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biografia,
causos
e presepadas,
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por ele mesmo
1.
Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de
Junho de 1878.Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente Rua da Vala.
Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres.
Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe.
Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela
desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado?
Desde esse momento
a necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu, com idade de cinco anos, tive que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino de Queiroz,
a dois vinténs por dia... E era com esse dinheiro que eu podia
sustentar meu pai.
2.
Tentei tudo na vida; queria virar logo homem, ganhar mais dinheiro para poder socorrer
a minha família. Fui aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e até trabalhador numa forja de ferro.
Era uma oficina modesta, e seu proprietário, mestre Antônio Henrique, ali me acolheu com simpatia, ensinando-me os rudimentos de mecânica. Mas, quando tudo parecia melhor encaminhado para mim, meu irmão mais novo
― ah, o mano Raimundo, de
treze anos de idade! ― adoecer. Doença de matar. A medicina daquele tempo não teve força para ampará-lo... Perdi-o, como o meu mano Reginaldo, que se foi embora para o Amazonas e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho com todos os encargos da família. E como pesavam! Como sofria meu pai, surdo, mudo e aleijado.
Quantas e quantas vezes não ouvi mamãe chorar!
Como doía aquele choro, na madrugada.
3.
Quando aí tinha dezoito anos, meu pai morreu.
Morte macia. Veio chegando devagarinho até levar o melhor alfaiate e o melhor pai que conheci.
Passamento deu-se
a 10 de
Março de 1896. e no dia 25, do mesmo mês, aconteceu
a desgraça que me tirou a luz do mundo.
Como é que se conta
a história de um moço que ficou cego porque tomou um copo d’agua? Que mal pode fazer um copo d’agua?
Por que eu haveria de cegar por isso apenas?
Eu havia pedido água para beber, na casa defronte á nossa:
― Dona, me dê água...
Quando devolvia o copo com um “muito obrigado”, senti aquela dor horrível, um arrocho querendo sair da minha cabeça. Meus olhos ficaram logo turvos. Apertavam-se, doíam, como se estivessem cheios de espinhos de cacto.
― Meu Deus!
Foi o que pude dizer. Até aí, ainda enxergava. Eu podia ver o mundo, as coisas. Sabia o que era uma manhã de sol, um dia de chuva, o chegar da noite...
Mas depois disso, aí meu Deus!
Meus olhos se fecharam para sempre.
Fiquei completamente cego. E aquela coisa morna, que pingou na minha mão, repetidas vezes, me disseram depois que era sangue. O sangue que descera de meus olhos estalados pelo destino.
4.
É impossível descrever
a vida de um cego dentro de casa, isolado do mundo, sabendo que perdeu para sempre o colorido das paisagens. Mas de tudo, o pior foi quando senti que devia sair á rua para pedir auxílio a um e a outro. Não,
dizia comigo mesmo, um homem não deve pedir esmolas! Principalmente moço como eu...
Ninguém aparecia em nossa casa. Era receio de que lhe fosse pedir ajuda.
Cego, e pobre, achei-me quase faminto. Não digo só, porque minha mãe estava comigo.
Eu implorava
a Nosso Senhor Jesus Cristo,
a São Francisco de Canindé... Queria um caminho, uma vereda que me levasse
a um abrigo seguro!Uma noite sonhei cantando:
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Oh! Santo de Canindé!
Que Deus te deu cinco chagas,
Fazei com que este povo
Para mim faça as pagas;
Uma sucedendo ás outras
Como o mar soltando vagas!
Acordei.
Que fora aquilo? Como pudera decorar, fixar na mente aquela estrofe?
Imaginei então que, naquela, estava a mão poderosa de Deus, a dizer-me que meu destino era cantar.
Uma mocinha me ouviu narrar este sonho, deu me de presente um cavaquinho.
Foi nas cordas desse cavaquinho que eu comecei
a experimentar o meu então pobre talento de cantador:
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Ah! Se o passado voltasse,
Todo cheio de ternura.
Eu ainda tinha visto,
Saía da vida escura...
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-
Como o passado não volta Aumenta minha tristeza: Só conheço o abandono Necessidade e pobreza.
Minha mãe, que me ouvia sempre, encantada, dizia-me:
― Canta, filho... Um dia o pessoal te compreenderá!
Entusiasmo de mãe, eu bem sabia. Mas o importante era aprender.
Um homem que canta sabe se impor e assim eu pensava. E tinha certeza que um dia me libertaria das minhas trevas, tangendo as cordas de uma viola...
5.
Saí pela redondeza, me oferecendo:
― Querem que o ceguinho cante?
Alguns diziam:
― Experimente... Se agradar...
Eu sempre agradava. Ia recebendo então, em paga, milho, feijão, arroz, farinha, e até carne de bode. Quando enchia um saco de pano destas coisas que ganhava, voltava á nossa casa. Minha querida mãezinha exultava de satisfação:
― Não lhe dizia, filho! Um dia... Não perca
a esperança.
6.
Um dia, que dia horrível!
Eu tinha conseguido mais prendas. Vinha carregado de coisas; trazia até um carneiro, que recebera de presente. Tudo, graças ao meu canto, a tudo aquilo que eu improvisava, divertindo o povo.
Pelo caminho eu pensava: “Quando chegar em casa, que alegria a mamãe vai ter! Ela cuidará do carneirinho... E quem sabe? Talvez até queira criá-lo. Um carneirinho serve de companhia a uma pobre senhora que vive só, com filho a percorrer o
mundo... ”
Empurrei a porta da casa, fui entrando.
― Mãe, mamãe...
Mas, aí meu Deus! Mamãe mal podia falar. Torcia-se de dor. De repente, eu senti que ela estava doente, e que sofria muito.
De manhã cedi saí de casa, fui procurar o Dr. Batista de Queiroz.
― Doutor, minha velhinha está doente... Veja o que pode fazer por ela.
O Doutor nada pôde fazer por ela.
Aconselhou-me a chamar um padre.
Com o coração transpassado por uma dor, vi claramente que se tratava de caso perdido. Mamãe se finava...
Sentado numa esteira, eu tremia. Era difícil acreditar que minha mãe estava a caminho do céu.
De repente, alguém disse:
― Filho, vou ascender uma vela... Sua mãe vai partir. E antes de ela se ir, ainda me falou:
― Meu filho, respeite a todos e ande direito porque Deus no céu está vendo quem é bom e quem é mau.
Aquela sua voz tão doce que me acalentou, que me estimulou na vida, se apagou para sempre.
Eu chorava baixinho. E até parece que meu próprio coração também chorava.
