, opõe-se semanticamente à normalidade,
instância
em que se manifesta a eficiência. Essa simples constatação ajuda a
explicar o fenômeno da
não-aceitação do deficiente na sociedade ocidental, tão propensa a
valorizar de forma
extremada a eficiência e isso não apenas no campo profissional, mas em
basicamente
todos os setores da vida. Como reflexo dessa propensão, rejeita-se o que
se mostra contrário
à idéia de eficiência. A relação antagônica é manifesta na língua
latina, da qual herdamos
muitos dos principais conceitos atinentes ao problema. Nossa palavra
"eficaz" vem de
efficax, designativa do que é ativo, enérgico ou poderoso. É o contexto
em que fala Plínio
ao descrever uma "erva eficaz contra o veneno das serpentes". No início
da Idade Média,
Santo Isidoro de Sevilha assim escrevia nas Etimologias: "Efficax
(eficaz) diz-se daquele
que não tem dificuldade alguma na realização de algo. Deriva de facere
(fazer), assim como
efficiens (eficiente)". Efficiens designa o que realiza, que leva a
termo uma tarefa,
noção já utilizada na Antiguidade; Cícero refere-se a "causas que
produzem os mais belos
efeitos". No verbo latino deficere encontramos o ancestral etimológico
da palavra
"deficiente". Além da acepção mais diretamente contraposta à anterior
("faltar", "carecer"),
deficere também significa "afastar-se", "eclipsar-se", "desintegrar-se".
Em decorrência,
defectus não se traduz apenas por "defeito"; também pode designar
"eclipse". Em Vergílio
encontramos tal acepção, na passagem das Geórgicas em que o poeta deseja
que as musas
lhe mostrem os "eclipses multiformes do Sol e da Lua".
Vale a pena insistir no sentido primitivo da palavra defectus. Nesse
território
semântico encontramos o ser defeituoso como o que se distancia, podendo
vir a desintegrar-se, tal qual se dá nos eclipses dos astros que povoam o firmamento. É o
que ocorre, de
forma predominante, ao longo da história: o homem deficiente, como já se
disse, tende a ser
apartado da sociedade. Isso em grande parte devido à tendência cultural
a ampliar o defeito,
seja ele físico ou mental, a outras esferas da vida humana. Tome-se, por
exemplo, o
conceito de "aleijado". Originariamente, designa simplesmente o homem
que sofreu uma
lesão (cf. latim laesio). No sentido figurado, contudo, a deficiência
expande-se ao território
da moral e ao da espiritualidade; desse modo, "aleijado" indica tanto o
homem que
apresenta "algum defeito, deformidade ou mutilação física" quanto o "que
tem defeito
moral ou espiritual".
Destaque-se aqui um fator de importância central: todas – realmente
todas – as
modalidades de deficiência humana referem-se a defeitos que afetam o
homem de forma
acidental. Não comprometem necessariamente a sua dignidade, concentrada
que está na
alma espiritual. Dignidade que nos é essencial, e de que Borges fala
nesta passagem de um
dos seus contos:
Olho minha face no espelho para saber quem sou, para saber como me
portarei dentro de
algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo;
eu não
tenho.
Note-se o paralelo com este outro trecho, em que Borges se refere a
Averróis:
Desenrolando o turbante, olhou-se num espelho de metal. Não sei o que
seus olhos
viram, porque nenhum historiador descreveu as formas do seu rosto.
Por que o olhar é tema tão recorrente em Borges? Terá ele escrito tanto
sobre o visível para
melhor se orientar na sua escuridão? Por que rejeitava a existência do
tempo? Talvez
porque, inspirando-se em Platão, preferisse o constante ao mutável, o
perene ao passageiro,
a eternidade ao tempo; e essa preferência lhe atenuaria a cegueira,
permitindo-lhe descrever
o que não via, pois era capaz de ver com a imaginação o que lhe não
permitiam os olhos:
(...) e ao redor (isso Averróis também sentia) perdia-se no horizonte a
terra de Espanha,
na qual poucas coisas existem, mas onde cada uma parece estar de modo
substantivo e
eterno.
3.3 Deficiência e emancipação
A tendência a segregar o deficiente não constitui uma regra infalível e
nem possui
amplitude universal. O budismo estabeleceu o preceito de que deve-se
melhorar a sorte dos
débeis, grupo no qual foram incluídos os cegos. A segregação é um
fenômeno cultural:
arbitrário e variável, portanto. Sendo assim, nada impede que essa
tendência à exclusão
social deixe de existir, ou ao menos de prevalecer, no futuro da
humanidade. Há, de fato,
exceções, tanto no plano individual quanto no coletivo. São Gregório
Magno faz referência
a um homem de nome Sérvulo, a quem a doença "havia reduzido a um estado
lastimável:
passada a sua juventude, ficou paralítico de todos os seus membros".
Resignado face à
sua realidade, Sérvulo passava a vida a meditar sobre os sofrimentos de
Cristo, "de tal
maneira que não se queixava jamais". "Conhecido por todos os moradores
de Roma" ,
era também visitado com freqüência e alvo de admiração. E isso não
apenas por parte dos
seus contemporâneos. Entre os muçulmanos, durante a Idade Média,
adotou-se como
prática conceder a função de almuadem a um homem velho e cego. Uma
tradição que
encontra ressonância literária em Borges, no conto dedicado a Averróis:
Olhou pelo balcão; em baixo, no estreito pátio de terra, brincavam alguns
meninos
seminus. Um, de pé nos ombros do outro, fazia-se evidentemente de
almuadem; com os
olhos bem fechados, salmodiava não há outro Deus além de Deus.
E também, mais recentemente, noutro autor ibérico, Saramago:
(...) e de um só golpe de espada degolou o velho almuadem, em cujos
olhos cegos uma
luz relampejou no momento de apagar-se-lhe a vida.
Legitimada pela tradição cultural, essa prática islâmica revela não só
um forte sentimento
de solidariedade e de respeito (dada a própria importância do ato, já
que cabe ao almuadem
chamar os fiéis para a prece nas mesquitas); também indica que a
cegueira deveria ser
freqüente na sociedade muçulmana medieval, uma vez que a sua ocorrência
chegou a
legitimar uma prática social. (Neste caso, tradicional solidariedade
islâmica beneficia ao
mesmo tempo dois grupos freqüentemente excluídos noutras sociedades: os
cegos e os
idosos.) Outro exemplo ilustrativo temos na atividade ininterrupta de
Jesus, curando
pessoas acometidas por enfermidades diversas. Fazendo isso,
independentemente do
sentido espiritual e transcendente do milagre, Jesus reintegrava
socialmente a pessoa
curada. O que demonstra a sua sensibilidade ao caráter especificamente
humano do
problema da deficiência.
Esse assunto requer algumas considerações em particular. Não basta
afirmar que
essa integração do deficiente ocasionada pelas ações de Jesus seja um
evento histórico de
grande originalidade. Não podemos esquecer que a cultura ocidental
edifica-se sobre os
alicerces da sociedade judaico-cristã. Os beneficiados pelas curas de
Jesus são leprosos,
aleijados, surdos e cegos, ocupando estes um lugar privilegiado, como se
resumissem a
deficiência humana em si. Muitas vezes, o defeito associa-se à possessão
demoníaca,
fortalecendo assim o caráter indissolúvel da relação entre o corpo
físico e a alma
espiritual. O Evangelho representa, na Antiguidade, uma emancipação
social do
deficiente, de forma genérica, e do cego em particular. As curas
milagrosas anunciam a Boa
Nova. Se a cegueira é escolhida como a principal deficiência de que o
homem sofre, e o
cego é o alvo predileto das curas de Jesus, isso se deve principalmente
a dois fatores. O
primeiro, pertencente à órbita do senso comum: para a população em
geral, é mais fácil crer
que um cego recobrou a vista do que na restituição de um braço a um
homem que o tivesse
perdido. O segundo, de caráter místico e tradicional: o cego, na Bíblia,
é muitas vezes
associado ao mistério e às crenças. Juntos, esses dois fatores fazem da
cegueira a
enfermidade mais propícia para a manifestação da glória divina.
Devolver a vista ao cego que a perdeu, ou dá-la ao que nunca a teve,
torna-se, com
Jesus, um procedimento simbólico do próprio ato divino de conceder a
vida ao homem.
Santo Irineu escreve:
A Escritura diz que Deus tomou limo da terra e dela fez o homem. É por
isso que Jesus
espalha saliva sobre o solo e dela faz a lama a ser aplicada sobre os
olhos do cego,
lembrando assim a formação do homem e manifestando, a quem puder
compreender, a
mão de Deus pela qual o homem foi formado.
Para Jesus, a cegueira moral é mais nociva do que a corpórea. Os
milagres representam a
cura dessa cegueira principal; sarar da enfermidade física simboliza a
transição do estado
de pecado ao de virtude, a passagem da morte à vida. É compreensível
que, ainda hoje,
tenhamos o hábito de nos referirmos ao ato especificamente maternal de
gerar a vida como
"dar à luz".
Para os antigos hebreus, o cego é um grande pecador. Lemos no Talmud:
"quatro
[tipos de homem] são considerados mortos: o pobre, o leproso, o cego e o
que não tem
filhos". É representativo que, já nos tempos atuais, o simbolismo que
permite interpretar
o ato de dar a vista a um cego como a restituição da vida a um morto
tenha atuado como
argumento básico para que o transplante de córnea fosse aceito entre os
judeus. No
Antigo Testamento, a cegueira é muitas vezes sinal da criação
incompleta, o que por sua
vez indica impureza, acarretando assim a impossibilidade de que o cego
tome parte ativa
nos rituais religiosos. Por que Deus permitiria que a Sua obra
apresentasse deficiências?
No caso, para a manifestação do Seu poder. A cegueira, nesse contexto,
torna-se motivo
para a revelação da divindade de Cristo. E nisso ela não apenas cumpre
seu papel de
contribuir para a manifestação do poder divino, mas também favorece a
aceitação social do
cego, que deixa de ser o impuro, para se tornar um símbolo da virtude.
Jesus é o marco
decisivo para tal transição, "a luz do mundo". Cegos e surdos passam a
ser os que não
entendem a mensagem de Jesus; aqueles que, embora possuam olhos e
ouvidos perfeitos,
"vendo não vêem, e ouvindo não ouvem". Para a nossa capacidade
imaginativa, a
imagem mais coerente que podemos formar de Deus é a de um ser luminoso.
Concluindo este tópico, cabe uma passagem do ensaio de Philippe Chazal,
específico em relação à cegueira, mas que se aplica ao tema da
deficiência de modo
integral:
Pode-se esperar, com Gilbert Montagné, que "os parentes, amigos e mesmo
simples conhecidos dos não-videntes os considerem como pessoas que terão
tanto
potencial quanto aquele que o que lhes for dado pelos que estão à sua
volta"...
Desse modo, eles crerão em si, então vocês crerão em nós, e a nossa
deficiência
não será nada mais do que uma diferença. Uma diferença compreendida,
aceita,
suportável e suportada, uma diferença quase banal, numa simples palavra,
uma
diferença.
3.4 Permanência do problema
O problema permanece, em seu estado fundamental. Por mais edificantes
que sejam os
exemplos recém-mencionados, prevalece ainda hoje entre os homens a
tendência a isolar do
âmbito social a pessoa deficiente. Um forte indicativo disso
encontramos, conforme já foi
apontado, no fato de que a Estética, disciplina filosófica
especificamente dedicada ao
estudo da beleza, não prevê soluções teóricas adequadas às pessoas
privadas da visão e da
audição, considerados tradicionalmente como os únicos sentidos
propriamente estéticos.
Mas se por um lado a discriminação social dos deficientes ocorre em tão
larga escala, por
outro, deve-se admitir que raramente parte de uma atitude deliberada e
consciente. No mais
das vezes é algo implícito, decorrente do processo natural de edificação
das próprias
sociedades. Devido à dinâmica da competição – que é um dos principais
fatores de impulso
social, as sociedades, via de regra, não prevêem mecanismos
específicos de adaptação
para a pessoa deficiente. É recentíssima a adoção, nos projetos de
engenharia e arquitetura,
de dispositivos diretamente destinados a beneficiar o deficiente físico.
No Brasil, há uma
lei, promulgada em 1980, que torna obrigatória a presença de "rampa de
acesso apropriado
a cadeiras de rodas utilizadas por paraplégicos, assim como o local para
a respectiva
acomodação dos mesmos", em toda e qualquer construção destinada ao
público, o que
inclui cinemas, teatros, estabelecimentos desportivos, estações de metrô,
aeroportos etc.
Diversas outras leis e decretos seguiram-se a essa lei de 1980. Apesar
disso, é comum
que tais determinações são sejam seguidas.
Fato é que a não-observância a leis ou recomendações legais benéficas
para os
deficientes ocorre em diversos lugares do mundo. Na Espanha, por
exemplo, as pessoas que
se locomovem em cadeiras de rodas chocam-se freqüentemente com o egoísmo
e a
indiferença. É comum que se trate de questões de ordem estética, como é
o caso da
aparência visual do exterior de edifícios. Ora, a sociedade espanhola é
constituída
majoritariamente por pessoas normais, que pensam que nunca irão precisar
de rampas
inclinadas especiais para o acesso ao prédio em que moram ou trabalham.
É de se esperar
que nos países desenvolvidos, dado o maior nível de esclarecimento por
parte da população
em geral, o fenômeno da segregação do deficiente seja menos freqüente do
que naqueles
mais pobres, onde o acesso à informação tende a ser mais restrito. Não é
uma regra. Veja-se
o caso, bastante recente, de uma criança brasileira, cega e deficiente
mental, ocorrido em
Nova York. Juntamente com a avó, que a acompanhava, foi expulsa com
agressividade de
um avião da empresa norte-americana United Airlines pela tripulação e a
polícia nova-iorquina porque, pouco antes da decolagem, irritou-se diante da
necessidade de apertar o
cinto de segurança.
Contemplando o caso específico da cegueira, a lei municipal 2315/95,
conforme já
foi mencionado, torna obrigatória no Rio de Janeiro "a existência de
cardápio em braille em
bares, hotéis e estabelecimentos similares." Não obstante, é raríssimo
que encontremos o
cardápio em braille nesses locais. Seria o caso de nos perguntarmos
pelos motivos da
ineficácia de tais leis. Dentre os principais, está o fato de que os
donos desses
estabelecimentos geralmente não têm os seus interesses econômicos
ligados ao
cumprimento da legislação o que por sua vez ampara-se na inoperância
das autoridades
competentes. Os cegos, por numerosos que sejam, não são considerados
representantes de
uma parcela expressiva da clientela. Além disso, aqueles proprietários
não são, eles
mesmos, cegos. Se fossem, o seu procedimento face à questão seria
certamente outro. Além
do que, os próprios cegos muitas vezes ignoram as leis que os amparam, e
que aliás não são
amplamente divulgadas em braille. Não é de estranhar que a maior parte
das pessoas
videntes também desconheça o assunto. Soma-se a isso o fato de que, em
escala mundial,
são muitos os cegos que não dominam o sistema braille.
O aprendizado do braille e a sua utilização chocam-se com uma série de
obstáculos.
O primeiro deles parte da sua própria natureza como sistema de código.
Embora gratuito
quanto à distribuição, o seu manuseio é complicado pelo tamanho
obrigatoriamente grande
dos signos, o que faz com que os livros em braille se dividam, muitas
vezes, em diversos
volumes, dificultando a sua acomodação. O texto em braille sofre um
desgaste muito maior
do que o impresso em tinta. Enquanto este é assimilado pelos olhos, que
atuam à distância,
aquele, feito para a apreensão táctil, requer o contato direto com os
dedos. Considere-se
ainda que as obras em braille são editadas mediante um processo muito
mais vagaroso do
que aquele que move a indústria dos livros e revistas impressas. Do que
se depreende a
impossibilidade de que o cego se mantenha atualizado, através da
leitura, em grau
compatível com o de um leitor capaz de ver.
A natureza solicita do homem a utilização de todos os seus sentidos e
potencialidades. Isso se reflete nas obras humanas, que geralmente não
prevêem
mecanismos de adaptação para as pessoas deficientes. Explicam-se assim
alguns dos
problemas de adaptação enfrentados pelos cegos no campo da música. Nas
orquestras a
capacidade de ler rapidamente a partitura costuma ser requisito básico.
Mesmo
considerando a possibilidade (até o presente momento remota) de existir
em braille um
acervo amplo de obras orquestrais, o instrumentista cego acha-se em
grande desvantagem
face ao vidente. Para saber as notas a tocar, ele precisa das mãos, e
são elas que executam o
instrumento. Seria necessário que, possivelmente já nos ensaios, ele
soubesse de cor todas
as suas partes. Esse prodígio de memorização é passível de ocorrer. Mas
só em casos
excepcionais, ou às custas de um esforço sobre-humano.
A ausência de previsão de mecanismos adaptativos para os deficientes
pode ser
compreendida através de alguns fatores mutuamente implicados: nossa
própria natureza
fisiológica, que nos leva a agir e a produzir de acordo com um padrão de
normalidade pré-estabelecido, suprindo assim exigências de caráter universal; as pessoas
enquadradas neste
padrão, ditas por isso "normais", tendem a ser em número
incomparavelmente superior em
relação àquelas que não se enquadram. Eis porque, em quase toda
sociedade, costuma ser
difícil lidar com a deficiência, seja ela qual for. Entre os animais, o
instinto leva-os a atuar
muitas vezes de forma implacável e cruel aos nossos olhos: se o membro
de um cardume de
tubarões é ferido, seus próprios companheiros encarregam-se de atacá-lo.
Os homens, além
e acima do instinto, são guiados pela moral, instância especificamente
humana, que os faz
responsáveis pelos seus atos, tornando-os passíveis de qualificação
quanto às categorias do
bem e do mal. De acordo com a consciência moral, é nítido que o homem
deficiente acha-se em igualdade de condições relativamente ao homem normal. Por outro
lado, socialmente
falando, como já vimos, essa igualdade raramente é observada.
Compensando parcialmente o fenômeno da segregação social, a natureza
dotou o
homem de notáveis recursos de adaptação, face à perda de uma ou mais das
suas
potencialidades. É o que temos expresso nestas palavras de José Espínola
Veiga, cego e
escritor:
Felizmente, a natureza humana é, de todas, a que tem a maior capacidade
de adaptação.
Assim, o homem se acomoda a quaisquer circunstâncias que a vida lhe
oferece. Nisso
reside, aliás, o eixo de explicação da vida do homem que não vê.
Suprima-se a um cão a
vista, o ouvido e o olfato, e ele morrerá, por certo. Sem a vista, sem o
ouvido e sem o
olfato viveu Laura Bridgman, logrando assimilar uma boa parcela de
conhecimentos.
3.5 Do mecanismo de compensação
A história registra muitos casos de pessoas que, embora portadoras de
deficiências,
exerceram de modo admirável suas atividades. Shih Mien, professor de
música de
Confúcio, era cego; sendo esta também a situação de Shih K'uang, que,
através da música,
consolava Confúcio na tristeza e interpretava-lhe o pensamento. Dídimo
de Alexandria,
teólogo cultíssimo, ficou cego aos quatro anos de idade. Discípulo de
Orígenes, mestre de
São Jerônimo e de São Gregório Nazianzeno, Dídimo fez para si um
alfabeto de madeira
talhada, que utilizava para formar palavras e frases, antecipando assim
a criação de Louis
Braille em mais de 1500 anos. Surdo, Beethoven compôs a parte mais
grandiosa de sua
obra. Não menos expressiva é a história do guerreiro espanhol Don Blas
de Lezo, a quem
havia sido confiada a defesa da cidade colombiana de Cartagena em 1741.
Havendo
perdido uma perna, um braço e um olho em diferentes batalhas, Don Blas
de Lezo, mesmo
em inferioridade numérica, comandou vitoriosamente sua tropa contra a
esquadra inglesa,
que tencionava apossar-se da cidadela. Não é preciso estender a
exemplificação. Bastam
esses exemplos para mostrar que a falta de uma potencialidade pode ser
parcialmente
compensada mediante a exploração mais intensa das outras restantes.
O parágrafo anterior traz implícita uma questão importante: os
deficientes ilustres
não devem ser vistos como exceções a confirmarem uma regra, o que nos
poderia conduzir
ao território equivocadamente apelativo do vitrinismo. Andrea Bocelli é
um grande cantor;
o ser cego é meramente circunstancial. O mesmo vale para o grande
maestro Toscanini,
cuja memória extraordinária costumava-se atribuir ao fato de ele
enxergar mal. Se os cegos
e demais deficientes que se destacam no cenário mundial são pouco
numerosos, isso não se
deve somente ao preconceito que atinge a deficiência. Também resulta de
uma relação
puramente matemática e inexorável: tomando a humanidade como um todo, os
deficientes
representam um percentual mínimo. Tratando-se de um espaço amostral
menor, é natural
que os destaques sejam menos numerosos entre os deficientes,
comparativamente ao
conjunto das pessoas normais.
Entre as pessoas normais, o homem que se destaca já é, em si, uma
exceção que
foge à regra: a vida da maioria dos homens transcorre no anonimato. Além
de Labieno e de
mais alguns poucos que ajudaram César na conquista da Gália, quais os
nomes dos
milhares de soldados que compunham as legiões romanas? O renome mundial
muitas vezes
não vem acompanhado dos méritos devidos. Pode-se desgostar de Júlio
César e do seu
modo de ser; mas seria injusto negar-lhe o valor como general, e absurdo
negligenciar a sua
importância histórica. No campo da arte, que nos interessa mais no
momento, é comum
encontrarmos personagens cuja fama não se deve necessariamente ao seu
valor como
artista. Tome-se o cantor e compositor Boy George, um dos muitos ícones
do pós-modernismo. Modelo do sincretismo que marca a pós-modernidade, Boy
George propõe-se
ao público como homem e mulher, apostando numa natureza feita de
retalhos que não se
encaixam. É difícil crer que obtivesse a mesma popularidade devido
apenas à sua
atuação como músico. Não fosse o seu comportamento extravagante,
possivelmente não
teria alcançado tamanho prestígio. Pode-se inclusive pensar que tal
comportamento inclui-se numa eficaz estratégia empresarial: faz-se do exotismo um chamariz
destinado não só a
atrair o público potencial, mas também (e talvez principalmente) a
anestesiar o juízo
estético desse mesmo público, disfarçando assim a má qualidade do que
lhe é oferecido
como música. E o paradoxal é que, não raro, a mesma sociedade que se
mostra aberta a
extravagâncias desse porte, simplesmente por serem tais, costuma
fechar-se para as
deficiências, exatamente pelos mesmos motivos.
3.5.1 Cegueira e musicalidade
É necessário ter cautela quando se analisa o alcance do mecanismo de
compensação
relativo às deficiências. É notável que um homem cego tenha desenvoltura
na música,
como ocorreu, durante o Renascimento, com o espanhol Francisco Salinas.
A julgar pelo
testemunho do seu amigo e contemporâneo Fray Luis de León, ouvir a
música de Salinas
levava os demais sentidos a ficarem adormecidos, tal a beleza sonora que
o compositor
cego era capaz de criar. A cegueira não contribui necessariamente para o
desenvolvimento das potencialidades musicais – e nem que os quatro
sentidos do cego
sejam forçosamente mais precisos que os da pessoa vidente, como muitas
vezes se pensa. É
possível que isso ocorra, mas sempre e apenas de forma indireta. O que
Salinas realizou e
que outros cegos realizam no campo da música encontra-se dentro dos
limites previstos
pela nossa fisiologia. Joaquín Rodrigo também cego, espanhol e grande
compositor, por
mais auto-suficiente que fosse no campo específico da música, estava
sujeito aos mesmos
obstáculos básicos que enfrenta um cego no seu contato com o mundo. Pois
não há, no
plano fisiológico, nenhum recurso que possa substituir a visão. O mesmo
vale para os
outros sentidos. É bem verdade que a natureza dotou-nos de um eficiente
mecanismo de
compensação, que, no caso da perda de uma faculdade, estimula as
restantes a
compensarem essa falta, mediante a sua utilização mais intensa. Em
nenhum caso, porém, a
compensação é integral. Isso nos faz valorizar ainda mais o poder
evocativo que tem a
música de Joaquín Rodrigo, e.g., no Concerto de Aranjuez, uma das obras
mais populares e
importantes do repertório violonístico de todos os tempos. Inspirando-se
em Manuel de
Falla, que por sua vez apóia-se no impressionismo de Débussy, Joaquín
Rodrigo
desenvolve com eficácia uma capacidade sugestiva intensa, voltada para a
evocação de
imagens visuais: um fenômeno ainda mais extraordinário quando se
considera que ele ficou
cego aos três anos de idade – não podendo, pois, contar com o apoio de
um acervo visual
devidamente sedimentado na memória.
Sobre as possibilidades que tem a música de evocar o mundo visual,
trata-se de um
tema antiqüíssimo e dos mais discutidos em música. Abordá-lo aqui
fugiria aos contornos
da investigação. Pense-se na polêmica suscitada se forem colocados lado
a lado o
romantismo de Gluck e o formalismo de Stravinski. Rios de tinta têm
corrido sobre o tema,
sem que se chegue a um esclarecimento definitivo. Nada nos impede de
aceitar a definição
econômica de Hanslick para o belo musical: "formas sonoras em
movimento". O
problema estaria em pensarmos que se trata apenas de uma questão formal.
Que não haja
correspondência direta e obrigatória entre sons e cores ou formas
visuais, é algo que
Hanslick defende com acerto. O ouvinte desavisado não pensa
necessariamente numa
exposição de quadros quando ouve Quadros de uma exposição, de Mussorgski;
é algo
excessivamente específico. Mas não se pode ignorar o enorme potencial
sugestivo da
música, no plano genérico, seja aludindo ao mundo visível, seja às
paixões da alma. Quem
negará a presença implícita das cores da Espanha no Concerto de Aranjuez,
do cego
Joaquín Rodrigo? Ou a de emoções fortíssimas na Dança ritual do fogo, do
asceta Manuel
de Falla?
O desempenho tantas vezes brilhante dos cegos nas instituições de música
explica-se, em parte, pelo esforço especial dos mestres e dos discípulos. Em
tais casos tende-se a
valorizar ao máximo até mesmo os recursos mínimos de aptidão que possam
ser direcionados para a música; recursos que, tratando-se de videntes,
freqüentemente passam
despercebidos. Outro fator a ser considerado é que, se a cegueira
favorecesse o
desenvolvimento da sensibilidade musical, precisaríamos admitir que,
entre os músicos
cegos, levariam vantagem no aprendizado e no desempenho aqueles que
nunca viram ou
que perderam a visão ainda nos primeiros anos de vida. Mas a experiência
prova o
contrário. O sucesso de um músico cego há de ser atribuído ao talento e
esforço individuais,
à competência dos mestres, à eficácia do método empregado – nunca à
cegueira em si
mesma.
O caso da austríaca Maria Teresa von Paradis merece atenção particular.
