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Edmundo de Amicis
-excerto-
Visita à escola das Raparigas Cegas -
gravura, séc. 19
OS RAPAZES CEGOS
Quinta-feira, 23
FevereiroO mestre está muito
doente, e mandaram para
o
substituir o da quarta,
que foi professor no
Instituto
dos Cegos. É o mais
velho de todos, tão
branco, que parece ter na cabeça uma
cabeleira de algodão.
Fala bem, mas fala como se
cantasse uma canção
melancólica, e
sabe muito. Mal entrou
na escola, vendo um
rapaz com
um olho vendado,
aproximou-se dele e perguntou-lhe o
que tinha. É preciso
muito cuidado com os
olhos, disse.
Nisto Derossi
perguntou-lhe: — É verdade que o senhor
já foi mestre dos cegos?
— Fui sim, por muitos
anos.E Derossi disse a meia
voz: — Se nos contasse
alguma coisa...O mestre foi sentar-se à
mesa.Coretti disse alto: — O
Instituto dos cegos é na rua Nizza.
— Dizeis cegos, cegos...
— começou o mestre. — Se
compreendêsseis bem o
significado dessa
palavra... Reflecti um pouco. Cegos!
não ver coisa nenhuma...
nunca!
Não distinguir o dia da
noite; não ver nem o
céu, nem
o sol, nem os próprios
pais... nada de tudo
aquilo que
está em volta de nós e
em que se toca,
permanecer imerso
numa obscuridade
perpétua, e como que
sepultados nas
profundezas da terra;
Experimentai um momento,
cerrai
os olhos e lembrai-vos
que podeis ficar sempre
assim...
Um terror repentino se
apossará de vós, e uma
aflição, a que vos seria
impossível resistir, vos
obrigaria a gritar e vos conduziria à
loucura e à morte... E contudo...
Pobres cegos! quando se
entra pela primeira vez
no Instituto, à hora do
recreio, ouve-se tocar
violinos e flautas
de todas as partes,
falar alto e rir,
subindo e descendo
escadas a passos
apressados, girando
livremente pelos
dormitórios, ninguém
diria serem aqueles os
desventurados que são.
É preciso
observá-los bem. Há
moços de
dezasseis e dezoito
anos, robustos e
alegres, que suportam a cegueira com tal
ou qual indiferença: e
alguns, quase com ufania até;
mas compreende-se pela
expressão
dos seus rostos, que
devem ter sofrido
horrivelmente
antes de se resignarem
àquela desventura. Há
outros de
rosto pálido e suave,
onde se vê uma serena
mas triste
resignação e adivinha-se
que algumas vezes, em
segredo, devem chorar ainda.
Ah! meus filhos...
Lembrai-vos
que alguns deles
perderam os olhos em
poucos dias, outros, depois de longos
anos de martírio e de
muitas operações cirúrgicas
terríveis, e que muitos
já nasceram assim!
Nascer numa noite que
nunca tem alvorada!
entrar no
mundo como se fora num
sepulcro enorme, ignorar
como
seja formado o rosto
humano! Imaginar quanto
não terão sofrido, quanto não
sofrerão, pensando
confusamente
na indiferença que
existe entre eles e os
que vêem, perguntando a si mesmos —
Porque é esta
indiferença, se
não temos culpa nenhuma?
Eu, que tenho passado
muitos anos entre eles,
quando me lembro da sua
escola, e
vejo aqueles olhos
apagados para sempre,
todas aquelas pupilas sem
expressão e sem vida, e
olho para vós, parece-me impossível que
não sejais todos
felizes. Notai bem. Há cerca de
vinte e seis mil cegos
na Itália.