7.
Minha mãe, senti-a então, morta, irremediavelmente morta.
Vieram umas pessoas estranhas me ajudar, chorar comigo. O seu cadáver deitado numa velha esteira, tal a pobreza em que vivíamos, sem que ei tivesse uma moeda, um dinheiro que lhe comprasse um sepultamento honroso.
De madrugada, apareceu-me um velho amigo, me dizendo:
― Anda, Aderaldo... Sei onde estão hospedados uns paroaras. É gente rica que pode concorrer para o enterro de sua finada mãe...
Dona Aninha ficou vigiando o corpo de minha mãe. E eu fui a casa onde demoravam os paroaras. Ai, me Deus! Os homens estavam de voz engrolada, e pelo fartum da cachaça senti logo que se haviam exagerado na bebida.
― É este o cego que canta?
― perguntou um deles.― Sou, sim senhor. E vim aqui, batido pelo infortúnio, pedir a tanta nobreza um auxílio para enterrar minha mãezinha...
Ouvi alguém dizer:
― Ah, morreu-lhe a mãezinha...
Houve uma espécie de risada. Os corpos tiniram. Acho que se serviram outra vez.
― Bem, nós ajudamos, mas primeiro você tem que cantar!
Outro mais atrevido:
― Falou que a mãe dele morreu? Não vale nada! Quem tem a mãe viva, tem o Diabo para atentar!
Aí, o sangue subiu. Mas logo me lembrei dos conselhos que minha mãe me dera antes de morrer. A provação começava. Era o mundo com sua corte de maldade, me experimentamos.
― Cante, ceguinho, que nós lhe damos uma esmola.
Eu temperei a garganta, limpando o entalo, e com o coração cheio de dor, cantei então:
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“Oh! Meu Deus do alto céu,
Lá da celeste cidade,
Ouça-me cantar á força
Devido á necessidade,
Aqui chorando e cantando
E mamãe na eternidade...
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Perdoe, minha Mãe querida, Não é por minha vontade: São os torturas da vida Que vêm com tanta maldade, Chorarei meus sentimentos De vê-la na Eternidade!”
Nisto, uma voz de embriagado, me falou assim:
― Pegue vinte mil réis! Aqui ninguém quer ouvir choro!
E ajuntando:
― Vá-se embora.
Não lhe disse nada. Guardei o dinheiro e saí sem nem esperar pelo guia, ás apalpepa delas, arrimando-me ás paredes.
Fui para casa. Sabe Deus, como me sentia amargurado.
Logo que o dia amanheceu, com a féria de cantoria, fui alugar um caixão na igreja, por cinco mil réis. Comprei cinco metros de chita preta para fazer amortalha; um novelo de fio, por quinhentos réis. Com o fio as pessoas amigas fizeram o
cordão que as mortas, como a minha mãe, levavam á volta do corpo, aquele tempo...
8.
Com dois mil e quinhentos réis podia-se ter uma cova. A que abrigou minha mãe custou isso. Uma missa, encomendava-se por três mil réis... Uma cruz de madeira custava mil réis. E o toque de finado, triste e estirado, não custava caro...
Eu comprei dois mil réis de repiques de sino para o enterro de mamãe. Foi um triste bonito, de dar vontade de chorar.
9.
Estava só no mundo. Só é triste. Guardei quinhentos réis no bolso, pois foi essa a fortuna que me sobrou. Para comigo mesmo disse: “Agora, é ir pelo mundo, tentar a vida.”
Fiz pelo Sinal-da-Cruz; me despedi de minha casinha velha, até dia do juízo. Parti a pé, ouvindo o povo falar ao redor de mim:
― “Coitadinho, sofreu tanto!
― Ah!, se ele pudesse ficar!
― Como é triste um cego sem mãe!”
Eu perguntei então:
― Pra que lado é o nascente?
Uma voz me adiantou:
― É pra cá. Na direcção da Serra Azul.
E foi assim que eu saí dali. Nem eu sabia ai certo, mas com aquela caminhada, eu começava uma nova existência.
Andei, andei... Não sei em que chão pisava, até que topei numa cerca velha. Quando espinho me furou! Quanta urtiga me queimou!
De repente, vi-me entre galinhas. Estava num galinheiro. O galo começou a cantar. Uma voz gritou medrosa e apressada:
― Tem ladrão aqui!
Aí eu gritei também:
― Não é ladrão não, gente!
Uma voz de mulher, que parecia me ver, disse:
― Ah, é um ceguinho...
E eu, de voz trôpega, cansada, me apresentei:
― Doninha, sou o cego Aderaldo.
Pegaram-me pelo braço. Levaram-me para o anterior da casa. Deram-me uma rede. Nela eu dormi um sono sossegado, o mais calmo daquelas últimas horas.
No outro dia, a dona da casa me explicou:
― Vou lhe mandar, com uma recomendação,
à dona Santana. Lhe empresto um menino para guia até a casa da minha amiga. Lá, tenho certeza, lhe arranjarão alguma coisa...
As crianças, desde esse tempo, sempre me ajudaram. Primeiro, foi o menino que me guiou até a presença da Dona Santana; depois, o que foi comigo a casa de senhor, rico fazendeiro, chamado Faustino.
Fiz questão, logo que lá cheguei, de reunir tudo que era menino, principalmente os pobrezinhos, ao redor de mim. Contei-lhes histórias-de-trancoso, de assombração, de fada, de boi valente...
Foi o primeiro dia alegre que passei na vida depois que morreu minha mãe. Eu achava que era ela, minha mãe, que do Reino da Glória me ajudava.
10.
Um dia, eu estava arranchado no alpendre de uma casa, quando o cantador
António Felipe apareceu, me dizendo:
― Vim aqui cantar com um cego. Onde está ele?
― Se procura o cego Aderaldo, sou eu...
― Pois se prepare que eu quero cantar com o senhor.
― Mas eu não sei cantar direito
― desculpe-me.― Mas trate de cantar certo!...
Juntou logo gente ao redor de nós. Uns diziam: ― “O cego agora tem que cantar!” ― “não há de fazer vergonha ao outro!”
Antonio Felipe cantava:
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“Tenho atração de jibóia,
Sou forte como um leão,
Na ciência em cantoria
Sou igual a Salomão,
A força deste meu peito
Veio do braço de Sansão.”
E eu, naquela hora, não sei em que talento me segurei, mas lhe respondi em cima da bucha:
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“No tempo em que eu era moço
Comia meus ensopado.
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Agora como sou cego Só como macaco assado.”
Foi um chuveiro de palmas! Ave-Maria!