Contemporânea de Mozart e admirada por ele, que lhe dedicou um concerto,
Maria Teresa
von Paradis, cega desde os quatro anos de idade, tornou-se cantora e
pianista. Seu talento e
situação especial cativaram a imperatriz da Áustria, também chamada
Maria Teresa, que
lhe concedeu uma pensão. Acreditando na idéia de que a cegueira da
musicista era causada
por problemas psicológicos e não físicos, o Dr. Mesmer conseguiu
curá-la. Recobrada a
visão, Maria Teresa passou a se interessar pelo mundo visual, o que teve
efeito negativo
sobre a sua atividade na música: a consagração a essa arte, antes
integral, dividiu-se. Além
disso, Maria Teresa apaixonou-se pelo médico. É difícil imaginar que as
conseqüências
sociais e familiares pudessem ter sido piores: a pensão imperial foi-lhe
retirada; e os pais,
revoltados, obrigaram-na a se afastar do Dr. Mesmer, recorrendo para
isso até mesmo a
castigos físicos. O resultado foi um novo trauma, que fez com que Maria
Teresa perdesse
novamente a visão, e desta vez de forma definitiva. Voltou então a se
dedicar totalmente à
música, recuperando sua reputação anterior e ocupando-se ainda com a
educação dos
cegos. Para nós, o mais importante na história de Maria Teresa von
Paradis é que tanto o
seu talento musical quanto o seu desinteresse súbito pela música são
fenômenos
circunstanciais. Não têm, de fato, relação direta com a cegueira. [...]
[...]Considerando estarem os cegos e os videntes em igualdade de condições
face à música, o
predomínio destes pode ser entendido a partir do fato de existirem
sempre em maior
número. O que se pode dizer com segurança é que o cego, por depender
mais da audição do
que o vidente, é particularmente propenso a desenvolver a audição. E
isso tende a
aproximá-lo da música, como apreciador; não forçosamente como compositor
ou intérprete.
E mesmo essa tendência à apreciação musical não pode ser entendida de
modo absoluto.
Pois Borges, homem de educação refinada e cultíssimo, não desenvolveu
nenhum talento
especial para a prática da música, e nem sequer o gosto por ela: "Não
creio que desfrute da
música, porque sou um ignorante nessa matéria", disse ele, já cego, em
entrevista a Richard
Burgin. Do que se infere que, mesmo depois de consumada a cegueira, o
universo de
Borges é ainda um universo visual. Nos anos 50, época em que estava na
direção da
Biblioteca Nacional de Buenos Aires, Borges falou da "esplêndida ironia
de Deus em
conceder-me a um só tempo a escuridão e oitocentos mil livros". No Aleph,
conto escrito
em 1949, pouco tempo antes de ficar totalmente cego - pois a sua
cegueira, hereditária,
começara a se manifestar em 1938 -, a obsessão de Borges pelo olhar e a
visualidade
revela-se de forma plena. O Aleph, para Borges, outra coisa não é, a não
ser
(...) o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo,
todos os pontos
do universo. (...) Vacilou e com voz plana, impessoal, à qual costumamos
recorrer para
confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema a casa lhe
era indispensável,
pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um
dos pontos
do espaço que contém todos os pontos.
Vistas essas circunstâncias concernentes à deficiência em geral e à
cegueira em
particular, tratemos agora de certos aspectos atinentes à nossa
fisiologia e à cultura. São
assuntos que inauguram o próximo capítulo. Isso nos ajudará a
compreender melhor a vida
do homem que não vê.
4.1 Limites entre a fisiologia e a cultura
A cultura árabe criou um provérbio que se adapta muito bem ao assunto
enfocado neste
tópico: "durante a refeição, desaparece a razão". Espirituoso, mas não por
isso menos
verdadeiro, o provérbio aponta para uma prerrogativa universal, ligada à
constituição
fisiológica do homem, descompromissada portanto em relação a este ou
àquele ambiente
cultural específico. Em outras palavras, é uma característica comum a
todos os homens:
quando são acionados o paladar e o olfato (nossos sentidos mais ligados
à alimentação,
atividade fundamental para a sobrevivência), o pensamento (faculdade
unicamente humana
entre os seres vivos) tende a ficar entorpecido. Freqüentemente, há
incompatibilidade entre
o prazer proporcionado pelo ato de comer e o de pensar. Não é por acaso
que esse gênero
de prazer associa-se à luxúria, vício condenado com veemência em
culturas diversas.
Isso justifica a hierarquia clássica entre os sentidos, que toma a visão
e a audição
como superiores. Não há arbitrariedade no estabelecimento dessa
hierarquia; obedece,
convém voltar a frisar (cf. supra), a um preceito de ordem fisiológica,
que escapa ao nosso
comando pessoal, bem como à relatividade característica dos fatos
puramente culturais.
Há de se considerar, contudo, que essa hierarquia é parcialmente
flexível. Em
determinadas ocasiões, o estímulo aos sentidos ditos inferiores pode
conduzir não à luxúria,
e sim às virtudes espirituais. É o que explora com maestria a autora
Karen Blixen no conto
A festa de Babette, que deu origem ao filme de Gabriel Axel. Acostumados
a viver de
forma espartana, os membros de uma seita religiosa se tornaram adversos
aos prazeres do
paladar e do olfato. Para muitos, a experiência única de desfrutar das
iguarias da cozinha
francesa atuou como estímulo para o cultivo das próprias virtudes morais
que eles não
praticavam. Mas esse estímulo ocorre de forma indireta. Mantém-se,
portanto, a hierarquia
sensória que concede superioridade aos olhos e aos ouvidos. Os prazeres
sensórios, em si,
não são bons nem maus. Tudo depende do uso que fazemos deles e do modo
como são
interpretados os objetos que assimilamos através da sensibilidade.
Tal como a experiência da beleza e da arte, a cultura é um fenômeno que
só ocorre
entre os homens. O homem é o único ser que percebe o belo, que cria
coisas belas e que
traz à natureza o que ela, por si mesma, não prevê ou condiciona.
Procede assim porque não
se contenta em viver imerso na pura animalidade, submisso aos ditames da
natureza. Nem
por isso devem ser deixadas de lado as características puramente animais
do homem, que,
diferentemente dos traços culturais, lhe são ditadas pela natureza,
tomada sob a ótica da
biologia. Que o ato de tomar café revista-se de conotações importantes
na sociedade
beduína, isso constitui um fenômeno cultural. É algo regido pela
arbitrariedade, já que,
noutros contextos sociais, o mesmo ato não se reveste, obrigatoriamente,
da mesma
importância. Entretanto, sob o plano da fisiologia, impera a
homogeneidade: os efeitos
fisiológicos do café tendem a ser os mesmos sobre todos os homens; o
poder estimulante da
cafeína age basicamente da mesma forma sobre o nômade que habita os
desertos da
Jordânia e o homem de negócios, fechado em seu escritório na parte
moderna do Cairo.
Atendendo ao desdobramento ilustrativo que o contexto requer, cabe uma
descrição precisa
do geógrafo W. B. Fisher:
Um dos lados da tenda [do beduíno], escolhido de acordo com a direção em
que sopra o
vento, é deixado aberto e nele se encontra o fogo sobre o qual se faz o
café. O fogo do
café constitui o centro social da tenda. O cabeça da família, que deixa
para as mulheres o
preparo dos alimentos, encarrega-se ele mesmo de preparar o café e de
servi-lo. (...)
Grande parte da atividade social desenvolve-se em torno do café; ali se
delibera e ali se
recebem os hóspedes. Para os beduínos, diferentemente do que ocorre
entre os habitantes
da cidade [do Oriente Médio], o café é verdadeiramente o "vinho do Islã"
Embora sejam fundamentais as diferenças entre o que nos vem da cultura
(com o
teor de relatividade que lhe é próprio) e as determinações da biologia
que rege o
funcionamento da nossa componente animal, as confusões são freqüentes.
Em vista disso, é
oportuno citar o esclarecimento fornecido pelo antropólogo Mischa Titiev:
-
O termo cultura pode ser usado em, pelo menos, dois sentidos diferentes.
Pode referir os
aspectos não biológicos da humanidade no seu conjunto, ou pode respeitar
apenas à
forma de vida de um determinado grupo de homens e mulheres. Em qualquer
dos casos,
os antropólogos usam-no para descrever a série completa dos instrumentos
não
geneticamente adquiridos pelo homem, assim como todas as facetas do
comportamento
adquiridas após o nascimento. Não há um único aspecto em que a cultura
deixe de diferir
da biologia humana. (...) Por razões práticas, os seres humanos raras
vezes se prestam a
fazer voluntariamente modificações radicais nas culturas que aprenderam
dos seus
mentores, mas certamente não pode ser negado que, em teoria, é mais
fácil modificar a
língua ou a religião de uma pessoa do que a forma da sua cabeça ou a cor
dos seus
olhos.
Apoiando-se em circunstâncias passíveis de mudança, como a ambiência
geográfica e a
conjuntura política, a cultura é fator de diferenciação entre os homens.
É por decorrências
culturais que o espanhol fala ciego e o norte-americano blind para
designar a mesma
realidade. Não há nenhum fator fisiológico ou natural que os faça
escolher essas palavras
específicas e não outras. É uma escolha arbitrária, circunstanciada
pelos passos
imprevisíveis da cultura, que podem apontar para uma direção hoje e para
outra amanhã.
Está em poder do homem inventar e abandonar palavras para se referir às
realidades que o
rodeiam. Mas ele não pode decidir acerca dessa mesma capacidade de
designar. É próprio
do homem dar nomes às coisas. Todas elas, para o homem, evocam um nome
que lhes
parece conatural. É muito significativo que, consoante a narrativa
bíblica, Deus, durante a
Criação, tenha deixado a critério do homem nomear as outras criaturas:
Tendo pois o Senhor Deus formado da terra todos os animais terrestres, e
todas as aves
do céu, ele os levou a Adão, para este ver como os havia de chamar. E o
nome que Adão
pôs a cada animal, este é o seu verdadeiro nome.
Helen Keller, ao descobrir-se capaz de nomear, sentiu que era este o
momento mais
importante de sua vida. As coisas, de um momento para o outro, passaram
a fazer sentido
para ela. Foi, no sentido pleno das palavras, uma experiência
inigualável de abertura para o
mundo que a cercava e que, até então, era feito quase que só de
barreiras e impossibilidades
diversas (cf. infra).
Se uma cultura carece de um nome para certa coisa, tem-se basicamente
três
explicações possíveis. Uma é a de que essa coisa não existe para os seus
membros. A
palavra telivíjan, em hindi, significa "televisão": um objeto que não
existia na cultura hindu
até ser introduzido na Índia pelos ocidentais. A lei do menor esforço
dispensou os hindus de
inventarem uma nova palavra com os seus próprios recursos lingüísticos;
quase sempre, em
situações assim, prevalece o empréstimo. É o que ocorre, mutatis
mutandis, com a palavra
árabe hachich, que deu origem a "haxixe" em português e a termos
praticamente idênticos
nas línguas de todas as sociedades que, de alguma forma, tiveram contato
com a existência
dessa erva nativa do Oriente e que a introduziram no seu acervo
cultural, passando assim,
obviamente, elas também a designá-la. A evidência exagerada de uma certa
realidade
também pode ser a causa de não haver para ela palavra que a designe.
Assim se explica que
os esquimós não tenham uma palavra para o branco, que é a cor
predominante no seu
habitat natural. Têm, isto sim, vários nomes para os diversos tipos de
branco que vêem.
Dão minúcias ao particular, considerando desnecessário até mesmo
designar o universal. A
terceira forma de explicação para que uma cultura não dê nome a uma
certa coisa é ser ela
revestida de algum tipo de tabu. É o que se revela, por exemplo, na
primeira página de
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Retratando a mentalidade
regional, o escritor
evita como pode o nome do demônio.
É também a cultura que nos permite encontrar, no âmbito de uma mesma
sociedade,
atitudes diversas face a um mesmo fenômeno. Tenhamos a cegueira como
exemplo. Na
Grécia antiga, a cegueira associava-se à incapacidade mental e ao
estigma da punição,
como se percebe através dos registros literários de Tirésias e de Édipo;
em tais casos, a
perda dos olhos equivale à castração, no seu sentido mais globalizante.
O exemplo grego
encontra paralelo direto na cultura hebraica, através da história de
Sansão, punido com a
cegueira por sua insensatez ; na egípcia, como é mostrado na história de
um alto
dignatário que, por haver cometido perjúrio, teve como castigo a
cegueira ; e na assíria,
conforme se vê num tratado do rei Assarhadon. Note-se aliás que, se
tomarmos por base
uma das vertentes da tradição clássica, Homero teria perdido a visão
como castigo por
haver "difamado" Helena de Tróia na sua obra. Todavia, os próprios
gregos não
deixavam de outorgar ao cego – a começar por Homero – o privilégio
especial de, no
sentido metafórico, ver mais do que os outros homens. Insistindo no
critério
comparativo, também podemos constatar, em culturas distintas, a mesma
atitude face a um
único tema. Assim, o olhar passa pela rubrica da proibição tanto na
Grécia antiga (o
romance de Orfeu e Eurídice) quanto entre os judeus do tempo de Abraão
(o episódio da
mulher de Lot).
Ainda na Antiguidade grega, temos o caso de Demócrito. A julgar pelo que
diz dele
Cícero, cegou a si mesmo "para que a agudeza do olho da mente não fosse
diminuída pela
visão do olho natural". Outra versão, de Cecílio Estácio, é a de que
Demócrito "preferiu
a cegueira a ver medrarem os malvados". Independentemente dos motivos,
fato é que
Demócrito, ao preferir a cegueira à visão, estava convicto de que seria
beneficiado ao
cegar-se. Disse que teria seguidores. E de fato teve. Tampouco se pode
esquecer que
Demócrito, de todos os filósofos pré-socráticos, foi o que mais viajou.
Além da Grécia,
conheceu a Babilônia e o Egito, tendo estado ainda, talvez, na Índia e
na Etiópia. Isso é
muito expressivo. Demócrito andou pelo coração do mundo antigo; esteve
em algumas das
regiões mais belas e fascinantes do planeta. No entanto, preferiu as
"trevas" à "luz". Por
quê? Nunca saberemos ao certo. O homem – único ser que, além da
fisiologia, também se
orienta pela cultura – é imprevisível por natureza.
4.2 A partir do privilégio estético
Só o homem percebe a beleza, afirmava o sábio helenista Panécio, ao que
tudo indica de
forma pioneira na cultura ocidental. Seja ou não uma afirmativa pioneira
a de Panécio,
ele estava certo ao dizer que o sentimento estético é algo que só o
homem tem. Ainda hoje,
a mesma constatação é tida por evidente por parte dos especialistas.
Assim, lemos em José
Pijoan: "A criação e a apreciação da beleza é uma experiência puramente
humana. O
homem poderia ser definido como o animal que tem capacidade estética".
O privilégio humano de vivenciar o belo decorre da relação essencial
entre a
percepção e a esfera intelectiva. Atente-se para o conteúdo desta
observação genérica que
fazem os especialistas Lowenfeld e Brittain, em seus estudos
direcionados à deficiência
visual e à cegueira: "(...) o crescimento estético [da criança] consiste
na passagem de uma
organização de expressão caótica para uma harmoniosa, em que o
sentimento, a percepção
e o pensamento se acham completamente integrados". Ainda que tenha
início no plano
da sensibilidade, o juízo estético é, em essência, um tema de caráter
intelectual. Cabe à
racionalidade discernir entre o belo, o feio e o esteticamente neutro. A
experiência estética
é assunto exclusivamente humano, já que o homem, dentre todos os seres
vivos, é o único
habilitado a pensar. Não que os animais irracionais sejam propriamente
indiferentes ao que,
com potencialidades estéticas, lhes é apresentado à sensibilidade. No
seu caso, porém, a
experiência propriamente estética acha-se bloqueada por uma finalidade
externa, prevista
na órbita das necessidades determinadas pela natureza: o fenômeno da
reprodução. E a
verdadeira experiência do belo é, por definição, desinteressada. Os
animais não desfrutam
gratuitamente da sua própria beleza. Somos nós, homens, que o fazemos.
Se dizemos que é bela a cauda do pavão, isso se deve à nossa capacidade
de admirá-la de forma puramente contemplativa, gratuita, pois, em relação a
qualquer outro fator. Mas
não é o que ocorre entre os pavões: o ato de abrir a cauda tem por
objetivo fundamental
atrair a fêmea para a procriação, atendendo ao instinto de preservar a
espécie. Se não fosse
assim, como explicar que a fêmea do pavão só se mostre atraída pela
compleição física do
macho da sua própria espécie, ignorando as potencialidades estéticas dos
machos de todas
as outras espécies ao seu redor? É injustificável, sob o prisma da
Estética, que um ser
capaz de vivenciar a beleza se interesse por um único alvo estético.
O medieval Macróbio afirma acertadamente que, não só os homens, mas
também
certos animais são influenciados pela música. Realmente, observa-se que
os peixes e as
ovelhas deixam-se guiar pelos sons musicais, estas entrando no curral
dos pastores, aqueles
nas redes dos pescadores. Entretanto, a assertiva de Macróbio não prova
que haja uma
experiência propriamente estética da parte desses animais durante a
escuta da música. Caso
tivessem interesse especificamente estético pelos sons emitidos,
precisariam demonstrar
variações de gosto entre si, tal como se dá entre os homens, face ao
juízo sobre a beleza.
Mas não é o que ocorre: os animais da mesma espécie conformam-se em se
deixar atrair, de
forma unânime, pelos sons que os homens produzem. Vê-se dessa maneira
que, embora a
observação de Macróbio seja correta, as conclusões dela derivadas, longe
de comprovarem
que os animais sejam capazes de vivenciar a beleza, apontam, isto sim,
para a tese
contrária.
Nossa palavra "estética", hoje comumente empregada nos contextos
relativos à
beleza, descende do termo grego aísthesis, que, no seu sentido
originário, refere-se à
percepção de forma global. Assim, para o homem grego pertencia ao
circuito "estético"
tudo aquilo que, de alguma forma, enquadrava-se na dinâmica perceptiva:
as sensações
visuais, auditivas, olfativas, gustativas e tácteis; as sensações
ligadas à beleza eram
simplesmente algumas dentre as muitas que cabiam no circuito estético.
Apenas no século
XVIII, na obra de Baumgarten, a palavra "estética" passa a adquirir uma
conotação
específica, voltando-se progressivamente para a designação exclusiva dos
temas referentes
à beleza. Isso não significa que os períodos anteriores da história
carecessem de interesse
por esse gênero de assunto. A falta de um nome específico para a
disciplina que estuda o
belo jamais atuou como impedimento. Desfrutar da beleza constitui uma
experiência
própria de cada homem, independentemente do lugar e da época em que ele
vive. É natural
do homem preferir o belo ao feio e ao que é esteticamente neutro. Somos
naturalmente
vocacionados para apreciar a beleza. Nossas inclinações estéticas podem
ser sintetizadas
nestas palavras do Abade L. Jaud:
(...) existe no fundo do espírito e do coração humano uma tendência
generosa, uma
nobre emulação que nos conduz, desde que nós nos deixemos conduzir, a
tudo o que é
grandioso, a tudo que é belo.
O prazer estético tem seu ponto de partida na sensibilidade externa, tal
como ocorre
com as outras formas de vivência que o mundo nos proporciona. É o caso
do nosso
conhecimento, que resulta da atuação conjunta da experiência sensível e
da abstração
intelectual. Pertencendo o fenômeno estético à esfera cognitiva, é
natural que a vivência do
belo inicie-se nos sentidos e tenha seu momento conclusivo na
inteligência. Eis o que torna
o juízo estético tão variável entre os homens. É também fato que a
cegueira não constitui
impedimento insuperável para a apreciação e mesmo a prática de todas as
atividades
artísticas tidas tradicionalmente como visuais. Há, por exemplo,
situações em que o cego
pode desfrutar da beleza de obras escultóricas, estando também apto a
produzi-la. Isso por
ser a escultura uma arte tridimensional, estando assim ao alcance da
apreensão táctil e não
apenas da visual, desde que, naturalmente, as dimensões não sejam nem
muito grandes e
nem muito pequenas, o que tende a desfavorecer e até a impossibilitar a
compreensão da
forma a ser apreciada ou criada.
Recentemente, o Museo de Arte Contemporáneo, em Santiago do Chile,
realizou
uma exposição de fotos feitas por pessoas cegas. Organizada pela
investigadora e artista
plástica Marcia Yáñez, a exposição voltava-se principalmente para o
caráter lúdico do
processo de criação. O objetivo de Marcia concentrava-se na tentativa de
dividir com os
não-videntes uma pequena parcela da vivência provocada por uma arte
fundamentalmente
direcionada para a visão. A experiência mostrou-se satisfatória graças à
utilização de
outros sentidos, sobretudo do tato, que permitia aos cegos tocar e
brincar com as fotos.
Segundo Marcia, entre as pessoas videntes,
(...) os outros sentidos acham-se adormecidos, porque quase sempre
privilegiamos a
vista, a composição e a estética face ao restante das sensações que
capta a nossa
sensibilidade no momento de tirar uma foto.
A formulação, embora correta, requer cautela quanto à sua abrangência.
De fato, é
assim que costuma ocorrer. Mas não por um simples determinante de ordem
cultural. O
privilégio concedido à visualidade é, como já foi apontado, uma
exigência proveniente da
nossa constituição fisiológica. A visão, como os outros sentidos, cada
um à sua maneira, é
insubstituível. Mas isso não impede, convém reiterar, que o cego
encontre prazer em
atividades como a fotografia. Eis o que diz Claudia Avilés, cega que
teve suas fotos
selecionadas e expostas por Marcia:
Quando fui à exposição e Marcia ia me dizendo que, por exemplo, havia um
painel com
90 fotos minhas, que eu mesma havia feito, senti muita emoção, já que o
resto das
pessoas poderia vê-las.
O testemunho de Claudia ratifica o caráter essencialmente universal do
fenômeno artístico.
E salienta um aspecto importante do processo criativo, que caracteriza
todas as faces da
arte: o fazer artístico não precisa, necessariamente, ser voltado para o
resultado impecável.
Isso é particularmente verdadeiro quando se trata de artistas
deficientes. Ainda que a
pintura não seja devidamente desfrutada por um cego, ele pode ter
alegria no ato de pintar.
Realmente, como escreve I. W. Kurzhals:
(...) freqüentemente para a criança cega o divertido [do ato de pintar]
não está no produto
acabado, mas sim no processo utilizado. Encontrar tinta em pó num prato,
espirrar água
sobre ele, afim de transformá-lo em tinta líquida, mergulhar o pincel na
pintura, besuntá-lo em uma maçã de barro é estimulante e engraçado.
Nenhum obstáculo há, portanto, em incluir a pintura como atividade
lúdica ou
terapêutica no âmbito de possibilidades vivenciais do cego. Situação
semelhante dá-se no
desenho, também uma atividade artística de teor essencialmente visual.
Fala-se em cegos
que são capazes de fazer desenhos figurativos, utilizando inclusive
recursos técnicos
complexos, como o escorço, a perspectiva e mesmo a plotagem do ponto de
fuga. Se tais
pessoas são realmente cegas – não possuindo qualquer resíduo visual –,
trata-se, sem
dúvida, de algo extraordinário. E que desperta dúvidas quanto à
veracidade entre os
próprios cegos. Exemplificando, cito Louis Ciccone, músico e presidente
durante 20 anos
da principal instituição francesa que se ocupa da cegueira, a
Association Valentin Haüy; e a
poetisa e artista Virgínia Vendramini, de quem também já se falou. Seja
como for,
considere-se que o cego desenhista não desfruta visualmente do seu
próprio desenho. E
que, em tais casos, o importante não é alcançar a perfeição artística,
degrau acessível
apenas ao desenhista vidente. Mas isso não inviabiliza o caráter lúdico
da atividade de
desenhar. Analisemos o depoimento de um paciente cego do Dr. John
Kennedy, professor
de psicologia da Universidade de Toronto, nos Estados Unidos. De início,
o paciente não
acreditava ser capaz de cumprir com a tarefa que lhe fora dada pelo
professor: fazer um
desenho. Diante da insistência por parte do psicólogo, ele concordou,
havendo passado
duas horas ininterruptas desenhando. "Meu Deus! Eu posso fazê-lo!",
disse ele, terminada a
tarefa. Evidencia-se que a tarefa trouxe alegria ao paciente, o que, no
caso, parece ter
sido o objetivo central. Não é a alegria um aspecto da felicidade, fim
natural de todo
homem, deficiente ou não? Não se pode esperar de um escultor cego a
mesma perícia
técnica de um colega que tenha a visão normal. Ademais, sob o ponto de
vista terapêutico,
não se pode esquecer que, no aprendizado das artes, os benefícios
alcançados por uma
criança cega são fundamentalmente os mesmos de que desfruta uma criança
vidente. Nesse
caso, como já se apontou, vale mais o modo como se dá o processo
criativo do que o
produto daí resultante.
Sabe-se que durante cerca de 15 anos Monet sofreu de catarata. Operado
com
sucesso em 1923, o pintor morreria três anos depois. Ainda que parcial,
a perda da
capacidade visual durante o período da doença foi um martírio para Monet.
Suas cartas o
revelam. Sentia-se "aniquilado" em 1911, reconhecendo a baixa qualidade
dos quadros
pintados nesse período. O que não impediu que fossem expostos e louvados
por críticos,
que Monet chama de "imbecis, esnobes e traficantes". Se o grande
impressionista não
abandonou completamente a pintura em virtude da doença, isso se explica
por ele não ter
ficado cego propriamente. Monet teve, isto sim, a visão muito
prejudicada, com oscilações
que causavam ora uma piora ora uma melhora da sua capacidade de ver.
Entusiasmava-se
às vezes, chegando a dizer em 1918: "Naturalmente eu continuo a
trabalhar com afinco
(...)". Noutras ocasiões era tomado por desânimo, como se vê nestas
linhas que escreveu em
1919: "Novamente minha visão foi alterada e eu terei que renunciar à
pintura". E nestas, de
1922: "Finalmente era necessário que eu reconhecesse que (...) já não
era capaz de produzir
nada de belo. E eu destruí muitos dos meus painéis. Hoje eu estou quase
cego e preciso
desistir do meu trabalho."
É admirável a honestidade e lucidez de Monet, diante de tamanha provação
que o
destino lhe impôs. Bem pior do que a surdez de Beethoven, que, como já
se falou, não o
impediu de compor, levando-nos a crer até mesmo que ela tenha colaborado
indiretamente
para a criação das suas obras-primas (cf. infra). E Monet, frise-se, é
reconhecido como um
dos maiores pintores de todos os tempos. Por motivos mais do que justos,
o estilo
impressionista chega a confundir-se com o seu nome. Terá o caso de Monet
alguma relação
com o da norte-americana Lisa Fittipaldi, recentemente descoberta pela mídia e tida por
alguns como "uma artista que tem o gênio de Da Vinci, Beethoven e
Picasso" - A meu
ver, nenhuma.
