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"Olhe lá o devasso sem-vergonha, sentado em
cima da árvore! Pois eu lhe juro, por minha majestade, que, assim
que a mulher for cometer contra ele a felonia, vou devolver a visão ao ilustre
fidalgo, ao pobre velho cego."
Prólogo do Conto do Mercador
“Lamentos e lamúrias, preocupações e sofrimentos de noite e de manhã são coisas
que
não me faltam”, disse o Mercador, “a exemplo, quero crer, de muitos outros que
também são
casados. Pelo menos no que me diz respeito, é assim que levo a vida. Eu não
poderia ter
arranjado mulher pior; e posso jurar que até o diabo, se fosse marido dela, iria
se dar mal. O que
poderia eu lembrar particularmente como amostra de sua enorme maldade? Ela é uma
megera em
tudo. Que gigantesca diferença entre a infinita paciência de Griselda e a
crueldade sem medida
dessa minha mulher! Ah, se eu fosse livre, – quem me dera! nunca mais cairia no
laço. Só dores e
cuidados formam a vida do homem casado. Quem não me acreditar que experimente;
e, por
Santo Tomás da Índia, verá que o que digo é a pura verdade na maior parte dos
casos, ainda que
não em todos. Deus nos livre, que aí também já seria demais!
“E o pior, meu bom Albergueiro, é que faz só dois meses que me casei, não mais
do que
isso, por Deus! Mesmo assim, tenho certeza de que aquele que viveu solteiro a
vida toda, ainda
que lhe atravessassem o coração com uma espada, teria menos misérias para contar
do que eu
nesses dois meses, tudo por causa da perversidade de minha patroa!"
“Mercador”, interveio o Albergueiro, “Deus que o ajude! Mas já que o senhor
conhece
tão bem o matrimônio, por favor, conte-nos alguma coisa a respeito dele."
“Com prazer”, concordou o outro. “Só que, para não aumentar a dor em meu
coração, de
meus próprios males não vou dizer mais nada."
Aqui tem início o Conto do Mercador.
Na Lombardia morava outrora, em grande prosperidade, um distinto cavalheiro
natural
de Pavia. Vivera solteiro sessenta anos, e, quando sentia vontade, satisfazia os
desejos do corpo
com mulheres da vida (como fazem os tolos seculares). Entretanto, quando
completou seus
sessenta anos, não sei se por sentimento religioso ou caduquice, sentiu o tal
cavalheiro tamanha
necessidade de casar-se, que passava os dias e as noites ponderando sobre quem
poderia ser a
eleita de seu coração e rogando a Deus a graça de poder provar a grande ventura
das pessoas
casadas e de viver dentro do elo sagrado com que o Senhor uniu o homem e a
mulher pela
primeira vez. “Os outros modos de vida,” dizia ele, “não valem uma fava, porque
o matrimônio é
algo tão agradável e puro que equivale ao paraíso na terra.” Assim pensava o
velho cavalheiro,
que era tão sábio.
De fato, – acreditava ele, – assim como é verdade que Cristo é o nosso rei, é
verdade
também que o casamento é uma coisa gloriosa, principalmente para um homem velho
e de
cabelos brancos. Aí então a mulher se torna para ele o fruto de seu tesouro. Só
que ele precisa
saber escolher uma esposa jovem e bonita, para que possa gerar um herdeiro para
si e levar a vida
no prazer e na alegria, enquanto os solteirões vão cantando oh, sorte ingrata!
diante das
adversidades do amor, essa tolice infantil. E, com efeito, os solteirões bem que
merecem essas
penas e sofrimentos constantes, visto que construíram sobre a areia e, por isso,
só podem esperar
fragilidade em lugar de solidez. Vivem em plena liberdade, como as aves e os
animais, sem
restrição de espécie alguma, enquanto o homem casado, por sua própria condição,
tem uma
existência feliz e ordenada, preso ao jugo matrimonial. Assim sendo, ele só
poderia mesmo ser
recompensado com a alegria e a ventura, pois quem é mais obediente que uma
esposa? Quem,
mais que a sua companheira, é fiel e atenciosa para com ele, na saúde e na
doença? Na felicidade
ou na desgraça, ela jamais o abandona; jamais se cansa de amá-lo e de servi-lo,
mesmo quando
imobilizado em seu leito de moribundo. É incrível que ainda haja autores que
digam o contrário!
Um deles é Teofrasto. O que o teria levado a mentir? Eis o que ele disse:
“Também não se case
por economia, pensando em reduzir os seus gastos. Um servo de confiança poupa os
seus bens
com mais diligência que sua esposa, que passa a vida a reclamar sua metade. E se
você adoecer, – proteja-me Deus! – seus amigos sinceros, ou um criado leal, cuidarão de você
melhor do que ela,
que passa os dias a aguardar a sua herança. Além disso, ao contrair núpcias,
saiba que nada o
impede de se tornar um cornudo.” O que esse homem escreve são coisas desse tipo,
e centenas
de outras piores... Que Deus lhe amaldiçoe os ossos! Espero que ninguém dê
ouvidos a tais
bobagens, preferindo pensar como eu, em desafio a Teofrasto.
Uma esposa é, por certo, uma dádiva divina! Tudo o mais que recebemos, como
terras,
rendas, pastagens, propriedades comuns ou bens móveis, são dádivas da Fortuna,
que passam
como sombras sobre o muro. Mas não temam! Se posso falar francamente, direi que,
ao contrário
dessas coisas, uma esposa permanece, durando, muitas vezes, mais do que se
esperava.
Que sacramento maravilhoso é o matrimônio! O celibatário, em minha opinião, é um
pobre infeliz; vive desamparado e sem consolo (estou falando, é evidente, da
condição secular,
não do clero). Não é à toa que digo isso: a mulher foi feita para ser a
companheira do homem.
Depois que o Altíssimo fez Adão, Ele o viu tão sozinho e pelado, com a barriga
de fora, que, em
sua infinita bondade, exclamou: “Vamos fazer para esse homem uma companheira à
sua
semelhança.” E foi então que criou Eva. Pode-se ver e comprovar por aí que a
mulher è o esteio
e o conforto do homem, é seu paraíso terrestre e seu entretenimento. E, sendo
ela tão submissa e
virtuosa, os dois só poderiam mesmo viver em união. São ambos uma só carne, e, a
meu ver, uma
só carne possui um só coração, na ventura e no infortúnio.
Uma esposa! Santa Maria, que bênção! Quem tem ao lado uma esposa, como pode
conhecer a adversidade? Nem sei como explicar isso! Nenhuma língua consegue
descrever,
nenhum coração pode sentir toda a felicidade que um casal experimenta. Quando
ele é pobre, ela
o auxilia no trabalho, cuida de seu dinheiro, não desperdiça nada; tudo o que o
marido quer,
também é de seu agrado; nunca diz não quando ele diz sim. “Faça isto,” manda
ele; e ela responde:
“agora mesmo, senhor”. Oh ditosa instituição do precioso matrimônio, ao mesmo
tempo
virtuosa e doce, tão exaltada e aceita por todos que o homem que se preze
deveria agradecer a
Deus a vida inteira por lhe haver concedido uma esposa, ou então rogar a Ele que
lhe mande uma
para lhe fazer companhia até a morte. Somente assim o homem se sente seguro;
somente assim
não será vítima de enganos, – desde que siga os conselhos da esposa. Então
poderá erguer
corajosamente a cabeça, pois elas são sempre tão leais e tão sensatas. Portanto,
quem quiser
imitar os sábios, não deve desprezar jamais as sugestões da mulher.
Vejam o caso de Jacó*, que, de acordo com os entendidos, graças ao bom conselho
de
sua mãe Rebeca, prendeu uma pele de cabrito ao pescoço, ganhando assim a bênção
de seu pai.
Vejam Judite, que, segundo conta a história, preservou o povo de Deus graças à
sua
sabedoria, matando Holofernes no sono.
Vejam Abigail, como ela, graças ao seu discernimento, salvou seu marido Nabal
quando
ele estava para ser morto; e vejam Ester também, que, com seu bom conselho,
livrou da desgraça
o povo do Senhor, e levou Assuero a promover Mardoqueu.
