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Homem cego em Creta - Constantine Manos, 1961
Segundo consenso internacionalmente existente, quando, em conseqüência de algum
mal, o ser humano é vítima de um certo impedimento de ordem física, por exemplo,
temos a instalação de uma deficiência. Essa deficiência poderá levar ou não a
uma incapacidade, ou seja, a uma situação de desvantagem, de inferioridade.
Claro que um impedimento sempre poderá causar uma deficiência inócua, pouco
significativa e sem maiores conseqüências para o indivíduo afetado. Por exemplo,
no caso de um auxiliar de caminhão perder o dedo mínimo da mão esquerda. Esse
mesmo impedimento, fisicamente observado e diagnosticado, trará conseqüências
marcantes para um pianista, para um datilógrafo, para um clarinetista
profissional.
O que sucede é que quando essa deficiência é tomada como uma desvantagem
significativa para com os demais, ou quando ela é rejeitada sem que o indivíduo
atente para suas conseqüências práticas, em geral a pessoa portadora da
deficiência começa a agir e a desenvolver hábitos e atitudes tais que o grupo
social se vê forçado a deixá-la de lado e cada vez mais à sua margem.
Consideradas as circunstâncias em que acontecem e muitas vezes as pessoas que
atingem, certas deficiências não podem nem devem ser tidas como "incapacidades",
pois estas são realmente problemáticas e estão presentes sempre que ocorrer a
somatória de três tipos de limitações:
-
a limitação objetiva, imposta pelo impedimento ou desvio (por exemplo, um
paraplégico não consegue mais andar e tomar uma condução pública sem a ajuda de
muletas ou de uma cadeira de rodas; um cego não poderá ler instruções em
planilhas de trabalho; um amputado de mão, por mais hábil que procure ser, não
poderá ser um violinista);
-
a limitação estabelecida por segmentos da sociedade com os quais o indivíduo
se relaciona (por exemplo, clubes não aceitam pessoas com deficiências físicas,
a sociedade evita contatos próximos com vítimas de paralisia cerebral, ou
procura manter os hansenianos fora de seu alcance);
-
a limitação que o próprio indivíduo atingido estabelece (por exemplo, o
paraplégico que acha estar liquidado para a vida de trabalho ou a vida social; o
cego que não se dispõe a aprender o Braille ou a andar sem a ajuda dos outros
por medo de não o conseguir).
Conforme foi já comentado anteriormente, os objetivos da vida de cada um de nós
é que acabam por determinar se uma deficiência pode ser desvantajosa,
tornando-se uma incapacidade, ou não. Como indicamos, para um violinista
profissional as conseqüências da perda do dedo mínimo da mão esquerda são muito
mais contundentes do que para um ajudante de caminhão. Uma datilógrafa poderá
ter uma feia cicatriz no rosto, mas não uma recepcionista.
Em síntese, a marginalidade existe entre nós, como existe em todos os países do
mundo moderno. Ao analisarmos a história da humanidade descobrimos que o
indivíduo deficiente quase sempre foi relegado a segundo plano, quando não
apenas tolerado ou exterminado.
Verificamos, no entanto, que segmentos mais esclarecidos e politizados de nossa
sociedade, bem como parcelas significativas de nossos programas oficiais de
assistência à população, preocupam-se e armam-se para dar cobertura àqueles que
sofrem as conseqüências da marginalização. Todos sabemos que essas providências
não são fáceis, nem baratas, o que também nos leva a raciocinar em termos do
desafio que significam atividades às vezes conhecidas como programas de
reabilitação, programas de reinserção social ou de integração social, sem que
haja plena consciência de seu escopo e do seu valor.
Fica conosco a dúvida: "Por que existem esses programas"?
Em que tipo de raciocínio prático ou de princípios filosóficos, ou mesmo de
racionalismos baseamo-nos para dedicarmos tempo e dinheiro destinados ao
atendimento a portadores de deficiências? Qual é o verdadeiro significado da
integração social das pessoas deficientes?
O SIGNIFICADO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL DAS PESSOAS DEFICIENTES
Para muitos de nós o problema de integração de uma pessoa deficiente na
sociedade é apenas questão de acomodação adequada, de equipamentos especiais, de
arranjos práticos, de tratamento físico eficiente e muito pouca coisa mais.
Acreditam muitos que a "integração" acontece naturalmente se a pessoa
simplesmente voltar ao seu ambiente original com o auxílio dos recursos que a
medicina coloca à sua disposição e com a remoção de alguns obstáculos físicos.