Lisa era uma profissional liberal bem sucedida até que, em 1993, começou
a ter
problemas visuais, que progressivamente se agravaram. Dois anos depois,
começou a
pintar, incentivada pelo marido. Seus quadros têm sido apreciados e
vendidos. Os fundos
arrecadados destinam-se à The Minds Eye Foundation, associação criada
por ela e que tem
por meta a educação do público no referente à cegueira, assim como a
ajuda a crianças
cegas e surdas. Ocorre, entretanto, que Lisa não é completamente cega,
embora faça
questão de ser reconhecida como tal. É obviamente louvável que ela
encontre satisfação
na pintura e que dê uma dimensão social tão nobre a essa atividade –
refiro-me à instituição
que ela criou. Por outro lado, se o caso de Lisa não é exatamente
cegueira, mas sim visão
subnormal (como tudo indica ser), sua pintura deixa de constituir um
fato inédito. E a sua
proposta de conscientização do público quanto ao que venha a ser a
cegueira frustra-se já
nas bases, uma vez que confunde mais do que esclarece. Monet, como se
viu há pouco,
continuou pintando em situação semelhante à de Lisa, e os resultados
alcançados foram os
piores da sua carreira, sendo ele o primeiro a comprovar.
Se Lisa Fittipaldi de fato é cega, como quer ser reconhecida (I want to
be known as
an artist who happens to be blind.), estamos diante de um milagre, ou
no mínimo de um fenômeno nunca antes constatado na História da Arte, merecedor por isso
da maior atenção
e louvor por parte da crítica. Permanecendo, mesmo assim, insustentável
a aproximação
feita entre ela e Da Vinci, Beethoven, Picasso ou quaisquer outros
gênios, uma vez que a
genialidade não consiste na capacidade de fazer algo bem feito, como são
de fato os
quadros de Lisa. A genialidade – este dom que a natureza concede a
certos homens,
tornando-os incomparavelmente superiores aos seus semelhantes em certos
campos de
atividades – é algo que não pode ser perfeitamente explicado e nem
compreendido,
residindo nela um dos grandes mistérios não só da arte mas da própria
natureza humana. Se
Lisa tem visão subnormal, sua obra deixa de ser algo excepcional, vindo
a enquadrar-se no
âmbito das possibilidades previstas para o seu tipo de deficiência. O
que leva a concluir que
o suposto fenômeno ou milagre relativo à sua pintura explica-se através
de uma estratégia
inescrupulosa de marketing. E a "façanha" de Lisa como pintora cega
mostra-se infundada.
Voltando ao tema da exposição fotográfica, referido há pouco, deve-se
destacar que
as fotos, no que têm de visual, não podem ser desfrutadas pela
fotógrafa.
Independentemente da iniciativa louvável da organizadora da exposição e
do empenho dos
cegos que fotografaram, a fotografia continua sendo uma arte visual em
sua essência. Esse
fenômeno enquadra-se nos raros exemplos de que se tem notícia, em que o
resultado
artístico não é apreciado por aquele que o produz. E relaciona-se com
uma situação
curiosa, que às vezes ocorre no campo da arte: certas atividades
artísticas, para serem bem
sucedidas, devem encobrir a figura do próprio artista. É o que
geralmente ocorre na arte do
restauro. A obra bem restaurada é aquela em que o trabalho de
restauração não é
percebido. A qualidade de uma restauração artística cresce na razão
inversa à da presença
do restaurador na obra restaurada. Quanto menos ele aparece, e mais se
oculta, melhor é o
seu trabalho. Daí vem a afinidade dessa situação com a do cego que
produz obras plásticas.
É uma afinidade entre duas atitudes que aparentemente se opõem, mas que
na prática
podem ser tidas como complementares. O restaurador precisa desaparecer
ao longo do
processo para que a sua arte seja devidamente apreciada; o artista
plástico cego precisa
enfatizar a sua presença no processo criativo, uma vez que o produto
final da arte não será
visto por ele. Para o restaurador o processo deve permanecer oculto,
pois lhe interessa ver
apenas o produto; para o artista plástico cego, vale mais o processo,
pois é o produto que
estará na ocultação. O que o restaurador esconde é o que o cego prioriza;
o que o
restaurador vê é o que se esconde do cego. Outra circunstância
pertencente ao mesmo
contexto é a do cego atuando na arte teatral ou mesmo no cinema. Como
forma de terapia,
ou recurso pedagógico para o desenvolvimento da personalidade total,
isso pode render
excelentes frutos. Mas além do fato de que o cego não pode, ele mesmo,
desfrutar da
parte visual do teatro ou do cinema como espetáculo (cf. radical
indo-europeu spek = ver,
observar), há outro impedimento, este de ordem técnica. Um ator cego
tende a ficar restrito
a papéis que representem a cegueira. E a cegueira não é tema recorrente
nem no teatro nem
no cinema. Além disso, um ator vidente pode desempenhar bem o papel de
cego; a
recíproca é quase impossível. Em contexto próximo, tem-se o caso do ator
Christopher
Reeve. Após o acidente que o impediu de andar, sua carreira
cinematográfica restringiu-se
a papéis condizentes com a sua situação real: é o caso do protagonista
de Janela indiscreta,
de Hitchcock, em que substituiu com eficácia a James Stewart, na versão
original.
[...]
Considerando os nossos cinco sentidos externos, cabe insistir na análise
relativa ao
privilégio estético dos olhos e dos ouvidos. Isso é fundamental para a
compreensão efetiva
das possibilidades estéticas do homem que não vê. Será discutido no
próximo item.
4.3 Da sensibilidade
O contato que temos com o mundo inicia-se nos sentidos. Todos eles, cada
um à sua
maneira, são capazes de nos transmitir prazer ou desprazer. Como bem
observa Helen
Keller, "as maravilhas do Universo nos são reveladas na mesma medida em
que somos
capazes de percebê-las". Geralmente, usamos os sentidos sem dar atenção
a esse ato de
utilizar; o mecanismo da sensibilidade funciona de forma espontânea, sem
que nos
esforcemos para isso. Para o homem que tem os olhos sãos, ver é uma
atividade tão natural
quanto a de respirar.
Por natureza preferimos as sensações agradáveis às desagradáveis. E
nesse processo
de escolha sobressai mais uma vez (cf. supra) o privilégio assumido pela
visão. Nosso
verbo "aprazer", de origem francesa, indica, em princípio, o ato de
agradar,
independentemente do alvo sensório que tem esse agrado. Não obstante, na
prática, quando
dizemos que algo é "aprazível", quase sempre estamos a nos referir a uma
circunstância
pertencente à órbita da visão. Assim, por exemplo, lemos em Bocage:
"Aqueles campos,
aprazíveis campos, que além verdejam, do meu mal souberam a origem".
Como percebeu Aristóteles, o sono é faculdade comum e vital para todos
os
animais. Entretanto, nem sempre é fácil compreender a sua necessidade. O
próprio
coração e outras partes do corpo não interrompem jamais a sua atividade.
Por outro lado, o
sono atua como recurso fisiológico voltado para a conservação das
energias da maior parte
do corpo, que não estejam sendo utilizadas enquanto dormimos. Além
disso, parece
contribuir significativamente para o nosso equilíbrio neurovegetativo.
Quando
dormimos, fechamos os olhos, recusando-nos assim ao ato de ver. A
audição, o olfato, o
tato e o paladar funcionam independentemente da nossa vontade. Sua
neutralização requer
situações excepcionais: enfermidade ou autocontrole fora do comum. Mas
só os olhos têm
o poder de, por si mesmos, recusar os objetos que a eles se endereçam:
basta fechá-los para
que não vejamos o que não queremos ver. Segue-se a isso o adágio: o que
os olhos não
vêem, o coração não sente.
O sono traz a inibição a todo o campo da sensibilidade. O fato de os
sentidos se
acharem amortecidos durante o sono não impede que tenhamos, de forma
ilusória,
impressões sensíveis com as mesmas características que teríamos em
estado de vigília.
Quando sonhamos, "vemos" as coisas como se estivéssemos acordados. Uma
das
diferenças básicas está no tempo em que transcorrem as nossas impressões
virtuais durante
um sonho. Num sonho que dure poucos minutos podemos vivenciar
virtualmente um tempo
muito mais longo. Também ocorre o oposto: um período extenso de sono
pode parecer para
a pessoa que dorme e sonha, um tempo mínimo. Quando dormimos, mantém-se
o privilégio
visual da recusa deliberada, mesmo porque, no que tange à sensibilidade,
são os olhos que
protagonizam o processo natural de repouso, que atinge no sono a sua
forma mais perfeita.
Durante o sono, os outros sentidos encontram-se em estado latente de
atuação. Prova disso
é que podemos ser despertados por sons, aromas, gostos ou toques; mas,
normalmente, não
por um objeto visual, estando os olhos fechados e sem que haja mudanças
na iluminação do
ambiente em que dormimos.
Por interromper o nosso contato com o mundo, o sono, já havia observado
Homero,
assemelha-se à morte. Nela a sensibilidade acha-se naturalmente
amortecida. Mas é
apenas quando o homem está morto que os seus sentidos se equivalem de
maneira plena
uns em relação aos outros.
Todas as nossas experiências sensoriais - o que vale para as sensações
visuais,
auditivas, gustativas, olfativas e somestésicas (ou seja, o tato, a
pressão, o calor, o frio, a
dor e a angulação das articulações) - são levadas a partir dos órgãos
dos sentidos
responsáveis por tais sensações até certas áreas determinadas do córtex
cerebral. É aí que a
maior parte do material sensível armazenado converge para uma área
interpretativa comum.
Trata-se da área de "Wernicke", ou gnóstica, sendo nela que o processo
cognitivo alcança o
apogeu. A importância da área de Wernicke é tal que basta ser lesionada
para que a pessoa
fique sujeita à incapacidade mental completa, dependendo, é claro, da
gravidade da
lesão.
Vistos esses pormenores, passemos ao comentário sucinto de certas
características
específicas de cada um dos cinco sentidos.
O papel preponderante desempenhado pelo sentido da visão evidencia-se já
na fase
embrionária do ser humano. Nosso aparelho visual aperfeiçoou-se
lentamente, ao longo
do processo de evolução do homem na Terra. E isso foi acompanhado pelo
aperfeiçoamento do cérebro. Graças a essa evolução conjunta dos olhos e
do cérebro, a
visão e a compreensão do mundo tornaram-se mais acessíveis ao homem.
Como já foi dito, não menos do que 80% da nossa percepção do mundo é
visual.
Operando mediante a interação dos olhos, do nervo ótico e do cérebro, o
processo de
visualização é condicionado pela existência da luz. No que encontramos
uma justificativa
fisiológica para as teorias estéticas que enfatizam a importância da
luminosidade (cf.
supra).
Embora os olhos sejam tão importantes para nós, existem muitos animais
(vários
deles insetos) que nos superam em alguns aspectos das potencialidades
visuais. Vê-se,
pois, que o privilégio humano de usufruir esteticamente dos objetos
visuais não decorre de
premissas puramente fisiológicas.
Compartilhando com os olhos a primazia sensória, os ouvidos
apresentam-se também em
forma de par. Em caso de cegueira, como já se falou, o ouvido tende a
assumir cerca de
75% das nossas experiências sensórias. Dividido em três segmentos
(externo, médio e
interno), cada ouvido é responsável por captar a manifestação sonora e
transmiti-la ao
córtex auditivo primário, onde é feita a interpretação da altura e do
ritmo. Posteriormente,
esse material alcança as áreas associativas auditivas, em que se dá a
diferenciação entre
sons e ruídos. Quanto à percepção dos sinais sonoros característicos da
linguagem, cabe às
áreas associativas auditivas a combinação das sílabas, palavras e
frases. A sua compreensão
definitiva, porém, sob a forma de pensamentos, tem lugar na área de
Wernicke. Nela esses
dados auditivos integram-se ao material já elaborado e proveniente dos
outros órgãos dos
sentidos. Também é na área de Wernicke que se origina o processo
relativo à fala. Eis um
indicativo importante da vocação superior do nosso sistema auditivo, uma
vez que a
expressão e a compreensão da linguagem são atividades desempenhadas
unicamente pelo
homem. Trata-se, inclusive, de um fator fundamental para a estruturação
da própria
sociedade. Realmente, conforme constata Aristóteles:
A razão pela qual o homem é um ser social, mais do que qualquer abelha
ou animal
gregário, é evidente: a natureza, como dissemos, não faz nada em vão, e
o homem é o
único animal que tem palavra.
É conveniente insistir que os ouvidos não requerem esforço voluntário
por parte do
homem para que sejam ativados. Nisso eles diferem fundamentalmente dos
olhos, que, para
ver, exigem movimentos das pálpebras, do globo ocular e da cabeça. Nosso
sistema
auditivo percebe estímulos de todas as partes do espaço; a visão humana,
em contrapartida,
limita-se ao seu campo visual específico. Não obstante essa redução de
campo face aos
ouvidos, os olhos os superam quanto ao seu alcance em direção retilínea:
em geral um
homem é visto a uma distância muito superior em relação àquela em que
somos capazes de
ouvir o som da sua voz e o de seus passos.
O paladar é considerado um sentido químico, uma vez que o estímulo dos
receptores
gustativos se dá mediante a atuação de substâncias químicas presentes
nos alimentos.
Originando-se nas papilas gustativas, localizadas na membrana mucosa da
boca, a sensação
de gosto chega ao córtex primário relativo à gustação, para depois
alcançar a área
associativa do paladar. Finalmente, já na área de Wernicke, esse
material integra-se às
diversas outras sensações.
Por estar diretamente ligado à alimentação, atividade essencial para a
sobrevivência,
o prazer gustativo caracteriza-se pelo interesse. O que já basta para
excluir o paladar do
circuito específico da Estética, uma vez que a apreensão do belo é, em
essência,
desinteressada.
Tal como o paladar, o olfato é um sentido químico. O processo de
percepção dos odores
tem início nas células olfativas, localizadas na parte interna superior
do nariz. Daí, a
sensação olfativa é enviada ao córtex cerebral, de onde chega à área de
Wernicke, unindo-se então ao restante do nosso material sensório, já devidamente
elaborado.
O olfato é o nosso sentido fisiologicamente menos desenvolvido.
Comparativamente a outros animais, o olfato humano chega a ser quase
rudimentar, como
diz Arthur Guyton. Considerando o cérebro humano no seu estado atual,
vê-se que ele
resulta de uma evolução vagarosa, que o fez aumentar de tamanho. Nesse
processo, como
falou-se há pouco, a visão foi altamente beneficiada, intensificando-se
o seu poder e a sua
importância. O contrário ocorreu com o sentido olfativo, que declinou
quanto à sua
capacidade inicial. É significativo que Buffon tenha rebaixado o olfato
à órbita da pura
animalidade, que Kant o tenha deixado de fora das fronteiras da Estética
e que vários
fisiólogos o vissem apenas como um "resíduo da evolução".
A experiência olfativa mostra-se, tal como ocorre no caso do paladar,
intimamente
compromissada com a esfera da sobrevivência: via de regra, os odores
agradáveis são
benéficos para o organismo, e os desagradáveis lhe são nocivos – o mesmo
se diga em
relação aos sabores. Além disso, sentimos os odores ao mesmo tempo em
que respiramos.
E o ato de respirar, de forma ainda mais nítida do que a alimentação, é
vital para o
organismo. A história registra diversos casos de pessoas que passaram
períodos longos sem
ingerir alimentos. Trata-se, inclusive, de uma prática relativamente
comum entre os ascetas.
Mas não se pode inferir uma regra a partir disso. Existe a probabilidade
(mínima) de que
um cigarro atirado ao solo caia e se mantenha em posição vertical; nem
por isso se pode
dizer que os cigarros atirados ao solo caem e se mantêm em pé. Seja como
for, não há
registros que falem de um ser humano que tenha sido capaz de abrir mão
do ato de respirar.
No caso da pessoa cega, o olfato tende a desempenhar função importante,
na
dinâmica de orientação. É comum que o cego diferencie o ambiente a
partir dos odores
característicos que o circundam: conhece a sapataria pelo cheiro de
couro, a farmácia pelo
de medicamento e assim por diante.
Pertencente ao âmbito das sensações somestésicas, que têm sua origem na
superfície do
corpo ou em suas estruturas profundas, o tato está diretamente ligado ao
mundo exterior.
Nisso consiste uma importante diferença entre ele e os outros quatro
sentidos externos, que
são protegidos do contato direto: os olhos têm as pálpebras; os ouvidos,
as orelhas; o
paladar, a boca; o olfato, o nariz.
A sensação táctil começa com a ação de receptores sensoriais
somestésicos
altamente especializados, tais como o corpúsculo de Meissner, que
apresenta sensibilidade
extrema a tudo o que toca a superfície corpórea, ainda que de forma
sutil. Há grande
concentração de corpúsculos de Meissner nas pontas dos dedos das mãos; é
o que
possibilita a percepção precisa da forma e da textura dos objetos e o
que faz do tato o único
sentido através do qual superamos, quanto à precisão, todos os outros
animais. Daí haver
uma definição do homem centrada na posse das mãos: o homem, pensava
Anaxágoras na
Grécia antiga, é um animal que tem mãos. O sábio grego não deve ser
interpretado ao pé
da letra. Porque, sob o ponto de vista estrutural, as patas dos membros
superiores dos
macacos podem ser consideradas mãos. A diferença, ainda quanto à
estrutura, é pequena:
consiste basicamente no uso oponível do polegar, que é mais desenvolvido
no homem. Daí
poder-se dizer que a diferença entre as nossas mãos e a dos outros
primatas superiores é
muito mais de ordem funcional do que estrutural, no sentido anatômico do
termo. Seja
como for, tudo indica ter havido uma relação estreita, em nossos
antepassados pré-históricos, entre o aperfeiçoamento da estrutura anatômica da mão, o
nascimento da cultura
e o aumento do tamanho do cérebro. Chega a ser quase impossível imaginar
a aparição
das artes do espaço sem a colaboração das mãos. Talvez o Salmista
pensasse nisso ao dizer
que o Universo é obra dos dedos de Deus. Mas isso não impede que, na
impossibilidade
de usar as mãos para criar, o homem se sirva de outros recursos, a
saber, a boca ou os pés.
É, por exemplo, o caso do pintor espanhol Christóbal Moreno-Toledo, hoje
reconhecido
mundialmente como um grande artista.
As dores sentidas na superfície do corpo acham-se diretamente
relacionadas com a
percepção táctil. Sendo a dor um alarme de importância básica para o
nosso bem-estar
físico, a sua relação estreita com o tato faz dele um sentido incluído
na órbita do interesse
ditado pela necessidade premente que têm todos os seres vivos de
preservar a
sobrevivência. Ademais, o tato, por expandir-se através de todo o
exterior do corpo, tem
participação central na esfera da sexualidade, bem como, obviamente, nos
prazeres que ela
proporciona. Desse modo, tal como o paladar e o olfato, o tato
distancia-se do território
específico da Estética, regido que é pela gratuidade das suas
experiências. Conforme já
se falou, é expressivo que, a despeito da nossa preferência espontânea
pelo olhar, não haja
uma definição do homem construída a partir da visualidade. Não se diz,
por exemplo, que
"o homem é um animal que vê". Pois isso não define o homem, da mesma
forma como
"animal que respira" tampouco o faz. A maioria dos animais tem olhos, e
todos eles
respiram. Mãos, porém, com um grau de perfeição como as do homem, são
órgãos que só
ele possui. Daí se prestarem, com eficácia incomparavelmente maior do
que os olhos ou os
pulmões, a nos dizer o que o homem é.
É ainda através das sensações somestésicas que percebemos o calor, o
frio – como
foi dito há pouco – e também o vento. São referências importantíssimas
para o não-vidente,
na medida em que lhe permitem configurar mentalmente um mapa topológico,
dando-lhe
ainda a possibilidade de conhecer as fases essenciais do dia: o cego
sabe que é de manhã,
porque o Sol atinge-o no rosto, diferentemente do que ocorre por volta
de meio-dia, por
exemplo, quando sente os raios solares sobre a cabeça.
4.4 Da especificidade da experiência estética
Para o homem que nasce e vive na plena posse das suas potencialidades
fisiológicas,
as deficiências físicas e mentais podem parecer meras abstrações. É-se
propenso a ignorar
que algumas atividades aparentemente instintivas (e. g., amarrar os
cordões dos sapatos)
muitas vezes requerem um aprendizado complexo por parte da pessoa cega.
Os olhos dirigem-se espontaneamente para fora do nosso corpo. Protegidos
pelas
pálpebras e pelas pestanas, constituem o nosso recurso mais eficaz para
o conhecimento das
realidades que nos são externas. Localizando-se no centro da face, os
olhos podem ser
movidos em todas as direções; paradoxalmente, olham para tudo e para
todos, exceto para
si mesmos e o local em que se encontram. O inacessível visual
encontra-se nos extremos: o
objeto muito distante não é visto com clareza, acontecendo o mesmo com o
que está muito
perto.
No âmbito auditivo, o contexto perceptivo é bastante distinto. A
audição, por
natureza, tende para o interior do corpo, como confirma o próprio
mecanismo do órgão
auditivo. Isso indica a maior vocação espiritual dos ouvidos. Mas a
prova principal do
vínculo intrínseco entre a audição e a espiritualidade, temos nos
efeitos que a música exerce
sobre nós. Arte essencialmente auditiva, a música, dentre todas as
artes, é a mais apta a nos
comover espiritualmente. Daí a sua utilização recorrente em rituais e
cerimônias religiosas,
nas mais diversas culturas. Diferentemente do que se dá no campo da
plástica, percebido
principalmente pelos olhos, a audição musical exige atenção
ininterrupta. O homem que
contempla um quadro ou uma escultura pode, durante esse processo,
desviar a atenção e
mesmo o olhar; isso não compromete a sua capacidade de apreciação da
obra. Já o ouvinte
que deixa de escutar um trecho de uma música precisa, para ter uma
apreciação devida da
obra, escutá-la inteira outra vez. É justamente essa concentração
extrema requerida pela
música que tanto a aproxima da nossa dimensão espiritual.
Os olhos e os ouvidos podem, às vezes, encontrar-se em oposição. O
prazer estético
decorrente da visita a uma exposição de belas obras visuais pode ser
comprometido pela
manifestação de sons incompatíveis com as imagens expostas, e.g., uma
música de má
qualidade. Em analogia, cenas esteticamente desagradáveis tendem a
prejudicar a fruição
da beleza de uma bela música. No primeiro caso, é preferível fechar os
ouvidos; no
segundo, os olhos.
Essa oposição circunstancial entre a visão e a audição encontra um
paralelo
interessante na interferência eventual do olfato sobre o paladar. Na
medida em que ambos
são acionados através de processos químicos, dá-se às vezes uma
perturbação
proporcionada pela própria dinâmica de complementaridade que os rege.
Odores e sabores
são propensos a se aproximarem. A cor atraente de um alimento não é
garantia de que ele
agrade ao paladar. Já o odor agradável prenuncia o bom sabor, permitindo
inclusive uma
noção aproximada do prazer gustativo a ser proporcionado. Esse
encadeamento é tão
estreito que, em certas ocasiões, o olfato, por estranho que possa
parecer, desfavorece o
agrado próprio do paladar. É comum que os cozinheiros desfrutem pouco
dos alimentos que
eles mesmos preparam. Pois, durante o ato de cozinhar, o olfato,
amortecido pelos odores
que emanam dos alimentos, costuma gerar uma saciedade gastronômica
precoce.
A vivência do belo tende a ser inesgotável, contrariamente ao que em
geral ocorre
no campo do paladar, do olfato e do tato. Nesses sentidos, em geral o
prazer é condicionado
por fatores de ordem fisiológica. Não há limites impostos pela
fisiologia para o tempo
durante o qual os olhos podem desfrutar de uma bela paisagem – ou os
ouvidos, de uma
bela canção. Já os prazeres gustativos, olfativos e tácteis são
propensos a encontrar um
ponto definido de saturação. Via de regra, se uma pessoa demonstra
desinteresse relativo ao
belo visual, isso decorre de vetores de ordem cultural, não da natureza.
No caso daqueles
três sentidos, a relação acha-se precisamente invertida. O homem que
rejeita um alimento
move-se, normalmente, por prerrogativas fisiológicas e não culturais.
O mesmo tipo de referência pode ser feito quanto à questão do consenso,
no que
tange às preferências e rejeições sensórias. Nos sentidos mais ligados à
sobrevivência, a
concordância entre os homens é mais fácil de ser atingida do que nos
sentidos superiores,
quando se trata de escolher entre o melhor e o pior. Sobretudo se são
situações extremas na
escala vital. Excetuando circunstâncias inusitadas, o homem prefere
tocar a relva fresca à
lenha fumegante; elege-se o sabor da fruta, não o do papel que a
envolve; escolhe-se o
aroma das flores, não o odor de monóxido de carbono. Já os olhos e os
ouvidos, quando
atuam esteticamente, geram opiniões freqüentemente discordantes, o que
ajuda a explicar o
caráter essencialmente impreciso da Estética como disciplina.
Conforme foi visto, sentidos como o olfato e o paladar mostram-se
inadequados
para a percepção do belo, mercê do parentesco essencial que os une à
esfera da pura
sobrevivência. De certo modo, o tato enquadra-se na mesma situação. É
por causa do
mesmo parentesco que esse três sentidos são chamados inferiores.
A afirmação precedente não implica a inexistência de toda e qualquer
ligação entre
esses sentidos e o fenômeno estético. Indiretamente, isso pode ocorrer.
No conto A festa de
Babette, isso se comprova (cf. supra). Ademais, o tato pode, em certas
situações, transmitir
a beleza plástica, permitindo assim que um homem cego perceba e até crie
o belo
escultórico. O próprio olfato, embora seja o mais primitivo e menos
imprescindível dos
nossos sentidos, pode contribuir para a realização de experiências
ligadas a instâncias
superiores do nosso ser, como é o caso da apreensão da beleza. Isso
devido ao vínculo que
há entre os sentidos, a memória e a imaginação. É o que proporciona a
associação de
certos odores com ambiências espaciais determinadas e com fatos já
ocorridos. De modo
geral, é um fenômeno acessível a todos os homens. De acordo com José
Espínola Veiga,
Também a beleza do ambiente pode chegar à imaginação do cego através do
olfato: o
perfume das flores silvestres, o cheiro do capim-gordura, o aroma do
matagal em flor, o
cheiro emanado do chão quente ao receber a chuva repentina, tudo
desperta na alma do
cego uma sensação de prazer, de alegria e - por que não dizer? - de
beleza, muito maior
do que recebem as pessoas de olhos abertos nas mesmas circunstâncias.
O autor confunde a sensação de bem-estar corpóreo ocasionada pelo agrado
olfativo com a
experiência estética propriamente dita. O aroma agradável das plantas
regadas pela chuva
não implica que o ambiente seja belo. Pode perfeitamente ocorrer o
contrário. Além disso, a
sensação de prazer olfativo desfrutada pelo cego não é forçosamente mais
intensa que a das
pessoas que vêem. É bem verdade que, podendo ver, o homem tende a dar
menor atenção
ao sentido olfativo; assim como o cego, por não enxergar, é propenso a
desenvolver mais o
olfato, já que a própria vida quotidiana leva-o a utilizá-lo com mais
freqüência. Mas isso
não é regra geral. Pois tal como há pessoas que utilizam intensamente os
cinco sentidos
externos, alcançando grande acuidade em todos eles, existem cegos que
não chegam a
desenvolver os quatro sentidos restantes de forma conveniente.