Como diz Sêneca*, “perto de uma esposa humilde, nada merece o grau superlativo”.
Catão, por sua vez, recomendava: “Suporte com paciência a língua de sua mulher;
você
tem que tolerar as suas ordens, porque, em contrapartida, ela também lhe
obedecerá, – e por
meiguice.” A mulher é a guardiã do patrimônio do esposo. Tem razão de gemer e de
chorar o
homem doente que não tem uma mulher para tomar conta de sua casa. Por isso é que
eu acho
que, quem quiser agir com sabedoria, deve amar sua esposa como Cristo à Igreja.
Aquele que ama
a si mesmo também ama sua mulher, pois ninguém odeia a própria carne. Pelo
contrário, todos
passam a vida a cuidar dela. Dessa forma, o concilio que dou a quem deseja o
próprio bem é que
não maltrate sua mulher. O casamento, apesar das brincadeiras e das caçoadas que
fazem, é o
único caminho certo para quem vive no mundo: é tão firme a união do esposo e da
esposa, que
nada é capaz de prejudicá-los, – principalmente à mulher.
Assim pensando, Janeiro, a personagem desta minha história, optou, em sua
velhice, pela
vida feliz e pela tranqüilidade virtuosa da doçura de mel do casamento. E, certo
dia, convocou os
seus amigos a fim de lhes transmitir sua decisão.
Com rosto sério, relatou-lhes o seu caso, dizendo: “Amigos, estou velho e
grisalho; e,
sabe Deus, quase à beira da cova. Preciso pensar um pouco na alma. Tolamente
andei cometendo
excessos. Mas, bendito seja Deus, isso agora será corrigido, porquanto pretendo
casar-me, sem
mais perda de tempo, com alguma donzela bonita e na flor da idade. Peço-lhes que
me ajudem a
arranjar a noiva... E depressa! porque não me agüento de impaciência. É claro
que, de minha
parte, também vou procurar. Mas, como vocês são mais do que eu, creio que irão
achá-la
primeiro, apontando-me com quem deverei unir-me."
“Quero, porém, avisá-los de uma coisa, meus caros amigos: uma mulher velha não
vou
aceitar de modo algum. Ela não pode ter mais do que vinte anos. Peixe velho e
carne nova são as
minhas preferências. O lúcio é melhor quando adulto que quando peixinho; e
melhor que o
marruco é a vitela macia. Não quero saber de trintonas: elas não passam de palha
de feijão e de
forragem. Nem dessas viúvas enrugadas, por Deus! Elas conhecem tantos truques da
barca de
Wade*, sabem tantos pedaços de malvadeza quando querem, que com elas eu não
teria um
minuto de paz. Se é verdade que o sábio fica mais sutil quando freqüenta muitas
escolas, a mulher
escolada tem meio caminho andado para se tornar uma sábia! Não, prefiro uma
coisinha nova,
que pode ser guiada como se molda a cera quente com as mãos. E tem mais: se por
acaso, depois
de unido a uma mulher madura, eu tivesse a desgraça de não achar prazer algum,
eu teria que
viver no adultério e, quando morresse, iria direto para o inferno. Além disso,
como poderia fazê-
la conceber um filho? E digo-lhes que antes desejo ser devorado pelos cães
ferozes a permitir que
minha herança caia em mãos estranhas. Ah não! Sei bem as razões por que um homem
se casa. E,
ademais, sei muito bem que há muita gente por aí, a falar do matrimônio e dos
motivos pelos
quais contraímos núpcias, que entende do assunto menos que meu pajem. O que
dizem é que,
quando o homem não consegue manter-se casto, deve desposar uma mulher com toda a
devoção, não por causa do amor ou do sexo, mas com vistas à lícita procriação
dos filhos, para a
maior glória de Deus; dessa maneira, poderá fugir da luxúria, pagando o seu
débito apenas
quando for necessário. Dizem também que o casamento existe para que o marido e a
mulher
possam se ajudar mutuamente no infortúnio, como irmão e irmã, vivendo em santa
castidade.
Senhores, com sua devida licença, não sou desses! Graças a Deus, posso gabar-me
de ainda ter
membros aptos e robustos para fazer tudo o que se espera de um homem. Sei melhor
que
ninguém aquilo de que sou capaz. Posso ser velho, mas sou como a árvore, que dá
flores antes de
dar frutos; e ninguém pode dizer que a árvore está seca ou morta porque floriu.
Na verdade, só
os cabelos traem a minha idade, pois meu coração e todo o resto de meu corpo
estão viçosos
como o loureiro que fica verde o ano todo. Agora que já sabem qual o meu desejo,
espero que
acolham favoravelmente a minha pretensão.” Em resposta, pessoas diversas
contaram-lhe casos
diversos sobre o matrimônio. Como era natural, alguns o criticaram, outros o
elogiaram. Por fim,
para abreviar a história, – já que, quanto foi longo o dia, houve altercações
nesse debate entre os
amigos, – teve início uma contenda entre os dois irmãos de Janeiro. Um deles se
chamava
Placebo, e o outro Justino.
Disse Placebo: “Oh Janeiro, meu irmão, pouca necessidade tem você, amado senhor
meu,
de pedir a opinião dos presentes. Se o faz, é porque é um homem de sabedoria, a
quem não
agrada, em sua elevada prudência, desprezar a palavra de Salomão, que assim
recomendou: ‘Peça
conselho em tudo o que fizer, e nunca se arrependerá’. Entretanto, em que pese
ao ponto de vista
de Salomão, acredito, pela salvação de minha alma, que não há opinião melhor que
a sua própria.
Vou lhe explicar, caro irmão e senhor, por que motivo assim penso. Tenho sido
cortesão a vida
inteira, e, embora sem merecê-lo, sabe Deus que já ocupei cargos de grande
relevância junto a
senhores da mais elevada condição. No entanto, nunca discuti com nenhum deles, e
juro como
jamais os contrariei. Ora, eu sei que meu senhor sabe mais do que eu. Por isso,
sempre apoio
com firmeza e lealdade tudo o que ele afirma, ou dizendo a mesma coisa, ou algo
parecido. Não é
mais que um grande tolo o conselheiro que, a serviço de algum potentado ilustre,
ousa presumir,
ou sequer imaginar, que sua opinião supera o discernimento de seu amo. Não, por
minha fé: se
são senhores, é porque não são bobos! Você mesmo fez hoje afirmações tão
profundas, santas e
justas, que endosso e confirmo inteiramente a sua idéia e todas as suas
palavras. Por Deus, não há
nesta cidade, nem na Itália inteira, alguém que possa dizer algo mais sensato.
Cristo, por certo, há
de recompensar quem pensa assim. Não há dúvida: um homem precisa ser muito
fogoso para
escolher uma esposa jovem quando entrado em anos. Pela estirpe de meu pai, você
pendurou
mesmo o coração no cabide da alegria! Nesse ponto, faça como melhor lhe parecer,
pois tenho
certeza de que tudo dará certo."
Justino ouviu tudo, sentado em silêncio; depois, respondeu assim a Placebo: “Meu
irmão,
peço-lhe um pouco de paciência: você já falou; agora ouça o que tenho a dizer.