Pelas nove horas da noite
― corria um vento frio que arrepiava a garganta
― os promotores deram por encerrada a cantoria. Depois de contado o apurado (que não foi além de dois mil réis) eu fiquei satisfeito porque me tocara dos tostões! Mas
qual! O cantador, meu adversário, todo enjoado, me falou grosseiro:
― Você, cego, só fica com cinco tostões. Eu cantei mais. O senhor não cantou nada.
Deus prepara sempre uma hora para os mais fracos. Foi aí que um senhor de nome Pacheco, aproximou-se de mim, dizendo:
― Dêem o dinheiro todo ao cantador. O cego fica por minha conta.
Depois, tomou-me pela mão e me levou á sua casa.
― Cego, se arranche aqui comigo. Já mandei a mulher armar uma rede. Você aqui está servido. Tem tapioca daqui a pouco... tapioca e queijo.
Foi esta a melhor refeição que tive na minha vida, dada de coração, e chegando na hora da precisão. Onde andará esse Pacheco, que eu não sei se chamava Zé ou António?
11.
Foi em casa do seu Pacheco que criei uma poesia dedicada á minha mãe, “As três lágrimas”:
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“Eu ainda era pequeno
mas me lembro bem
de ver minha pobre Mãe
em negra viuvez.
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Meu pai jazia morto Estendido em um caixão Pelo primeira vez!
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E a pobre minha Mãe Daquilo estremeceu: De uma moléstia forte A minha mãe morreu.
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Fiquei coberto de luto E tudo se desfez E eu chorei então Pela segunda vez.
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Então, o Deus da Glória, O mais sublime artista, Decretou lá do Céu, Perdi a minha vista.
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Fiquei na escuridão, Ceguei com rapidez E eu chorei então Pela terceira vez.
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Meus prantos se enxugaram.
Das lágrimas que corriam Chegou-me a poesia E eu me consolei.
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Sem pai, sem mãe, sem Vista, Meus olhos se apagaram; Tristonhos se fecharam E eu nunca mais chorei.”
12.
Saí pelo mundo, como se diz, acompanhado dos bons conselhos de minha mãe e da força de Deus, que fazia nascer em mim a poesia dos sertões. Não posso dizer que pelo caminho da minha jornada só tenho recebido aplausos. Quem é que pode
andar pelo mata sem se ferir em espinhos? Em Vazante, por exemplo, quando acabei de cantar, não tive aplausos. Um menino deu um assobio fino, que até parecia assobio de cão, e uma vaia sem tamanho desabou sobre mim como um pesadelo depois
de panelada.Eu fiquei calado, ouvindo a vaia, os assobios...
Que podia fazer? O que fiz: chorar manso, arrependido.
Mas nessa hora apareceu outro cantador, um cego de nome
José dos Santos, que tomando a frente daquele povo que exorbitava, assim falou:
― Não está decente... O homem é cego como eu. Aposto como sabe cantar. Se ainda não é bom na viola, tempo virá que ele agradará a Deus e ai mundo.
E concluindo:
― Vou buscar meu violão, e vou mostrar a vocês como esse cego é cantador de verdade.
Quando voltou, sentando-se ao meu lado, disse:
― Cante, cego... cante “Eugénia”.
E eu comecei, a voz ensoluçada, molhada mesmo. E fui destranvando, acertando os tons, pondo melindres na voz...
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“Vamos Eugénia, fugindo
De tudo alegre sorrindo
Bem longe nos ocultar
Como boémios amantes
Por entre vagas errantes
Pra ser feliz, basta o mar.”
Mal acabei de cantar, ainda com uns trémulos na voz, reboou um aplauso tão forte que até parecia trovão passando em cima da serra. E o peito deste cego velho, da alegria, bateu descompassado mais uma vez.
13.
Os meus pés pisaram a poeira de muitos caminhos!
Tenho comigo as lembranças mais gratas de minhas cantorias, ainda no começo de minha vida. Percorri todas as serras, alcancei os chapadões, varei a caatinga, entrei no brejo...
Por toda parte eu levava a minha voz, assim como um soldado leva a bandeira do seu batalhão.
Contei em Baturité, em Canindé... Fui ao Crato, pisei o solo verdejante do Cariri... Que terra boa, maravilhosa! Nunca meus lábios provaram melhor água!
Comecei, aqui escrevo, cantando apenas uma ou duas horas. Depois de alguns anos, eu
― modéstia á parte ― já era cantador de três noites! Ah, como isso me regalava o peito!
Mas minha vida, eu sentia, não devia parar. Tinha que ir adiante... Deixei o sertão, acudi para
Fortaleza. Nesta terrinha do sol, que também é da Iracema, comecei cantando pelas pontas de ruas... Um dia, na Cachorra Magra, outro dia, no
Mata-Galinha.Quem diria que um dia esse pobre cego desvalido cantaria dentro dos palácios, para governadores e potentados?
Mas nesse tempo
― que era por volta de 1906
― cantador não tinha grande valor para o pessoal das capitais. Não haviam aparecido os estudiosos do folclore, a gente boa que haveria de mostrar aos letrados todo o brilho da nossa arte...
Dentro do meu peito eu sentia uma voz me chamando. Era o sertão.
14.
Cumprindo um roteiro de cantorias, de Ubajara até Viçosa, parti para Pedro II... Aí parei um pouco, estropiado. Havia ganhado oito mil reis, mas estava com os pés ― de tanto andar a pé ― em petição de miséria. Sentei-me á sombra do
alpendre de uma casa, e um menino, meu guia, começou a tirar os espinhos que me incomodavam.
Aí pernoitei. No outro dia segui para Pimenteira, que soube da existência do maior cantador do Piauí.
O dono da casa me falou dele: ― É negro afamado. O senhor toca?
Eu respondi:
― Muito ruim, mas toco.Ele tornou, mais interessado ― E canta?
O homem bateu palmas! Era aquilo mesmo que procurava, um cantador para defrontar-se com o maior cantador do Piauí.
E eu, sem me conter de curioso, simplesmente perguntei:
― Me diga uma coisa, meu senhor, como é o nome desse cantador assim tão grande? É o famoso Zé Pretinho.
Corria o ano de 1916.
15.
Pelo arrastar de tambores, pelo fruta de saias, pela conversa de homens, que me azuava o espírito, eu podia bem imaginar que o terreiro estava repleto de gente. Depois me contaram que estava mesmo.
Naquele instante eu queria apenas a proteção de minha mãe, e que Deus não me desamparasse também.