O fenômeno da associação entre o aroma e o ambiente, que permite ao cego
imaginar a beleza do espaço ao redor, encontra restrições. Sabemos que o
homem que
nasceu cego ou que contraiu cegueira após a idade aproximada de seis
anos não dispõe de
imagens visuais na memória. Como poderá então, por mais agradável que
seja o aroma,
imaginar a beleza no sentido espacial do termo? O prazer olfativo não
possui qualquer
vínculo direto com a beleza. O cheiro da tinta fresca de uma pintura
nada nos informa,
diretamente, do seu teor estético. Por outro lado, de forma indireta,
uma ambiência espacial
pode muitas vezes ser evocada pelo olfato. Há inclusive certas
tendências que se
fortaleceram ao longo da história. Através da imaginação, o aroma de
incenso costuma
conduzir-nos à atmosfera exótica inerente a uma cena oriental: por
exemplo, um mercado
persa. E nada impede que, na imaginação, o mercado nos pareça belo. Mas
para que isso
ocorra, é necessário que já tenhamos visto uma cena oriental - ao menos
através de
desenhos, pinturas ou fotografias. Pois a beleza em questão continua
sendo uma qualidade
inerente ao âmbito visual.
Se homem cego não possuir registros visuais na memória, a construção do
espaço
circundante através da imaginação acha-se comprometida em suas bases.
Pois a
imaginação, como o nome já diz, é a faculdade responsável pela
construção de imagens,
que são, por sua vez, elementos diretamente relacionados com a órbita da
visão, tal como se
dá com a beleza da cena oriental recentemente referida.
A palavra "imagem" é tomada aqui no seu sentido primitivo. Pois é nele
que
encontraremos o esclarecimento adequado ao assunto em tela. Tanto na
cultura grega
quanto na latina, prevalece o conceito de "imagem" como designativo da
semelhança ou
vestígio deixado pelas coisas percebidas em nossa alma, podendo ser
mantida
independentemente da presença dessas mesmas coisas. A percepção, como
sabemos,
desdobra-se através dos nossos diversos sentidos. Ora, as imagens das
coisas percebidas
podem ser de caráter visual, auditivo, táctil e assim por diante; todos
os nossos sentidos
imprimem "imagens" na alma. Não obstante, a palavra "imagem" funciona
preferencialmente no campo da visualidade, confirmando a tendência
natural que têm os
olhos de atuarem como representantes da sensibilidade como um todo.
As imagens (phantasmai), para Aristóteles, comportam-se como as próprias
coisas
sensíveis que elas representam, faltando-lhes, porém, a matéria. Para
que as imagens
possam se manifestar na alma, é necessário não apenas que os objetos
representados
existam previamente em relação a elas; também é mister que haja o
contato prévio, através
da percepção, com tais objetos. Daí a imaginação ser entendida como a
faculdade de
criar as imagens das coisas independentemente da presença dessas mesmas
coisas.
Percebe-se assim a ligação intrínseca que existe entre a imaginação e a
memória: são
faculdades que vigoram em constante interação. De fato, como observa
Santo Agostinho,
As imagens originam-se das coisas corpóreas e são recebidas através das
sensações.
Estas, uma vez que as recebemos, podem ser lembradas com grande
facilidade,
distinguidas, multiplicadas, reduzidas, estendidas, ordenadas,
resolvidas e recompostas
da maneira que mais agrade ao pensamento.
4.5 Mito e preconceito
Para que sejam vencidos os obstáculos sociais enfrentados pelo cego em
sua comunidade,
deve-se partir de uma análise imparcial do tema da cegueira. O mesmo se
diga em relação
às outras formas de deficiência. Para o surdo, e. g., é forçoso admitir
que a música reduz-se
basicamente às dimensões do ritmo e da intensidade - e mesmo assim com
muitas reservas.
Quanto ao timbre (que Charles Lalo considera acertadamente um "fator
qualitativo por
excelência") e à altura sonora, tornam-se inapreensíveis, já que o tato
não os percebe; a
situação desses elementos é análoga à da cor em relação ao cego, na
maioria das vezes. A
passagem seguinte, de Olga Skorokhodova, é, mutatis mutandis, tão
imprecisa quanto a de
José Espínola Veiga, citada no item anterior: "(...) uma pessoa cega e
surda pode captar
perfeitamente [o grifo é meu] a sensação de um som, de uma voz ou de um
instrumento, e
apreciar assim a música". É ainda o mesmo problema que comparece em
passagens
como esta, de Helen Keller:
No dia seguinte, pela manhã, o aspecto da paisagem se havia modificado
inteiramente;
as rotas haviam desaparecido por completo, assim como as linhas que
limitavam os
campos. Um deserto de neve estendia-se aos limites do horizonte; as
árvores emergiam
como fantasmas brancos.
Por mais otimistas e empolgantes que sejam os testemunhos de José
Espínola Veiga,
Olga Skorokhodova e Helen Keller, isso não torna as suas afirmações
necessariamente
corretas. Há uma diferença muito grande entre afirmar um fato e a
comprovação da sua
veracidade. Nos três casos – e vale enfatizar que trata-se de três
pessoas cegas –, o discurso
é caracterizado pelo verbalismo: as palavras emitidas carecem de sentido
e substância para
aquele que as emite. Isso não significa que o cego não deva utilizar,
por analogia, palavras
que representam coisas alheias ao seu universo sensório: o céu, por
exemplo. Pode-se dar a
uma criança cega uma idéia aproximativa do significado da palavra "céu"
conduzindo-a a
um ambiente aberto, pedindo-lhe que estique os braços tanto quanto puder
e explicando-lhe
que o céu está, na direção vertical, muito além do poder de alcance
manual de qualquer
pessoa.
De que adianta substituir o preconceito por um mito? O filme Perfume de
mulher
(Scent of woman), de Martin Brest, apresenta o mesmo tipo de equívoco
presente em José
Espínola Veiga, Olga Skorokhodova e Helen Keller. É viável que o cego
protagonista,
interpretado por Al Pacino, tenha um olfato extraordinário, que lhe
permita perceber
nuanças olfativas que escapam à maioria dos homens. Como também é de se
crer que ele,
ao sentir o aroma agradável do perfume de uma mulher, forme dela uma
imagem
esteticamente positiva. Não obstante, mesmo considerando que a
personagem não seja cega
de nascença, a experiência, tal como se expõe no filme, é irrealizável.
Por mais que o olfato
concentre poderes sugestivos, ele é incapaz de captar as cores dos
cabelos e dos olhos
femininos, como o filme leva a crer, sobretudo no final. Esperar do
olfato a percepção
colorística equivale a dar aos pulmões a tarefa de digerir alimentos, ou
ao estômago a de
respirar.
É impossível que Helen Keller conhecesse efetivamente o conteúdo destas
sentenças que escreveu:
Quando o Sol se alastrava pelas folhas vermelhas e douradas, quando a
uva adocicada
começava a assumir, no fundo do jardim, os tons castanhos da maturidade
(...)(...) miss
Sullivan descrevia-me as cenas magníficas que nos circundavam; os grupos
de belos
edifícios, as lagoas consteladas de barcos, (...) o lago azul e
profundo. Como o
espetáculo era belo.
Havendo desenvolvido prodigiosamente a linguagem, Helen Keller – não
deixa de ser triste
constatar – vivia muitas vezes num mundo feito mais de palavras do que
de coisas
concretas. Tão fortes eram as impressões causadas pelo que lhe era dito
por Anne Sullivan
e pelo que lia diretamente em braille que Helen Keller parece ter
pensado que ela mesma as
havia formulado com propriedade.
Para romper as barreiras sociais que provocam o estigma da exclusão
relativa aos
cegos e ao deficiente em geral, é preciso que sejam devidamente
avaliadas as possibilidades
em contexto. É louvável que haja esportes e olimpíadas adequados às
pessoas
deficientes. O problema está na inversão dos pólos do preconceito,
transformando-o em
mito: fazer do deficiente um ser superior aos homens normais. Longe de
ser um filme que
exalta ou mesmo valoriza a figura do cego, Perfume de mulher, de Martin
Brest, faz dele
uma caricatura, concedendo-lhe poderes que escapam às suas
possibilidades. Recordemos o
episódio em que o protagonista dirige um automóvel em disparada pelas
ruas de Nova
Iorque. Se isso já é difícil e arriscado para um homem que vê com
perfeição, o que dizer da
circunstância apresentada no filme? Tenta-se fazer da personagem cega um
homem que
supera os seus semelhantes que podem ver. Longe de concorrer para a
necessária
conscientização relativa ao problema da exclusão social dos cegos, o
filme confunde a
opinião pública sobre o assunto. Pode, inclusive, levar a pensar: se os
cegos podem ser
tão auto-suficientes, por que devemos nos importar com eles? Não se
vence o preconceito
substituindo-o pelo mito; este concorre apenas para gerar novos
preconceitos, às avessas.
O filme de Martin Brest evoca outro fator importante. Tapando os olhos,
o vidente
pode ter uma idéia do mundo do cego ; mas a recíproca não é verdadeira,
sobretudo
tratando-se de cegos que nunca viram, ou que não retiveram na memória as
impressões
visuais do tempo em que viam: o mundo visual, para o cego, é sempre uma
localidade
outra, estrangeira ao seu próprio habitat. Daí as dificuldades de
adaptação para um cego
que, porventura, passe a enxergar. É o que o filme À primeira vista, de Irwin Winkler,
retrata de forma objetiva e sincera. Os olhos funcionam, mas o cérebro
precisa se adaptar, a
fim de que aprenda a processar a informação visual, convertendo-a em
imagem
compreensível. Merece destaque, a propósito, a parte em que o
protagonista cego admite
suas limitações: "Nunca escrevi um livro, como Helen Keller; gostaria de
tocar piano como
Ray Charles e de cantar como Stevie Wonder – mas não posso". São
limitações que nada
têm a ver diretamente com a cegueira. E mesmo que tivessem, não seria
melhor admiti-las
do que negá-las?
O predomínio da visão sobre os outros sentidos é tão intenso que
chega-se às vezes
a conceder aos olhos poder condicionante sobre a própria realidade. No
Evangelho, tem-se
o exemplo clássico, na passagem em que Tomé mostra-se incrédulo diante
dos outros
apóstolos, que lhe diziam terem visto Cristo ressuscitado. Tomé
requisitava o testemunho
visual para crer no que lhe diziam. Finalizando este tópico, cabe uma
sentença lapidar, dita
no filme de Irwin Winkler: "o fato de não ver as coisas não significa
que elas não existam".
4.6 Da superioridade da visão e da audição
Em tese, o contato com o belo não é necessário para a vida, no sentido
unicamente
biológico da palavra. Ocorre, porém, que o homem não se contenta com o
mero fato de
estar vivo. Ser homem traz consigo necessidades alheias ao circuito
estreito da simples
sobrevivência, sendo este um fator essencial de diferenciação entre ele
e os outros animais.
Ainda que a beleza não seja necessária para sobreviver, o homem precisa
dela como alvo
das suas faculdades mais nobres.
Diferentemente do que se verifica no âmbito dos sentidos inferiores, a
visão e a
audição nos proporcionam o prazer desinteressado que caracteriza a
vivência da beleza.
Não que todos os prazeres visuais e auditivos sejam sempre gratuitos. O
homem que vê o
seu nome na lista dos premiados num sorteio sente prazer com essa visão.
Mas não é uma
experiência estética, dado o interesse externo que se liga ao ato de
ver. A situação será
outra se o seu nome estiver escrito com belos caracteres; nesse caso, o
prazer externo une-se ao estético. Mesmo assim, predomina o interesse relativo ao prêmio.
Pois é preferível
ver-se em situação favorável mediante a leitura de letras mal grafadas
do que desfavorecido
através de uma bela caligrafia. De igual modo, causa-nos prazer ouvir de
um médico a
notícia de que estamos curados de uma enfermidade. Não se trata, mais
uma vez, de um
prazer relacionado com a beleza, pois o interesse contido na notícia
prevalece de forma
absoluta. O quadro modifica-se quando supomos haver beleza na voz do
médico. Se a voz é
bela e a notícia é favorável à saúde, somam-se o prazer estético e o
interessado. Haverá
oposição entre os prazeres se a beleza da voz junta-se a uma notícia
contrária à nossa saúde.
Em situações normais, qualquer pessoa prefere ouvir, através de uma voz
feia, que está
curada. A beleza da voz que anuncia uma doença fatal a um homem não
compensa e nem
sequer ameniza o drama humano que aí se inicia.
Como já foi assinalado, os olhos são responsáveis por no mínimo 80% do
nosso
acervo sensível (cf. supra). Não se trata apenas de uma superioridade no
sentido
quantitativo. O fator qualitativo é, também, de fundamental importância.
As impressões
fornecidas pelos olhos caracterizam-se pela maior variedade e precisão.
Em outras palavras,
relativamente aos outros sentidos, a visão possui um poder mais intenso
de diferenciação. E
isso traduz uma premissa essencial: a proximidade natural entre a esfera
visual e a
cognitiva, na medida em que o conhecimento é, a rigor, um processo de
estabelecimento de
diferenças.
A relação estreita entre a visualidade e a instância intelectiva endossa
a propensão
que temos a concentrar nos olhos todo o nosso potencial estético. Homero,
como já foi
apontado, não desenvolve outras dimensões da beleza que não pertençam à
visualidade.
Dando crédito à tradição que afirma a sua cegueira, torna-se duplamente
expressivo o fato
de o pai da cultura ocidental limitar o belo ao plano da visão. Que um
poeta cego não fale
noutras formas de beleza a não ser a visual (ignorando as
potencialidades estéticas da
música e da própria literatura) justifica mais uma vez o caráter natural
da propensão a
colocar os olhos acima de todos os outros sentidos. Sendo também
oportuno relembrar o
caso de Borges, que além de nunca ter tido interesse pela música, já
cego, dedica boa parte
da sua obra ao tema da visualidade. (Por outro lado, não se pode negar
que tanto os escritos
de Homero quanto os de Borges possuam uma sonoridade essencialmente
musical.)
Embora Platão e Aristóteles tenham chamado a atenção para a beleza
auditiva, prevalece na
cultura ocidental a noção de que os olhos atuam como metáfora da
sensibilidade integral. É
o que temos sintetizado nesta passagem de Santo Agostinho:
De fato, pertence aos olhos o ato de ver. Contudo, também utilizamos o
mesmo verbo
para os outros sentidos quando, através deles, temos o intuito de chegar
ao
conhecimento. Assim, em vez de dizermos: "escuta como brilha", "cheira
como
resplandece", "saboreia como reluz" ou "apalpa como cintila", dizemos
que todas essas
coisas são vistas. Entretanto, não dizemos apenas: "vê como brilha", o
que cabe
exclusivamente aos olhos perceber, mas também: "vê como ressoa", "vê o
aroma que
tem", "vê que gosto tem", "vê como é duro".
É bem verdade que o mundo em que habitamos se revela de forma
predominantemente
visual, o que justifica a supremacia de metáforas relacionadas com a
visão quando nos
servimos da linguagem para falar do conhecimento. Não é, porém, um
domínio absoluto: há
situações em que metáforas originárias dos sentidos considerados
inferiores penetram no
território da audição e até mesmo da visão. Pois não é legítimo falar em
cores quentes e
frias, na densidade de uma composição pictórica ou no sabor de um acorde
musical? As
próprias noções sonoras de agudo e grave, fundamentais em música,
derivam
essencialmente da experiência táctil. Entretanto, a predominância
sensória do olhar
revela-se um tópos praticamente inabalável ao longo da cultura
ocidental. Não admira
que, vários séculos depois de Santo Agostinho haver escrito as
Confissões, a beleza seja
resumida ao olhar de forma paradigmática, como se vê na já referida
sentença de Santo
Tomás de Aquino: "Dizem-se belas as coisas que agradam quando são
vistas".
Enfatize-se que o sentido empregado por Santo Tomás é de caráter
exclusivamente
metafórico, diferindo, pois, da postura de Homero, que de fato concentra
a beleza no
circuito da visualidade. Devendo também ser entendida como metáfora a
sentença de
Leonardo da Vinci: "Ora, não sabeis que com os olhos percebeis toda a
beleza do
mundo?" Não podemos esquecer que Leonardo, além de todos os seus
triunfos nas artes
visuais, era ainda músico: instrumentista e compositor. Tinha, portanto,
a experiência direta
do belo sonoro. Se o omite na sentença, é porque reconhece nos olhos uma
superioridade
estética em relação aos ouvidos. Mas voltemos a Santo Tomás. Seguindo
Platão e
Aristóteles, o sábio escolástico reconhece o teor estético da audição,
também ela em grau
de superioridade face aos outros sentidos. Falamos, de fato, em coisas
visíveis que são
belas (pulchra visibilia) e em belos sons (pulchros sonos); mas não em
belos sabores
(pulchros sapores) e tampouco em belos odores (pulchros odores).
Nessa hierarquia que rege a sensibilidade, a posição privilegiada do
olhar é
imediatamente seguida pela audição. Os ouvidos acham-se diretamente
conectados à
dinâmica da linguagem. É oportuno destacar que a linguagem escrita é uma
invenção
relativamente nova no âmbito da humanidade. O braille, sistema táctil, é
recentíssimo: data
do século XIX. E há sociedades que desconhecem tanto uma quanto outra
forma de
representação lingüística. A linguagem tem o endereço espontâneo da
audição. Fenômeno
especificamente humano, a fala caracteriza-se pela elaboração e emissão
de conceitos -
processo que inexiste nos animais irracionais, na medida em que seus
recursos
comunicativos não vão além da expressão de sensações todas elas contidas
no plano
estreito da sobrevivência; os animais são incapazes de designar e de
descrever os objetos do
seu próprio mundo. Para isso precisariam de conceitos, recurso de que só
o homem
dispõe. Tal como os animais irracionais, o homem não precisaria da fala
para expressar
suas aspirações primárias. Bastam-lhe gestos e expressões para
demonstrar que tem sono,
sede, ou que sente dor; e isso lhe permitiria ser compreendido por
outros homens em
qualquer lugar da Terra. Mas o homem não se contenta com a simples
manifestação
primária de tais aspirações. Ele dá nomes a todas as coisas e estabelece
entre elas uma rede
infindável de associações. E isso é algo que só a linguagem, no sentido
conceitual da
palavra, pode prover. Sendo a linguagem uma estrutura complexa por
natureza, e variável
de acordo com as particularidades de cada cultura, não existem, em
princípio, línguas mais
ou menos difíceis do que outras. É o que permite a uma criança falar com
perfeição o seu
idioma, independentemente de ser ele o italiano ou o finlandês.
Coloque-se em contato um
cão nascido e criado na Itália com outro originário da Finlândia. Não
haverá, entre eles,
nenhum obstáculo para a comunicação, pois independentemente do lugar em
que estejam,
as aspirações comunicativas dos cães são sempre extremamente simples. Se
fossem
complexas, como as do ser humano, precisariam de conceitos. E se os
utilizassem,
enfrentariam os mesmos obstáculos que há entre os homens que falam
idiomas distintos.
Em outras palavras, a comunicação entre o cão italiano e o finlandês
careceria de um
intérprete.
Tal como se verifica no estético, os outros planos da atividade humana,
quando
adquirem tonalidade social, também são sujeitos a convenções. O fenômeno
da
diferenciação entre as línguas utilizadas pelos povos comprova disso.
Baseada sobretudo
em normas convencionais, a língua tem na oralidade a sua forma própria
de expressão. Na
linguagem falada - potencialmente, é claro - cabe a totalidade do real,
com suas
inumeráveis nuanças e particularidades que só ao homem interessam. Dela
nos servimos
para expressar as sutilezas dos nossos sentimentos e aspirações, o que
demonstra ser a
nossa capacidade expressiva incomparavelmente mais rica que a dos outros
animais. No
circuito estritamente oral da linguagem, o predomínio da arbitrariedade
é total. Já na
linguagem gestual, há recursos que, transcendendo as convenções,
alcançam amplitude
universal. São justamente os gestos mais genéricos, designativos da
fome, da dor, do
prazer, do cansaço etc. Em qualquer lugar do mundo, o homem faz-se
entender ao
expressar por meio de gestos esse gênero de sensações. Basta, porém, que
as sensações a
comunicar adquiram um pouco mais de complexidade para que a linguagem
gestual revele
suas limitações face a convenções arbitrárias. No Ocidente, tem-se um
sinal de negação
quando a pessoa move a cabeça de um lado para o outro na direção
horizontal, na Índia, o
mesmo gesto significa justamente o contrário, ou seja, "sim".
Que o morador de Roma diga grazie quando se sente agradecido, e que o de
Helsinki fale kiitos na mesma circunstância, estamos diante de um fato
cultural – variável,
portanto, de acordo com as alternativas sociais, do arbítrio e dos
costumes especificamente
humanos. Mas o ato de falar e de manifestar a gratidão pertencem a uma
esfera não
relativizável; escapa ao território de particularidades desta ou daquela
cultura. Todos os
homens falam e têm palavras para expressar o sentimento de gratidão. Que
por sua vez é o
efeito lógico de uma solidariedade atuando em prol da conservação da
nossa própria
espécie. Confirma-se aqui a sentença de Confúcio: "A natureza dos homens
é a mesma; são
os costumes que os separam".
Foi justamente esse vínculo essencial entre a linguagem e o conhecimento
que levou
Aristóteles a considerar que, para o aprendizado, a cegueira é um
impedimento menor que a
surdez, considerando ambas congênitas: "(...) entre os homens que nascem
privados de um
desses sentidos [superiores], os cegos de nascença são mais aptos para a
instrução do que os
surdos." Essa assertiva traz uma constatação implícita de grande
importância, que
convém enfatizar. A surdez tende a ocasionar o mutismo, privando assim o
homem de um
elemento que lhe é exclusivo perante os outros animais; o homem é muito
mais um ser que
fala do que um ser capaz de ouvir. A partir da definição aristotélica do
homem como um
animal que tem logos, podemos entender tanto o animal racional quanto o
animal que
fala. Pensar e falar são faculdades que se implicam mutuamente. A
deficiência auditiva
tende assim a se duplicar. O homem que não ouve a fala dos seus
semelhantes carece do
modelo básico para a elaboração das suas próprias palavras; para ele é
como se todos os
outros homens fossem mudos. Obviamente, há de se considerar o período em
que a surdez
se instala. O homem que contrai surdez nos primeiros anos de vida
acha-se basicamente na
mesma situação do surdo de nascença, na medida em que não chega a
sedimentar o registro
da fala na memória. Analogia feita, é o mesmo tipo de dificuldade que se
apresentaria a um
indivíduo que desejasse pintar, sem nunca ter visto forma ou coloração
alguma. De onde
tiraria o registro das cores? Embora seja válida a relação de analogia,
há uma diferença
nuclear: a fala é elemento constitutivo do homem; a pintura não. Um
homem
completamente são e vivendo em sociedade não escolhe entre falar e não
falar, tão
essencial lhe é o apelo para a fala; se praticará ou não a pintura, isso
depende de fatores
acidentais. Tais circunstâncias contribuem para explicar por que a
surdez - talvez mais
ainda do que a cegueira - tem sido interpretada ao longo da história
como impedimento
para a integração social. Note-se que, em finais do século XIX, nos
Estados Unidos,
houve uma tentativa de atenuar em grande escala esse problema,
"convertendo 'pessoas
inúteis' economicamente em hábeis operários construtores de riquezas".
Relacionando
esse contexto com as dificuldades enfrentadas pelos cegos no âmbito
social, deve-se
relembrar os problemas inerentes ao uso do braille. María de los Ángeles
Soler assim os
sintetiza:
O sistema braille apresenta alguns inconvenientes de gravidade
considerável. Em
primeiro lugar, os livros são excessivamente volumosos: o Quijote, por
exemplo, ocupa
14 grossos volumes. Por outro lado, seu preço torna-se muito mais
elevado: o custo de
produção de cada exemplar do Quijote era, em 1955, de umas 3000 pesetas.
Ademais, as
pessoas que contraem a cegueira em idade adulta não costumam chegar a
dominar a
leitura em braille de maneira tão satisfatória ao ponto de poderem
desfrutar de obras
extensas. Finalmente, o ritmo da leitura é lento, de modo que os livros
muitas vezes
chegam às mãos do cego numa fase em que o seu interesse já desapareceu
entre o
público vidente. Dá-se assim uma defasagem entre a cultura de uns e a de
outros. Sem
contar a conseqüente escassez de livros, o que torna muito limitado o
caudal de
conhecimentos que costumam chegar aos cegos.
Mostrado assim o contexto relativo à superioridade da visão e da audição
face aos
outros órgãos da sensibilidade, falemos agora do vínculo desses sentidos
considerados
superiores com o espaço e o tempo.
4.7 Espaço e tempo / visão e audição
A vida do homem, tal como a de todas as outras criaturas, decorre ao
longo do espaço e do
tempo. Sendo tantas e tão variadas as interpretações do espaço e do
tempo na cultura
ocidental, prefiro deter-me aqui em algumas considerações genéricas e
aplicáveis aos temas
centrais que temos discutido. O espaço e o tempo são os alicerces
ontológicos de todas as
coisas que nos chegam por meio dos sentidos. Tudo o que existe e pode
ser percebido
pertence, de alguma forma, ao espaço e ao tempo.
A espacialidade diz
respeito ao
fenômeno da localização, refere-se ao lugar em que uma coisa está. É o
espaço, com suas
leis características, que permite aos corpos se expandirem em três
dimensões e que lhes
obstrui a interpenetração. Já o tempo refere-se à dinâmica de
transformação, à qual todas as
criaturas se acham sujeitas. É o fundamento da mudança, em todas as suas
diversas
acepções. Notamos que todos os corpos se movem, no sentido de
modificarem, de alguma
forma, o seu modo de ser: "Uma vez que o tempo parece, sobretudo, ser um
movimento e
uma transformação, é este o aspecto que precisa ser investigado."
Todos os sentidos, cada um à sua maneira, falam-nos do espaço e do
tempo. Mas há
de se considerar uma particularidade importante. Não temos um sentido
especificamente
voltado para a percepção do tempo; ao menos não de forma tão nítida
quanto se pode dizer
que possuímos os olhos para percebermos o aspecto das coisas que se
encontram no espaço.
A realidade espacial se manifesta preferencialmente através do exterior;
daí serem os olhos
os sentidos mais adequados para percebê-la. O tempo, por sua vez, tende
a concentrar-se na
interioridade. Percebê-lo exige o concurso encadeado da memória, da
atenção e da
expectativa, responsáveis, respectivamente, pelo contato nosso com o
passado, o presente e
o futuro. É a única forma de evitarmos o paradoxo decorrente da própria
natureza do
tempo, que o torna inapreensível no seu percurso ininterrupto, ao ponto
de colocar em
xeque a sua própria vigência ontológica. Pois, diferentemente do espaço,
em sua
imobilidade constitutiva, o tempo encontra-se em contínuo mover-se, já
que a ele cabe
fundamentar o próprio movimento. É ainda Aristóteles quem diz: "Quando
não sofremos
transformações no nosso pensamento – ou mesmo quando não as apercebemos
–, para nós,
é como se o tempo não tivesse passado" Em nenhuma das três divisões do
tempo é
possível captá-lo integralmente em seu ser. O passado torna-se aquilo
que já não é mais. O
futuro ainda não é. O presente, na medida em que ocorre, liga o futuro
ao passado, partindo
do que ainda não existe e dirigindo-se para o que já não tem existência.