Sêneca, entre
outras palavras de sabedoria, asseverou que um homem deve escolher muito bem o
indivíduo a
quem confia sua terra ou seu rebanho. E se devo examinar com cuidado a pessoa a
quem entrego
as minhas propriedades, com muito mais razão devo examinar aquela a quem entrego
meu corpo;
pois, ouça bem, o matrimônio não é uma brincadeira de crianças para que se entre
nele
impensadamente. Minha opinião é que, antes de mais nada, devemos buscar saber se
a mulher é
prudente, sóbria, bêbada, ou orgulhosa; se é uma megera, uma rabugenta, uma
esbanjadora; se é
rica, pobre ou louca por homens. De fato, já que não existe ninguém no mundo,
homem ou
animal, que seja perfeito em tudo, como era de se desejar, precisamos nos
contentar com uma
mulher que, pelo menos, tenha mais virtudes que defeitos. Essa pesquisa, porém,
é coisa que leva
tempo. Por Deus, eu mesmo tenho derramado muitas lágrimas em segredo desde o dia
em que
me casei. Quem desejar que elogie a vida de casado! Quanto a mim, só encontrei
nela gastos,
preocupações e deveres desprovidos de qualquer satisfação. Não obstante isso,
meus vizinhos, – principalmente as mulheres, uma multidão de mulheres, – vivem dizendo que a
minha é a esposa
mais fiel e mais dócil que existe na face da terra. Só que eu é que sei onde o
sapato me aperta. Por
mim, você pode fazer o que quiser. Mas, cuidado! Você já é um homem velho. Veja
bem como
vai se meter nessa história de casamento... Ainda mais com uma mulher jovem e
bonita. Em
nome d’Aquele que fez a água, a terra e o ar! Até mesmo o mais novo de todos
aqui presentes
teria dificuldade em segurar uma mulher dessas em casa. Imagine você! Um homem
da sua idade
não seria capaz de satisfazê-la nem por três anos, – quero dizer, satisfazê-la
plenamente. As
esposas são exigentes demais. Por favor, não me leve a mal."
“Bem,” respondeu Janeiro, “então isso é tudo o que você tinha para me dizer?
Pois que
vão às favas o seu Sêneca e os seus provérbios! Sua fala é um cesto cheio das
ervas do
pedantismo. Como você já pôde ouvir, homens muito mais sábios aprovam os meus
propósitos.
Placebo, o que você acha?"
“Eu acho que todo aquele que tenta atrapalhar um matrimônio,” disse ele, “não
passa de
um amaldiçoado.” E, a essa palavra, todos se levantaram, e concordaram que o
cavalheiro deveria
casar-se quando e onde bem entendesse.
A partir de então, por causa do casamento, o espírito de Janeiro foi assaltado,
dia após
dia, por profundos devaneios e febris agitações. E, noite após noite, seu
coração o fazia
vislumbrar muitas formas belas e muitos belos rostos, como se fosse um espelho
polido e
brilhante que, colocado na praça do mercado, refletisse uma seqüência contínua
de passantes. Era
assim mesmo que a memória de Janeiro refletia todas as jovens da vizinhança. E
ele não lograva
fixar-se em nenhuma. Se uma tinha as feições bonitas, outra conquistava a
simpatia das pessoas
por sua seriedade e gentileza, sendo assim favorecida pela opinião do povo.
Algumas eram ricas,
mas de má reputação. Malgrado essas dificuldades, ele, meio a sério e meio na
brincadeira,
finalmente escolheu uma, expulsando as demais do coração. Escolheu-a de livre e
espontânea
vontade, dado que o amor é cego e nunca vê nada. E, quando foi para a cama,
ficou a repassar,
na mente e no coração, o frescor da beleza da eleita e sua juventude, sua
cintura fina, seus braços
longos e graciosos, sua prudência e sua cortesia, seu porte feminino e sua
dignidade. Feita a
opção, estava certo de que nada mais poderia alterá-la, pois considerava a
inteligência dos outros
tão inferior à sua que não podia imaginar alguém capaz de convencê-lo do erro de
uma decisão
que tomara. Tal era a sua fantasia.
A essa altura, mandou chamar os amigos, rogando-lhes com insistência que
fizessem o
favor de comparecer. Queria aliviá-los de seus encargos: não mais precisavam
andar e cavalgar
por aí à procura da noiva. Ele próprio chegara sozinho aonde queria, e não
pretendia arredar pé.
Primeiro chegou Placebo, e logo depois os demais. Começou ele pedindo a todos o
obséquio de
não argumentarem contra a conclusão a que chegara, visto que ela não só agradava
a Deus, como
constituía uma base segura para a sua felicidade. Declarou, depois, que havia na
cidade uma
jovem muito conhecida por sua formosura, embora fosse de família humilde. Mas
para ele
bastavam sua beleza e sua juventude, de modo que resolvera desposá-la para viver
com ela em
sossego e santidade. E agradecia a Deus poder possuí-la todinha para si, sem ter
que repartir suas
graças com ninguém. Para concluir, pediu ele aos amigos que o ajudassem naquela
conjuntura,
contribuindo para o apressamento das formalidades, pois somente com a consumação
do
matrimônio o seu espírito teria descanso. E acrescentou: “Então nada irá
perturbar-me, – a não
ser uma coisa, que ainda me dói na consciência. Vou lhes contar o que é. Não é
de hoje que ouço
dizer que ninguém pode conhecer duas felicidades perfeitas, ou seja, aqui na
terra e lá no Céu.
Embora o casamento proteja o homem dos sete pecados mortais e o afaste dos ramos
da árvore
do mal, ele oferece tal bem-aventurança, tamanha tranqüilidade e tantos
prazeres, que tenho
medo, agora na velhice, de levar uma vida tão agradável e deliciosa tão livre de
angústias e de
conflitos, que acabarei gozando o paraíso aqui na terra mesmo. E como sei que o
verdadeiro
paraíso só se conquista com atribulações e sacrifícios, como poderei eu, vivendo
em meio às
doçuras que a esposa proporciona ao marido, merecer a graça da vida eterna com
Cristo? É esse
o meu grande temor. Por favor, meus dois irmãos, esclareçam essa questão para
mim."
Justino, que odiava a sua insensatez, foi quem lhe respondeu, em tom de galhofa.
E,
como queria ser breve, desta vez não citou nenhum autor. Apenas disse: “Senhor,
se esse é o
único obstáculo, esteja certo de que Deus, em sua onipotência e misericórdia,
dará um jeito, antes
que você vá repousar no campo santo, de fazê-lo arrepender-se da vida de casado,
que para você
parece isenta de angústias e de conflitos. Afinal, nosso Pai do Céu não faria a
injustiça de negar
aos casados aquela graça do arrependimento que Ele tantas vezes concede aos
solteiros! Portanto,
senhor, o melhor conselho que posso dar-lhe é que não se desespere, lembrando-se
sempre de
que sua esposa talvez venha a ser seu purgatório! Ela poderá muito bem ser o
instrumento e
flagelo de Deus. Nesse caso, sua alma há de voar para o Céu mais veloz que a
flecha quando sai
do arco. Oxalá você aprenda um dia que não há, nem nunca poderá haver no
matrimônio, tanta
felicidade que chegue a ameaçar sua salvação. Basta que você, seguindo os
ditames da razão e do
bom-senso, saiba apreciar com moderação os encantos de sua esposa, evitando os
exageros da
sensualidade e abstendo-se dos demais pecados. Como não sou nenhuma sumidade,
vou parar
por aqui. Não se agaste comigo, caro irmão; e vamos mudar de assunto."
Se entenderam bem, o que Justino disse sobre o casamento, o tema de que ora
tratamos,
foi na essência o mesmo que já expusera a Mulher de Bath, em sua fala breve e
precisa.
“Passe bem, e que Deus o proteja,” foram suas palavras finais. Depois disso, os
dois
irmãos e todos os presentes se despediram. Vendo que as coisas tinham que ser
como Janeiro
queria, trataram logo de acertar, através e um contrato cauteloso e equilibrado,
seu casamento
com a jovem pretendida, cujo nome era Maio. Não quero aborrecê-los aqui com os
pormenores
dos artigos e dos parágrafos que permitiram a ela entrar na posse dos bens de
seu marido; nem
pretendo descrever suas ricas vestimentas. O que importa é que, tendo finalmente
chegado o
grande dia, foram ambos à igreja receber o santo sacramento. O padre então se
aproximou, com
a estola em volta do pescoço, aconselhou-a a imitar a sabedoria e a fidelidade
conjugal de Sara e
de Rebeca, rezou as orações de praxe, fez sobre eles o sinal da cruz e rogou a
Deus que os
abençoasse, sancionando assim a união com o selo da santidade.
