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-excerto-
A maior parte dos camponeses já havia feito as compras e enchera as vendas do
largo. De quando
em quando, atraídos pelas gargalhadas dos que estavam de fora, chegavam às
portas.
O motivo do riso era a loucura mansa do aguadeiro, já bêbado, de fralda de
camisa fora das calças,
ajoelhado diante do burro.
O meu burro é um santo!
Cada domingo, a bebedeira trazia novos aspectos à doidice do Zé da Água. Perante
as gargalhadas gerais, obrigava o burro a bater com as patas repetidas vezes no
chão enquanto agitava ele os pés
descalços, num compasso marcado.
Estavam a dançar o fandango. Por fim parou. Um sorriso alvar escorria-lhe do
rosto e dos olhos
aguadas e era, num momento, substituído por tal expressão de espanto que os
olhos mortiços se lhe
abriam atónitos.
Ganha-me o pão e ainda dança que nem um homem!
Continua a falar e o animal segue-o, rua acima. As bilhas vão escorrendo, duas
de cada lado da
albarda. De súbito, Zé da Água salta e dá punhadas no peito, enquanto grita para
o largo:
É mais esperto que vocês todos juntos! Ajoelha de novo, põe as mãos e atira a
voz para
as alturas:
Nosso Senhor mo guarde!...
[...]
Um cego, arrastando uma cantilena gritada, apareceu lá ao cimo da rua. Vinha a
passo lento, batido,
o corpo ora a um lado, ora a outro. Perto, uma criança de cabelos caídos sobre
os olhos estendia a
mão a esmolas.
Todos se voltaram desinteressados do fumo que se extinguia lentamente.
Desviando-se de um e de outro, Zé da Água largou o burro e correu a ajoelhar-se
em frente do cego.
Pôs-se a bater no peito. Atirava a cabeça para trás. Nos olhos redondos
parava-se um espanto idiota.
O garoto desviou o mendigo. A mão do cego, num movimento igual, passava e
repassava pelas
cordas desafinadas da guitarra. De calça rasgada, mostrando o joelho magro e
sujo, o cego
caminhava a passo certo.
A voz gritada era monótona, oca. Os olhos eram brancos, baços. E passou cantando
como se a vila
estivesse deserta.
Ficou um rastro de silêncio enchendo a rua: os moços, sérios; os namorados,
tristes; os homens,
mudos, abrindo alas para o cego passar. De joelhos, todo dobrado, Zé da Água
tocava com a testa
nas pedras da rua.
Por detrás, sobre os telhados da vila, as muralhas do Castelo eram de sépia, no
céu azul da tardinha.
FIM
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Cerromaior é o nome da (pequena)
cidade onde decorre a acção do romance. Se bem que sendo uma cidade imaginária
são notórias as semelhanças com a terra natal de Manuel da Fonseca, Santiago do
Cacém. Aliás, o facto é referido pelo próprio logo no prefácio da obra «Cercado
de cerros, que vão de roda em anfiteatro com o lugar do palco largamente aberto
sobre a planície e o mar, o cerro de Santiago é de todos o mais alto. Daí o
título: Cerromaior. Vila que me propus tratar...»
À sua Santiago, Manuel da Fonseca apenas retirou a proximidade do mar. Assim,
Cerromaior retrata-nos uma cidade cercada pelo campo e a realidade alentejana
dos anos trinta e quarenta. São focadas todas as classes sociais: a família de
latifundiários que cidade; o proletariado rural, objecto da exploração
económica; a GNR, aliada dos poderosos. WOOK
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Cerromaior
Manuel da Fonseca
romance (1943)
Editorial Caminho
5.Fev.2016
Publicado por
MJA
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