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capa de 'Histórias de Cego' de Marcos Lima
– Toma aê?
– Vai!
– Toma mesmo?
– Vai!
– Então lá vai...
Gritos como este, com essas exatas palavras, ecoaram por toda
a minha infância no pátio interno do Instituto Benjamin
Constant, escola para alunos cegos e com deficiência visual em
que estudei durante todo o primeiro grau. Localizado num dos
cantinhos da ampla área, o gol a gol era o nosso campinho de
pelada. E espero que ainda continue sendo nessa geração dos
jogos virtuais.
O comprido e estreito espaço, apertado entre uma parede com
janelas e um gramado, com as 4 pilastras laterais sendo
aproveitadas como trave e como demarcação para as penalidades
do jogo, o gol a gol era um dos centros pulsantes das crianças
cegas que, como eu, descobriam que apesar de tudo, era possível
jogar futebol. Recentemente, estava discutindo o tamanho do
nosso campo improvisado com meu amigo Anderson, e nos
surpreendemos ao constatar que ele não tinha mais que 10 ou 15
metros de extensão (e aquilo parecia um mundo quando éramos
pequenos!).
Antes de eu conhecer a bola de guizo ou mesmo de sonhar que
existia uma modalidade chamada futebol para cegos, meus
anseios de jogador se realizavam naquele exíguo corredor.
Esporte e campo tinham o mesmo nome: gol a gol. O gol a gol,
com suas regras desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo de
gerações de alunos cegos, era disputado sem que os times
tivessem contato entre si. Confinados a seu campo, as equipes, que
em geral tinham no máximo 3 jogadores, se revezavam para
chutar a bola, objetivando fazê-la passar no vão de pouco mais de
um metro entre a pilastra e a parede do campo adversário, onde os
defensores, sem permissão de ir além do bico da janela, se
aglomeravam para tentar impedir o tento. Como o gol tinha uma
altura de mais ou menos uns cinco metros, se não mais, um chute
que pegasse altura suficiente era quase sempre convertido em gol.
Assim, nas partidas mais disputadas, os jogadores faziam uma
defesa conhecida como torre, com os mais leves subindo no ombro
dos mais fortes. Não era raro a torre ter três pavimentos.
Os chutes eram dados, impreterivelmente, de um ponto no chão
logo abaixo da última pontinha do parapeito da janela, que
também demarcava o limite máximo em que um jogador podia
defender. E era antes de cada chute que se ouvia o ritual do “toma
aê”, descrito no início do texto. Um disparo não precedido pela
famosa pergunta e o infrator tinha um pênalti marcado contra si.
Pênalti era o pior pesadelo do gol a gol, permitindo ao adversário a
chance de dar o seu chute da pilastra mais próxima à sua meta de
ataque, a uns dois ou três metros da linha do gol, que nesse caso
contava com apenas um único goleiro, o atleta que infringira a
regra. Penalidades do tipo também eram assinaladas quando, por
exemplo, a rigorosa ordem dos chutes, em que um jogador só
podia fazer uma nova tentativa quando todos os demais da equipe
houvessem chutado era quebrada.
Havia também as infrações conhecidas como comum e perigosa.
Nessas ocasiões, os chutes dos adversários podiam ser feitos de
distâncias menores, sempre proporcionais à infração cometida.
Mas o aspecto mais curioso do gol a gol era a bola. Bola, no caso,
é uma maneira de dizer que nem sempre tínhamos bola. Na
verdade, nos primeiros anos, o mais comum era mesmo jogarmos
com uma lança, que é o nome que demos a uma engenhosa porém
simples invenção: preenchíamos uma garrafa de refrigerante ou
de desodorante (muito embora variantes fossem aceitas sem
problemas no desespero) com pedrinhas tipo brita, cujo chocar
durante o deslocamento daquela bola improvisada fazia o barulho
que nos permitia localizá-la.
O essencial era que o recipiente tivesse uma tampa para que a
lança não acabasse fazendo jus ao nome e fosse despejando
pedras em seu caminho rumo ao gol adversário.