Concluída a cerimônia solene, ei-los na festa, sentados sobre um estrado na
companhia
dos convidados mais ilustres. O palácio inteiro transbordava de alegria e
felicidade, cheio de
música e de iguarias, as mais requintadas da Itália. Tal era a maviosidade dos
instrumentos que
nem as melodias de Orfeu ou de Anfião de Tebas* poderiam superá-la. Cada prato
era precedido
por nova eclosão dos menestréis, mais alta que a trombeta de Joabe e mais clara
que a de
Teodomante em Tebas, quando a cidade estava sob a ameaça do assédio. O próprio
Baco servia
o vinho aos convivas; e Vênus, toda sorrisos porque Janeiro estava para provar
no matrimônio o
ardor que demonstrara quando livre, dançava diante da noiva e dos comensais com
uma tocha
acesa na mão. Cale-se agora o poeta Marciano*, que nos relata as alegres núpcias
de Mercúrio
com a sua Filologia e os cantos que as Musas cantaram! Sua pena e sua língua são
ambas
pequenas demais para retratarem este casamento. Quando a tenra juventude se une
à velhice
recurva, o júbilo é tão grande que se torna indescritível. Se não me acreditam,
façam vocês
mesmos a experiência, e saberão se estou ou não dizendo a verdade.
Maio, sentada entre os convidados com aquela expressão de bondade, lembrava uma
fada; nem a Rainha Ester olhava para Assuero com tanta meiguice. Não posso
reproduzir aqui
sua beleza: só posso dizer de seus encantos que pareciam os de uma brilhante
manhã de maio,
cheia de vida e frescor.
Janeiro, naturalmente, cada vez que olhava para ela, deslumbrava-se e ficava em
êxtase. E,
com certa maldade no coração, prometia a si mesmo que, naquela noite, iria
apertá-la nos braços
com mais força que Páris à sua Helena. Ao mesmo tempo, contudo, sentia muita
pena dela por
ter que violentá-la, pensando: “Ah, pobre criaturinha! Que Deus lhe dê forças
para suportar todo
o vigor de meu desejo, tão agudo e penetrante! Tenho muito medo de que você não
o agüente.
Tomara que eu saiba me controlar e não dê tudo o que posso. E tomara a Deus que
já fosse
noite, e que a noite fosse eterna, e que toda essa fosse embora.” Finalmente,
com muita
habilidade, começou ele a insinuar a seus convidados que o banquete estava para
terminar.
Assim, chegou a hora de deixarem a mesa. Todos então foram dançar e beber; em
seguida, espalharam especiarias perfumadas pela casa, cheios de alegria e
felicidade. Todos,
menos um, – um escudeiro chamado Damião, que, de longa data, destrinçava as
carnes para o
cavalheiro. Apaixonara-se tanto pela beleza de Maio, sua senhora, que estava a
ponto de
enlouquecer de desejo. Por pouco não desmaiava ou morria ali mesmo, tal a
gravidade dos
ferimentos que Vênus lhe causara com a tocha ardente que segurava na dança. Por
isso, tratou ele
de refugiar-se depressa em sua cama. E lá vamos deixá-lo, gemendo e chorando,
até que a
formosa Maio se compadeça de seu penar.
Oh fogo perigoso, que arde nas palhas do leito! Oh inimigo familiar, que finge
servir a
nós! Oh servo indigno, que falsamente ostenta as nossas cores domésticas, igual
à víbora
traiçoeira em nosso peito... Que Deus nos proteja de sua maldade! Oh Janeiro,
embriagado pelas
delícias do matrimônio, veja como o seu Damião, o seu próprio escudeiro, que
você mesmo
criou, planeja fazer-lhe o mal. Queira Deus abrir-lhe os olhos para o inimigo
doméstico, pois a
pior praga do mundo é o desafeto que está sempre em nossa presença, dentro do
próprio lar.
Enquanto isso, o sol havia percorrido o seu arco diurno, e, naquela latitude,
seu corpo não mais
podia pairar sobre o horizonte. A noite, com seu manto negro e rude, passava a
recobrir todo o
hemisfério. Por isso, a alegre companhia começou a dispersar-se, com muitos
agradecimentos ao
noivo; e, entre risos, os convidados cavalgaram para as suas casas, onde cada um
se distraiu como
quis até que chegasse o sono. Janeiro, entretanto, não desejava perder tempo;
queria ir logo para a
cama. Bebeu um cordial de Hipócrates, o Clarete e o Vernaccia, vinhos que
temperou com
especiarias para revigorar o seu desejo; tomou também remédios potentes, como os
que Dom
Constantino, aquele monge maldito, descreve em seu livro De Coitu, ingerindo a
todos sem
titubeios. Depois, disse aos amigos mais chegados, que ainda estavam por lá:
“Pelo amor de
Deus, façam-me a gentileza de esvaziarem a casa o mais depressa possível."
E assim fizeram: beberam os últimos goles, puxaram o cortinado, conduziram a
noiva ao
leito, – muda como uma pedra, – e, depois que o padre abençoou o tálamo,
foram-se todos
embora. Janeiro, enfim, pôde apertar nos braços sua Maio primaveril, o seu
paraíso, a sua
companheira. Ele a acalentava, ele a beijava sem parar... Esfregava em seu
rostinho macio aquela
barba de pêlos duros e espetados, que havia aparado a seu modo, eriçada como um
espinheiro e
áspera como o couro de um cação. E dizia a ela: “Oh, que pena, minha esposa, que
vou ter que
machucar você e judiar de você enquanto não chegar a hora de descer. Mas pense
nisto: nenhum
operário, seja ele quem for, é capaz de trabalhar depressa e bem. Precisamos ir
com calma, para
que tudo saia perfeito. Não importa o quanto vai durar a nossa distração...
Afinal, estamos unidos
pelos sagrados laços do matrimônio! E bendito seja o jugo que nos prende, pois,
graças a ele,
nossos atos não são pecaminosos. Nenhum homem pode pecar com a própria esposa,
nem ferirse
com a própria faca. É a lei que nos permite esse entretenimento.” E lá se pôs a
trabalhar, até
que raiasse o dia. De manhã cedo, após comer um pedaço de pão embebido em vinho,
sentou-se
ereto na cama e começou a cantar com todas as forças de seus pulmões,
voltando-se, de vez em
quando, para beijar a noiva e lançar-lhe olhares lascivos. Estava muito fogoso,
cheio de paixão; e
tagarelava como pega pintalgada. A pele murcha em volta de seu pescoço tremia,
de tanto que
gritava e se esgoelava ao cantar. Mas só Deus sabe o que Maio estava pensando,
ao vê-lo sentado
dentro daquele camisolão, com o barrete de dormir na cabeça e com aquele
pescocinho fino.
Com certeza não estava achando grande coisa o seu “entretenimento”. Finalmente,
bocejou ele:
“Vou descansar um pouco; o sol já nasceu, e eu não me agüento mais de sono.” E,
recostando a
cabeça no travesseiro, dormiu até a hora prima. Mais tarde, quando viu que já
era tempo,
levantou-se e saiu. A linda Maio, porém, deixou-se ficar na alcova até o quarto
dia, como convém
às mulheres. De fato, todo labor, vez por outra, pede uma pausa para poder
prosseguir; e é o que
acontece com todos os seres vivos, – peixes, aves, animais ou homens.
Quero agora voltar a falar do desditoso Damião, que definhava de amor, como hão
de
ouvir. Se eu pudesse, assim o interpelaria: “Oh, tolo Damião, ai! Responda-me a
estas minhas
perguntas a respeito de seu caso: como fará para informar sua senhora, a
encantadora Maio, de
suas penas? E, se conseguir fazer isso, não irá ela fatalmente dizer não? E vai
deixar de denunciá-
lo? Ah, Deus o ajude! Não sei o que mais posso dizer."
Damião, enfermo, quase morria de desejo, de tanto que o queimava o fogo de
Vênus.
Resolveu então, já que não mais suportava sofrer tanto, arriscar a própria vida.
Pediu uma pena
emprestada e, numa carta em versos, – um poético lamento, – descreveu toda a sua
dor à bela e
primaveril senhora Maio. Depois, colocou-a numa bolsinha de seda, que prendeu à
camisa, junto
do coração.