Não demorou, o dono da casa bateu palmas, anunciou Zé Pretinho, fazendo-lhe os elogios merecidos...
Eu, calado, segurava as cordas do instrumento, meio nervoso, ciente da minha responsabilidade. Uma voz de mulher, já idosa, cochichou pra outra:
― Eu não sei porque, mas a minha fé é no cego!
Quando fui apresentado, já estava mais animado. Que mais podiam dizer de mim. Um cego é sempre um cego. Eu só era um pouquinho mais, porque cantava...
16.
Depois dessa “pega” com Zé Pretinho, eu senti saudade do meu sertão, da minha terra. Disse para comigo mesmo: “É hora de voltar, cego. Que vai você fazer pelo mundo afora, sem conhecer alguém?”.
Voltei então para Quixadá, em 1914. Ano de bom
Inverno, mas de guerra. O Juazeiro estava pegando fogo. E quando morreu o grande J. da Penha, tudo piorou.
Depois desse ano, aí meu Deus! Sem que ninguém percebesse, a famigerada seca chegou devagar, como cobra venenosa. Foi a seca mais braba que se viu pelo sertão! Pela primeira vez na vida dei graças a Deus por não enxergar. Como é que eu, com
um coração tão mole, ia suportar tanta pena, tanta tristeza?
De manhã. De tarde e de noite, era uma lamentação sem fim. Ninguém tinha a mente limpa. Todo mundo amargurado, chorava a perda de, pelo menos, um ente querido.
Aqui escrevo, e juro que é verdade. Não me contive. Podia lá existir aquela miséria? Não tinha nervos para suportar as histórias que me contavam, de pai que vendera a filha, de filha que morrera de fome, dentro da caatinga, e servindo de
pasto aos urubus.Meu coração me dizia que eu deveria ir embora, tentar a sorte noutro canto. Se todo mundo estava indo para o Pará, porque o cego também não
ia?E lá me vi de viagem para o Amazonas.
No navio eu via com os olhos da alma o meu Ceará, minha pobre terra perseguida, que eu sentia ficando distante. E cantei então:
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“Canto para distrair,
Este meu curto poema:
Vou fugindo da miséria
Que é este o penoso tema,
Desta terra de Alencar,
Deste berço de Iracema.
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Fugi com medo da seca, Do pesadelo voraz Que alarmou todo o sertão Da cidade aos arraiais”.
Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o
índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue...
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Eu saí do Ceará
Deixei meu triste macambo,
Com medo do dezenove,
Este pesadelo bambo.
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Vinha o coronel Monturo Junto com doutor Molambo...
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A dona fome na frente, Na cadeira do trapiche, Dizendo: No Ceará Tudo é fofo e nada é fixe.
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Juro que aqui nesta terra Não vinga mais nem maxixe...
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A dona Fome me olhou E disse a mim: ― Eu pego!
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Eu disse: ― Não senhora! Eu sei por onde navego, Quem tem vista corre logo, Quanto mais eu sendo cego...
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Segui para Fortaleza, Dei uma viagem além.
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O barco era o “Maranhão”, E até corria bem, Com três dias e três noites Chegando nós em Belém...
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Quando eu cheguei em belém, Me encostei naquele cais.
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― Aonde vai esta linha? Eu perguntei a um rapaz Ele disse: ― Nesta linha Passa um trem para São Bras...
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Eu parti para São Bras, Para casa de Gaudêncio Que já conhecia bem, Ele, Salina e Merêncio; Junto estes amigos Não pude guardar silêncio...
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Fui para Madre de Deus, Terra de um povo fiel, Ali ganhei qualquer cousa Tomei açaí com mel, De manhã peguei o trem, Fui para Santa Isabel...
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Depois fui para Americana, Cantei lá no Apéu, Do sitio de São Luís Eu fui pra Jambuaçu; Eu cantei no Castanhal, E no Igarapeaçu...
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No primeiro Caripi Eu cantei, lá fui feliz, No segundo Caripi
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Cantei tudo quanto quis, E ali tomei o trem, Fui cantar em São Luís....
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Ali chegou um convite, Eu para Muricizeira, Depois, cantei no Burrinho Cantei no Açaí Teuã...
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Fui cantar no Timboteuã...
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Segui para Capanema Com coragem e esperança.
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Passei uns dois ou três dias E segui para Bragança, Dizendo sempre comigo: ― Quem espera em Deus não cansa...
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Quando eu cheguei em Bragança, Não quis ir no Benjamim, Não encontrando hospedagem, Me hospedei num botequim, Que era coberto e cavaco E circulado a capim...
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O dono do botequim Veio a mim e perguntou:
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― Cego de onde tu és? Me diga se é cantador. Me diga se não tem medo De azuplim trovador...
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Me perguntei: ― Não senhor! Será algum rio-grandense Ou mesmo um paraíbano, Ou um cantador cearense?
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Ele disse: ― Não senhor, É um cantor paraense...
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Quando findei a palavra Vi o paraense chegar, Ele trazia consigo Uma viola e um ganzá, E trazia um tamborim, Que é instrumento de lá...
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Ele afinou a viola, Quando bateu no ganzá, Deu um tom no tamborim Para o baião entoar, Eu tirei a rabequinha E fiz a prima chorá...
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Cego:
― Eu lhe disse: ― Oh! Paraense,
És uma ninfa de fada, Teu cântico me parece A deusa da madrugada.
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Eu lhe peço, amicíssimo, Que cante a sua toada...
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Azuplim:
― Cego, minha toada é, Um trabalhador garantido.
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Você pra cantar mais eu Precisa ser aprendido, Queira Deus tu me acompanhe, ai ai!
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Pra cantar nesse gemido...
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Cego:
― Meu amigo, o teu gemido, Tem destacado valor, Canta bem perfeitamente, Já vi que é bom cantador, Mas amigo, esse gemido, Me desculpe , que eu não dou...
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Azuplim:
― Se num dás um só gemido Também não és cantador, Vá cobrar logo o dinheiro.
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Do mestre que lhe ensinou, ai, ai!
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O cego já apanhou...
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Cego:
― Se gemer foi cantoria, Você é bom cantador, Pois gemes perfeitamente, No gemido tem valor, Mas geme com grande dor...
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Azuplim:
― Ou que gema ou que não gema, A boa palavra encerra, Cego, cante aqui mais eu, Que eu vim lhe fazer guerra, Quero que você me diga, ai, ai!
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A linguagem da minha terra...
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Cego:
― A linguagem da tua terra, Não é linguagem mesquinha, É toda no guarani Estudada, é bonitinha!
Para que não perguntaste A linguagem da terra minha?...
