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Calisto, o poeta zarolho, escurecido pela
solidão do Outono - Mirtilo Gomes, 2007
Os professores me chamavam de estrábico. Mas os meus colegas da escola me
chamavam — pelas costas, é claro — de caolho, zarolho, mirolho.
Certa ocasião eu fui falar com uma garota e ela olhou para mim e caiu na
gargalhada.
Sofri muito com aquilo. E passei a andar à sorrelfa, para que não percebessem o
meu
defeito. Nunca mais olhei o meu rosto num espelho. Fazia a barba no chuveiro, o
que
aliás era uma boa ideia, água quente — eu tomo banho com a água fervendo —
amacia os
pelos do rosto e a raspagem é fácil e perfeita.
Fui ao oftalmologista, o doutor Cobra. O nome dele era Cobra. Não estou
inventando.
E qual o problema do sujeito se chamar Cobra? Não tem gente que se chama Barata,
Leitão, Pinto, Camarão, Aranha, Carneiro, Café? Eu podia arrolar aqui dezenas de
nomes
estranhos. Ele me examinou longamente e disse:
“O seu caso é raro, a sua síndrome é dificilmente encontrada em outra pessoa. E
não
tem cura."
“E uma cirurgia, doutor?"
“Qualquer cirurgia deixaria você irremediavelmente cego."
“E o que o senhor me aconselha para diminuir esse meu sofrimento?"
“Usar óculos escuros. Bem escuros. Assim ninguém percebe a sua anomalia ótica."
Nesta mesma ocasião os meus pais faleceram, num desastre de automóvel.
Meu pai, que também era estrábico, estava dirigindo.
“O estrabismo”, o doutor Cobra me disse, “não é genético, você e o seu pai
sofrerem
do mesmo problema é uma mera coincidência”.
Herdei dos meus pais bens suficientes para uma vida inteira.
Comprei os óculos escuros, saí da escola, nunca mais procurei o doutor Cobra.
Eu não tirava os óculos escuros para nada. À noite, quando ia dormir, apagava a
luz e
colocava os óculos na mesinha de cabeceira. Eu tinha oito pares de óculos, não
queria
correr o risco de ficar sem um deles. Eu nunca mais, repito, nunca mais olhei o
meu
rosto no espelho sem os óculos.
Eu gostava de andar pelo parque, próximo da minha casa, e costumava sentar-me
num
dos bancos para ficar olhando as pessoas passarem. Confesso que os óculos
estavam me
fazendo bem, eu já não via mais as coisas como antes, de maneira distorcida.
Entre os transeuntes da praça um chamava a minha atenção. Era uma jovem muito
bonita, elegante, a quem eu contemplava, sem que ela percebesse, pois os óculos
escuros
o permitiam.
Chegando em casa ficava pensando nela, principalmente ao deitar. Eu a via com
nitidez
caminhando pela praça, e quando o sono me dominava eu sonhava com ela.
Um dia eu estava sentado no banco quando vi, feliz, ela se aproximando.
Para minha surpresa ela se sentou ao meu lado.
“Nós sempre nos encontramos e nunca nos falamos. O meu nome é Helena."
Disse isso estendo a mão para mim.
Eu a cumprimentei dizendo:
“O meu é José, mas os meus pais me chamavam de Zé."
“Então também vou chamá-lo de Zé. Posso?"
“Claro."
“Felizmente o sol já se pôs. Eu adoro o pôr do sol, você também? E quando vai
tirar
esses óculos escuros?"
Fiquei trêmulo, escondi as mãos enfiando-as no bolso.
“Tenho que ir embora, lembrei agora que estou atrasado para um encontro
importante."
Saí apressado, creio mesmo que corri esbaforido.
Nunca mais fui passear na praça.
Passaram-se uns meses, e um dia eu estava tomando um cafezinho — confesso que
sou
um viciado em café, o meu único vício —, quando senti um toque no meu ombro.
Era Helena.
“Você sumiu. Tenho ido todos os dias à praça para ver se o encontro, mas não
tenho
tido esse prazer. Pensei que você gostasse de mim."
“Eu gosto... muito...”, gaguejei.
“E por que desapareceu? Isso me deixou muito triste."
Criei coragem e decidi falar a verdade.
“Por quê? Por quê? Por isso!"
Tirei os óculos e olhei Helena de frente.
“Você tem olhos lindos."
Ela devia estar escarnecendo, nada se iguala à maldade das mulheres!
Havia vários espelhos no botequim. Olhei num deles. O meu estrabismo
desaparecera!
Se eu fosse uma pessoa religiosa acreditaria num milagre.
Bem, devo confessar que nada disso ocorreu. Foi mais um sonho. Eu encontrar a
moça na praça foi um sonho. E qual é o problema?
O sonho, para a ciência, é uma experiência de imaginação do inconsciente durante
nosso período de sono. Em diversas tradições culturais e religiosas, o sonho
aparece
revestido de poderes premonitórios ou até mesmo de uma expansão da consciência.
Aquele sonho era um presságio? Iria ocorrer o que eu sonhei?
FIM
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Rubem Fonseca continua a revelar
- em Histórias Curtas - a sua mestria na arte do conto e reúne desta vez trinta e oito histórias curtas, por vezes curtíssimas, nas quais volta a abordar brilhantemente, de forma crua mas delicada, temas já recorrentes na sua obra mais recente: o envelhecimento, a obesidade, a loucura e todo o tipo de decadência humana.
CNC
Depois de
arrematar o prêmio Jabuti de 2014 na categoria conto com o mediano
“Amálgama”, Rubem Fonseca volta à carga com “Histórias curtas”.
Sendo Rubem Fonseca um de nossos maiores escritores de todos os
tempos, um inédito seu não é um simples lançamento de livro: é um
acontecimento literário.
Rafael Rodrigues
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'DEVANEIO' conto
in Histórias Curtas Rubem Fonseca, 2015 Ed. Nova Fronteira 1.ª edição: 2015 Rio de Janeiro
12.Dez.2016
Publicado por
MJA
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