Claro que esses fatores todos são importantes. No entanto, a desejada integração
não acontece naturalmente; ela é resultante de um complexo processo cuja
necessidade e significado pretendemos aqui estudar e discutir - ou seja, ela não
é uma "volta", pura e simples.
Antes de mais nada cumpre que notemos o seguinte: há pessoas que hoje têm uma
deficiência e que por causa dela sentem-se marginalizadas, quando na verdade
podem ter vivido e trabalhado em sua comunidade - antes da deficiência - sem ter
estado realmente integradas nela. Viviam independentemente fazendo o que bem
entendiam, sem se importar com o mundo ao seu redor. Quando uma pessoa desse
tipo torna-se deficiente, percebe que não era tão integrada à sociedade quanto
pensava. O contato restrito com os demais (que a pessoa nota pela primeira vez
quando adoece ou quando se torna deficiente) acaba associando-se com a presença
da deficiência.
Se desejarmos trabalhar pela integração de pessoas deficientes na sociedade
maior, é muito importante perceber que uma simples tentativa de fazê-la "voltar"
à situação anterior à deficiência muitas vezes não é suficiente.
Outro fator muito importante a ser lembrado é que a personalidade de uma pessoa
deficiente não é a mesma antes e depois da deficiência surgir em sua vida. Se
atuamos no sentido de colaborar para que a pessoa portadora de uma deficiência
atinja o grau melhor possível de integração na sociedade, devemos estar
preparados para ajudá-la a compreender-se melhor e a entender sua nova visão de
vida, com a existência das limitações impostas pela deficiência. E isto é
especialmente verdadeiro com aquelas pessoas deficientes que, antes de se
tornarem deficientes, jamais se haviam preocupado com opções, com o significado
de um bom ajustamento pessoal, e de repente notam a importância de tomar uma
séria decisão face a esses requisitos invisíveis mas muito concretos e inseridos
na vida social e familiar. Assim o processo de integração que a pessoa
marginalizada por uma deficiência vive jamais poderá ser estacionário, pois
move-se continuamente numa direção ou noutra: seja na direção de uma boa
integração, seja na direção da segregação e do isolamento cada vez maiores. E
todos os que trabalham em reabilitação ou que mantêm contatos com pessoas
deficientes influenciam esse processo, quer o queiram, quer não.
O processo de integração não acontece de repente ou só porque a pessoa
deficiente de um lado, e o grupo social de outro, assim o decidem; ele demanda
tempo para atingir sua plenitude e a plena consciência de todas as suas
implicações.
Em todas as comunidades e em todos os tempos encontramos pessoas que por alguma
razão são segregadas, individualmente ou em grupos. Talvez elas mesmas tenham
procurado o isolamento, mas em muitos casos elas são simplesmente excluídas da
sociedade. Algumas resignam-se à situação, outras protestam contra isso. Há
alguns anos atrás o indivíduo portador de uma limitação física ou sensorial
cedia à evidência de fazer parte de um grupo marginalizado e marcado. Hoje a
situação está ficando cada vez mais diferente entre nós, seguindo as tendências
mundiais. As pessoas deficientes protestam e com muito boas razões. Elas
demandam participação total em igualdade de condições; de sua parte a sociedade
exige a contrapartida, ou seja, competência pessoal e profissional,
independência de atuação, comunicação adequada, comportamento social aceitável e
um papel definido.
Nesse processo todo é muito importante que haja muita compreensão de todos os
lados, pois a integração verdadeira só poderá ocorrer como resultado de
cooperação entre duas partes.
Por essa razão resolver os problemas apenas em parte ou só de um lado não
solucionará a questão. Não é só a pessoa deficiente que deve ser trabalhada, mas
também a realidade social na qual a integração é pretendida, para que todos
entendam os problemas em sua complexidade e ajudem na busca de suas soluções.
Embora muitos peçam ou exijam mesmo a integração em bases equânimes, essa
integração é um sonho impossível. A sociedade não poderá jamais integrar uma
pessoa sequer. Ela poderá apenas oferecer as possibilidades de integração e
ficar disponível para tanto. O trabalho de chegar a essa situação integrada
dependerá da própria pessoa deficiente.
Muitas pessoas que são marginalizadas procuram escapar a essa faceta do
processo, esquecendo-se que apenas elas poderão atingir esse objetivo,
responsabilidade da qual jamais poderão escapar.
Os progressos da medicina, os recursos técnicos e a organização de serviços de
reabilitação global poderão tornar o processo de integração bem menos difícil.
FIM
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in A EPOPÉIA IGNORADA
-A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje-
Autor: Otto Marques da Silva
São Paulo -- CEDAS, 1987
28.Nov.2021
Maria José Alegre
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