Por mais que
tentemos fracionar o presente em instantes, ele continua inapreensível,
uma vez que a
instantaneidade não possui um termo limite para o decréscimo, podendo
por isso ser
diminuída ad infinitum, gerando instantes tão pequenos quanto queiramos,
como percebera
Santo Agostinho. Eis porque, de certa forma, o tempo parece não existir:
carecendo da
estaticidade do espaço, ele não é alcançável em nenhuma circunstância.
Não admira que
Borges negasse ao tempo a existência, considerando-o meramente uma "vaga
ilusão
humana".
Apesar de todos esses obstáculos, a percepção do tempo é razoavelmente
viabilizada através da audição, o sentido mais unido à nossa
interioridade. Nisso se baseia a
célebre análise do tempo feita por Santo Agostinho e que tem na música,
arte auditiva por
excelência, a forma de realidade mais apropriada para a sua percepção:
Digamos que vou recitar um cântico que me é conhecido. Antes de começar,
minha
expectativa estende-se a todo ele; mas, quando começo, o que vou tirando
é recolhido no
passado, enquanto minha memória se dilata. E a vida desta minha ação
divide-se em
memória, por causa do que foi dito, e em expectativa, por causa do que
hei de dizer. Mas
a minha atenção é presente, e por ela passa o que era futuro, para se
tornar pretérito.
Quanto mais isto acontece, mais abrevia-se a expectativa e alarga-se a
memória – até que
toda a expectativa seja consumada quando, com o término daquela ação,
tiver passado
para a memória. E o que acontece com todo o cântico dá-se em cada uma
das suas
partes.
Essa abordagem relativa ao espaço e ao tempo traz à tona uma
correspondência
essencial. Por um lado, a visão revela os seres no seu aspecto
simultâneo, e a audição filia-se basicamente à seqüência. A percepção simultânea de objetos visíveis
não oferece
dificuldades àquele que vê. É incomparavelmente mais fácil discernir
formas que se
apresentam lado a lado aos olhos do que sons simultâneos que se oferecem
aos ouvidos. A
percepção da simultaneidade sonora, como ocorre na música polifônica,
exige normalmente
um aprendizado específico. Isso sem falar na sua apreciação estética.
Apreciar uma fuga de
Bach, entendendo tudo o que nela ocorre, é tarefa para músicos
treinadíssimos. Mas no
âmbito espacial, quando um objeto opaco se sobrepõe a outro, impede que
este seja visto, já
que a visão tem o seu percurso obstruído. Não obstante, a sobreposição
sonora é fenômeno
freqüente em música, constituindo o próprio princípio da polifonia.
Sendo os olhos os sentidos mais adequados para a percepção do espaço, e
os
ouvidos para a do tempo, é natural que as artes se dividam em visuais e
auditivas, e que
obedeçam à divisão entre espaciais e temporais. Eis porque as artes
visuais são também as
do espaço; e as auditivas, as do tempo. Esta passagem, escrita por Tomás
Borba e Fernando
Lopes Graça, é bastante ilustrativa:
Do ponto de vista artístico, a estética tem a servi-la a pintura, a
escultura e a arquitectura
(sic), denominadas artes plásticas, visuais ou estáticas; e a poesia e a
música, que são,
em oposição às anteriores, consideradas as artes do movimento,
auditivas, temporais ou
dinâmicas. A dança, expressão rítmica por excelência, está intimamente
ligada à música
e a eloqüência à poesia pelo seu forte poder de imaginação e sucessão de
idéias.
Em rigor, as obras de artes visuais também participam do tempo, na medida
em que
envelhecem no espaço. Além do que, a visão, dependendo da luz para se
manifestar,
obedece também à sua velocidade, o que por sua vez é uma relação entre o
espaço e o
tempo. Entretanto, sendo a velocidade da luz tão desproporcionalmente
elevada em relação
às outras conhecidas, a visão das coisas bem pode ser considerada um
processo instantâneo.
O mesmo vale para a percepção auditiva. Embora incomparavelmente menor
do que a
velocidade da luz, a do som também pode ser desprezada quase sempre em
nossas
experiências auditivas: na prática, é como se não houvesse defasagens
temporais entre as
coisas que vemos e os sons que ouvimos. As artes plásticas preenchem o
espaço com
formas e cores, exigindo a temporalidade para penetrá-lo e percorrê-lo.
As artes temporais,
e.g., a música, preenchem o tempo, requisitando a presença do espaço
para serem
executadas e percebidas. A divisão entre artes do espaço e do tempo não
funciona de forma
completamente rígida. Existem artes que dividem com notável equilíbrio o
seu modo de ser
entre uma e outra instâncias da existência. É o caso da dança. Como
escreve Curt Sachs,
A dança é a primeira das formas artísticas a nascer. Música e poesia se
escoam no
tempo. As artes plásticas e a arquitetura modelam o espaço. Mas a dança
vive,
concomitantemente, no espaço e no tempo. O artista e a sua criação
fundem-se num só.
Antes de confiar as suas emoções à pedra, ao verbo e ao som, o homem
serve-se do seu
próprio corpo para organizar o espaço e para ritmar o tempo.
Nada impede que uma obra literária ou até mesmo musical seja endereçada
aos
olhos através de uma página impressa ou de uma partitura,
respectivamente. Contudo, as
experiências estéticas da literatura e da música, em que pese a
possibilidade de participação
visual, continuam a ser de caráter essencialmente temporal e não
espacial. Prova isso o fato
de que a sua apreensão depende sempre da ordem – no sentido seqüencial,
portanto
numérico – em que os elementos são expostos. Uma ligeira alteração na
ordem com que
lemos ou ouvimos a seqüência dos termos de uma frase ou das notas de uma
melodia pode
ser suficiente para que uma obra-prima perca o seu valor para nós. Isso
já não ocorre
quando se trata de uma obra pictórica, por exemplo. Começando a olhar um
quadro da
esquerda para a direita, de cima para baixo ou ao revés, a impressão
estética costuma variar
pouquíssimo, mesmo porque a vista tende a contemplar o conjunto numa
estrutura
praticamente unificada e de uma só vez.
Essa última consideração não vale para a sensibilidade táctil, que
muitas vezes pode
ser aplicada esteticamente às estátuas e aos contornos de desenhos em
relevo, sobretudo no
caso de pessoas cegas. Diferentemente da visão, o tato requer uma
apreciação gradual,
transmite-nos em seqüência as impressões recebidas do espaço. Mas,
fazendo isso pouco a
pouco e não de uma só vez como a visão é propensa a fazer, a experiência
estética do tato
também se vincula essencialmente à temporalidade. Pode-se inclusive
dizer que o tato atua
no espaço da mesma forma como a audição o faz no tempo: são sentidos
sintéticos, que
caminham das partes para o todo. Já os olhos, soberanos para o
conhecimento da
espacialidade, agem através de análise, indo do todo para as partes.
Impossibilitado de ver, o cego tende a concentrar os seus interesses
estéticos no
sentido auditivo. E isso lhe faz, muitas vezes, projetar sobre o plano
espacialmente visível
experiências tiradas da temporalidade presenciada pela audição. Eis
porque tantos homens
cegos consideram feias as mulheres cujas vozes lhes desagradam. Não
raro, chegam a
dizer: "jamais poderia me casar com uma mulher que tenha uma voz assim".
A situação é
praticamente invertida em relação à que se dá entre pessoas videntes.
Pois, nesses casos, a
beleza humana concentra-se no aspecto visual do corpo. Para o homem que
vê, a beleza
de uma mulher é um parâmetro a ser dimensionado pelos olhos e que, via
de regra, se refere
ao rosto feminino.
Conforme já foi dito, a superioridade estética outorgada aos olhos e aos
ouvidos traz
dois impedimentos implícitos: o acesso à beleza visual acha-se
virtualmente negado aos
cegos, da mesma forma como a surdez se torna um obstáculo para o acesso
ao belo
auditivo. Evidencia-se, dessa forma, uma correspondência biunívoca: se
os olhos e os
ouvidos são os sentidos próprios para a percepção do belo, a cegueira e
a surdez são as
únicas modalidades de deficiência que impedem o contato com o belo
visual e o auditivo,
respectivamente. No que tange a uma investigação sobre a possibilidade
de que esses
obstáculos sejam rompidos, o desdobramento concentra-se em torno da
seguinte
formulação: é possível que o privilégio visual e o auditivo sejam
supridos por outros
setores da sensibilidade, viabilizando assim o acesso do cego à beleza
espacial e visível,
assim como o do surdo, ao belo que se desdobra no tempo e se endereça
aos ouvidos?
Antes de passarmos ao tópico seguinte, convém insistir: a experiência
estética, tal
como todas as nossas outras formas de contato com o mundo, inicia-se no
plano da
sensibilidade e tem como instância suprema o intelecto. Por outro lado,
é de se ter em conta
que todos sentidos são passíveis de engano, conforme Helen Keller
sintetiza de forma
particularmente expressiva nesta passagem:
A Filosofia freqüentemente aponta para a necessidade de que desconfiemos
dos cinco
sentidos e para o importante trabalho da razão, que corrige os erros da
visão e revela as
suas ilusões. Se não podemos depender de cinco sentidos, muito menos
devemos confiar
em apenas dois.
Perceba-se, aliás, a consonância entre as palavras de Helen Keller e
estas de Descartes, no
texto célebre em que elabora os fundamentos da dúvida metódica:
Tudo o que eu recebi e tive como verdadeiro e assegurado até o presente
momento,
aprendi dos sentidos ou através deles. Ora, eu algumas vezes
experimentei que esses
sentidos eram enganosos, e a prudência recomenda que jamais confiemos
inteiramente
naqueles que nos enganaram uma vez.
4.8 O acesso ao belo através do tato
O tato possui a capacidade de, em circunstâncias especiais, atenuar a
falta do órgão
especializado para a experiência estética. O cego pode desfrutar da
beleza de uma escultura
através do toque, na medida em que isso lhe permite conhecer as formas e
suas relações
compositivas. Convém enfatizar um aspecto determinante dessa conjuntura.
O problema a
ser analisado, no que se refere ao cego, consiste na possibilidade de
desfrutar da beleza das
coisas que, em situação normal, o homem alcança através dos olhos, tais
como uma
paisagem natural ou uma obra de arte enquadrada no campo das artes
visuais, e.g., um
quadro ou uma estátua. Analogia feita, os limites estéticos que a
natureza impõe a um surdo
dizem respeito exclusivamente ao belo auditivo. Em outras palavras, as
dificuldades
estéticas enfrentadas pelo cego restringem-se basicamente ao circuito da
visualidade, assim
como as que atingem o surdo encontram-se no plano da audição. Uma
modalidade de
deficiência sensorial não se vincula forçosamente a outra.
Diferentemente do que às vezes se afirma, a cegueira, como já se falou,
não
favorece as potencialidades musicais, da mesma forma como a surdez em
nada contribui
para uma eventual maior assimilação e elaboração artística do mundo
visível. É fato que a
perda de um órgão sensório tende a ser atenuada através da utilização
mais intensa daqueles
que restam, graças à própria constituição fisiológica de que somos
dotados. Mas isso não
significa que a pessoa privada do uso de um órgão esteja, a priori,
vocacionada para um
melhor desempenho na utilização dos outros órgãos. Se o cego inclina-se
a desenvolver
uma maior acuidade táctil, isto se dá porque ele solicita o tato com
muito maior freqüência
do que o faz uma pessoa que vê. A repetição transforma-se em treino,
gerando o hábito, que
por sua vez conduz ao aperfeiçoamento. Mas nem todos os cegos
desenvolvem
convenientemente os outros sentidos. Há os que alcançam êxitos
prodigiosos, sendo
exemplo paradigmático o de Helen Keller, cega e surda desde os primeiros
anos de vida.
Mas existem também cegos que se deixam abater, recolhendo-se na sua
cegueira e
tomando-a como infortúnio insuperável.
Se dizemos que o tato atua como "os olhos do cego" , isso ocorre
basicamente no
sentido figurado. O alcance da conotação é demarcado de forma estreita,
na medida em que
se refere a um fenômeno de compensação restrita a certas circunstâncias;
jamais a um
fenômeno de substituição no sentido próprio da palavra. O tato pode
permitir ao cego o
conhecimento satisfatório do que seja um chapéu, uma bengala ou um
travesseiro. Nunca,
porém, o tato concede ao cego a percepção adequada do que seja um avião,
um poste
telefônico ou uma nuvem. Em analogia face à metáfora de Descartes, é
também em
contexto simbólico que deve ser entendida a concepção de Berkeley,
segundo a qual as
sensações visuais seriam "sinais do tato instaurados por Deus".
Conforme já foi dito, as imagens visuais costumam ficar registradas na
memória
apenas a partir dos seis anos de idade, em média ; de modo que, se uma
pessoa perde a
visão antes dessa faixa etária, na prática, é como se tivesse nascido
cega. Isso justifica o
bom desempenho de Evgen Bavcar como fotógrafo. Cego desde a
adolescência, manteve
na memória um acervo precioso de imagens visuais, o que lhe permite
criar cenários
fotográficos – de certo modo, como se os estivesse vendo. Deve-se
frisar, contudo, que
Bavcar é um fotógrafo apesar da cegueira e não por causa dela. Vale
dizer o mesmo do
escultor francês Vidal, cego já na fase adulta. Não se pode negar que a
cegueira contribuiu
para torná-lo conhecido. Mas a sua habilidade táctil como escultor não
se explica por ele
ser cego; é fruto conjunto do seu talento e esforço pessoal.
Arte, beleza e cegueira
5.1. As duas fontes do belo
O belo entende-se de maneiras distintas. Isso decorre, em primeiro
lugar, das fontes de que
ele se origina. Que, aliás, são as mesmas de onde emana a própria
existência que nos é
acessível através da sensibilidade: a natureza e a arte. São elas as
duas instâncias geradoras
que, em dinâmica de colaboração mútua, respondem por tudo o que é criado
e que podemos
perceber mediante os nossos sentidos. Todo o percebido por nós advém,
pois, da
natureza ou da arte. A natureza fornece a pedra, mas cabe ao homem ver
nela a provocação
para construir uma estátua. Pertence à beleza natural o campo de
girassóis e o canto do
rouxinol, mas a pintura de Van Gogh e a música de Messian pertencem à
beleza artística.
Existe, de fato, uma diferença básica quanto à fonte quando falamos em
"beleza natural" e
"beleza artística". Isso merece um esclarecimento à parte.
Conforme já foi abordado, a beleza chega a nós, inicialmente, através
dos olhos e
dos ouvidos, como vias preferenciais. Em situação secundária, o tato
pode atuar
esteticamente, sobretudo quando utilizado para compensar parcialmente a
deficiência
caracterizada pela falta de um dos sentidos superiores ou de ambos.
Portanto, salvo
circunstâncias especiais, como é o caso da cegueira e da surdez, pode-se
dizer que a beleza
é um fenômeno preliminarmente visual ou auditivo. A beleza é uma
qualidade dos seres,
algo que lhes é próprio e que fala do modo como são. Há também, afora o
belo visível e o
audível, aquele de índole essencialmente intelectual, característico da
arte literária. Aliás,
como já vimos, a experiência estética, embora comece no plano da
sensibilidade, tem no
intelecto o seu alvo supremo, fato que nos autoriza a dizer que o belo é
assunto de ordem
prioritariamente intelectiva. É o que justifica ser a beleza um tema
exclusivamente humano,
e que faz da arte literária a mais propícia para o homem que não vê e
não ouve, desde que,
por exemplo, o seu tato lhe permita adotar um sistema determinado de
comunicação de
conceitos, como é o braille. O testemunho de Olga Skorokhodova fala por
si mesmo:
Ano após ano fui enriquecendo meu vocabulário literário graças à
ampliação da
minha experiência. O leitor pode não acreditar se eu disser que devo os
meus
conhecimentos e minha linguagem literária à leitura intensiva,
principalmente das obras
de literatura.
A leitura pode ser a salvação dos cegos, dos surdos e dos mudos, e
principalmente
dos que sofrem das três deficiências. Quando os responsáveis pela
educação dos
deficientes compreenderem isso, os progressos serão muito maiores nesse
campo.
No que tange ao domínio lingüístico que a pessoa cega pode adquirir,
cumpre
destacar o exemplo de Stephan Kuusisto, autor já referido aqui (cf.
supra) e dotado de um
acervo lexical fora do comum e de grande talento literário. Isso sem
falar em Homero
(considerando-o cego), Milton e Borges, autores consagrados e
pertencentes ao primeiro
escalão da literatura mundial de todos os tempos. No contexto, porém,
Milton e Borges são
menos expressivos do que Stephan Kuusisto, já que, diferentemente do
autor finlandês, não
se enquadram na situação dos cegos de nascença e nem dos que perderam a
vista durante os
primeiros anos de vida – o mesmo valendo para Homero, ao que tudo
indica. Atente-se para
o vocabulário refinado, o domínio de fontes clássicas da literatura
universal (no caso,
Tristão e Isolda e a Ilíada) e a densidade estética das primeiras linhas
do livro Planet of the
Blind, em que Kuusisto fala da sua experiência como cego:
Blindness is often perceived by the sighted as an either/or condition:
one sees or does
not see. But often a blind person experiences a series of veils: I stare
at the world
through smeared and broken windowpanes. Ahead of me the shapes and
colors suggest
the sails of Tristan's ship or an elephant's ear floating in the air,
though in reality it is a
middle aged man in a London Fog raincoat that billows behind him in the
April wind.
He is like the great dead Greeks in Homer's descriptions of the
underworld. In the
heliographic distortions of sunlight or dusk, everyone I meet is
crossing Charon's river.
People shimmer like beehives.
Sabemos que o belo sempre é originário da natureza ou da arte. No plano
da visão, a
beleza natural e a artística encontram-se em pé de igualdade. Aos olhos
que vêem, a pintura
de uma cena bucólica pode ser tão ou mais bela do que a cena em seu
estado natural. Isso
dependerá da habilidade do pintor e, obviamente, da subjetividade do
contemplador, tal
como ocorre em toda e qualquer vivência estética. Não há no âmbito da
visualidade, um
dado objetivo que prove a superioridade estética da natureza sobre a
arte, como pretendia
Tertuliano, e nem da arte sobre a natureza, como pensava Diderot. Tais
atitudes são de
cunho arbitrário, decorrendo de fatores culturais, como são as
diretrizes e ambiências
históricas. É um falso problema o questionamento acerca da superioridade
estética entre
natureza e arte – desde que nos detenhamos no campo da beleza visível.
Tratando-se da beleza audível, é incontestável a superioridade estética
da arte sobre
a natureza. Os sons naturais podem ser agradáveis esteticamente, como se
dá com o canto
do girassol. Mas estamos diante de uma exceção, pertencente a um
conjunto reduzidíssimo
de sons produzidos pela natureza e que, ao mesmo tempo, são
potencialmente aproveitáveis
sob o prisma da estética. Não há como comparar esse conjunto, seja de
forma quantitativa
ou qualitativa, com o acervo que a música nos oferece. De todas as
artes, a música é a que
mais se afasta da natureza. É a única que carece de um modelo natural
evidente. Ao
contrário das artes plásticas, cujos elementos existem fora do campo da
atuação artística, os
sons utilizados na música, na maior parte das vezes, não se encontram na
natureza e nem na
vida quotidiana. A música não se acha "pronta" no mundo natural, como
argumenta
Luciano Berio. Mesmo no abstracionismo, a forma plástica evoca alguma
coisa já
existente no mundo visível. Daí os enormes obstáculos até hoje
enfrentados para que se
aceite a pintura ou a escultura como artes absolutamente não
representativas – um tipo de
problema que não atinge a essência da arte musical. Considerando o
parentesco inato que
há entre a música e a poesia, esta passagem de Borges mostra-se
oportuna:
"- Certo viajante, lembrou o poeta Abdalmalik – fala de uma árvore cujos
frutos são
pássaros verdes. É menos difícil acreditar nele que em rosas com letras.
- A cor dos pássaros – disse Averróis – parece facilitar o milagre. Além
disso, os frutos
e os pássaros pertencem ao mundo natural, mas a escrita é uma arte.
Passar de folhas a
pássaros é mais fácil que de rosas a letras".
A natureza já é, por si mesma, arquitetônica, escultórica e pictórica,
uma vez que
produz seres (cavernas, pedras e pigmentos, digamos) que provocam
diretamente o advento
de artes como a arquitetura, a escultura e a pintura. O mesmo não
acontece no plano da
sonoridade. A natureza limita-se a sugerir a possibilidade do uso
estético dos sons, através,
por exemplo, do caráter às vezes melódico e do belo timbre do canto de
certos pássaros.
Mas a organização propriamente musical não se acha acessível de forma
direta na natureza;
isso requer um desenvolvimento, em certa medida, paralelo à provocação
primeira que ela
fornece. Daí ser a música a mais abstrata de todas as artes, a mais
"artificial", por assim
dizer. E é o que a torna incomparavelmente superior à natureza quanto às
potencialidades
estéticas. Isso independe do fator subjetivo, na medida em que decorre
de eventos
essencialmente objetivos.
5.2 Dos sentidos à inteligência
Comecei este capítulo dizendo que o belo entende-se de formas distintas.
Como vimos, isso
é causado inicialmente pela própria divisão característica da provocação
estética, que se
bifurca em duas fontes: a natureza e a arte, que dão origem,
respectivamente, ao belo
natural e ao artístico. Outro fator que leva o belo a ser entendido de
formas distintas decorre
do seu destino específico: em primeiro lugar os sentidos, depois a
inteligência. Assim,
considerando o já exposto no item anterior, tem-se: o belo dirigido aos
olhos, que pode
provir igualitariamente da natureza ou da arte, em sua manifestação
plástica; o belo
endereçado aos ouvidos, que advém principalmente da arte musical; o belo
diretamente
dirigido à inteligência, que tem sua expressão máxima na arte literária,
e que pode ser
inicialmente percebido pela audição, pela visão ou ainda pelo tato,
tratando-se do texto em
braille; também vimos que a percepção da beleza plástica pode
eventualmente partir do
tato, ocorrência que torna a escultura circunstancialmente acessível aos
cegos.
O tipo de prazer estético depende do veículo através do qual o belo é
captado. O
encanto causado por uma realidade plástica difere significativamente
daquele que provém
da sonoridade ou da literatura. Cada uma dessas formas de desfrutar da
beleza tem seu traço
característico. É principalmente na música que o ser humano costuma ser
mais envolvido
pela experiência do belo. Como já vimos, o sentido auditivo é o que mais
se liga à nossa
espiritualidade, mercê do próprio caráter imaterial que tem o som. Isso
contribui para que,
durante a escuta de uma bela melodia, o ouvinte seja transportado ao
êxtase estético - de tal
modo que, além da audição, todos os outros sentidos se vejam afetados,
ainda que de forma
subalterna. Não surpreende que, desde a Antiguidade, a música tenha
merecido a atenção
especial por parte dos filósofos, destacando-se entre as artes e sendo
considerada a mais
filosófica de todas. Plotino vê na música, devido à sua imaterialidade
constitutiva, um
caminho privilegiado de ascensão à beleza absoluta. Isso também
justifica a grande
importância da música na práxis religiosa.
Naturalmente, a participação de sentidos inferiores também pode ocorrer
quando se
percebe a beleza visual. Num belo rosto, o mau hálito tende a
comprometer a impressão
estética positiva; já num rosto feio, a impressão estética negativa
seria possivelmente
enfatizada. Assim, no primeiro caso, seria esperado ouvirmos: "Helena é
bela, mas tem
mau hálito."; e no segundo, "Maria é feia, além disso tem mau hálito".
Em tais situações,
não importa muito que a beleza seja assunto visual e o hálito interesse
ao olfato. A
interferência sinestésica é quase inevitável. Há também objetos, como as
rosas, que são
agradáveis a nós através de mais de um sentido ao mesmo tempo. Mas
sempre é preciso
considerar que o agrado difere em cada caso, atendendo às
especificidades respectivas dos
órgãos envolvidos. Em contrapartida, conforme se vem de perceber, é
natural que uma
experiência sensória interfira na outra: seja, por exemplo, enfatizando
o agrado (o rosto
belo e o hálito perfumado), ou o desagrado (o rosto feio e o mau
hálito).
Mencionaram-se anteriormente algumas circunstâncias em que os sentidos
podem
estar em oposição (cf. supra). Voltemos a esse assunto. É comum que o
deleite auditivo
causado por uma música seja acompanhado por um desinteresse relativo ao
mundo visual.
As imagens que se encontram ao alcance da vista podem constituir um
distúrbio ao prazer
musical. Daí, muitas vezes, fecharmos os olhos durante a experiência
estética
proporcionada pela música. Isso é muito importante: demonstra que a
preferência
espontânea pela visão não ocorre em todas as circunstâncias previstas
pela vida humana.
E ajuda a explicar por que, em certas ocasiões, o cego é considerado "um
homem que vê
mais do que os outros". Claro que a sentença está colocada no sentido
simbólico. "Ver",
no caso, significa basicamente conhecer as verdades de ordem espiritual.
Porque as
ocasiões em apreço são justamente as que se ligam à dimensão religiosa
ou, de alguma
forma, à espiritualidade humana. É oportuno recuperar o exemplo já
mencionado da
sociedade islâmica medieval, em que muitas vezes cabia a um homem velho
e cego o papel
de almuadem. Nesse caso, longe de ser alvo de discriminação, a velhice e
a cegueira
impunham admiração e respeito. Pois conjugavam a experiência acumulada
ao longo da
vida com o desenvolvimento da espiritualidade, ou, metaforicamente
falando, da "visão"
interior.
Falemos agora da forma de beleza que se dirige mais diretamente à
inteligência, e
que se acha presente na literatura, arte que pode prescindir tanto dos
olhos quanto dos
ouvidos. Isso requer um desenvolvimento à parte.