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Azuplim:
― Eu quero é que diga da minha Por que muda de figura: Cego, diga para mim O que nós chama mucura, Quero que você me diga, ai, ai!
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O que é saracura...
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Cego:
― É verdade, essa linguagem Muda mesmo de figura, O que nós chama casaco Vocês só chamam mucura E o que nós chama sericóia Vocês chamam saracura...
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Azuplim:
― Cego, diga para mim: O que é jamaru?
Queira Deus você me diga O que é jacuraru, O que é macuracar ai, ai!
O que nós chama jambu...
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Cego:
― É o que nós chama cabeça, Vocês chama jamaru, O que nós chama tejo, Vocês chama jacuraru, Tipi é mucuracar, E agrião chamam jambu...
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Azuplim:
― Cego, diga para mim O que nós chama jibóia, Quero que você me diga O que é tiranabóia, Diga aí pra eu saber, ai, ai!
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O que é “pegando a bóia”...
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Cego:
― No Piauí tem um besouro De nome tiranabóia, Nossa cobra-de-veado Cresce aqui, chamam jibóia, Em minha terra almoço e janto, ... tanto aqui só “pego a bóia”...
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Azuplim:
― Cego, diga para mim O que é a sacupema, Veja se você me diz O que é piracema, Diga aí rapidamente, ai, ai!
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O que nós chama panema...
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Cego:
― O que nós chama raiz Vocês chama sacupema, O que nós chama peixe muito Vocês chamam piracema; A um sujeito preguiçoso Chega aqui chamam panema...
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Azuplim:
― Cego, diga para mim A língua dos Tupinambá, A língua dos Aimoré, Ou dos índios Caetá, Ou sobre os índios Tamoios Ou índios Tamaracá...
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Cego:
― Sobre as gírias dos índios, Desde o Norte até o Sul, Pixueira é coisa fria, Um beijo chama meiru, Tacioca é uma é uma casa, Morada de caititu...
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Azuplim:
― Agora o cego Aderaldo Me respondeu muito bem, Vi que gírias dos índios, Ele segue mais além, Pelo jeito que estou vendo Você é índio também...
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Cego:
― Meu amigo eu não sou índio, Nasci num pobre lugar: Que é tão propenso a seca Que obriga agente emigra Sol danado de Iracema, Terra de Zé de Alencar...
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Azuplim:
― Cego, deixa de mentira, Tua terra não tem nome, Tua terra é uma miséria, Ë lugar que não se come, De lá veio cinco mil, Tudo pra morrer de fome...
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Cego:
― Dos cinco mil que vieram Algum era meu parente, Uma era tio, outro primo, Conterrâneo e aderente, Mais esse povo só come Massa de figo de gente...
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Azuplim:
― Saí daí, cego canalha, Com a sua poesia, Nesta minha carretilha Você hoje se esbandalha, Teu cântico tem grande falha, Quer cantar mais não convém...
-
-
Você somente o que tem É entrar no bacalhau; Apanhar de peia e pau Cearense aqui não vai bem...
-
-
Cego:
― De onde tu vens contrafeito, Cabeça de onça mancho, Bote o matulão abaixo E conte a história direito, Me diga o que aqui tem feito Por estes mundos além, Se você matou alguém Ou então se fez barulho,
Vai muito mau seu embrulho, Paraense aqui não vai bem...
-
-
Azuplim:
― Quando eu pego um cantador Dou três tacada danada, Lhe deixo a cara inchada De relho e chiquerador, É o café que lhe dou, É isto que lhe dou, E não diz nada a ninguém, Apanha e fica calado, Triste e desmoralizado
Cearense aqui não vai bem...
-
Cego:
― Disse uma velha na rua Que em outros tempos atrás Você e um seu rapaz Lhe roubaram uma perua; Veja que moda esta sua Roubando quem vai, quem vem, Como tu não tem ninguém Mais ladrão do que você.
-
Tome lá meu parecer: Paraense aqui não vai bem...
-
-
Azuplim:
― O cantador que eu pegar Pelo meio da travessa Nem Padre lhe confessa Enquanto eu não lhe soltar, Dou-lhe arrocho de lhe quebra, Osso e costela também, Quebro tudo que ele tem, Deixo-lhe o corpo em bagaço,
Tudo quanto eu digo eu faço, Cearense aqui não vai bem...
-
-
Cego:
― Até as moças donzelas Pediram aos cabras da feira Para meter-lhe a madeira E arrebentar-lhe as costelas.
-
-
Você abra o olho com elas, Boa surra você tem, Boa surra você tem, Neste dia também vem A velhinha da perua Quebrar-lhe a cara na rua, Paraense aqui não vai bem...
-
-
Azuplim:
― Também não quero brigar, Não sou homem de intriga, Eu não nasci para briga E não vivo de pelejar; Também não quero teimar Porque isso não convém, Lhe venero e quero bem, Digo isso pode crer; Não quero lhe aborrecer,
Cearense aqui vai bem...
-
-
Cego:
― Amigo, como mudou, Que coisa misteriosa!
-
-
Tens o perfume da rosa Que a pouco desabrochou.
-
-
Por isso tem o maior verdor Do que lá no bosque tem.
-
-
O anjo lá de Belém Ouviu nossa cantoria, Entrarmos em harmonia, Paraense aqui vai bem...
-
-
Havia quatro cervejas Que um coronel apostou Dizendo que todas quatro Pertencem ao vendedor Nós dois bebemos as cervejas Nem um nem outro apanhou...
Cidade de Bragança - Estado do Pará,
Junho de 1919
17.
Quando voltei de Belém,
encontrei o Ceará feliz.
Que a terra boa é esta,
quando chove! Nem
parecia aquela terra que
anos atrás, me deixara
trespassado de dor!
Todos que se encontravam
comigo falavam dos dias
de chuva, da natureza
bonita, do verde das
arvores. E eu,
francamente, mal podia
conter-me. Naquele
instante, estava me
achando um ingrato por
ter desertado da terra.
E intimamente me dizia:
“Não saio mais daqui.
Que venha a seca maior
do mundo. Meu lugar é no
Ceará”.
E fui ficando em Quixadá.
Só saí dali em 1923,
para fazer uma cantoria
em Serra Verde, na casa
do Sr. Francisco
Botelho. De lá. Resolvi
ir visitar o Padre
Cícero. De posse de uma
carta de apresentação do
Sr. Botelho, que era
íntimo do Padre, toquei
para Juazeiro. A notícia
da minha chegada aquela
terra hospitaleira
correu logo. Todo mundo
dizia:
― Chegou o cego Aderaldo!