A lua, que no meio do dia em que Janeiro desposara a jovem Maio se achava no
segundo
grau de Touro, deslizara agora para Câncer; e, durante todo esse tempo, Maio
ficara em seu
quarto, como era o costume da nobreza. A noiva não deveria comer na sala até que
quatro dias,
ou pelo menos três, tivessem se passado; depois disso, podia se fartar. Assim,
tendo-se
completado o quarto dia, logo que terminou a missa cantada, lá estavam na sala o
velho Janeiro e
sua Maio, linda como um dia ensolarado de verão. E deu-se então que, de repente,
o bom
homem lembrou-se do escudeiro: “Santa Maria! Como pode ser isto, que Damião não
esteja aqui
para servir-me? Ele ainda está doente? Ou o que mais poderia ser?” Seus pajens,
postados junto
dele, deram como desculpa a doença, que o impedia de cumprir as suas obrigações.
E
asseguraram-lhe que não havia outro motivo.
“Isso realmente me entristece,” disse Janeiro. “Ele é, de fato, um gentil
escudeiro! Seria
uma pena e uma desgraça, se morresse. É mais sensato, prudente e discreto que
qualquer outro
de sua condição, além de corajoso, obediente, atencioso e capaz. Depois de
comer, assim que
puder, irei visitá-lo. E o mesmo há de fazer Maio, para que possamos levar a ele
algum conforto."
Ao ouvirem isso, todos o bendisseram por sua bondade e gentileza, – pois é
inegavelmente um
ato gentil consolar um serviçal na doença. “Senhora,” continuou Janeiro, “depois
da refeição,
assim que deixar a sala para voltar ao quarto, reúna as suas atendentes e vá com
elas visitar
Damião. Procure distraí-lo... É um gentil-homem. E diga-lhe que eu também
pretendo visitá-lo,
assim que tiver repousado um pouco. Faça isso logo, pois eu estarei à sua
espera, para que venha
deitar-se comigo.” Dito isso, chamou ele um jajem, que era o
mestre-de-cerimônias de sua casa, e
começou a dar-lhe algumas ordens.
A primaveril Maio dirigiu-se imediatamente para o quarto de Damião, com todas as
suas
atendentes; lá chegando, sentou-se junto ao leito do doente e procurou
consolá-lo como podia. O
jovem, na primeira oportunidade que viu, colocou-lhe na mão, secretamente, a
bolsinha com o
bilhete que escrevera sobre os seus desejos, sem dizer palavra; depois, entre
suspiros profundos e
dolorosos, sussurrou para ela: “Piedade! Não me delate; se os outros souberem
disso, estarei
morto”. Ela então escondeu a bolsinha no seio, e retirou-se. E sobre esse
encontro não vou dizer
mais nada.
Em seguida, voltou ela para Janeiro, que a aguardava sentado na cama. Ele a
tomou nos
braços, beijou-a repetidas vezes, e logo se deitou para dormir. Ela, porém,
fingiu que tinha que ir
para aquele lugar onde, como sabem, todos nós temos que ir de vez em quando.
Após ler o
bilhete, rasgou-o em pedacinhos e cuidadosamente o jogou na privada.
Quem agora está perdida em cismas, senão a bela e exuberante Maio? Pensativa,
tornou a
deitar-se ao lado de Janeiro, que prosseguiu dormindo até ser despertado pela
tosse. Ele então
pediu a ela que se despisse completamente, porque queria gozar os seus encantos
e achava as
roupas uma amolação. E ela, de boa ou má vontade, obedeceu... Mas, para que as
pessoas
melindrosas não fiquem zangadas comigo, não vou contar aqui o que ele fez com
ela; nem vou
revelar se ela achou aquilo um paraíso ou um inferno. Só quero que saibam que
eles ficaram
trabalhando até que soasse o toque das vésperas, quando então se levantaram.
Eu não seria capaz de dizer se foi do destino ou pelo acaso, se foi por
influência ou por
natureza, ou por alguma configuração astral no céu, que aquele tinha que ser um
momento
propício para se conquistar mulheres para os labores de Vênus com apenas um
bilhete (pois,
como afirmam os sábios, tudo deve ter o seu tempo); sobre isso prefiro calar-me,
pois só o
grande Deus nas alturas, que sabe que não existe ação sem causa, é que pode
julgar os motivos de
tudo o que acontece. A verdade, porém, é que, a partir daquele dia, a linda Maio
ficou tão
penalizada pelo sofrimento de Damião, que não mais pôde afastar do coração a
vontade de lhe
dar o alívio desejado. “A mim pouco importa,” pensava ela, “que muitos venham a
condenar-me
por isso; prometo àquele jovem que hei de amá-lo mais do que a ninguém, mesmo
que ele não
tenha outra riqueza além da camisa do corpo.” Oh, como flui fácil a piedade nos
corações gentis!
Por aí vocês podem ver que extraordinária generosidade demonstram as mulheres,
quando examinam as coisas mais de perto. Existem também as tiranas, – e não são
poucas, – com
seus corações de pedra, que prefeririam deixar o coitado morrer à míngua ali
mesmo a concederlhe
sua graça, comprazendo-se com seu orgulho cruel e conscientemente tornando-se
homicidas.
Mas a gentil Maio não era assim! Cheia de piedade, escreveu uma carta de próprio
punho,
garantindo ao jovem todos os seus favores. Só faltavam a hora e o local onde
pudesse satisfazer
os desejos dele, pois seu pleno consentimento ela já lhe concedera. E, certo
dia, quando a ocasião
lhe pareceu oportuna, lá foi Maio novamente visitar Damião; e, com muita
agilidade, enfiou sua
cartinha debaixo do travesseiro do rapaz, para que ele a lesse mais tarde.
Igualmente sem que
ninguém percebesse, tomou-lhe a mão e apertou-a com força, implorando-lhe que
sarasse.
Depois, voltou para junto de Janeiro, que a mandara chamar.
Na manhã seguinte, eis que Damião se levantou da cama; haviam passado os seus
males e
as suas dores. Penteou-se, arrumou-se e enfeitou-se todo para agradar e
contentar à sua dama.
Até de Janeiro ele se aproximava submisso como o cachorrinho que espera umas
lambadas.
Estava tão atencioso para com todos (a esperteza é tudo, para quem sabe ser
esperto), que não
havia quem não o elogiasse. Caíra plenamente nas graças de sua dama. Vamos,
portanto, deixar
Damião ocupado com os seus assuntos, e vamos prosseguir com nossa história.
Alguns sábios sustentam que é nos prazeres que se encontra a felicidade; assim
sendo, o
nobre Janeiro (sempre honestamente, como convém a um fidalgo) fazia todo o
possível para
moldar sua vida de acordo com as exigências dos sentidos. Sua casa, o
mobiliário, francamente,
não ficavam a dever nada aos de um rei. Entre tantas coisas boas, mandara
construir um jardim
todo cercado por um muro de pedra, um jardim como não havia outro igual. Sem
sombra de
dúvida, imagino que nem mesmo o autor do Roman de la Rose seria capaz de
descrever seus
encantos; nem Priapo, apesar de ser o deus dos jardins, conseguiria retratar
toda a beleza daquele
lugar e, principalmente, daquele poço debaixo de um loureiro sempre verde.
Muitas vezes,
Plutão* e sua rainha Prosérpina, acompanhados de todas as fadas de sua corte,
reuniam-se à sua
volta (segundo dizem), para se entregarem a seus folguedos, suas melodias e suas
danças.
O nobre senhor, o velho Janeiro, gostava tanto de passear e distrair-se ali, que
só ele
possuía a chave de prata do portãozinho de entrada, não a confiando a ninguém;
sempre a levava
consigo, e, quando tinha vontade, abria o trinco e lá se refugiava. No verão,
quando queria pagar
à esposa o débito conjugal, era para esse paraíso que se dirigia, – ele com sua
Maio, e ninguém
mais. E as coisas que não fazia na cama, fazia lá no jardim. Dessa maneira, ele
e a linda Maio
viveram muitos dias agradáveis. Mas as alegrias do mundo não duram para sempre,
nem para
Janeiro, nem para ninguém.
Oh evento inesperado! Oh Fortuna inconstante, enganosa como o escorpião, que,
quando pretende ferir, acaricia com a cabeça mas traz a morte na cauda, a morte
pelo veneno. Oh
júbilo frágil! Oh estranha e doce peçonha! Oh monstro, que habilmente disfarça
as suas dádivas
com as cores da permanência, ludibriando assim os grandes e os humildes! Por que
você enganou
o pobre Janeiro, depois que o fez acreditar em sua amizades? Agora você o privou
dos dois
olhos, e tamanha é sua dor que ele só deseja morrer.