5.2.1 A questão literária
Se no plano esteticamente auditivo a música supera a natureza
- já que
esta não lhe fornece
um modelo plenamente definido, deixando que ela se desenvolva de modo autônomo
-, o
que dizer da beleza literária? Mais ainda do que no campo da sonoridade,
falta aqui um
modelo à natureza. Nesse sentido, dentre todas as artes, a literatura é
a mais autêntica. Sua
fonte inspiradora há de ser buscada no interior do próprio homem, não
tanto no mundo
externo que o rodeia. É a partir da linguagem, da articulação de
conceitos, que se
estabelecem os alicerces da arte literária. Claro que a sonoridade pode atuar, como ocorre
particularmente nas modalidades poética e retórica dessa arte. Mas isso
é secundário;
pertence mais à esfera musical do que à literária. Se uma frase nos
agrada pelo som, isso
independe de compreendermos ou não o seu significado. Da mesma forma uma
canção em
língua desconhecida pode ser linda aos nossos ouvidos, ainda que nada
saibamos do
conteúdo semântico trazido pelas palavras. A música não exige
compreensão, no sentido
conceitual da palavra. A literatura sim. E não apenas isso. Não basta a
uma frase a clareza
conceitual e nem mesmo a veracidade do seu conteúdo para que pertença ao
circuito
literário. Seu potencial estético dependerá basicamente da forma como os
conceitos são
encadeados. Antes disso, porém, é necessário que os conceitos sejam
compreendidos no seu
estado bruto, como matéria-prima a ser trabalhada.
Essa compreensão é exigida tanto da parte do criador de um romance
quanto
daquele que o desfruta. Leiamos estas linhas de Gustavo Corção, que tomo
mais ou menos
ao acaso, do único romance que escreveu:
Eu prossegui também o meu caminho. Poucos minutos depois estava no
quarto andar do
ministério, diante do meu papel estampilhado, sem que ninguém ali
pudesse, nem de
longe, suspeitar que estava chegando das profundezas de um abismo. (...)
Parecia que conspirávamos; ou que entre nós dois havia um segrêdo (sic)
romanesco, antigo, que se originara lá nos confins do Hindustão, entre
os templos
brâmanes e os juncais que à noite estalam sob a pata do tigre. (...)
O fato é que muitas personalidades se explicam pela grossura do pescoço,
pela
voz, pelo debrum do chapéu. Os atores teatrais são muito mais reais do
que se pensa; ou
então, o mundo real é muito mais teatral do que se imagina. (...)
Ora, tudo o que se diz e se faz, de mais ou menos sensato ou mais ou
menos absurdo
depende da solução dêsse (sic) enigma. Quem sou eu? Para que a vida
tenha sentido, e
para que a morte mesma tenha alguma decência, eu preciso saber quem sou,
por que
vivo, por que morro, por que choro. De que me vale apreender o milhar de
relações do
mundo exterior, se não consigo apreender a substancial realidade que me
diz respeito?
Como se percebe, a passagem fala de temas profundos, diretamente ligados
à essência
humana. Mas não é isso que lhe dá o teor literário. A beleza provém da
escolha das
palavras e do modo como o escritor as colocou em conjunto. Os mesmos
temas poderiam
ser expostos com igual clareza e profundidade, sem que, necessariamente,
o discurso
resultante fosse belo. Valendo a recíproca: o talento literário não
garante a qualidade do
conteúdo.
Para quem desconhece a língua portuguesa, o discurso de Gustavo Corção é
inapreensível. Na arte literária, o conhecimento do conceito é condição
indispensável para
que ela seja desfrutada esteticamente. A pessoa que quer ler Camões, e
realmente aprecia-lhe o sabor literário, contenta-se em adquirir Os Lusíadas numa edição
simples, mas
confiável, e cuja capa não ofereça grandes atrativos visuais. Se o que
ela realmente deseja é
embelezar as prateleiras da sua estante, é mais provável que prefira uma
edição de luxo,
ainda que de qualidade literária inferior. Isso não impede que o
interesse literário se
harmonize com o visual. É natural, inclusive, que o bom leitor prefira
um livro que se
apresente bem aos olhos. Pois o bom gosto que dita uma escolha literária
costuma ser o
mesmo que atua noutros campos da arte.
Diante de um texto numa língua que desconhecemos, as palavras são mudas,
valendo para nós unicamente como sinais gráficos. Nosso sistema de
escrita não oferece
atrativos estéticos de ordem visual, dada a sua homogeneidade extrema.
Isso justifica as
dificuldades de aceitação da poesia concreta, em sua tentativa de
conceder estatuto plástico
à escrita ocidental, de origem carolíngia; ao mesmo tempo endossa o
interesse estético
despertado pelas escritas islâmica e chinesa, em que as variações
gráficas são muito mais
intensas, característica que as aproxima intimamente da arte do desenho.
Além disso, em
sua tentativa de concentrar no formato das letras o potencial estético
das palavras, a poesia
concreta choca-se com esta realidade: já existem artes que cumprem a
tarefa de nos
transmitir a beleza plástica. E o fazem satisfatoriamente. É o mesmo
conflito, mutatis
mutandis, que pode ser detectado na arte conceitual. Transferindo para o
âmbito dos
conceitos uma realidade essencialmente plástica, a arte conceitual
muitas vezes investe
numa hipertrofia do intelecto, ao menos tempo em que tende a minimizar a
necessidade do
agrado puramente sensório. Também nesse caso, acontece uma penetração
indevida de
territórios, uma vez que a elaboração conceitual já é função
desempenhada com sucesso
pela literatura. Ambos os movimentos artísticos mostram-se
excessivamente vulneráveis à
monotonia: a poesia concreta tende a ser monótona para a inteligência; a
arte conceitual,
aos olhos. Quando, no início do século XX, Marcel Duchamp apresenta uma
roda de
bicicleta como obra de arte, sua intenção é questionar os limites do que
venha a ser o
artístico. Uma atitude sem dúvida perspicaz, dentro do seu contexto
histórico. Mas a
questão conceitual esgota-se aí. Será possível, realmente, que o homem
encontre deleite
estético para os olhos em uma roda de bicicleta, um ventilador ou uma
chave de fenda, da
mesma forma como, durante milênios, tem encontrado nas estátuas, nos
quadros e nos
templos?
A comunicação própria da arte não se dá, necessariamente, através de
conceitos.
Não é preciso conhecermos as convenções da iconografia bizantina e nem
mesmo o
conteúdo histórico das cenas expostas nos mosaicos de Ravena para
desfrutarmos das
formas coloridas que se nos apresentam aos olhos. Não por acaso as obras
plásticas do
artista conceitual alemão Hans Haacke vêm acompanhadas de comentários
escritos,
explicitando suas posições críticas em relação ao poder monetário e à
política do Ocidente
na segunda metade do século XX. Ainda que possam ser consideradas
inteligentes as
críticas de Haacke, há de se considerar o extremo hermetismo da
proposta. Quem não lê os
comentários, não entende a obra, confinada ela mesma a um universo
puramente
intelectual. É fato que o fenômeno estético tem por ápice a
inteligência, como já vimos.
Nem por isso os sentidos devem ser negligenciados. A beleza plástica e
auditiva há de
deleitar aos olhos e aos ouvidos, respectivamente, antes de ser
processada de forma
conceitual pelo cérebro. Uma arte que pode prescindir dos sentidos
superiores para ser
desfrutada, já a temos na literatura.
Diferentemente do que se dá em todas as outras artes, a literatura não
depende
propriamente de nenhum dos dois sentidos superiores. Pode ser apreendida
pela leitura,
pela escuta ou ainda por algum sistema artificial de transmissão de
conceitos, como o
braille. É o que faz da arte literária a mais propícia à pessoa cega e
surda, tanto para a
criação quanto para a apreciação. Falamos há pouco que o conhecimento
dos conceitos é
condição prévia para a criação e a apreensão da arte literária. De fato.
Na vida de Hellen
Keller, o estabelecimento de um código comunicativo representa o grande
divisor de águas,
a porta aberta para a expressão, a criatividade, o contato e a
compreensão do belo. Embora
longo, o relato de Anne Sullivan, professora de Helen Keller, merece ser
citado na íntegra:
Tenho de escrever-lhe uma linha nesta manhã porque uma coisa muito
importante
aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu
que tudo tem
um nome, e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que ela quer
saber.
Hoje de manhã, quando se estava lavando, ela quis saber o nome da
"água".
Quando quer saber o nome de alguma coisa, ela aponta para a coisa e bate
na minha
mão. Soletrei "á-g-u-a" e não pensei mais nisso até depois do café da
manhã... [Mais
tarde] saímos para ir até a casa das bombas, e fiz Helen segurar a
caneca dela embaixo
da bica enquanto eu bombeava. Quando a água fria jorrou, enchendo a
caneca, eu
soletrei "á-g-u-a" em sua mão livre. A palavra assim tão perto da
sensação de água fria
correndo-lhe pela mão pareceu assombrá-la. Deixou cair a caneca e ficou
como que
transfixada. Uma nova luz espalhou-se por seu rosto. Soletrou "água"
várias vezes.
Então deixou-se cair no chão, perguntou o nome do objeto, apontando para
a bomba e a
treliça e, voltando-se de repente, perguntou o meu nome. Soletrei
"professora". Durante
todo o caminho de volta para casa ela esteve muito excitada, e aprendeu
o nome de todos
os objetos que tocou, de modo que, em poucas horas havia acrescentado
trinta novas
palavras a seu vocabulário. Na manhã seguinte, ela levantou-se como uma
fada radiante.
Saltitou de objeto em objeto, perguntando-me o nome de tudo e
beijando-me de pura
alegria... Agora, tudo deve ter um nome. Aonde quer que vamos, ela
pergunta
avidamente pelos nomes de tudo o que não aprendeu em casa. Está ansiosa
para que seus
amigos soletrem, e ávida por ensinar as letras para todas as pessoas que
fica conhecendo.
Abandona os sinais e pantomimas que usava antes, assim que tem as
palavras para usar
no lugar deles, e a aquisição de uma nova palavra proporciona-lhe o mais
intenso prazer.
E notamos que seu rosto fica mais expressivo a cada dia.
As palavras de Anne Sullivan permitem-nos inferir uma regra aplicável
não apenas
em situações extremas como a de Helen Keller, mas também em diversos
outros setores da
vida humana: quanto maiores são as dificuldades encontradas para a
obtenção de um bem,
maior é o prazer que ele causa quando obtido.
Helen Keller, através
daquele sistema de
código, logrou comunicar-se não apenas no seu idioma nativo, o inglês,
mas também em
outros, como o francês. Não se pode deixar de ter em conta o fator
econômico. Anne
Sullivan chegou a dedicar-se de maneira praticamente integral à educação
de sua única
discípula. Nesse sentido, a situação financeira favorável da família de
Helen Keller foi um
ponto decisivo. Entre famílias de baixo poder aquisitivo, em especial
nos países pobres -
onde as condições educacionais são muitas vezes precárias - costuma ser
extremamente
difícil cumprir com a recomendação, feita por Lowenfeld e Brittain, de
conceder a cada
criança educanda uma atenção particular, voltada para o despertar do seu
potencial criativo
específico, atendendo assim às suas idiossincrasias físicas, afetivas e
psicológicas em
geral. Se isso é válido para crianças normais, com maior razão o será
para as que
apresentam algum tipo de deficiência.
Helen Keller escreveu passagens de alto teor literário, como também o
fizeram a
alemã Elza Dreifuss e a ucraniana Olga Skhorokhodova – ambas cegas,
surdas e poetisas.
No campo da literatura, em tese, o cego está em igualdade de condições
face a uma pessoa
normal. Seguindo os passos de Homero, poucos séculos antes da invenção
deste sistema
revolucionário de comunicação que é o braille, Milton, cego, havia
ditado a melhor parte de
Paraíso perdido, sua obra-prima.
5.3 Cegueira e plasticidade
Tratemos de começarmos aprofundar um tema já introduzido anteriormente:
a percepção e
a produção artística do cego no circuito da plástica. O universo
estético dos cegos não se
reduz ao âmbito sonoro e ao literário. Inclui, por paradoxal que possa
parecer, partes de
um setor que a tradição artística direcionou especificamente aos olhos.
Fala-se aqui das
artes ditas visuais, contraponto espontâneo das artes auditivas, das
quais a música é a
melhor representante. Mesmo no território próprio da visualidade, o cego
pode
eventualmente perceber a beleza. Nesse caso, temos visto que o veículo
de apreensão é o
tato.
Sabemos que cada sentido tem características próprias e que, através
deles, podemos
experimentar sensações que nos causam agrado e desagrado. Diderot, à
guisa de
comparação, assim descreve nossos cinco sentidos externos:
Eu achava que, de todos os sentidos, o olho era o mais superficial; o
ouvido, o mais
orgulhoso; o olfato, o mais voluptuoso; o paladar, o mais supersticioso
e mais
inconstante; o tato, o mais profundo e o mais filosófico.
Ainda que marcada por uma boa dose de ironia e pelo estilo pessoal do
autor, a passagem
citada não deixa de ser plausível. É oportuno insistir que o tato é o
único sentido através do
qual superamos em precisão a todos os outros animais (cf. supra). Quanto
a considerá-lo o
sentido "mais profundo e mais filosófico", a validade de tal afirmação
precisa ser analisada
com cuidado. Vimos que a perda integral do tato é a mais grave de todas,
sob o ponto de
vista patológico. No entanto, trata-se de um fenômeno raríssimo e que
vem acompanhado
de vários outros distúrbios. Por isso, não chega a influir diretamente
sobre a preferência
natural que concedemos à visão. A validade da assertiva de Direrot
relativa ao tato, na
prática, não vai além do seu arbítrio pessoal; é muito mais um artifício
literário do que uma
tese científica. Nosso sentido mais importante é a visão, ainda que haja
animais que
possuem olhos mais precisos que os nossos. Isso demonstra, conforme já
foi dito (cf.
supra), que o privilégio singular que temos de desfrutar da beleza não
decorre de uma
suposta supremacia dos olhos humanos no reino animal. Pois, uma vez que
essa supremacia
não se verifica, haveríamos de admitir que alguns animais estão
habilitados a assimilar a
beleza, inclusive em condições mais favoráveis que nós. A águia tem uma
acuidade visual
superior à nossa; e a abelha, um campo visual que chega a 360 graus. Se
tais seres não
usufruem da beleza, conforme foi visto antes (cf. supra), isso enfatiza
o fato de que a
percepção do belo, ainda que comece na sensibilidade e tenha na visão o
sentido principal,
precisa estar essencialmente concentrada numa faculdade especificamente
humana, como é
o caso da inteligência racional.
Helen Keller fornece-nos uma passagem bastante ilustrativa sobre essa
ação da
inteligência no processo de assimilação e compreensão da beleza:
(...) sabemos que a ordem, a proporção e a forma são elementos
essenciais da beleza.
Ora, a ordem, a proporção e a forma são alcançadas pelo tato. Mas a
beleza é algo de
mais profundo que o sentido que a percebe. Ordem, proporção e forma não
podem gerar
na mente a idéia abstrata de beleza a menos que exista uma alma
inteligente e capaz de
dar vida aos elementos.
Relatos como este e o de outras pessoas na mesma situação de Helen
Keller contituem, em
si, um argumento irrefutável contra as teorias de K. Von Fieandt e G.
Révész, que, na
década de 50, consideravam o cego de nascença incapaz de apreciar a
beleza. Não
obstante essa abertura de possibilidades oriundas do tato, para que o
cego perceba a beleza
escultórica através dele, são necessárias, como já se apontou, algumas
circunstâncias
especiais. A pintura, arte fundamentada na cor e que se desdobra na
superfície, é, devido a
essa mesma natureza, inacessível à pessoa que absolutamente não vê. Isso
já não se aplica a
quem tem visão subnormal, que pode às vezes discernir algumas cores e
até mesmo certos
contornos – desfrutando, ainda que de forma precária, de obras plásticas
bidimensionais,
como são as da pintura. Obviamente, o grau de satisfação da pessoa com
visão
subnormal frente a uma pintura varia em função da sua maior ou menor
capacidade de
discernimento entre formas e cores. Pois, como já se falou, o agrado
estético liga-se
essencialmente à esfera cognitiva, que por sua vez apóia-se na nossa
capacidade de
estabelecer diferenças (cf. supra).
Para a pessoa que carece até mesmo dos poucos recursos concedidos pela
visão
subnormal, pode-se pensar na possibilidade da "pintura táctil", como faz
Y. Lisenco.
Nela, a adição de areia ou algum outro material granuloso à tela permite
que as cores sejam
associadas entre si. Sobre um quadro negro, ou uma folha de papel,
instrumentos especiais
podem realçar os contornos, fazendo-os saltar, permitindo assim que
sejam acompanhados
pelos dedos do cego. Mas não se pode esquecer que o tato não percebe
cores e que, na
ausência de relevos e contornos suficientemente definidos, mostra-se
incapaz de apreender
as formas. Deve-se também questionar até que ponto a "pintura táctil" é,
de fato,
pertencente ao campo da pintura. Talvez seja mais acertado considerá-la
um ramo híbrido
das artes plásticas, uma vez que conjuga elementos da bidimensionalidade
pictórica com a
tridimensionalidade própria da escultura – e é exatamente esse seu
aspecto tridimensional
que a torna táctil. O mesmo se diga de muitos quadros de Jackson Pollock,
em que o artista
confere ondulações variadas à superfície da tela: são como mapas em
alto-relevo.
Considerando que esse desdobramento tridimensional das obras precisa ser
levado em
conta para a sua devida apreciação, por que chamá-las simplesmente de
pinturas? Será por
que a arte ainda não foi capaz de criar uma nova palavra universalmente
válida para esse
ramo híbrido da plástica que se situa entre a pintura e a escultura?
Surgirá em breve,
conforme prevêem alguns críticos de arte da atualidade, uma "definição
inédita da arte"?
Investindo nesse ramo intermediário alguns artistas plásticos da
contemporaneidade
têm criado obras acessíveis aos cegos. É o caso da pintora Cristina Portella, que
recentemente expôs em Paris desenhos de peixes em alto relevo. Os
títulos e as explicações
relativas às obras foram escritos em "negro" e também em braille, porque
a exposição
destinava-se sobretudo a cegos e deficientes visuais em geral,
"justamente o último dos
públicos para um pintor". Cabe notar que esse mesmo tipo de exploração
do campo
artístico já vem ocorrendo há algumas décadas, e que seu público-alvo
não são
necessariamente os cegos. Ocorre isso em certas obras cinéticas de Jesús
Soto, em que as
referências visuais são propositalmente eliminadas, estimulando o
público à percepção
táctil: tal é particularmente o caso do seu Penetrável (1969), feito de
fios de nylon
suspensos que se estendem do teto ao solo, e entre os quais somos
requisitados a
caminhar.
Para o homem que nunca viu, ou que perdeu a visão nos primeiros anos de
vida -
incapaz por isso de manter a imagem da coloração na memória - a cor
costuma ser uma abstração. É justamente o caso de Olga Skorokhodova, que ficou cega
antes de completar
cinco anos de idade. Ouçamos o que ela diz:
Muitas pessoas me perguntam se eu tenho idéia de cor, e algumas, se
consigo
distinguir cores. É claro que não; mas como falo a mesma língua das
pessoas que vêem,
posso falar de cores com as mesmas palavras que elas empregam.
O fato de estar excluída do mundo da cor não impediu que Olga, através
de associações,
formasse uma idéia do que venham a ser os extremos da gama colorística,
representados
pela dicotomia claro-escuro. Helen Keller também se servia de
associações para a
experiência imaginativa abstrata da cor. Assim, o branco ligava-se à
pureza e à exaltação; o
verde, à exuberância; o vermelho ao amor. Note-se, porém, que essa
correspondência
entre cores e sentimentos é, em larga medida, influenciada pela cultura;
trata-se, pois, de
uma associação arbitrária. Não fosse assim, a cor do luto seria sempre o
negro. Mas não é.
Entre os hindus, que aliás representam um percentual expressivo da
população total da
Terra, essa função é desempenhada pelo branco.
No que tange às possibilidades de experiência estética no campo da
visualidade, a
percepção táctil liga-se aos contornos e volumes. O belo, nas artes
ditas visuais depende
fundamentalmente destes dois fatores: formas e cores. Não é por acaso
que a nossa palavra
forma tem, na sua origem latina, uma conotação estética explícita. Belo
é o ser que tem
formositas, que traduzimos por beleza e que indica a manifestação da
forma devida.
Sendo seu oposto natural a deformidade, indicativo semântico inequívoco
da feiúra.
Também é de suma importância que a cor e a luz (forma de realidade ao
qual o fenômeno
colorístico deve sua razão de ser) sejam freqüentemente associadas à
emergência da beleza
(cf. supra).
A arquitetura, dada a magnitude das suas dimensões, ultrapassando
necessariamente
a escala humana, também escapa à sensibilidade táctil do cego. Diante de
uma obra
arquitetônica, o cego carece da impressão do todo; e isso o impede de
apreciá-la com
propriedade. Ainda que lhe seja permitido apalpar cada parcela de um
templo grego, isso
não basta para que as impressões isoladas se fundam na memória, compondo
assim uma
imagem íntegra do edifício. A percepção é fragmentada, feita de
experiências desconexas,
que se confundem quando postas em conjunto. O cego não percebe a obra
arquitetônica
como entidade unificada – e a noção da unidade de um ser é condição
necessária para que
seja emitido um juízo estético a seu respeito. E veja-se que falo aqui
apenas do aspecto
volumétrico da arquitetura, que sem dúvida é o seu determinante como
forma de
manifestação artística. Mas não se deve esquecer que a obra de arte
arquitetônica é
revestida de uma ou mais cores – pois o edifício e todas as demais
coisas que ocupam o
espaço são coloridas. E que, devido às limitações próprias da cegueira,
o cego não percebe
cores. Supondo, hipoteticamente, que um cego possa ter a noção
volumétrica integral de um
edifício como o Panteão através do tato, ainda assim lhe faltará a
referência colorística.
Insistindo na hipótese, digamos que exista um outro edifício, idêntico
ao Panteão original
em todos os aspectos excecto na cor, que seria rosa. Para o cego, as
impressões táteis
seriam idênticas, muito embora a mudança na coloração tenha causado uma
diferença
estética relevante.
O problema enfrentado pelo cego no campo da arquitetura é basicamente o
mesmo
no da escultura, quando esta se manifesta através de grandes dimensões.
Não obstante, se as
dimensões de uma estátua são adequadas – nem muito grandes nem muito
pequenas, ao
ponto de permitir que o cego a perceba de maneira unificada através do
tato – a experiência
do belo torna-se viável. Eis porque o Davi de Michelangelo é, como obra
integral,
imperceptível para o cego. Mas não o Davi de Donatello, muito menor que
a versão
posterior.
Os olhos têm a grande vantagem de fornecer a impressão unificada de uma
estrutura; basta um olhar para termos a visão simultânea das partes
principais de um
quadro, uma escultura, ou mesmo um edifício. Já o tato percebe pouco a
pouco; suas
impressões são obtidas gradualmente através do toque. Nesse sentido, o
processo táctil pelo
qual o cego percebe uma escultura aproxima-se da narrativa literária, em
que os elementos
são apresentados um de cada vez. Helen Keller deixa claro que, de todos
os
impedimentos causados pela cegueira e pela surdez, a impossibilidade de
ver era o que
mais a afligia. Mas nem por isso deixava de desfrutar da beleza de
certas obras de
escultura. Ouçamos o que ela diz:
Eu às vezes imagino se a mão não é mais sensível do que o olho para
perceber as belezas
da escultura. Eu deveria pensar que o maravilhoso fluxo rítmico de
linhas e curvas
poderia ser mais subtilmente sentido que visto. Seja como for, eu sei
que posso sentir as
batidas do coração dos antigos gregos nos seus deuses e deusas de
mármore.
Ainda que marcada pelo verbalismo – pois as mãos não superam e nem
sequer se
equiparam aos olhos no processo de percepção escultórica –, a passagem
não deixa de
expressar uma possibilidade real. E é oportuno lembrar que, já no
Renascimento, esse tipo
de perspectiva sensória havia sido proposto por Lorenzo Ghiberti, ao
falar de uma estátua
romana: "Quando o olho acreditava ter esgotado a beleza da estátua, o
tato descobria nela
novas perfeições". A validade ampla da sentença de Ghiberti confirma-se
através do fato
de que, em culturas distantes da nossa, também ocorre a idéia de tornar
a obra escultórica
esteticamente acessível ao tato; é o caso dos olmecas, na América
pré-colombiana: "Os
lapidários olmecas deviam gostar imensamente das superfícies lisas,
muito polidas, de tal
maneira que na sua apreciação estética entrava tanto o sentido da vista
quanto o do tato".
E isso condiz com a postura de Edward Hall, em defesa da tese de que os
museus deveriam
permitir a todos (não só aos cegos) tocar as obras escultóricas.
Dispensável na arte escultórica, a cor de uma estátua não constitui
obstáculo para
que o cego a desfrute esteticamente. O condicionante, como vimos, está
no tamanho da
peça escultórica. Além desse fator, há de se considerar também o grau de
complexidade das
formas esculpidas. Quanto mais complexos forem os contornos, maior será
a dificuldade
para que sejam devidamente percebidos pelo tato. Vale a recíproca:
simplificando-se os
contornos, facilita-se também a sua apreensão táctil. Nos contornos
irregulares e
interrompidos, o cego encontra dificuldades extremas para a construção
sintética da figura
com as suas proporções justas. Eis por que o cego é propenso a preferir
as obras de
Henry Moore, que privilegia formas simples, às de Bernini, com o
virtuosismo barroco que
lhe é característico. Isso justifica a sentença do próprio Henry Moore,
na qual é dito que
"existem mais pessoas cegas para as formas do que para as cores". É
claro que o escultor
inglês falava da cegueira no sentido figurado, formando com isso um
argumento em prol da
sua escolha pelas formas maximamente simples que caracterizam as suas
esculturas.
Outro fator a ser considerado concentra-se no aspecto estático da
escultura, o que
favorece a percepção táctil. O movimento, no sentido da translocação,
não pode ser
acompanhado devidamente através do tato. A dança, que podemos entender
como uma
escultura móvel, embora possa ser praticada pelo cego (grandes
dançarinos muitas vezes
fecham os olhos ao dançar), não pode ser presenciada por ele. A menos
que ele toque o
corpo do dançarino. Mas isso já seria uma situação particular, que
interferiria nos
movimentos em questão. É o mesmo tipo de situação em que o cego se
encontra face a
certas obras plásticas de caráter híbrido, como são os móbiles de Calder.
Ainda com relação
à dança praticada por cegos, cabe enfatizar: o principal, como percebem
educadores como
J. Dalcroze e A. Duehl, há de ser o processo de dançar, os benefícios
terapêuticos, não
necessariamente a perfeição.
Sendo essas as circunstâncias, as portas da experiência estética, ao
menos em parte,
acham-se abertas para o cego no território da escultura. E isso não
apenas no papel de
apreciador, mas também de criador. Naturalmente, as condições
recém-apontadas para a
apreciação estética valem também para o fenômeno da criação. Com efeito,
nas palavras de
Rudolf Arnheim,
Uma escultura realizada por percepção táctil também está feita para uma
percepção táctil
(...). O artista cego está limitado, em primeiro lugar, pela questão do
tamanho. Quanto
maior for a obra, mais difícil será conceber a sua unidade compositiva.
Os detalhes
intrincados tampouco são fáceis de tratar com os dedos. Tanto na criação
quanto na
apreciação de obras de outros artistas, os cegos sentem predileção pela
simetria e outras
relações formais simples. Por isso, inclinam-se para os estilos
artísticos que reúnem
essas condições.