Vinte e seis mil
pessoas que não vêem a
luz! Um exército que gastaria quatro
horas a desfilar debaixo
das
nossas janelas.O mestre calou-se; não
se sentia nem um respiro
na
escola! Derossi
perguntou se era verdade
que os cegos
tinham o tacto mais
apurado do que nós. O
mestre disse: — É verdade. Todos os
outros sentidos se
aperfeiçoam neles, e a razão é
porque, devendo todos
conjuntamente suprir o da
vista, são mais
exercitados, o que
não acontece aos que
vêem. De manhã, nos
dormitórios, pergunta um: — Faz sol?
e o que é mais ligeiro
em vestir-se corre
imediatamente ao pátio;
agita as mãos ao
ar, para sentir se há
calor do sol e volta com
a mesma
pressa a dar a boa
notícia: — Faz sol...
Pela voz de qualquer pessoa fazem ideia
da sua estatura. Nós
avaliamos
a coragem duma pessoa
pelos olhos; eles pela
voz e recordam-se da entonação e
do acento dela durante
anos.
Percebem se numa sala,
está mais que um
indivíduo, ainda que um só fale e os
outros se conservem
imóveis.
Conhecem pelo tacto se
uma colher está pouco ou
muito
limpa. As crianças
diferençam a lã tingida
daquela que
tem a côr natural.
Passando dois a dois
pela rua, distinguem quase todas as
lojas pelo cheiro, mesmo
aquelas em que nós não
sentimos cheiro algum.
Jogam o pião
e ouvindo o zumbido que
ele faz, girando, vão
direitos
apanhá-lo sem se
enganar. Correm com
arcos, jogam a
bola, saltam a corda,
fabricam caixinhas de
seixos, colhem violetas como se as
vissem; fazem estojos e
cestinhos, entrelaçando
palha de várias cores,
depressa e
bem. Tão exercitado têm
o tacto, que é a sua
vista. Um
dos maiores prazeres
para eles é o de
apalpar, de apertar e de adivinhar a
forma dos objectos
tacteando-os. É
comovente vê-los quando
os levam ao Museu
Industrial, onde lhes deixam pôr a
mão em tudo quanto
queiram.
Com que alegria se
apoderam dos
instrumentos geométricos, dos modelos de
casas, de todos os
objectos enfim...
e com que satisfação
apalpam, esfregam, viram
e reviram
entre as mãos todas as
coisas para ver como são
feitas!
Eles dizem ver!
Garoffi interrompeu o
mestre para lhe
perguntar se era verdade
que os rapazes cegos
aprendem a fazer contas
melhor que os outros.
É verdade — respondeu o
mestre. — Aprendem a fazer contas e a
ler. Há
livros de propósito para
eles com
as letras em relevo;
passam-lhes os dedos por
cima, reconhecem-nas e dizem as
palavras, chegando a ler
correntemente. E é digno de
ver-se como eles, coitaditos! coram quando cometem algum
erro. E escrevem, mas
sem
tinta, escrevem sobre um
papel espesso e duro com
um
ponteiro de metal;
abrindo pontinhos
agrupados segundo um alfabeto especial,
cujos sinais aparecem em
relevo
no reverso do papel, de
modo que, voltando o
papel e
passando os dedos por
cima daquelas
saliências, lêem
quanto escreveram, e do
mesmo modo o que os
outros
escrevem. É assim que
eles fazem composições e
se correspondem entre si. Pelo
mesmo sistema escrevem
algarismos e resolvem
problemas. Calculam bem
de cabeça e
com uma facilidade
incrível, porque se não
distraem com
a vista, como a nós nos
sucede. E se vísseis
como eles
são apaixonados por
ouvir ler; como estão
atentos... e como depois se recordam de
tudo... como discutem
uns com
os outros — até os
pequenos — acerca de
coisas de história e de língua,
sentados todos, aos
quatro e aos cinco
no mesmo banco, sem se
voltarem uns para os
outros, e
conversando o primeiro
com o terceiro, o
segundo com o
quarto, em voz alta e
todos juntos, sem
perderem uma
só palavra, de tal modo
têm o ouvido agudo e
pronto!...