Ai! O nobre e liberal Janeiro, em meio a seus prazeres e venturas, ficou cego, –
cego de
uma hora para outra. Ele chorava e gemia de dar pena; e, concomitantemente, o
fogo do ciúme, o
temor de que sua mulher se aproveitasse da situação para fazer alguma tolice, de
tal forma se
acendeu em seu peito, que ele até sentiria alívio se fosse trucidado por algum
assassino
juntamente com ela. Não, não podia admitir que sua mulher, nem antes nem depois
de enviuvarse,
se tornasse amante ou companheira de outro homem; ela teria que viver sempre de
luto,
sozinha como a rola que perdeu o macho.
Após um ou dois meses, entretanto, sua dor finalmente se abrandou, pois, vendo
que não
havia outro remédio, aceitou com resignação sua desgraça. Só que, a bem da
verdade, não
conseguia libertar-se daquele ciúme constante, um ciúme tão violento que a
esposa não dava um
passo dentro de casa, e não ia para lugar algum, sem sentir sua mão grudada
nela. Por causa disso,
vivia chorando a linda Maio; amava o seu Damião tão generosamente que, se não
satisfizesse o
seu desejo por ele, não haveria de escapar da morte. Estava vendo a hora em que
seu coração iria
arrebentar-se.
Damião, por outro lado, andava triste como ninguém; não podia dizer uma palavra
sequer
à linda Maio, nem de dia nem de noite, a respeito de qualquer assunto (e muito
menos a respeito
de seus propósitos), sem que Janeiro estivesse ali para ouvir, sempre a
segurá-la com uma das
mãos. Em pouco tempo, contudo, descobriu que, através de bilhetes que iam e
vinham e de
sinais secretos, ela podia transmitir-lhe o que lhe passava na alma e ele podia
informá-la de suas
intenções.
Oh Janeiro, mesmo que sua vista alcançasse o ponto extremo aonde chegam os
navios, de
que lhe adiantaria? Quando um homem tem que ser enganado, pouca diferença faz
que ele
enxergue ou não. Veja o caso de Argo, com os seus cem olhos: apesar de sempre
alerta, à
espreita, também ele foi logrado, – a exemplo de muitos outros, que se recusam a
acreditar no
logro. É melhor não pensar nisso, e basta.
A linda Maio, de quem eu falava, tirou, num pedaço de cera quente, um molde da
chave
que Janeiro levava consigo para abrir o portãozinho do jardim; e Damião, dando
seqüência ao
plano, fez uma cópia às escondidas. Sobre isso não há mais o que dizer; mas
logo, graças a essa
chave, iria suceder um fato miraculoso, – como vocês hão de ouvir, se tiverem
paciência.
Oh, por Deus, como é verdade o que disse o nobre Ovídio, quando afirmou que, por
mais demorada ou difícil que seja, o amor, de um jeito ou de outro, sempre
encontra uma saída!
É o que mostra a história de Píramo e Tisbe, que, mantidos separados sob
estreita vigilância,
conseguiram comunicar-se aos cochichos por uma fresta no muro. Quem mais, a não
ser um par
de amantes, teria pensado numa artimanha dessas?
Mas vamos ao que interessa. Antes que se passassem oito dias do mês de junho,
aconteceu que Janeiro, instigado pela mulher, foi tomado de uma vontade
incontrolável de ir
brincar com ela no jardim, somente os dois, como sempre, e mais ninguém. E
convidou sua
Maio: “Levante-se, minha esposa*, meu amor, minha dama generosa! Escute a voz da
rola, oh
plácida pombinha; o inverno já passou, com suas chuvas frias. Venha comigo, com
seu doce
olhar de pomba! Seus seios são melhores do que o vinho! O jardim é abrigado e
protegido. Oh
branca esposa, venha; foi você quem feriu meu coração. Jamais vi em você alguma
nódoa. Venha,
e vamos gozar nossos folguedos, oh minha esposa, minha eleita e meu conforto!"
Foram essas as palavras de lascívia que usou, tiradas de um livro antigo. Ela
imediatamente fez sinal a Damião para que fosse na frente, usando a sua chave.
Ele então abriu o
portãozinho, penetrou no jardim sem ser visto ou ouvido por ninguém, e foi se
deitar em silêncio
debaixo de um arbusto. Janeiro, cego como uma pedra, segurando Maio pela mão,
entrou em
seguida, batendo o portão atrás de si.
“Agora, mulher,” disse ele, “não há ninguém aqui a não ser nós dois. Você é a
criatura
que mais amo no mundo; minha querida, prefiro morrer apunhalado a dar-lhe algum
desgosto!
Pelo amor de Deus, lembre-se sempre de como a escolhi: não pelo desejo carnal,
mas, – pode
estar certa, – pelo grande afeto que sinto por você. E, embora eu seja velho e
não mais possa
enxergar, nunca deixe de ser fiel a mim. E vou lhe explicar por quê. Assim
agindo, três coisas há
de ganhar: primeiro, o amor de Cristo; depois, sua própria honra; e, finalmente,
toda a minha
fortuna, cidade e torre. Deixo tudo para você, e você pode ditar o testamento
como lhe aprouver.
Amanhã mesmo, antes que o sol se ponha, nós vamos fazer isso. E que Deus me
conceda a bem
aventurança! Antes, porém, dê-me um beijo para selar o acordo; e não leve a mal
meu grande
ciúme. Você causou tamanha impressão em minha mente que, quando penso em sua
beleza e,
depois, na minha odiosa velhice, não posso, – mesmo que eu morra, – suportar a
idéia de
separar-me de você, tão profundo é meu amor. Agora, minha esposa, Dê-me um
beijo; e vamos
passear um pouco."
Ao ouvir essas palavras, a primaveril Maio, antes de mais nada, pôs-se a chorar;
a seguir,
graciosamente respondeu a Janeiro: “Tanto quanto você, eu também tenho uma alma
para cuidar;
e tenho também a minha honra, a tenra flor de minha feminilidade, que entreguei
em suas mãos
no instante em que o sacerdote uniu meu corpo à sua pessoa. Por isso, com sua
devida licença,
meu amado senhor, só esta pode ser minha resposta: esperando que eu não venha a
morrer de
modo vil, – como pode morrer uma mulher, – rogo a Deus que nunca amanheça o dia
em que
hei de trazer vergonha à minha família ou sujar meu nome com o adultério. Se
alguma vez eu
cometer essa falta, pode despir-me, enfiar-me num saco e afogar-me no rio mais
próximo. Sou
uma mulher de família, não uma rameira. Por que você fala assim comigo? Os
homens é que são
infiéis, e nós, as mulheres, levamos a culpa. Parece-me que vocês não fazem
outra coisa a não ser
acusar-nos de traição e em seguida repreender-nos."
Naquele exato momento, ela viu o lugar onde se achava Damião, debaixo do
arbusto, e
começou a tossir e a fazer sinais com os dedos para que ele subisse numa árvore,
uma bela
pereira carregada de frutos. E lá foi ele. Na verdade, o rapaz conhecia os seus
pensamentos e
entendia os seus gestos melhor que Janeiro, seu marido, pois numa carta ela lhe
contara tudo e
lhe explicara como devia agir. E ali o deixo agora, sentado num dos galhos da
pereira, enquanto
Janeiro e Maio passeiam felizes.
Claro estava o dia, e azul o firmamento. Febo, o Sol, derramara nuas torrentes
de ouro
para alegrar as flores todas com o seu calor. Achava-se ele em Gêmeos, quero
crer, pouco
distante de sua declinação em Câncer, que é a exaltação de Júpiter. Aconteceu
então que, naquela
manhã luminosa, no jardim, um pouco mais à parte, surgiu Plutão, o rei dos
duendes e das fadas.