Ninguém podia imaginar
como eu me sentia de
estar ali, bem perto do
virtuoso sacerdote.
Passei a manhã toda ― pois chegara á boquinha
da noite ― conversando
com um e com outro,
louco que as horas se
passassem para eu ir até
a casa paroquial tentar
falar com o Padre. Houve
um momento em que eu
disse para o meu guia,
que era um rapaz de
certo trato:
― Nem sei o que será de
mim se o Padre Cícero
não me quiser receber.― Recebe, seu Aderaldo.
Quem não haverá de
querer falar com o
senhor?― Será muito merecimento
de minha parte.
― Ora, Deus é grande...
Depois do almoço, eu já
podia me conter. Queria
saber, apressado, se o
Padre me recebia. Desde
rapaz ouvia falar na
fama do Padre Cícero.
Para mim ele
representava mais do que
um condutor de almas:
era o criador de
Juazeiro, o guia
espiritual, daquela
gente boa. Tinha pulso,
era homem de boas
virtudes, respeitador...Estava nisso, quando
alguém me gritou:
― Cego Aderaldo, aí vem
o Padre Cícero!
Em me tremi todo. Nem
sabia o que fazer. Disse
a mim mesmo: ”Minha Nossa
Senhora, valei-me.”
Contaram-me depois. O
Padre veio vindo, entrou
pelo portãozinho da casa
onde eu estava, e fez
com a mão um gesto para
que a multidão, que o
acompanhava, ficasse do
lado de fora.
E que abraço me deu ele!
Até hoje ainda sinto
aquele cheiro de batina,
de vela benta!
― Então, você é que é o
cego Aderaldo, famoso?!― Quem sou eu,
reverendo...
― Famoso e grande
cantador. ― Depois, com
mais calma ― Será que o
Senhor poderia me
mostrar os seus
talentos?
E eu nem sei como ― talvez até com a ajuda
de minha mãe que estava
no céu ― comecei a
cantar em atenção ao
Padre:
À
ordem do meu padrinho
Vou colher algumas
flores...
Fazer minhas
poesias
Cheias de grandes
louvores
Saudando,
primeiramente,
A Santa Virgem das
Dores.
O Nome do Santo
Padre
Anda pelo mundo
inteiro,
A cidade está
crescendo
Com este povo
romeiro,
Devido ás grandes
virtudes
Do santo de
Juazeiro.
Nossa Senhora
das Dores
É que nos dá
proteção,
Ordena ao nosso bom
Padre,
E ele cumpre a
Missão,
Ensinando a todo
mundo
O ponto da
salvação.
Deixo aqui no
Juazeiro
Todos os sentidos
meus
Juntamente ao meu
Padrinho
Que me limpou com
os seus,
Vou correr por este
mundo
Levando a bênção de
Deus.
18.
― Relembro esses
fatos e neles não posso
esquecer o dia em que me
encontrei com Lampião.
Nunca ninguém me julgou
medroso. Sempre fui um
homem confiante em Deus.
Quando me diziam:
― Cego, abra o olho!
Tenha cuidado, que
Lampião vem por aí.
Eu balançava a cabeça,
nesse gesto muito meu.
Que poderia fazer contra
mim? Eu pensava assim, e
com razão. Não queria
acreditar que alguém
pudesse ser perverso com
uma pessoa que cumpria
uma sina nu mundo, e não
vivia a malsinar
ninguém...
Eu falava mais ou menos
nesse tom:
― Se se encontrar
comigo, é capaz de
querer que eu cante pra
ele.
― E o senhor canta,
Cego?
― E por que não? Canto!
Quer ver, ele
experimente!
E parece mesmo que
Lampião queria
experimentar. Eu vinha
para Juazeiro ― terra de
minha predileção ―, e
mal cheguei lá, vieram
me dizer que o terrível
bandoleiro estava na
cidade. Para comigo
mesmo disse: “Cego Aderaldo, a hora é
esta!”
E foi mesmo. O Dr. Floro
Bartolomeu, de
noitezinha, mandou-me
chamar. Aquele meu velho
amigo me recebeu cheio
de alegria e foi-me
dizendo logo:
― Aderaldo, eu e o Padre
Cícero temos uma
surpresa para você.
― Que surpresa, gente?
Será que eu ainda tenho
merecimentos?
― Tem e muito ― disse o
Dr. Floro.
― Será que é outra
personagem ilustre que
está aqui?
Aí ouvi a voz de
Lampião. Não era valente
― me disse, ― e tinha
desejo de me ouvir...― Eu lhe mandei chamar
― acrescentou Lampião.
Então, não me fiz de
rogado. Encontrei-me na
viola, toquei e cantei a
gosto. E já no fim da
reunião, improvisei,
historiando para o
futuro:
“No ano de vinte
e quatro,
A quinze de
fevereiro,
Por ordem do doutor
Floro
Viu-se entrar no
Juazeiro
O grupo de Lampião
O famoso
cangaceiro.
João Mendes de
Oliveira
Foi quem lhe deu
hospedagem:
Junto a trinta
cangaceiros
Provou ter muita
coragem,
De acolher aquela
gente,
Que matar, a
vantagem.
À tarde ai tive
recado
Dado por um
portador:
― O capitão Lampião
Mandou dizer ao
Senhor
Que levasse o
instrumento
E fosse lá por
favor.
Eu peguei o
instrumento,
Saí, e não meditei,
Para a casa de João
Mendes,
Cheguei lá, me
apresentei,
Lampião falou
comigo
E eu lhe
cumprimentei.
Lampião então me
disse:
“Eu só mandei lhe
chamar,
Foi para lhe
conhecer
E ouvir você
cantar,
Tudo que souber de
mim
Você pode
improvisar.
Meu padrinho
Padre Cícero
Gosta muito de
você,
Por isto eu gosto
também,
Não tem que vá lhe
ofender.
Tenho muito que
fazer...”
Eu disse: Existe
três coisas
Que se admira no
sertão:
É o cantador
Aderaldo
E a coragem de
Lampião
E as cousas
prodigiosas
Do Padre Cícero
Romão.
Juazeiro é
colocado
Em um soberbo
recanto,
Terra de Nossa
Senhora,
Por isto é que amo
tanto
Ao meu padim Padre
Cícero
Porque seu conselho
é santo.
Lampião
disse:”Aderaldo
Estou muito
agradecido,
Dos elogios que
fizestes
Me deixaram
comovidos”.
E eu lhe disse:
― Capitão,
Vou lhe fazer um
pedido.