Dão mais importância aos
exames e afeiçoam-se
mais aos
mestres do que vós; isto
o afirmo eu...
Reconhecem o
mestre pelos passos e
pelo cheiro, percebem se
está de
bom humor ou mau humor,
se está doente ou são, e
isto
só pelo som das
palavras. Gostam muito
que ele lhes ponha a mão quando os
anima e os louva, e
apalpam-lhe
também as mãos e os
braços para exprimir-lhe
a sua gratidão. São amigos uns
dos outros e bons
companheiros.
Nas horas de recreio
quase sempre são os
mesmos que se
juntam em grupo. Na
secção das raparigas,
formam grupos segundo os
instrumentos que tocam,
as violinistas, as pianistas e as que
tocam flauta, e nunca se
separam.
Quando se afeiçoam é
difícil separá-los,
porque encontram grande
conforto na amizade.
Julgam-se imparcialmente entre si. Têm uma ideia clara e profunda do
bem
e do mal. Ninguém se
exalta como eles com a
narração de
um acto generoso ou de
um feito heróico.
Voltini perguntou se
tocavam bem.— Amam a música
ardentemente — respondeu
o mestre. — É ela a sua
alegria e a sua vida...
Crianças cegas, mal entram no Instituto,
são capazes de estar
três horas imóveis, de pé, a
ouvir tocar. Aprendem
facilmente
e tocam com paixão.
Quando o mestre diz a
algum que
não tem disposição para
a música, esse mostra
por isso
grande desgosto e
lança-se a estudar
desesperadamente!
Ah! se ouvísseis a
música lá dentro, se os
vísseis quando
eles tocam, com a fronte
alta, com o sorriso nos
lábios, trémulos de comoção,
extáticos quase,
escutando as harmonias que expandem na
obscuridade infinita que
os circunda, compreenderíeis
então que consolação
divina é
para eles a música!
Regozijam-se e exultam
de felicidade quando o mestre lhe
diz: — Tu virás a ser um
artista! Para eles é como o
rei o que fôr primeiro
na música, o que sobressair a todos
no piano ou no violino,
e então
amam-no e veneram-no. Se
dois discutem, recorrem
a ele
como juiz, se dois se
zangam, é ele que os
reconcilia. Os
mais pequenos, a quem
ele ensina a tocar,
tratam-no como
um pai. Antes de se irem
deitar vão todos dar-lhe
as boas
noites. E falam
continuamente de música.
Estão já na
cama, de noite, tarde,
quase todos cansados do
estudo e
do trabalho e, meio
adormecidos, discorrem
ainda, em voz
baixa, sobre óperas,
maestros, instrumentos e
orquestras.
E é um grande castigo
para eles, privá-los da
leitura ou
da lição de música, e
sofrem tanto com essa
pena, que
quase não há coragem de
lha infligir. O que a
luz é para
os nossos olhos, é a
música para o seu
coração.Derossi
perguntou se não
era possível ir vê-los?
— É possível, sim,
respondeu o mestre — mas
vós, rapazes, não deveis lá
ir por ora. Ireis mais
tarde, quando estiveres no caso de
compreender toda a
grandeza daquela desventura, e de
sentir toda a compaixão
que ela
merece. É um espectáculo
triste, meus filhos!