Acompanhavam-no muitas damas, que, uma atrás da outra, em perfeita linha reta,
formavam o
séquito de sua mulher, a rainha Prosérpina (que, conforme lemos em Claudiano,
fora raptada por
ele, montado em sua biga aterradora, enquanto colhia flores no prado). O rei das
fadas sentou-se
num banco de relva, fresca e verdejante, e assim falou à sua rainha:
“Esposa, não há como negar! Todo dia a prática comprova as traições que as
mulheres
fazem aos homens. Eu poderia lembrar centenas de casos que atestam sua
infidelidade e
inconstância. Oh Salomão, oh sábio monarca, o mais rico de riquezas, o
repositório da prudência
e das glórias do mundo, bem que suas palavras merecem ficar na memória de quem
tem um
pouco de sensatez e de juízo! Eis como ele louva a virtude do homem: “Entre mil
homens
encontrei um digno; entre todas as mulheres não achei nenhuma.” Assim falou o
rei que conhecia
a maldade feminina. E Jesus Siraque, pelo que me lembro, não demonstra também
muito respeito
por vocês mulheres. Que um fogo selvagem e a peste pútrida devorem seus corpos
esta noite!
Você não vê ali aquele honrado cavalheiro que, só porque é cego e velho, está
para ser corneado
por seu próprio servidor? Olhe lá o devasso sem-vergonha, sentado em cima da
árvore! Pois eu
lhe juro, por minha majestade, que, assim que a mulher for cometer contra ele a
felonia, vou
devolver a visão ao ilustre fidalgo, ao pobre velho cego. Assim ele saberá de
uma vez por todas
que ela não presta, para seu vexame e também de muitas outras."
“Você vai fazer isso?” indagou Prosérpina. “Vai mesmo? Pois, pela alma de
Saturno, o pai
de minha mãe, juro que darei a ela, – e, por extensão, a todas as mulheres, – o
dom da resposta
salvadora. Assim, sempre que forem apanhadas em flagrante, elas saberão como
livrar-se do
aperto com galhardia, impondo-se a seus acusadores. Nenhuma mulher há de morrer
por não ter
presença de espírito! Mesmo que os maridos vejam o ato com ambos os dois olhos,
nós mulheres
os enfrentaremos destemidas, e, espertas como sempre, choraremos, juraremos,
ralharemos,
deixando-os tontos como gansos. Que me importam as autoridades que você citou?
Sei que esse
judeu, o tal de Salomão, achava que nós somos todas umas bobas. Se ele não teve
a sorte de
descobrir uma boa mulher, azar dele! Muitos outros homens encontraram mulheres
fiéis, gentis e
virtuosas. Elas existem! Veja, por exemplo, essas que se recolheram aos
conventos, que às vezes
demonstram sua constância até pelo martírio. Veja também quantas mulheres
valorosas e dignas
a história romana registra. Meu senhor, não fique zangado comigo, mas a
afirmação de que não
há mulheres boas só tem valor se aplicada aos seres humanos em geral. O que ele
provavelmente
quis dizer foi que, na perfeição da virtude, não há homem nem mulher, mas apenas
Deus.
Ademais, por esse mesmo Deus que é uno e verdadeiro, por que dar tanta
importância a
Salomão? Só porque ele ergueu um templo, uma casa para o Senhor? Só porque era
rico e
glorioso? Ora, ele também construiu um templo para os falsos deuses. Como pôde
fazer uma
coisa dessas, uma coisa tão execranda?! Oh não, por mais que você procure pintar
seu nome com
as mais lindas cores, a verdade é que ele foi um fornicador e um idolatra; e, na
velhice,
abandonou o Deus verdadeiro, que, segundo a Bíblia, somente o poupou por causa
de seu pai
Davi. Não fosse isso, ele teria perdido o reino mais cedo do que perdeu.
Portanto, mando às
favas todas essas calúnias que os homens escrevem contra as mulheres! Eu também
sou mulher,
e, se não dissesse essas verdades, meu coração estouraria. Vocês podem nos
tachar de tagarelas,
mas, por estas trancas que não quero perder, asseguro-lhe que não terei
consideração por
ninguém ao revidar as infâmias que assacam contra nós."
“Senhora,” retorquiu Plutão, “acalme-se. Eu desisto! Mas, como fiz o juramento
de
devolver a visão ao cavalheiro, tenho que mantê-lo Sou um rei, e a um rei não
fica bem mentir."
“E eu,” concluiu Prosérpina, “sou a rainha das fadas! Por isso, eu lhe prometo:
não vai
faltar a ela presença de espírito. Mas vamos deixar este assunto, pois não quero
mais discutir com
você."
Voltemos agora nossa atenção para Janeiro, que, no jardim com sua bela esposa,
cantava,
mais alegre que um papagaio, É você e mais ninguém que eu amo e quero amar.
Depois de um longo
passeio pelas alamedas, aproximaram-se eles da pereira onde Damião aguardava
excitado, num
galho todo coberto de folhas verdes e viçosas. A primaveril Maio, mais formosa e
encantadora
que nunca, pôs-se a suspirar, dizendo: “Ai, que dor aqui do lado! Oh senhor, não
importa o que
custe, mas eu tenho que comer uma daquelas peras; é tanta a minha vontade, que
eu acho que
vou morrer se não conseguir agora mesmo uma dessas verdes frutinhas. Ajude-me,
pelo amor da
Rainha do Céu! Eu lhe digo, uma mulher em meu estado costuma sentir desejo. Se
ele não for
satisfeito, pode ser fatal."
“Ai!” exclamou ele. “E eu que não tenho aqui nenhum criado para trepar na
árvore! Oh,
que desgraça! Sou cego!"
“Não se preocupe, senhor meu,” disse ela. “Mas faça-me um favor, pelo amor de
Deus.
Eu sei que não confia em mim, mas, se você puser os braços em volta do tronco e
se abaixar,
então eu mesma poderei subir, firmando os pés em suas costas."
“Claro, meu bem,” respondeu ele. “Não seja por isso. Eu daria o próprio sangue
para
ajudá-la."
Ele então se abaixou. E ela, ficando de pé em suas costas, agarrou-se a um
galhinho, deu
um salto e subiu... Senhoras, suplico-lhes que não se agastem comigo, mas sou um
homem rude,
que não sabe enfeitar a realidade... Sem perda de tempo Damião levantou a saia
dela e a penetrou.
Quando viu esse crime, Plutão, restituiu a visão a Janeiro, fazendo-o enxergar
tão bem
quanto antes. A primeira atitude deste, ao receber o milagre, foi voltar-se
ansiosamente para a
mulher, para ver de novo o objeto constante de seus pensamentos. E para o alto
da árvore lançou
os dois olhos. O que viu, porém, foi Damião se comportando com ela de uma
maneira que não
se pode descrever sem se faltar à decência... Qual mãe quando perde o filhinho,
deu ele um urro e
um berro. “Fora! Socorro! Ai! Ajudem-me!” gritava. “Oh grandíssima vaca! O que
você está
fazendo?"
Respondeu ela: “Senhor meu, o que se passa? Tenha calma e juízo nessa cabeça!
Estou
aqui para curá-lo da cegueira. Não vou mentir-lhe, juro por minha alma: estou
aqui porque me
ensinaram que a melhor coisa para tratar de seus olhos e devolver-lhe a visão
seria lutar com um
homem em cima de uma árvore. Por Deus, é isso o que estou fazendo, – com a mais
pura das
intenções."
“Lutar!” gritou ele. “Vocês foram mesmo fundo nessa luta! Oxalá morram os dois
de
morte vergonhosa! Ele estava metendo em você: eu vi com meus próprios olhos.
Quero morrer
enforcado se for mentira!"
“Acho que meu remédio não fez efeito,” insistiu ela, “pois, se você tivesse de
fato
recuperado a visão, não teria motivo para me dizer essas coisas horríveis. Como
não tem a visão
perfeita, você está tendo visões."
“Nunca esses meus dois olhos enxergaram tão bem, – louvado seja Deus! E, por
minha
fé, penso que vi claramente o que ele estava a fazer com você!"
“Foi um delírio, meu bom senhor, um delírio!” retrucou ela. “Eis aí a gratidão
que recebo
por ter curado seus olhos! Ai, é isso o que acontece quando se faz o bem."