Lampião sorriu e
disse:
“Então me diga o
que é”.
― Capitão o que lhe
peço
É uma arma
qualquer,
Para eu ter como
memória
Se acaso o senhor
puder...
“Aderaldo, o seu
pedido
Para mim foi muito
belo.
Se você não fosse
cego,
Lhe dava um papo
amarelo;
Tome esta pistola
velha,
Que matou Antônio
Castelo...”
Ainda hoje eu
tenho
Este objeto
guardado,
Nunca emprestei a
ninguém,
Dinheiro eu tenho
enjeitado,
Até quinhentos mil
réis
Por ela alguém tem
botado.
Desde que recebi
ela
Nunca ela mais
atirou,
Nunca mais possuiu
bala,
Nem vida alheia
atirou.
Vive dentro de uma
mala
E com o tempo
enferrujou.
Em Arapiraca,
Alagoas, certa vez,
quando me perguntaram
que ideia eu fazia de
Lampião, peguei a viola
e cantei esse improviso
que ainda hoje é
repetido pelos sertões
do Nordeste:
-
O retrato de Lampião
Eu descrevo com capricho:
-
Não brigando, era simpático,
Dentro da luta era um bicho,
Com o seu terno de mescla
E alpargata de rabicho...
-
Pulava igualmente a gato,
Com o rifle e a cartucheira
Mais um rifle pequenino
Que tinha na bandoleira
E um revólver Anagão
Chamado espanta-ribeira.
-
Ostentava na cabeça
Um grande chapéu de
couro, O seu pescoço era ornado
Com um lindo colar de
ouro.
-
Se lia no rosto dele:
“Não suporto desaforo.”
-
Zé Antonio do Fechado
Foi um grande valentão:
Zé Dantas, João Vinte e
dois Era uma assombração...
-
Jesuíno brigou muito,
Mas não como Lampião.
19.
― Corria o ano de
1931. de tanto viajar
pelo sertão, palmilhando
distâncias, resolvi
parar um pouco. Afinal,
lá me sentia cansado de
tanta cantoria. Todo
mundo ― e isso não é
exagero ― queria
ouvir-me. Fiz, então, um
plano para ganhar a vida
de modo mais suave.
Comprei um gramofone,
que era novidade em
Fortaleza, e munido de
disco e agulhas viajei
para o sertão. Havia
empregado nesse
instrumento cem mil
réis, mas como essa
pequena fortuna
pretendia ganhar pelo
menos dez vezes mais...
eu percorria fazendas,
cidades e vilas. O
gramofone, reparti-o em
dois. Assim acomodava-o
da melhor maneira num
lençol que me envolvia a
tiracolo. Foi o sucesso
dessa temporada! Quando
me avisavam, de longe,
já gritavam:
― Chega, aí vem o cego Aderaldo com um “bicho”
esquisito!
O bicho esquisito era o
gramofone. E explicava,
pondo sabedoria numa
prosa esticada:
― Bem, meus amigos,
trago aqui a última
novidade da cidade. É
uma máquina assombrosa.
Toca tudo quanto se
desejar ouvir!
A matutada ficava de
boca aberta, me olhando.
Choviam perguntas:
― Tem gente dentro
desse bicho?
― Como é que ele canta?
E outros até
espirituosos:
― O que é que tem dentro
dele que fala? Será visagem?
E assim eu ia dando
minha função. Cobrava
cem réis por disco. Os
discos de tanto rodar.
Se acabavam. O dinheiro,
entretanto, caía do meu
bolso. Os homens,
fumando, discutiam:
― Esse cego Aderaldo tem
parte com o cão! Vote!― Mas depois ele tem que
cantar.
― É verdade. O cego
precisa cantar pra
gente.
E eu, para encerrar a
função, tinha mesmo que
cantar pelo menos uns
versos. Que bons tempos
aqueles!
20.
― Foi no
município de Jequié. Eu
havia sido chamado para
uma apresentação de
gramofone na casa de
abastado fazendeiro.
Entre os curiosos,
desembrulhei, o
gramofone, tirando-o do
lençol já encardido de
tanto viajar. Coloquei a
máquina em cima de couro
de boi, que fora
estendido ali, no chão
para isso, e diante da
multidão. Que me
aguardava fui preparando
o espetáculo. Coloquei a
agulha, montei o fone.
Dei corda vagarosamente,
dando voltas, parando,
assuntando. Eu fazia
tudo aquilo
calculadamente. Depois,
muito sério, chamei o
dono da casa, dizendo:
― Coronel, encoste a
cabeça aqui e escute.
Ele desconfiado veio
vindo. No meio da sua
gente, abaixou-se, meio
encabulado, esperando...
De repente, quando o
disco principiou a
girar, ecoando as
primeiras notas de “O
Guarani”, ai! Deus do
céu! Foi um fim de
mundo! O homem
afastou-se para trás,
aos berros, e todo
aquele correu assombrado
se benzendo.Eu gritava:
― Acalma, gente! É
preciso ficar para
ouvir.Ninguém queria saber
de meus conselhos. E
somente depois de muito
tempo é que o dono da
casa regressou, pé ante
pé, para ver de perto a
boca daquele bicho.
Assustado ainda, me
disse:― Tome o seu tostão,
seu Aderaldo, mas por
favor leve esse bicho
“maldito” daqui...
21.
― Foi em Apoli,
Rio Grande do Norte. Eu
ia acompanhado do guia,
um menino de seis anos,
quando a noite nos
alcançou em pleno mato.
“É o diabo”, pensei. “Se
não alcanço uma casa
onde possa me arranchar,
nós dois vamos ficar á
toa”. Afinal, toca para
aqui, toca para acolá, o
menino descobriu uma
casa abandonada. Dei
graças a Deus. Entramos
na tapera e enquanto o
menino me auxiliava a
armar as redes, eu
lamentava o sucedido.
Depois, vi que não
adiantava reclamar o
sucedido. Depois, vi que
não adiantava reclamar.
Era deitar-se e entregar
a alma a Deus. No outro
dia talvez surgisse
alguém, um homem que nos
quisesse ajudar.
Deviam dar as duas da
madrugada quando o
menino bateu na minha
rede, amedrontado:
― Seu Aderaldo, o
senhor está ouvindo?
Até ali eu ainda não
tinha ouvindo nada.
Prestei atenção. Um
gemido apertado,
espremido, veio vindo de
longe até perto de mim.
Aquilo, depois eu atinei
melhor, parece que
nascia do chão, do outro
lado de uma parede que
nos separava de uma
sala..
O menino, tremendo,
insistiu:
― Ouviu, seu Aderaldo?