Vêem-se lá,
algumas vezes, rapazes
sentados junto a uma
janela aberta, gozando o ar fresco
com as feições imóveis,
que parecem estar a olhar para a
grande planície verde e
para as
belas montanhas azuis
que nós vemos, e ao
pensar que
não vêem nada, e que não
verão nunca coisa alguma
dessa imensa beleza,
confrange-se-nos a alma,
como se ficássemos cegos naquele
momento. E ainda os
cegos de
nascença, que nunca
viram o mundo, não
sofrem tanto, porque não têm a imagem
de coisa nenhuma, e
inspiram
por isso menos
compaixão. Mas há
rapazes cegos de poucos meses que se
recordam ainda de tudo,
e avaliam bem
quanto perderam; esses
têm a dor de sentir que
se lhe
vão escurecendo na
mente, dia a dia as
imagens mais queridas, de sentir como
que apagar-se-lhes na
memória as
feições das pessoas
amadas. Um destes
rapazes disse-me
um dia com uma tristeza
inexprimível : — Como eu
desejava ainda ter vista uma
vez, um momento apenas
para
tornar a ver as feições
de minha mãe, porque já
não me
recordo delas! E quando
as mães vão visitá-los põem-Ihe as mãos no rosto,
apalpam-no muito desde a
testa
até o queixo, e depois
apalpam-lhe ainda as
orelhas, como
para se compenetrarem bem
da sua forma, quase
não se convencendo que não podem
vê-la, e chamam-lhe pelo
nome
muitas vezes, como para
rogar-lhe que se deixe
ver, que
se mostre ao menos uma
vez. Quantos visitantes,
mesmo homens de coração
duro, não saem de lá
chorando!
E quando, ao sair, vemos gente, as casas e o céu, parece que somos uma excepção
no gozo de um privilégio não merecido. Oh! não há nenhum de vós, estou certo
disso, que saindo do Instituto dos Cegos, não se sentisse disposto a privar-se
de um pouco da própria vista, para dar os raios dela, embora ténues, àquelas
pobres crianças, para as quais o sol não tem luz, e a mãe não tem feições.
FIM
ϟ
Sobre
a obra:
"Coração"
é o diário de um menino
que conta uma colecção
de histórias
enternecedoras e
comoventes, num universo
de bondade e inocência.
[...] Este diário começa
com a descrição do
primeiro dia de aulas, a
memória fresca das já
saudosas férias, o
regresso à rotina
escolar, os reencontros.
Na verdade, todo o
romance "Coração", do
italiano Edmundo de
Amicis (1846-1908), é
sobre o dia-a-dia de
Henrique ao longo do ano
escolar. Os episódios,
divididos de acordo com
os vários meses do ano,
são relatos, na primeira
pessoa, da vivência de
uma criança e da sua
aprendizagem, num
ambiente de comovente
inocência em que as
virtudes da infância são
descritas com minúcia e
paixão. A atmosfera
plena de virtuosismo, em
que todas as personagens
procuram ser seres
humanos exemplares,
denuncia também a veia
moralizadora do escritor
Amicis.
Toda a
história - ou todas as
histórias, uma vez que
se trata de uma
sequência de episódios
que, embora ligados
cronologicamente, são
independentes uns dos
outros - é contada num
tom familiar e, ao mesmo
tempo, coloquial, num
registo que ficaria como
marca de estilo do
autor. As tristezas e
alegrias de Henrique e
dos seus companheiros,
incluindo as graças e
desgraças das
respectivas famílias,
são narradas com
habilidade, usando uma
linguagem ingénua e
perfeitamente
perceptível para
leitores de tenra idade.
Este carácter didáctico
de "Coração", que por
vezes chega a ser
ideológico, viaja por
temas como a bondade do
ser humano, as suas
virtudes em sociedade, a
compaixão pelo próximo e
ainda o amor pela pátria
e o orgulho da nação.
[...]
Em "Coração",
Edmundo de Amicis não
diz explicitamente, mas
dá a entender que
acredita que a formação
do futuro cidadão para o
cumprimento das normas e
regras sociais é um
passo importante para
alcançar a harmonia
individual e social. É
notória a intenção do
autor de construir uma
narrativa que desempenhe
um papel formador ao
nível do carácter dos
seus "educandos".
Diego Armés dos Santos
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CORAÇÃO
-excerto-
1886
Edmundo de Amicis
[1846-1908]
Tradução de V. de
Magalhães
IMPRENSA BELEZA — Rua da
Rosa, 99 a 107 — LISBOA
4.Nov.2011
Publicado por
MJA
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