“Está bem, senhora,” concordou Janeiro. “Vamos esquecer tudo isso. Desça, meu
amor!
E, se acaso fui injusto com você, por Deus, a ilusão que tive já foi mais do que
um castigo. Pela
alma de meu pai, tive mesmo a impressão de que Damião estava trepando em você,
com a barra
de sua saia na altura do peito dele."
“Sim,” disse ela, “você pode imaginar qualquer coisa. Assim como um homem, ao
despertar do sono, pode não discernir os objetos, de imediato, e vê-los com
clareza até que fique
bem acordado, assim também quem ficou cego muito tempo não pode, ao se curar,
enxergar com
a necessária nitidez antes de um dia ou dois. Enquanto sua vista não se firmar,
você está sujeito a
essas ilusões enganosas. Por isso, cuidado! Por Cristo nosso Rei, quantos não
vêem as coisas
completamente diferentes do que são na realidade! Quem mal enxerga, julga mal.”
E, com tais
palavras, deu ela um salto e desceu da árvore.
Quem poderia estar mais contente que Janeiro? Ele a beijou e abraçou repetidas
vezes,
deu-lhe tapinhas carinhosos no ventre, e, finalmente, a conduziu de volta a seu
palácio. Boa
gente, alegrem-se todos também. Aqui termino a história de Janeiro, pedindo a
Deus e a sua mãe
Santa Maria que abençoem a todos nós!
Aqui se encerra o Conto do Mercador sobre Janeiro.
No Albergue, à volta da mesa, os peregrinos
partilham a refeição -
Xilogravura da 2.ª edição de Caxton (1483) de 'The Canterbury
Tales'
Epílogo do Conto do Mercador
“Nossa! Que o Senhor tenha piedade de
nós!” disse então o Albergueiro. “Deus me livre de uma mulher assim!
Vejam só quantas artimanhas e truques tem a mulher! Parece uma
abelhinha, trabalhando o tempo todo só para enganar o bobo do homem; e
sempre distorce a verdade. Esse conto do Mercador é a melhor prova
disso. Sem dúvida posso gabar-me de ter uma mulher que, embora pobre,
tem a tempera fiel do aço; quanto à língua, porém, é uma megera ferina,
para não se falar de um monte de outros defeitos. Mas não faz mal! Vamos
deixar isso de lado. Sabem de uma coisa? Cá entre nós, sinto uma
profunda tristeza por estar casado. Mas eu seria um grande tolo se me
pusesse a enumerar aqui todos os vícios da patroa. E vou lhes dizer por
quê. Primeiro, porque tenho certeza de que alguém aqui, mais cedo ou
mais tarde, iria dar com a língua nos dentes e contar a ela (nem é
preciso dizer quem, pois são sempre as mulheres que fazem essas coisas);
e, segundo, porque teria que forçar muito a minha memória para me
lembrar de tudo. Assim sendo, encerro por aqui a minha conversa.”
FIM
ϟ
A obra de Geoffrey Chaucer
'Contos da Cantuária' (1476) tem, como ponto de partida, uma
peregrinação que vinte e
nove peregrinos, incluindo o próprio Chaucer, fazem à cidade
da Cantuária, para uma visita piedosa ao túmulo de Santo Tomás Beckett. A estalagem ao sul de Londres onde pernoitam,
sugere-lhes que, para se distraírem na viagem, cada qual conte duas histórias na
ida e duas na volta, prometendo ao melhor narrador um jantar como prémio.
São essas histórias, juntamente com os elos de ligação entre uma e outra,
assim como o
Prólogo Geral em que os romeiros são apresentados um a um, que essencialmente constituem o
livro.
O primeiro e mais óbvio mérito da obra é o de expor aos nossos
olhos um vasto e animado panorama da vida medieval, com uma incomparável
galeria de tipos representativos das diferentes camadas da sociedade.
Também presentes estão a cultura e a literatura medievais, visto que
cada capítulo tem uma “arte” e um “estilo”; cada história dos Contos de Cantuária ilustra um género literário diferente
(em geral adequado ao narrador), e focaliza com certa minúcia uma ciência ou
atividade humana.
Sobre O Conto do Mercador:
Em “O Conto do Mercador” não é só a mulher, a jovem Maio, com o seu
espírito mercenário, que é condenada; mais que ela merece desprezo o marido egoísta, o velho
Janeiro, que mais cego se torna ainda depois que recupera a visão. Para o mercador, portanto, as
mulheres são inescrupulosas e os homens são tolos; e o matrimónio é ilusão.
in
Digital Source
[...] Meus contos favoritos são precisamente aqueles em que a farsa virulenta se mistura ao sabor feérico – é o caso do maravilhoso Conto do Mercador, em que deuses e duendes interferem em uma comédia de patetices e percalços demasiado humanos. A história fala sobre Januário, um cavaleiro velho, rico e cego, que se casa – insensatamente – com a jovem, bonita e hormonal Maia. Um silogismo cuja conclusão lógica é o adultério (a infidelidade conjugal, aliás, é tema que o humor desbragado de Chaucer leva a proporções épicas). O local escolhido para os encontros entre Maia e seu amante, o escudeiro Damião, é um jardim no centro do castelo. A providencial cegueira de Januário permite que a necessária traição ocorra bem diante de seus olhos. No entanto, existem criaturas invisíveis naquele jardim, observando a cena patética. Lá está a rainha Perséfone ao lado de Plutão – fantasmas do paganismo que, nesse conto, são soberanos das fadas e dos gnomos medievais. Querendo defender a honra universal dos maridos, Plutão resolve curar a cegueira de Januário no momento exato em que a transação ilícita é consumada.
in José Francisco Botelho
[...] O velho e ridículo Janeiro no “Conto do Mercador” imagina que seus dotes amorosos irão fazer sua jovem noiva Maio delirar: “Ah”, [ele diz pra si mesmo enquanto olha Maio durante a festa de casamento], “pobre criaturinha! Que Deus lhe dê forces para suportar todo o vigor do meu desejo, tão agudo e penetrante! Tenho muito medo de que você não o aguente.” Porém, Maio não fica muito impressionada. Depois de uma longa festa de casamento – em parte graças às pimentas (o equivalente medieval do Viagra) que Janeiro engoliu para aumentar sua “coragem” – o velho senta na cama e começa a cantar. Enquanto o faz, a pele fina em volta de seu pescoço treme e o narrador nos conta o que sua noiva, vendo-o nestas condições, pensa em suas habilidades amorosas: na opinião dela, não passa de um “grão de feijão.”
A pobre criatura que Janeiro está tão preocupado em não machucar está muito mais interessada em Damião, um jovem escudeiro. Num dado momento Janeiro fica cego e passa a manter Maio ao seu lado constantemente devido ao ciúme. Mas ela consegue primeiramente fazer com que Damião se esconda num jardim cercado de propriedade de Janeiro, então convence Janeiro a levá-la ao local para fazerem um piquenique e lá pede sua ajuda para subir no pé de pêra para colher algumas frutas – onde Damião está esperando para tirar vantagem da situação. Infelizmente para os amantes, Janeiro recupera sua visão no pior momento possível. A forma como Maio consegue convencer seu marido a acreditar na sua versão dos fatos e não nos seus próprios olhos é inacreditável; é preciso ler o próprio Chaucer relatando os fatos para extrair o máximo deste delicioso retrato da capacidade de manipulação feminina – e mais do que isso, de sua autoconfiança serena – num momento complicado.
Os contos de Chaucer estão repletos de mulheres cheias de artimanhas que parecem bastante competentes ao lidar com os homens em suas vidas, apesar das desvantagens com as quais elas de deparam. A superior força física de seus maridos, a propriedade de todos os bens do casal e a posição de chefes absolutos da família (com o direito de exigir a obediência de suas esposas, respaldado pelo apoio religioso à autoridade dos maridos) – nada disso parece ser páreo para a esperteza psicológica e verbal das mulheres.
in
Guia Politicamente Incorreto da Literatura
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'O Conto do Mercador'
in 'Contos de Cantuária'
autor: Geoffrey Chaucer
1.ª edição: 1476 (?)
26.Set.2016
Publicado por
MJA
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