Assim como a grandeza volumétrica se revela impeditiva para o cego, o
mesmo ocorre em
relação à pequenez. Uma escultura de dimensões minúsculas, como a do
corpo de Cristo
num pequeno crucifixo, acha-se fora do campo de potencialidades
apreciadoras do cego. A
pertinência desses fatores condicionantes pode ser verificada na
produção escultórica de
artistas cegos como o alemão Erich Kühnholz e a brasileira Márcia
Benevides. Cega já na
idade adulta, Márcia é escultora. Havendo antes estudado teatro e
música, encontrou maior
identificação na arte de esculpir. Para Márcia, a beleza está sobretudo
no movimento.
Seu tema preferido é o corpo humano, sede privilegiada das proporções da
natureza; a
matéria mais empregada, o bronze, metal de cor e textura nobres. As
esculturas de Márcia
apontam para uma importante singularidade da arte escultórica: a
escultura – no caso, em
sua modalidade figurativa – não se restringe à imitação das formas
puramente visíveis;
também é capaz de sugerir sentimentos. Márcia concilia "o isolamento
necessário para a
criação" com as atividades de psicóloga, dedicando-se particularmente à
integração de
pessoas portadoras de deficiência ao mercado de trabalho.
Não se pode esquecer de um fator nuclear: a escultura permanece, em
essência, uma
arte visual; da mesma forma como a música será sempre uma arte auditiva.
Prova disso é
que os olhos não precisam de treinamento ou estímulo especial para
desfrutar da beleza das
estátuas; e nem os ouvidos, para o belo musical. Em contrapartida, as
mãos do cego, para o
desenvolvimento de potencialidades efetivamente estéticas no âmbito da
plástica
escultórica, requerem uma atenção específica por parte do educador.
Soma-se a isso: o
cego não tem a mesma facilidade que o vidente para perceber as formas do
mundo que o
rodeia. O cego precisa tocar; ao vidente basta ver. Ora, um escultor só
pode esculpir uma
forma se ela lhe é conhecida. Mesmo no caso da escultura abstrata, é
necessário que o
artista tenha como ponto de partida algo de concreto que ele já conheça.
Ele precisa partir
da imitação: o escultor que desejasse radicalmente abrir mão do processo
imitativo, cerne
da própria arte, precisaria começar por criar, ele mesmo, o seu próprio
cinzel. Tem-se aí
um problema acentuado para o escultor cego, quando se trata da
representação escultórica
da figura humana, dadas as barreiras sociais que o impedem de tocar
constantemente as
pessoas à sua volta. Se as esculturas feitas por cegos raramente
representam rostos – ou,
quando o fazem, simplificam-nos ao máximo –, isso se deve não só a esse
obstáculo social;
a própria complexidade formal do rosto humano é, em si, uma barreira:
por mais treinados
que sejam os dedos, sempre haverá detalhes que só o olho pode perceber.
Depois da
cegueira, as obras de Vidal – o escultor francês que, nascido no século
XIX, trabalhava no
ateliê de Barye e ficou cego aos vinte e oito anos – perdiam em
qualidade à medida que
suas lembranças do mundo visível iam desaparecendo.
Sempre que se analisam as potencialidades estéticas da cegueira, é
fundamental ter
em conta a época em que a enfermidade se manifesta. Mesmo porque a
importância desse
dado não se limita à experiência da beleza: expande-se a todas as
modalidades de relação
que a pessoa cega tem com o mundo.
A vida do indivíduo que nasceu cego
seria
substancialmente outra se ela tivesse perdido a visão após a faixa
intermediária dos seis
anos de idade. Temos visto que, para o cego de nascença, assim como para
a pessoa
atingida pela cegueira antes dessa faixa etária, a cor tende a ser inapreensível. (Seria o caso
de perguntarmos em que medida a pessoa que nasce cega tem real noção da
deficiência que
a atinge. Mas a pergunta conduz a um paradoxo: como pode um cego saber
que não vê, se
ele não sabe o que é a visão?) A coloração costuma atuar como a altura
sonora e o timbre
para o surdo: uma abstração. A analogia entre a cor e a música parte de
uma prerrogativa de
ordem lingüística: a falta de um vocabulário adequado para a música. Por
ser ela a arte que
mais se distancia da natureza, a música toma emprestado da plástica as
palavras que lhe
convêm, utilizando-as metaforicamente. É o próprio caso da palavra cor:
uma qualidade
típica das formas visíveis, mas que tem amplíssima aplicação na música,
indicando
inclusive as diferenciações de timbre entre um instrumento e outro.
Ainda como derivados
diretos do conceito de cor tem-se, por exemplo, a coloratura, que pode
indicar uma
passagem rápida, um vocalizo ornamentado...; já o colorido indica a
expressão dada pelo
artista quando da interpretação da peça musical. E deve-se sublinhar que
a palavra grega
khroma, que desdobra-se na linguagem musical em termos importantíssimos
como
cromatismo e cromático, significa, na acepção primitiva, uma realidade
fundamentalmente
visual, em particular a cor. Não obstante, os próprios gregos já
utilizavam khroma no
sentido metafórico, adequando a palavra à circunstância musical. Assim,
em Plutarco, por
exemplo, a palavra indica o gênero de composição musical em que os sons
são encadeados
em altura através do intervalo de semi-tom. Já Sexto Empírico daria ao
mesmo conceito
uma dimensão de ordem moral, designativo da qualidade do caráter -
atitude aliás que se
conserva noutras línguas indo-européias, como o francês, em que
encontramos a expressão:
il est bon teint. Essa dinâmica de associação metafórica também pode ser
observada na
classificação do som brilhante de instrumentos como o trompete e de
escuro para a tuba.
Pierre Villey faz menção a um cego que, ao ouvir o som do trompete,
pensava na cor
vermelha, "sem dúvida porque o epíteto 'brilhante' aplica-se tanto ao
vermelho quanto ao
som do trompete".
Para o homem que nunca ouviu, é praticamente impossível conhecer estas
duas
importantíssimas modalidades sonoras que são a altura e o timbre; no seu
caso, a música
reduz-se basicamente à percepção (mesmo assim bastante limitada) das
vibrações rítmicas e
da intensidade: através da percepção táctil ele é capaz de distinguir
entre uma valsa e um
minueto, um fortissimo e um piano. Beethoven perde a audição numa fase
da vida em
que já havia desenvolvido a tal ponto a memória auditiva que nem mesmo
essa perda lhe
impede de rememorar com exatidão o timbre de cada instrumento e toda a
gama de alturas
sonoras. Seu domínio sobre a sonoridade continua sendo total. Em que
medida a surdez de
Beethoven pode ter sido causa indireta para o aflorar do seu gênio, é
assunto que tem
merecido a atenção de muitos estudiosos. Lemos, por exemplo, em Tomás
Borba e
Fernando Lopes Graça:
É por volta de 1798 que Beethoven sente os primeiros sintomas do mal; em
1801 este
agrava-se e o músico tenta esconder a sua enfermidade. (...) a sua
poderosa força de
vontade vence a crise, mas o compositor vê-se obrigado a recluir-se em
si e na sua arte,
que, a partir desta altura, sensivelmente sofre uma imprevista
modificação em alcance e
profundidade. Bastará confrontar a galantaria ainda toda setecentista da
1ª e da 2ª
Sinfonias, respectivamente de 1800 e 1801, com o colossal fresco da 3ª
(Heróica), de
1803, verdadeiro poema da sua significação humana, para se avaliar da
transformação
operada no pensamento de Beethoven, transformação que, se não pode ser
atribuída
exclusivamente à tragédia da surdez, parece fora de dúvida ter nela tido
a sua imediata
determinação.
É, de fato, possível que a surdez de Beethoven tenha contribuído para o
desenvolvimento da sua musicalidade. Mas isso apenas como causa
circunstancial,
portanto indireta. Beethoven manifestou ao mundo seu gênio apesar da
surdez e não
graças a ela. Se ainda hoje a humanidade não aceita devidamente a
deficiência, é algo que
devemos lamentar. Se Beethoven, em sua época, alcançou um ideal de
perfeição humana,
trata-se de algo que dignifica a humanidade. E disso podemos nos
orgulhar. Quanto ao
papel de Beethoven no mundo da arte, eis outro tema também muito
debatido. Tem-se nas
palavras dos mesmos autores:
Decidir se Beethoven é o maior compositor da história da música
- o que
parece não
apresentar dúvidas para certos críticos - é questão que só pode ser
resolvida por um acto
(sic) de confiança nos juízos absolutos. Se afirmarmos, porém, que ele é
o maior
compositor instrumental de todos os tempos, já atribuiremos ao seu génio
(sic) uma
grandeza que acaso não sofre contestação.
Convém fazer mais algumas considerações a propósito de Beethoven. A
surdez não
foi impedimento para a sua criação musical, mas impediu-lhe de desfrutar
convenientemente da música, pelos mesmos motivos anteriormente
assinalados: o timbre e
a altura se lhe tornaram inacessíveis ao ouvido. Para o pintor, a
cegueira é um obstáculo
intransponível. Sendo a pintura uma arte exclusivamente visual, nem
mesmo a lembrança
mantida das cores e das formas supre as condições necessárias para o ato
de pintar. A
impossibilidade de ver compromete essencialmente a dinâmica que rege o
equilíbrio da
composição pictórica.
Voltamos a falar há pouco da impossibilidade de o cego vivenciar a
beleza
pictórica, em virtude de ser a pintura uma modalidade artística que se
desenvolve em duas
dimensões e que utiliza, de forma essencial, a cor – elemento expressivo
que o não-vidente,
via de regra, é incapaz de perceber de forma devida. Em tais
circunstâncias, o tato mostra-se ineficaz, na medida em que faltam relevos e porque, de todos os
nossos sentidos, apenas
os olhos são capazes de perceber o fenômeno colorístico. Não obstante,
conforme já foi
mencionado, tratando-se de uma pessoa que ficou cega após a faixa etária
delimitante,
próxima aos seis anos de idade, a lembrança das cores e das formas
visíveis podem
permanecer registradas na memória.
A artista plástica brasileira Virgínia Vendramini retrata essa
circunstância. Virgínia
começou a ter problemas visuais ainda na infância, que se agravaram
progressivamente, até
que, na mocidade, deram lugar à cegueira. Sempre estimulada pelos pais,
ela guardou o
registro das cores e formas do mundo visível. Foi o que lhe permitiu, já
cega, expressar-se
artisticamente através da tapeçaria. Os traçados são coloridos e
obedecem aos rumos
escolhidos por ela. Guia-lhe a memória, cultivada com esmero por esta
artista que, além de
atuar no campo da plástica, também é poetisa. Virgínia prefere a
plástica à literatura, por
considerá-la um desafio maior e o seu resultado mais prazeroso. E não se
importa com
eventuais erros ou defeitos que venham a surgir em seus tapetes: "Sendo
eu uma pessoa
deficiente, é de se esperar que minhas obras também o sejam, ao menos de
vez em
quando".
O caso do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar assemelha-se ao de Virgínia,
por ter ele
ficado cego após a infância e servir-se do acervo da memória para a
expressão plástica. Nas
palavras do crítico Ernesto Rossi, a arte fotográfica de Bavcar é um
"sonhar com os olhos
fechados, porém vigilantes" . Complementando essa perspectiva, Esther
Woerdehoff
escreve: "Todos querem saber como ele faz para fotografar. A pergunta
está errada.
Deveria ser perguntado por que ele fotografa! Evgen Bavcar é um
artista".
Bavcar e Virgínia contam com o auxílio de outras pessoas ao longo do
processo
criativo. Virgínia adquire seus fios de lã através de uma vendedora já
devidamente instruída
para que ela possa distinguir os rolos entre si, de acordo com as suas
respectivas cores. E
Bavcar dispõe de ajudantes para a montagem das cenas que fotografa, bem
como para a sua
própria localização no ato de fotografar. Esse auxílio, contudo, não
compromete a
originalidade e, conseqüentemente, a autoria das suas obras. Ambos os
artistas sabem o que
têm diante de si, sendo deles a escolha da configuração plástica a ser
criada.
5.4 Uma porta que se abre
Tratando-se de um processo relativamente novo e que ainda não se acha
suficientemente difundido no mundo, a audiovisão merece um item à parte.
Por isso preferi não mencioná-la anteriormente, mesmo en passant, nas
partes em que comento os limites de possibilidade para a participação do
cego no campo da arte, tanto para desfrutá-la quanto para criá-la.
Além do que, cabe indagar acerca da sua real eficácia e condições de
aplicabilidade em grande escala. Não é, como pode parecer, um novo ramo
da arte, mas sim uma forma de adaptação de duas artes essencialmente
visuais: o teatro e o cinema. Investindo no potencial auditivo dessas
duas artes que até então se mostraram vetadas aos cegos, a audiovisão é
uma nova porta que se abre. Alguns pormenores históricos fazem-se
necessários.
Foi por acaso, como em tantos outros inventos hoje consagrados. Num dia
de 1975, Gregory Frazer, professor da School of Creative Arts da San
Francisco State University, visitava seu melhor amigo, um cego.
Espantou-se ao vê-lo diante de uma tela de televisão, ao lado da esposa,
que lhe descrevia oralmente o que se passava na tela e que seus olhos
cegos não lhe possibilitavam ver. Animado com a experiência, o Professor
Frazer elabora uma técnica nova: invertendo o preceito fotográfico
segundo o qual uma imagem visual vale por mil palavras (obviamente para
quem pode ver), tem-se que "uma palavra pode valer por mil imagens para
um cego ou um deficiente visual". Juntamente com a nova teoria, nascia o
nome que a denominava: audiovision. Aprovada pelo decano da sua
universidade, August Coppola, a teoria transforma-se rapidamente em
prática, ganhando aplicação no teatro, na televisão e no cinema.
Desde 1989, a audiovisão tem sido adaptada em setores diversos, havendo
ampliado, até agora, a cerca de 40.000 não-videntes, as possibilidades
de acesso ao cinema, ao teatro, a programas de televisão, museus,
espetáculos esportivos etc. Peças e filmes famosos como Andrômaca, de
Racine, e Entre dois amores, de Sidney Pollack, figuram entre as obras
já traduzidas, por assim dizer, para essa linguagem híbrida em que a
descrição oral explica o conteúdo visual das cenas. O entusiasmo é
grande. São muitas as manifestações de contentamento da parte dos cegos
e deficientes visuais que têm podido acompanhar os frutos desta nova
porta que se abre.
Indiscutivelmente louvável e animadora quanto às suas realizações, a
audiovisão enfrenta, não obstante, sérios obstáculos para a sua
aplicação em larga escala. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),
o número de cegos no mundo é, hoje, da ordem de 50 milhões. Compare-se
esta cifra gigantesca, superior ao contingente populacional de diversos
países, com o número de cegos que têm tido acesso à audiovisão. A
proporção é inferior a 1/1000! É pouquísmo. Por quê? Mesmo levando-se em
conta que a audiovisão foi inventada há 25 anos e considerando a rapidez
de difusão dos novos inventos propiciada pela globalização crescente,
pode-se dizer que o processo ainda se encontra em fase inicial. As
dificuldades decorrem todas da mesma prerrogativa, inerente à essência
da própria realidade, e que tem sido exaustivamente repetida da
Antiguidade aos dias atuais: as palavras jamais equivalem exatamente às
coisas que elas representam; entre umas e outras, existem barreiras
semânticas intransponíveis. Daí a impossibilidade de que a descrição de
uma cena "traduza" perfeitamente o seu conteúdo visual. Vale sempre o
preceito de Heráclito: os testemunhos dos olhos são mais precisos que os
dos ouvidos. Veja-se que, no caso de um filme, cada minuto de projeção
normal demanda, em média, uma hora de trabalho para que seja adaptado ao
processo de audiovisão. Obviamente, as informações são selecionadas, uma
vez que a descrição total e perfeita é impraticável. Mesmo assim, os
custos operacionais são altíssimos. Daí a sua curta difusão em âmbito
mundial. Na França, um dos atuais líderes da economia mundial e país
pioneiro na assistência social aos cegos e deficientes visuais, os
resultados podem ser considerados excelentes. Na maior parte dos países
do mundo, contudo, a audiovisão ainda não foi sequer experimentada.
O problema assemelha-se ao de outras inovações importantes, como o
"livro falado" e o optacon. Tomando o caso do optacon como exemplo
genérico, ouçamos o que diz Philippe Chazal, cego e coordenador do livro
Les aveugles au travail, que reúne depoimentos de cegos, na sua maioria
franceses, provenientes dos mais diversos campos profissionais:
Pode-se esperar, com Bernard Hubac e todos os utilizadores do optacon
(eles são uma dezena a testemunhar nesta obra, mas sem dúvida centenas
na França e alguns milhares no mundo) que, se não for possível que ele
continue a ser fabricado, que ao menos a manutenção desse precioso
aparelho seja assegurada. Caso contrário, eles todos perderão uma ajuda
valiosa e a autonomia que o optacon lhes conferia no exercício da sua
profissão. Associações, indústrias, fabricantes americanos do optacon,
escutem este apelo: é um apelo desesperado.
A visão define-se a partir do ato de ver, assim como a cegueira
encontra a sua definição
quando se pensa na impossibilidade de realizar esse ato. Nas palavras
com que o
especialista Walter de Gruyten abre sua obra sobre os cuidados que
devemos dedicar à
visão, temos sintetizada a função do olho: "servir à recepção das
impressões visíveis".
Enxergar ou não enxergar essas impressões constitui o dilema em que se
concentra a
maior parte das teorias estéticas do Ocidente. Como foi dito no início,
este ensaio liga-se à
existência de um cego que, há cerca de vinte anos, resolvera visitar
Machupicchu. Retornei
ao Peru em 1987. Na ocasião, encontrei outro cego: um homem que tocava
um instrumento
de cordas numa das ruas estreitas de Cuzco, a mesma cidade em que tive a
notícia do
primeiro cego aqui referido. Recentemente, no início do ano 2000, mais
uma vez em
Cuzco, deparei com o mesmo cego tocando seu instrumento na mesma rua
estreita de antes,
a calle Hatun Rumiyoc.
A música também era exatamente a mesma ouvida em 1987. Ao seu lado, uma
caneca recebia as moedas dos passantes. É pena que o músico, ele mesmo
uma personagem
característica da ruela e da própria cidade de Cuzco, não possa ver as
maravilhas talhadas
em pedra por seus ancestrais incas. A cegueira o impede. Certamente ele
já tocou muitas
vezes aquelas pedras, percebendo-lhes os contornos e apreciando a
perfeição técnica
alcançada pelos antigos construtores.
Seguindo o costume dos seus
antepassados, o índio
cego trabalha de sol a sol, de modo quase ininterrupto. Que ele não
tenha ampliado seus
horizontes musicais desde que nos conhecemos, em 1987, isso reafirma a
tese de que a
cegueira não tem relação direta com o pendor musical. A ausência de
visão não é obstáculo
peremptório para o aflorar e o desenvolvimento da aptidão para a música,
como se
comprova pelos exemplos do alemão Helmut Walcha (que gravou a obra
inteira de Bach
para órgão, o que, mesmo para um organista vidente, constitui uma grande
façanha) e de
tantos outros grandes músicos cegos. Mas o fato de não ver tampouco atua
necessariamente como estímulo para a prática da música. Do contrário,
como explicar que
o índio de Cuzco não toque outra música além daquela?
Convém insistir que, em tese, o cego é mais estimulado para o
desenvolvimento da
audição do que uma pessoa com visão normal. Para ele, a audição torna-se
o único recurso
para a posse das noções de distância e profundidade em grande escala. Em
algumas
circunstâncias, raras, a enfermidade ou a deficiência pode estar
diretamente relacionada
com o melhor desempenho em alguma atividade. É o que ocorre na prática
circense do
contorcionismo. Os mais habilidosos tendem a ser aqueles que sofrem da
síndrome de
Marfan, uma doença caracterizada pelo alongamento anômalo das
extremidades do corpo,
além de certas complicações cardiovasculares. Se a cegueira favorecesse
a prática
musical, os maiores músicos seriam, por necessidade, cegos. A sua
inferioridade numérica
face aos videntes não seria obstáculo para que eles estivessem entre os
grandes gênios da
música. Mas não é o que ocorre. Landino, Cabezón, Salinas, Maria Teresa
von Paradis,
Joaquín Rodrigo e Ray Charles podem ser considerados, todos, músicos
excelentes. Mas
não alcançam o nível de grandiosidade de Bach, Mozart e Beethoven. Não
foi a cegueira
que os impediu, como também não os pôde auxiliar.
Será o mito que atribui aos cegos poderes extraordinários uma forma de a
sociedade
compensar os preconceitos que ela mesma criou em relação a eles? Os
preconceitos não se
vencem com mitos, assim como não é através da ficção simplória que o
homem supera o
egoísmo e a ignorância. Cabe ao cego adaptar-se à sociedade, buscando,
da melhor forma
possível, suprir a falta de visão através do máximo possível de recursos
que a natureza
humana, a ciência e a tecnologia são capazes de fornecer. Mas isso não
basta. É preciso
também que a sociedade se adapte ao cego, respeitando-o como ser humano
e ao mesmo
tempo reconhecendo suas limitações decorrentes da cegueira. Em outras
palavras, nem
preconcentos nem mitos. Se, no filme Perfume de mulher, de Martin Brest,
um indivíduo não vidente fosse
realmente capaz de fazer o que faz o protagonista, por que o papel foi
dado a Al Pacino,
que não é cego? Isso aponta para uma diferença crucial: o vidente pode
conhecer o mundo
da cegueira, ao ponto de poder passar por cego; mas a relação não é
recíproca. Para quem
vê, basta fechar os olhos para imaginar como seria se não visse; para
olhos que não vêem,
abri-los e fechá-los são atos que carecem de função perceptiva. O mundo
visual escapa à
percepção do cego. A única maneira de evocá-lo dá-se pela imaginação ou
pela lembrança,
tratando-se de cegos que já viram. Para cegos que nunca viram ou que
perderam a visão
ainda nos primeiros anos de vida, torna-se difícil o domínio da relação
entre os movimentos
da face e as emoções. Falta-lhes a possibilidade de aprender através da
observação dos
outros. Isso porque a prática da gestualidade, na sua parte mais
consistente, decorre do
aprendizado e do convívio social. Exceção feita a certos padrões
emotivos de alcance
universal – tais como os que representam o ódio, o medo, a vergonha –,
nossas expressões
faciais e movimentos corpóreos obedecem a parâmeros ditados pela
cultura. E, para
aprendê-los e assimilá-los, é preciso ver como fazem os outros membros
da sociedade em
que se vive. Recuperando um exemplo já referido (cf. supra), no
Ocidente, quando um
homem move a cabeça para os lados, ele expressa uma negação diante de
alguma
circunstância – é o nosso "não" habitual. Na Índia, o mesmo gesto quer
dizer "sim". Isso
explica as dificuldades inerentes à representação do movimento,
sobretudo facial, na
escultura figurativa, por parte dos escultores cegos. E também ajuda a
entender os
obstáculos que se interpõem ao cego nas artes que requerem performance:
além de não
contar com o modelo visível que há nas outras pessoas, falta-lhe também
a possibilidade de
interagir devidamente com os seres presentes no ambiente à sua volta.
Imaginem-se as
dificuldades enfrentadas por um cego para atravessar com naturalidade um
palco mobiliado
e, diante da platéia, expressar padrões de comportamento que quase
sempre exigem o
concurso ou pelo menos a prática do olhar, e que muitas vezes diferem
apenas de forma
sutil: a vaidade e o orgulho, por exemplo.
Na literatura, a situação difere em relação ao que se dá nas outras
artes. Há cegos,
como Homero (que tudo indica ter sido realmente cego), Milton e Borges,
que pertencem à
categoria dos grandes clássicos da literatura universal. Isso não
contradiz o fato de que a
arte literária pode, entre os cegos, ser utilizada simplesmente como
recurso para o
desenvolvimento pleno da personalidade. É nesse contexto que deve ser
entendida uma
sentença que o Maestro Hans Koellreuter costumava repetir nas suas
aulas: "Quando
ensinamos nossos filhos a falar, não temos a expectativa de que se
tornem oradores".
Mutatis mutandis, etc.
Tal como a cegueira não favorece diretamente o pendor musical, a surdez
tampouco
tem relação necessária com o desenvolvimento da habilidade plástica.
Goya já era um
grande artista quando, em 1792, foi acometido pela doença grave que o
deixou quase
completamente surdo. Se ele continua a produzir obras de altíssima
qualidade artística até a
época da sua morte, ocorrida em 1828, isso se deve ao talento já
desenvolvido antes; não
tem relação direta com a surdez. Por outro lado, não se deve ignorar que
o surdo tende a
requisitar com mais intensidade o sentido visual, da mesma forma como o
cego costuma
recorrer mais à audição. Utilizando mais intensamente a visão do que o
faria se pudesse
ouvir, o surdo torna-se assim especialmente propenso ao desenvolvimento
do pensamento
plástico. Sempre lembrando, porém, que essa propensão não pode ser
confundida com
uma inclinação peremptória e que o desenvolvimento em tela não aponta
forçosamente para
a qualidade artística dos produtos realizados.
A atividade plástica para
o surdo pode se
traduzir simplesmente como prática lúdica ou terapêutica, o mesmo
valendo para a relação
entre a música e o cego. O que não faz da arte um fenômeno menos
importante para o
homem.
O músico cego de Cuzco mistura-se à paisagem arquitetônica que o rodeia.
Muitos
transeuntes nem notam a sua presença. É costume entre os turistas
ignorar a pobreza e a
cegueira, fatalidades que afligem o homem desde tempos muito remotos.
Ocorre que nem a
pobreza e nem a cegueira comprometem necessariamente a essência do
homem. Isso se
aplica a todas as outras formas de fatalidade ou deficiência. Não é a
posse de bens materiais
e nem o pleno usufruto das potencialidades físicas e mentais que faz de
um homem aquilo
que ele efetivamente é. O homem está em contínuo fazer-se. E, nesse
processo, o
fundamental é que seus atos sejam revestidos do sentido que lhe é
próprio. Só assim é
possível insistir na pergunta relativa ao que seja o homem. É ela a
pergunta subjacente a
todas as nossas outras interrogações. Desse modo, conforme se viu em
páginas anteriores, o
ato de perguntar pelo que seja a cegueira, a beleza e a arte evoca
sempre, como
pressuposto, a pergunta radical: o que é o homem? É a mesma indagação
que me fiz ao
reencontrar o outro cego de Cuzco. E que pode ser resumida nesta
passagem de Viktor
Frankl:
O que é, pois, o homem? Seguimos perguntando. É um ser que sempre decide
o que é.
Um ser que abriga em si a possibilidade de decair ao nível de um animal
irracional, ou
de elevar-se a uma vida sublime. O homem é este ser que inventou as
câmaras de gás;
mas também é este ser que caminhou na direção das câmaras de gás de
cabeça erguida,
rezando o Pai Nosso, ou com a oração judaica dos agonizantes nos lábios.