Claro que receber uma garrafada na cabeça não era lá muito
agradável, mas em nome da verdade devo dizer que nunca
presenciei nenhum acidente.
Mais tarde, com as bolas tipo dente de leite, o processo de
barulhização era um pouco mais simples. Dependíamos
unicamente de uma sacola plástica, dessas de supermercado,
dentro da qual acondicionávamos a bola, dando posteriormente
um nó para manter a pelota ali dentro. O farfalhar do plástico era
o que produzia o som. Claro está que, sendo chutado de um lado
para o outro, o saco plástico não tinha uma duração maior que a
de alguns minutos. Como em geral não tínhamos uma grande
reserva de sacolas à nossa disposição, era muito comum termos
que interromper emocionantes disputas para praticar verdadeiras
cirurgias nas sacolas, que eram reconstituídas por meio de nós
dados com as pontas soltas em cada rasgão que se abrira, como
um ponto mesmo. Havia, entre nós, verdadeiros cirurgiões,
especialistas em dar sobrevida a trapos que um dia haviam sido
sacolas e, por conseguinte, aos nossos jogos.
No entanto, na maior parte das vezes, eles pouco podiam fazer.
Era aí que, não tendo uma sacola substituta, iniciávamos uma
peregrinação pelo colégio, em busca de uma boa alma que nos
fornecesse o combustível para reaquecer as nossas intermináveis
peladas. Os sacos de lixo, que por sua natureza não produzem
muito ruído, eram aceitos com relutância e apenas em último
caso. Preferíamos mesmo as sacolas de supermercado. Não raro,
todavia, ficávamos sem jogar por falta de sacos. E então, haja
tédio! Chegamos a criar a obrigatoriedade de uma doação semanal
de sacolas plásticas a todos que quisessem participar.
Enquanto estive no Benjamin, vi o surgimento de outras
modalidades como o monzebol (uma espécie de gol a gol com as
mãos, em que a bola tinha que quicar na trajetória) e o cegovôlei,
disputado em duplas e no qual a bola podia quicar uma vez no
chão da quadra adversária. Tenho o orgulho de dizer que fui um
dos criadores deste voleibol cegueta.
Nunca mais vou esquecer do dia em que eu e o Filippe
estávamos envolvidos numa disputa acirrada tendo contra nós
toda a torcida de umas vinte pessoas. Justamente por termos sido
os inventores daquela modalidade, nos queriam ver destronados.
Mas estas e outras práticas eram como modas passageiras, tendo
uma existência fugaz em um mundo dominado pelo gol a gol. O
gol a gol era tão importante, que o Grêmio Estudantil organizava
campeonatos oficiais da modalidade, com semanas de duração, em
que se premiava inclusive o artilheiro.
Desse modo, não exagero em dizer que o gol a gol foi o início de
minha carreira no futebol de cegos, algo como minha categoria de
base. Foi naquele estreito corredor que aprendi a chutar e a
defender, foi ali que aprendi a lidar com a pressão da torcida, foi
ali que, sobretudo, aprendi a ganhar e a perder. E senti, bem de
pertinho, o gosto de ser um futebolista. Cego sim, e daí? Cego por
bola, eu diria!
FIM
Sobre o Autor
Jornalista, palestrante e youtuber Marcos Lima é o criador do canal 'Histórias de cego', que atingiu mais de 180 mil inscritos e 4.3 milhões de visualizações. Em seus vídeos, Marcos conta de forma leve e divertida o cotidiano de uma pessoa cega. Marcos se formou em jornalismo pela UFRJ e é um dos fundadores da Urece Esporte e Cultura. Amante de esportes, jogou futebol de cegos por alguns anos, se tornou em 2008. o primeiro cego brasileiro a esquiar na neve, trabalhou na copa do mundo 2014, nos jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016.
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in
Histórias de cego
Marcos Lima.
Oficina Raquel, 2020.
Rio de Janeiro
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