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Blind
Singer - William Henry Johnson [1940]
Leniro foi meu aluno e é uma pessoa muito interessante. Leniro Alves é cego.
Sei que deveria chamá-lo de deficiente visual, que é a
expressão politicamente correta. Mas nem ele mesmo faz questão desse tratamento
que os bons modos recomendam dispensar aos portadores de um defeito... está bem,
de uma deficiência física. Assim como um medicamento às vezes produz efeito
paradoxal, contrário ao pretendido, o uso desses eufemismos pode disfarçar uma
piedade preconceituosa. Quando Leniro por acaso ouve a observação "tão bonitinho
e cego", ele não deixa passar: "Você quer dizer que, além de cego, eu tinha que
ser feio, ter pé grande e morar longe?"
Ele me relata por e-mail uma série de casos e situações, a maioria fazendo parte
do show "Ceguinho é a mãe", de seu colega de deficiência, o humorista mineiro
Geraldo Magela, que criou um espetáculo, como ele mesmo diz, "diferente,
irreverente e conscientizador, testado e aprovado pelo público brasileiro em
várias oportunidades".
"Muitas pessoas acham que, por eu ser cego, todo mundo na minha casa tem que ser
também: a mulher, os filhos, o cachorro, o papagaio". Às vezes ocorrem diálogos
assim:
- Sua mulher é normal?
- Não, ela tem antena, rodinha e entrada para CD!
- Você é cego total?
- Não, só até as 18h, depois eu dirijo um táxi.
Nós outros, o colunista careca, os gordos, os baixinhos e os muito altos somos
sempre pontos de referência. Eu, por exemplo, já cansei de ouvir em salas de
espetáculo: "Ainda tem um lugar ali perto do careca". Que ainda é menos
ridículo do que "o senhor calvo" ou "com pouco cabelo". Mas segundo o meu leitor
cego, a pior referência é a do tipo: "Quero ficar ceguinho se estiver mentindo".
Ele comenta: "Fica parecendo que todo cego é mentiroso".
Leniro acha que num certo sentido "ser cego é como ser brasileiro: viver aqui é
uma fonte inesgotável para os bem-humorados e/ou humoristas exercerem seu
talento". Segundo ele, "como os cegos são vistos em geral como cegos em todos os
sentidos e não apenas no físico, isso lhes dá o ensejo de viver situações muito
engraçadas".
O mais curioso, além do humor incomplacente e autogozador presente nessas
histórias, é a revelação da atitude piegas dos que se aproximam dos deficientes
com a melhor das intenções e a pior das práticas estigmatizantes. Sem querer,
acabam fazendo a cara de como se estivessem dizendo: "Pobrezinho coitado" ou
"coitado do ceguinho". Cheios de pena,às vezes mal disfarçam o sentimento de
superioridade que os move
involuntariamente.
Uma das maiores dificuldades dos cegos é atravessar uma rua, principalmente numa
cidade como o Rio, onde os motoristas, se pudessem, retirariam das pistas tudo o
que não se move sobre quatro rodas, ou então passariam por cima, como às vezes
passam. Leniro, por intermédio de Geraldo, me orienta:
"A maneira mais correta de atravessar um cego na rua é você deixar que o cego
segure o seu braço, pois assim ele sente todos os seus movimentos. Você pode
correr, descer escada, subir escada, pular buraco que não tem problema. A
maioria das pessoas pega o cego pelo braço, suspende e aperta, mas aperta com
tanta força que dá a impressão de que o cego quer fugir. E o cego não quer
fugir, ele só quer atravessar a rua".
O cotidiano de um cego é cheio de imprevistos. "Outro dia mesmo, eu estava com
uma pressa danada e queria atravessar a rua, mas ninguém me dava o braço. Olhei
para um lado, olhei para o outro e não vi ninguém, até porque sou cego. E
decidi: ‘o primeiro que me roçar o braço, eu agarro e atravesso’. Dito e feito:
o primeiro que me esbarrou o braço eu agarrei nele e nós atravessamos em meio às
buzinas. Ao chegar ao outro lado, fui agradecer:
- Muito obrigado.
- Não, eu é que agradeço, eu sou cego.
- Uai, você também!
O que esses cegos nos ensinam, com esse comportamento irreverente e inesperado,
politicamente incorreto na aparência, é que o preconceito e a discriminação não
se corrigem só pelo uso bem-comportado da linguagem, por mais importante que ela
seja como portadora de clichês e estereótipos.
Não adianta evitar palavras e
expressões como "denegrir", "judiar", "cego de raiva", sem mudar a cabeça.
Assim, como a retórica, o politicamente correto serve apenas para disfarçar o
preconceito e tornar o nosso racismo mais cordial.
FIM
ϟ
Zuenir Carlos Ventura
(Além Paraíba, 1 de junho de 1931)
é um jornalista e escritor brasileiro. É colunista do jornal O Globo e
da revista Época. Ganhou o Prêmio Jabuti, em 1995, na categoria reportagem, pelo livro Cidade Partida.
Artigo publicado em "O Globo" de 3 de Fevereiro de 2001
Fonte: EthelRosenfeld
4 Dez 2008
Publicado por
MJA
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