Ainda que o índio não tenha talento especificamente musical, nem por
isso a sua
vida acha-se desprovida de sentido. Embora não seja capaz de ver a bela
cidade de Cuzco,
aquele homem cego importa-se com a beleza. Em sua simplicidade, ele
embeleza com
música a rua estreita da antiga capital incaica. Depende das moedas dos
passantes para
sobreviver, mas mantém a sua dignidade. Nisso ele encontra um sentido
não só para a sua
música, mas também para a sua própria vida. E dessa forma ele se afirma efetivamente
como homem. Pois, mais uma vez recorrendo às palavras certeiras de
Viktor Frankl,
percebe-se que o homem
(…) é um ser que busca o sentido de forma radical. O homem está sempre
orientado e
ordenado para algo que não é ele mesmo: seja um sentido que há de
cumprir, seja outro
ser humano com o qual ele se encontra. De uma e outra forma, o fato de
ser homem
aponta sempre para além do próprio indivíduo, e esse ato transcendente
constitui o
essencial da existência humana.
É possível haver plenitude de sentido na vida do outro cego que
encontrei no Peru;
como também para o primeiro cego de que fala este livro, em sua atitude
de visitar
Machupicchu. A antiga cidadela incaica continua a ser um local visitado
por causa da
extrema beleza visual das construções e da paisagem circundante. Como
foi apontado antes,
a arte, no sentido genérico, costuma ser entendida como uma realidade
pertencente à órbita
da visão. Não é por acaso que as sete maravilhas do mundo antigo cabem
todas elas no
circuito das artes plásticas: são, de fato, obras escultóricas ou
arquitetônicas. A plasticidade
tem o endereço visual, e os olhos são o nosso sentido estético por
excelência. A beleza
audível, desdobrando-se através da temporalidade, é marcada pelo efêmero:
provoca a
sensibilidade auditiva para logo em seguida deixar de existir em ato. É,
aliás, interessante
que a percepção do transcurso temporal costume ocorrer no sentido oposto
à nossa vontade.
Quanto mais desejamos que o tempo passe devagar, mais ele parece
acelerado. Por outro
lado, se queremos que ele passe depressa, a impressão é de que ele
atrasa.
Habitando o espaço, as sete maravilhas do mundo pareciam todas elas
destinadas à
perenidade. Mas apenas as pirâmides da Gizé cumprem efetivamente essa
prerrogativa. Das
outras seis maravilhas quase nada resta que possa registrar a sua
grandeza pretérita. Tal
qual os antigos monumentos egípcios, a cidadela de Machupicchu parece
disposta a
desafiar as intempéries do tempo. E também ela, como obra arquitetônica,
dirige-se aos
olhos. Ainda que de forma bastante limitada, o cego pode ter noções
relativas ao espaço
arquitetônico que o rodeia, através do eco, por exemplo. Foi o que
permitiu a Romagnoli,
um cego italiano, perceber a imensidão de pedra que o circundava quando
de sua visita à
basílica de São Pedro, em Roma.
O sujeito, embora desfrute de primazia na ordem do ser, ocupa o último
posto na
ordem do aparecer. A passagem seguinte, de Gustavo Corção, é
esclarecedora.
-
(...) gabava-me de ter uma acuidade fora do comum. Tinha um olhar
extraordinário, mas
ainda não sabia que a coisa mais extraordinária era ter olhos.
Espantava-me com os
adjetivos, deixando de me espantar com os substantivos. Envaidecia-me
com os dotes
que me singularizavam, que me distinguiam dos outros, porque ainda não
tinha pensado
na substancial realidade de minha alma, que me singulariza de modo muito
mais forte,
mas que ao mesmo tempo me coloca com os outros numa equiparação chocante
e
admirável. (...) Comecei por dizer comigo mesmo (...) que é mais
extraordinário ter um
nariz do que ter um nariz extraordinário.
A beleza, a cegueira, a acuidade sensória, são todas elas qualidades.
Participam das
categorias que revestem os seres. Indicam modos de ser das coisas que
preenchem a
existência, podendo se manifestar em graus que oscilam entre o máximo e
o mínimo.
Sabemos desde a Antiguidade grega que a beleza é uma qualidade da qual
apenas o
homem desfruta (cf. supra). Mais recentemente, no âmbito da
Antropologia, Franz Boas
mostrou-se herdeiro da mesma concepção ao afirmar que "todos os membros
da
humanidade desfrutam do prazer estético." Isso contribui para ressaltar
a enorme
importância desempenhada pela beleza ao longo da vida humana. E aponta
para uma
realidade ainda mais fundamental: a aptidão estética representa apenas
uma das muitas
faces da nossa existência. Com efeito, a disponibilidade para o belo
inclui-se num projeto
maior, voltado para a felicidade. Que ela é acessível ao cego e aos
demais portadores de
deficiência indicam-no as páginas escritas por Helen Keller, em que a
palavra "felicidade"
e seus correlatos comparecem de forma reiterada (cf. supra).
Que isso não nos leve a minimizar os problemas que concernem à
experiência
estética dos deficientes. A deficiência, não importa a modalidade em que
se apresente, é
sempre algo a ser evitado. Ser deficiente representa uma atrofia em
nossa natureza
constitutiva. Por contrariar essa natureza, a deficiência é um mal.
Sempre, em princípio, a
pessoa normal acha-se mais capacitada para o contato com o belo, o mesmo
valendo para as
outras experiências propostas pelos seres que emergem da natureza ou da
arte. Por outro
lado, a posse de um organismo em perfeito estado não é garantia de uma
aptidão maior para
o belo, de um contato mais intenso com a realidade circundante e nem de
uma vida feliz.
Some-se a isso a extrema relatividade que norteia os bens e os males que
participam
da vida humana: a perna engessada em decorrência de um acidente pode
parecer uma
bênção para o homem que corria o risco iminente de perdê-la. Opondo-se à
beleza, o feio
pode contribuir para ressaltá-la, se colocado ao seu lado. Toda
qualidade torna-se
evidenciada quando na presença do seu contrário. Nisso certamente
pensava Heráclito ao
dizer que "a doença torna a saúde agradável; o mal, o bem; a fome, a
saciedade; a fadiga, o
repouso". E São João Crisóstomo, quando explica que a noite existe para
valorizar a
existência do dia:
Assim como o dia tira do homem o seu trabalho, a noite, quando chega,
proporciona-lhe
descanso das suas inumeráveis ocupações, aliviando-o e adormecendo-lhe
os olhos já
fatigados e lhe baixa as pálpebras. Faz com que o homem, restauradas as
suas forças,
receba os novos raios de Sol. (...) Se não fosse dado ao homem descanso
de nenhum dos
seus trabalhos, mediante a sucessão dos dias, de nada serviria ao homem
a chegada do
dia que o traz novamente às suas ocupações. Porque, aniquilada a
natureza e destruída
sua parte animal pela continuidade do trabalho, o homem pereceria, e não
tiraria proveito
de desfrutar da luz.
É a mesma circunstância que, no plano moral, temos traduzida na
sabedoria popular através
do adágio que diz haver males que vêm para bem.
Muitos dos transeuntes que passam pelo outro cego de Cuzco não lhe
dirigem o
olhar. Vêem a sua presença como um incômodo. Pois Cuzco é bela e está
ali para ser vista;
já a cegueira, tal como se dá com as outras formas de deficiência,
emparelha-se com a
feiúra. O feio é, por natureza, o negativo do belo. Decorre de uma falta
ou de um excesso
na composição dos seres, chocando-se assim com o equilíbrio e a harmonia
exigidos pela
nossa sensibilidade propriamente estética. Diz o preceito clássico: ao
ser belo nada se
acrescenta; dele nada se exclui. O que, aliás, é uma variante da fórmula
que tem o belo
como o resultado da unidade na variedade, comentada no início do livro;
para que vigore a
beleza, é necessário repelir tanto o excesso quanto a carência, como
observa Santo
Agostinho. Pense-se num aspecto recorrente da vida contemporânea,
destacado pelo
cineasta Win Wenders: "a inflação de imagens que não dizem nada".
Vivemos uma
época marcada pela poluição visual.
O outro cego de Cuzco é assim desde que nasceu: faltam-lhe os olhos. Em
que
medida aquele índio que nunca viu sabe que não vê? Há seres que afirmam
com maior
intensidade a sua existência quando estão ausentes do que no tempo em
que estavam
presentes. O outro cego já está velho; talvez em breve ele não esteja
mais ali. Penso nas
pessoas que atravessam hoje aquela rua de Cuzco, olham para o músico
cego mas não o
vêem. "Não tanto a cegueira, mas a atitude do vidente em relação ao
cego: este sim é o
grande fardo a suportar", disse Helen Keller.
Um dos aspectos mais curiosos da cultura consiste na facilidade com que
as palavras
podem mudar seu sentido primitivo. Assim, por exemplo, o conceito de
super-homem, que
na Renascença aplicava-se tanto a Cristo quanto a uma humanidade fora do
comum. Mas
não são esses os significados que predominam na cultura ocidental.
Introduzida na
Alemanha por Heinrich Müller, a palavra é empregada por vários
românticos, dentre os
quais Goëthe, e chega até Nietzsche, que lhe concede atenção filosófica.
E é a concepção
nietzscheana que se difunde e se populariza a partir de então, entendida
como a encarnação
da vontade de potência, o legislador acima do bem e do mal, a quem cabe
criar os valores
vitais, opostos àqueles que Nietzsche considera tradicionais e por isso
mesmo desprezíveis:
"O homem deve ser superado. O super-homem é o sentido da terra (...). O
homem é uma
corda estendida na direção do animal, e o super-homem uma corda sobre o
abismo".
Ainda que não tivesse nenhuma intenção ou aplicabilidade política
específica, o
super-homem de Nietzsche seria utilizado na Alemanha nazista como
justificativa teórica
para a suposta supremacia racial dos alemães sobre outros povos. A
própria idéia
nietzscheana de eliminação dos mais débeis serviria como uma luva aos
ideais nazistas.
Antes mesmo de se aplicarem ao extermínio dos judeus e de outros grupos
que por um
motivo ou por outro opunham-se aos desígnios de Hitler, as câmaras de
gás já se
empregavam sistematicamente para suprimir os doentes mentais: "É neles
que, desde
Janeiro de 1940, foram aplicadas as primeiras câmaras de gás". Consoante
o programa de
eugenia do III Reich, tratava-se de dar fim aos que haviam nascido
"geneticamente
incorretos", "vidas indignas de serem vividas": Vernichtung
lebensunwerten Lebens. E
isso em defesa dos interesses da sociedade, feita, de acordo com as
premissas em questão,
apenas para os homens suficientemente dignos de receber o estatuto de
humanidade.
Em si, os fins da proposta nazista tinham sua justificativa teórica, na
medida em que
se voltavam para o bem-estar social. Como também o tinham os dos
legisladores
espartanos, de Platão e de Aristóteles, que viam na eliminação dos
débeis uma medida
necessária para a preservação da sociedade. Se necessário, a parte deve
ser sacrificada em
benefício do todo, pensava Aristóteles: amputa-se um dedo com gangrena
para salvar a
mão; se a mão está gangrenada, é ela que se deve sacrificar em prol do
braço etc. Os
chineses, que até há bem pouco tempo matavam as suas crianças que
nasciam cegas,
sentiam-se agindo em defesa do seu grupo social. Ocorre que os fins das
ações humanas,
por nobres que sejam, nunca justificam os meios, se estes representam
alguma espécie de
dano para o próprio homem. É sem dúvida nobre querer o progresso da
medicina e
esforçar-se por ele. O mesmo se diga em relação ao término das disputas
raciais entre
negros e brancos. Pois foram justamente essas as justificativas para que
um grupo de
médicos norte-americanos da primeira metade do século XX utilizasse como
cobaias
centenas de homens negros. Durante mais de uma década, iludidos pela
promessa de que
estariam sendo curados de sífilis, que todos tinham, foram submetidos a
experiências que
não visavam a cura. Tinham por meta observar os efeitos de certos
medicamentos em
estado experimental e acompanhar os sintomas da sífilis até que todos
eles morressem,
vitimados direta ou indiretamente pela doença. E isso numa época em que
já se conhecia o
efeito curativo da penicilina sobre a sífilis. Veja-se o filme Cobaias,
dirigido por Joseph
Sargent.
O fato de Nietzsche ser tão explícito ao expressar o direito de
supremacia de uns
homens sobre outros não significa que ele tenha sido o primeiro a
pensá-lo. E nem o último.
Como já vimos, a aplicação prática da noção nietzscheana do super-homem
perpassa
diversas épocas e sociedades. A questão reside em grande parte nos
critérios utilizados para
discernir entre os que têm direito à vida e os que não têm. Lê-se na
obra do filósofo
contemporâneo Roger Wertheimer que "exceção feita aos monstros, todo
membro da nossa
espécie é indubitavelmente uma pessoa, um ser humano". Ora, com que grau
de certeza
isso pode ser afirmado? O que dá ao autor o direito a essa afirmação?
Não que se possa
provar com precisão matemática que ele esteja errado. Mas há de se
convir que a
dificuldade é no mínimo a mesma para que se possa aceitar que ele esteja
certo ao pôr em
dúvida o estatuto de humanidade dos que ele considera monstros. Uma
criança cuja carga
genética foi afetada pela explosão atômica de Chernobyl, e que em
decorrência nasce sem
os olhos ou sem o cérebro, é um monstro? Tem ou não direito à vida?
Mesmo que
deixemos de lado todo e qualquer argumento de ordem moral ou religiosa,
o conflito
permanece. Pois um mínimo de honestidade intelectual exige que se
considere: é
impossível determinar se um ser humano, por mais monstruoso que seja ou
se torne, deixa
ou não de ser integrante da humanidade por causa da monstruosidade que o
atinge. Vendo
assim as coisas, sob um prisma puramente pragmático, pode-se dizer que Roger
Wertheimer tem 50 % de chances de estar certo, sendo idêntica a sua
margem percentual
relativa ao erro. Mas o que está em questão é sério demais para que
possa ser afirmado com
uma possibilidade de erro da ordem de 50%!
Há pouco tempo, li na cidade siciliana de Agrigento um cartaz afixado
sobre um
muro, no qual era dito que todas as pessoas com 74% de deficiência
física ou mental
tinham direito ao transporte urbano gratuito, desde que esse mesmo
percentual fosse
atestado por um médico. Como quantificar a deficiência? Qual exatamente
o limite entre
ela e a normalidade? O terreno é mais que propício para confusões de
toda espécie. Todo
critério exclusivista entre normais e anormais dá margem a distorções e
problemas os mais
diversos. A própria noção grega de democracia, tida às vezes como das
principais
contribuições dos gregos ao mundo, era, na prática, um privilégio de
poucos. Porque os
direitos políticos restringiam-se aos cidadão livres; não se aplicavam
às mulheres, aos
estrangeiros e obviamente nem aos escravos, que eram numerosíssimos.
Aristóteles, por ser
macedônio, jamais foi considerado cidadão ateniense, ainda que tenha
vivido nessa cidade
por vários anos. O mesmo tende a ocorrer no campo da dicotomia
são / deficiente. É
facílimo que ela seja manipulada e acabe por servir aos interesses
particulares de alguns. Os
ideais de pureza racial ou social que servem de base aos argumentos
relativos à supremacia
dos fortes sobre os fracos (entenda-se também aqui dos sãos sobre os
deficientes, dos
lúcidos sobre os loucos etc.) costumam ser distorcidos em relação à sua
finalidade inicial.
No nazismo, herdeiro ideológico do conceito de super-homem em Nietzsche,
o
passo foi pequeno para que, da eliminação dos doentes mentais – por
serem um fardo
social, como já pensava Rousseau no Iluminismo –, se decidisse eliminar
"as pessoas
culpadas de serem feias" no último ano da Segunda Guerra Mundial. Foi o
efeito
espontâneo do projeto Kunst und Rasse ("Arte e raça"), criado dezesseis
anos antes. Do
acordo entre Himmler e Tierack, ministro da Justiça, instituiu-se a
feiúra física como
"crime social". Já nas penitenciárias do Reich haviam sido vistos homens
que, em razão das suas deformidades físicas, "mal mereciam o
qualificativo de humanos" (Menschen): mais pareciam "abortos saídos do
Inferno" (Missgeburten der Hölle). Lia-se na ordem do dia:
Esses prisioneiros devem ser fotografados. Pensa-se também que eles
devam ser eliminados (auszuschalten). O delito e a condenação não serão
tomados em conta. Somente serão mostradas as fotos que mostram a
deformidade.
Conforme vimos ao longo do livro, a aceitação social do deficiente
permanece como problema. Não só por causa dos ideais de eugenia que
ainda vigoram, mas também pela complacência intelectual da própria
sociedade, que muitas vezes prefere encobrir ou mascarar o mal a
tratá-lo com objetividade. A cegueira, não custa repetir, é uma
deficiência. E como tal precisa ser combatida. De que serve dizer que a
perda da visão se compensa plenamente pela atuação dos outros sentidos?
A realidade não é essa. O cego interpretado no cinema por Al Pacino não
existe na vida real. E para o cego de verdade, é a realidade que conta!
Longe de trazer algo de positivo relativamente à cegueira, o filme de
Martin Brest faz aumentar a confusão sobre um tema já bastante complexo
em si mesmo. O fato de Al Pacino haver sido premiado com o Oscar de
melhor ator simplesmente confirma quão arbitrários e falhos costumam ser
os juízos de valor no campo da apreciação estética. Não que faltasse a
Al Pacino talento para representar devidamente um homem cego. Ao
contrário. Trata-se indubitavelmente de um grande ator, o que aumenta a
sua responsabilidade num desempenho tão equivocado.
Cabe lembrar o
também grande ator Jean Gabin, que, para protagonizar um cego em A noite
é o meu reino (La nuit est mon royaume), dirigido por Georges Lacombe em
1951, instruiu-se corretamente sobre a realidade da cegueira: uma
atitude que valorizou a sua atuação e contribuiu decisivamente
para fazer do filme uma obra-prima. A eventual beleza de um rosto
feminino não pode ser alcançada através do olfato, por mais sugestivo
que seja o perfume em questão. Dizer o contrário levar-nos-ia a admitir
que os olhos são capazes de perceber o aroma das rosas, da mesma forma
como o fígado se encarregaria da respiração, enquanto os pulmões
segregariam a bílis.
Para um cego que se acha numa galeria rodeado de pinturas de Chagall, a
experiência é a mesma que teria numa repartição pública, com pilhas de
processos à sua volta. A menos, é claro, que alguém lhe explique a
diferença entre um ambiente e outro, ou que algum fator de diferenciação
lhe chegue através do olfato e assim por diante. São situações
discutidas nas páginas anteriores, e que, como se viu, podem ocasionar,
no máximo, uma compensação mínima do que os olhos perceberiam como órgão
diferenciador entre pinturas e processos, galerias de arte e repartições
públicas.
Ainda vale a pena comentar um último aspecto do filme Perfume de mulher,
de Martin Brest. Ocorre que este é o título de um filme italiano (Profumo
di donna), dirigido por Dino Risi e que tem Vittorio Gassman no papel
principal. Produzido em 1975, o filme de Dino Risi é bem anterior ao de
Martin Brest. A história, por sua vez, vem da literatura italiana do
século XX, mais especificamente do romance Il buio e il miele (O escuro
e o mel), de Giovanni Papini. Fiel ao livro, o filme italiano é
esplêndido, não só como obra de arte, mas também pela objetividade com
que trata o assunto da cegueira. Já o filme norte-americano desvia-se
radicalmente do enredo originário. O cego capaz de dirigir um carro em
disparada e de perceber as cores dos cabelos femininos através do olfato
existe apenas
para Brest: não para Papini e nem para Risi. Da mesma forma é invenção
exclusiva de Brest o discurso apelativamente altruísta do cego no
tribunal, aliás o fechamento do filme.
Dino Risi demonstra ter compreendido a realidade da cegueira. O que não
lhe impede de tirar conclusões profundas acerca dela – e isso sem lançar
mão, uma única vez sequer, dos recursos sensacionalistas de Brest.
Excelente no papel do protagonista, Vittorio Gassman, em diálogo poético
com o irmão – um padre que vive em Roma –, diz que a felicidade dos
cegos consiste na possibilidade de ver as coisas não como elas são na
realidade, mas sim como eles imaginam que sejam. Talvez parafraseando
Michelangelo – que "pensava com as
mãos" (penso con le mani) – e obviamente em tom de metáfora, o cego
italiano crê-se capaz de ver com os ouvidos: vedo con gli orechi.
Por que não admitir as limitações geradas pela cegueira? Via de regra,
os cegos gostam de ser reconhecidos como tais. O que não os impede de,
quando lhes convém, recorrerem ao vocabulário próprio da visualidade. É
o que ocorre na França quando dizem au revoir ("até a vista") para
despedir-se de alguém. Pois trata-se de uma prática lingüística
consagrada na sua cultura, o que por sua vez deriva da própria tendência
que tem a visão a representar a sensibilidade como um todo. Negar-se ao
uso dessa expressão diante de um cego – simplesmente por medo de
feri-lo, lembrando-lhe que ele não pode ver – equivale aos mesmos falsos
escrúpulos que permeiam expressões como "homem de cor" no lugar de
"negro", "aquela doença" em vez de "câncer" e assim por diante, conforme
já se discutiu anteriormente. Longe de atenuar o problema, tais atitudes
simplesmente o agravam, por inibirem procedimentos positivos quanto ao
seu esclarecimento e a busca de eventuais soluções.
Ainda que se considere a pintura como a rainha das artes, como pensava
Leonardo da Vinci, o fato de, na prática, ela ser inacessível ao cego
não implica que outros ramos da arte lhe sejam vetados. Pois, como se
viu, são muitas as possibilidades de que o cego aprecie a beleza, tanto
da natureza quanto da arte. E que se expresse artisticamente também,
tornando-se, ele mesmo, produtor de obras belas. A Estética, como os
outros ramos da Filosofia, precisa manter os pés no chão. Toda teoria
estética que fuja a esse preceito arrisca-se a ser um mero exercício de abstração, sem efeitos aproveitáveis em nenhuma esfera da cultura. De
que serve entreter-se com malabarismos intelectuais que não trazem
nenhum benefício para o homem e os outros seres? As formulações
estéticas em particular, e as filosóficas em geral, precisam se adaptar
ao mecanismo de compreensão do homem comum. Se optei por uma linha de
argumentação realista ao longo do ensaio, foi por ver nela uma utilidade
maior para a exploração do assunto. Se muitas vezes me apoiei em
Aristóteles, foi por reconhecer nele um modelo de clareza a ser seguido.
Faço eco ao que diz Cícero: "Onde encontrar uma inteligência mais
cultivada, mais penetrante, mais viva para inventar e julgar que a de
Aristóteles"? Referindo-se ao papel de Aristóteles como inaugurador do
estilo filosófico, Ortega y Gasset aponta que "a claridade é a cortesia
do filósofo". E acrescenta, com não menos justiça:
Difíceis, realmente difíceis
- e injustificavelmente difíceis
-, são
Kant, Fichte e Hegel. Por que foram? Porque nenhum dos três jamais viu
com plena claridade o que pensava ter visto. Essa afirmação parece
insolente, mas todos os que estudaram bem esses três pensadores geniais
sabem que isso é correto, ainda que não se atrevam a declará-lo.
É óbvio que Aristóteles não acerta sempre. Ao mesmo tempo em que fornece
bases teóricas para a compreensão objetiva da relação entre a cegueira,
a beleza e a arte, ele mostra-se partidário da tese eugênica, que
preconiza a eliminação dos deficientes. No que se tem uma contradição
mais do flagrante. Aliás, tal como muitos outros sábios antigos,
Aristóteles acreditava que as éguas fossem fecundadas pelo vento.
Um dos problemas mais graves da atualidade é, sem dúvida, a difusão
planetária do materialismo. O mundo globalizado insiste na posse, nem
que seja virtual, da totalidade das coisas. Passamos a "ter tudo em
excesso", conforme aponta Win Wenders no filme Janela da Alma, de
João Jardim e Walter Carvalho. Paradoxalmente isso nos torna menos
capazes de prestar atenção, de ver aquelas mesmas coisas. Porque, na
verdade, ter tudo em excesso difere pouco de não ter absolutamente nada;
é uma equivalência inegável. O homem de hoje parece reviver a história
do rei mesopotâmio Gilgamesh, primeiro herói trágico da literatura
universal, que queria ver todas as coisas. Ocorre que ver tudo é como
não ver
nada. Cada vez mais perdidos em meio a uma confusão infindável de
imagens promovidas pela mídia – onde as cores, as formas e os contornos
mudam de contexto com uma rapidez
que somos incapazes de acompanhar –, já não reconhemos os contrastes que
regem a diferenciação entre as coisas. Tal como a cegueira, que se
caracteriza pela impossibilidade de distinguir os seres a partir do seu
aspecto visível, o apelo excessivo à visão também impede que vejamos o
mundo. Longe de contribuir para um aumento significativo das boas
opções, a indústria atual do cinema e da televisão investe num
decréscimo da qualidade dos seus produtos. Das centenas de filmes
oferecidos pelas redes de TV, são raros os bons.
Muitas vezes reduzido à mera exibição técnica, o cinema de hoje é em
larga escala a simples mostragem de efeitos especiais. Que na maioria
dos casos é um disfarce com que se
tenta amenizar a falta de substância daquilo que se propõe como filme. É
um vazio que chega a ser ele mesmo substantivo, aliás um traço típico da
arte contemporânea, que faz com que a história do rei nu saia
freqüentemente do plano da metáfora e se confunda com a vida concreta.
Nesse sentido deve-se perguntar: quais os cegos, quais os que vêem?
Revendo o projeto inicial que me moveu a escrever estas linhas, reafirmo
o propósito de antes. Considero-me gratificado com a idéia de que o
livro sirva ao esclarecimento das relações entre o cego, o belo e a
arte. E que este mesmo esclarecimento contribua para que sejam vencidos
tanto os preconceitos quanto os mitos envolvendo a cegueira e as outras
formas de deficiência. Pois é esse o pressuposto básico para a inclusão
efetiva do deficiente na sociedade em que ele vive. Reconhecer-se no
outro é um sinal inequívoco de afirmação da dignidada humana. Para todos
nós, homens que somos.
ϟ
João Ganzarolli de Oliveira
Do essencial
invisível: arte e beleza entre os cegos,
2002 [excerto]
[Nascido em 1961, João Vicente Ganzarolli de Oliveira é professor de Estética e Filosofia da Arte na Escola de Belas-Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e vice-presidente da Associação Brasileira de Estética. Trabalha também como jornalista e, desde há cerca de cinco anos,
dedica-se particularmente à integração social do deficiente físico através da arte.
É autor dos seguintes livros: "Arte e beleza no pensamento de Gerd Bornheim", EdUERJ, 2003; "Índia Submersa",
Letra Capital, 2004; "A humanização da arte: temas e controvérsias na filosofia", Edições Pinakotheke, 2009; "Estética e vivência humana: temas e controvérsias na filosofia", Letra Capital/Faperj, 2008; "Por que não eles? - arte
entre os deficientes", Editora Cidade Nova, 2007; além deste "Do essencial invisível: arte e beleza entre os cegos", Editora Revan/Faperj, 2002.]
10.Out.09
Publicado por
MJA
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