― Ouviu...
Minha voz saiu-me num
sopro. A essa altura o
gemido crescia e
diminuía como se alguém
já não tivesse muita
força para resistir à
dor que o atormentava.
Levantei-me da rede e
mandei o menino ir
apanhar um tição da
figueira que eu fizera
para afugentar bichos e
insetos. Eu dizia ao
guia, baixinho:
― Vai na frente,
menino, de tição
erguido. Se for bicho
feio, enfia nele o
tição.
Fomos avançado, pé
ante pé, na direção do
gemido, que agora tomava
canta da casa. De
repente, o menino deu um
pulo e gritou:
― Seu Aderaldo, é uma
cabra! ― E como se a
visse mas de perto ― Está com uma bicheira
danada!
Caímos os dois na
gargalhada. Não digo que
estivesse com muito
medo, mas, que estava
meio assustado, estava.Assim mesmo só
largamos a cabra depois
que lhe fizemos o
curativo da bicheira com
cinza da fogueira.
Vendo-se só, aliviado, o
animal desapareceu aos
pulos. Não sei era uma
cabra mesmo. Já ouvi
falar de muita histórias
em que o demônio aparece
em figura de bode ou de
cabra. Quem sabe se não
era ele, naquela noite,
querendo e atormentar?
22.
― Em 1933, eu já
possuía algum dinheiro.
Economia amealhadas
graças ao gramofone que
continuava sendo o
sucesso por onde eu
andava. Foi aí que eu
pensei em botar para
render uma ideia que
viera à mente: a de ser exibidor de cinema.
Comprei uma máquina
“Pathé Baby” e dois
burros. Assim preparado,
com alguns filmes
variados que consegui,
resolvi percorrer outra
vez o sertão. Só
aceitava cantorias bem
pagas e só pelejava com
cantores de cantorias.Não posso deixar de
dizer aqui o meu cinema
ficou logo famoso entre
os sertanejos. Os filmes
eram antigos até
estragados, e se
ocupavam da chegada do
Rei Alberto da Bélgica
ao Brasil, e de fatos
históricos da vida de
Napoleão Bonaparte. A
máquina ia rodando, e
eu, que sabia mais ou
menos o que se
desenrolava na tela (um
lençol branco armado na
janela da casa),
descrevia o filme. As
pessoas diziam:
― E dizer que ele é
cego!
― Menino! Parece que o
homem vê!
― Não errou nenhuma
passagem do filme! Sabe
tudo!
Hoje, passa aqui,
amanhã, passa acolá,
percorri quase todo o
sertão do Ceará. O filme
mais completo que tinha
era a “Paixão de
Cristo”. Os velhos
choravam quando viam
Cristo rumando para o
Calvário, sob o peso da
cruz.
Foi exatamente esse
filme que causou uma
cena de muito vexame. Eu
viajava pelo interior de Pernambuco, quando, uma
noite, fui interceptado
por um grupo de
cangaceiros comandados
por João 22. o
desordeiro falava meio
apressado e foi logo me
propondo uma exibição de
cinema.
― Divertimento pro meu
pessoal. Arrume a sua
estrovenga aí, que
agente não tem muita
pressa.
― Mas, seu capitão...
― Tem que ser agora,
cego velho. Eu não posso
deixar para outra vez.
Vamos, arrume o seu
instrumento.
Estávamos numa
vilazinha, no terreiro
da casa onde se
acoitavam o bandoleiro e
sua gente.
Vi que não havia outra
saída. Era preparar a
máquina e passar o
filme.
E assim foi feito. O
filme era a “Paixão de
Cristo”. Os cangaceiros
o assistiam calados,
respeitosos. Quando um
deles, a certa altura,
se pronunciou, dizendo
pilhéria, João 22
ralhou:
― Cala a boca!
Respeite Nosso Senhor!E o filme continuou
passando. A máquina
tec-tec desfiava o
filme.
Quando chegou a hora
da crucificação de Jesus
Cristo, com os guardas
malvados pregando-o à
cruz, João 22 não teve
dúvidas. Sacando do
revolver disparou-o
várias vezes sobre a
tela, alvejando, na
cabeça, um dos soldados.― Arre, miserável!
Aprenda a lição! ― gritou.
Os homens riram com
aquilo. João 22
novamente sério, ralhou:
― Isso não é vadiação!
E se dirigindo a mim:
― Cego, passe essa
cena ligeiro. Não gosto
de ver santo sofrer.
23.
― Ah, depois do
gramofone, depois do
cinema, eu vi que estava
errado. O meu negócio
era empunhar a viola e
tanger-lhe as cordas.
Guardei, então, o
gramofone e a máquina de
cinema, e saí novamente
a correr o mundo, como
um trovador dos tempos
antigos...
24.
― Corria o ano
de 1942 quando cheguei a
Fortaleza. Havia
caminhado por todo o
sertão. Quantos
terceiros visitara? De
quantas cantorias
participara? Será
difícil enumerar aqui,
nestas lembranças, os
desafios que topei com
os mais famosos
cantadores do Nordeste.
Não digo que não ganhei
glória e dinheiro. Por
isso resolvi descansar
um pouco e tentar a vida
em Fortaleza, onde o
comércio, ouvira dizer ― era adiantado e de muita
vantagem até mesmo para
um cego como eu. Aos
sábados, eu pretendia
aceitar desafios,
convites para cantorias.
Poderia visitar cidades
próximas da capital
cearense... E assim não
estaria distante do meu
interesses.
Que ramo de negócio me
agradaria?
Entrevistado pelo
repórter Pery Augusto,
manifestei-lhe a vontade
de me entender
pessoalmente com o
interventor federal, Dr.
Menezes Pimentel, a
respeito de uma
pretensão que me
cativava, a de instalar
em Fortaleza uma bodega
bem sortida. Logo que
a entrevista foi publicada
no jornal, o Interventor
mandou-me, sem tardança,
ao Dr. José Martins
Rodrigues, então
secretária da Fazenda.
Este, por sua vez,
enviou-me á consideração
do Dr. Raimundo Alencar
Araripe, prefeito de
Fortaleza, que me
aconselhou a ir a
alfândega falar com o
Dr. Luiz Sucupira. Ao
receber-me, aquele
jornalista e homem
público foi logo me
dizendo: "Já conheço o
seu plano. Como é que um
cego negocia? Você sabe?
Acho que o seu
estabelecimento
comercial vai quebrar
ligeiro...”
Para encurtar:
arranjaram-me licença
para funcionar a bodega
e até ajudaram em
provê-la de um tudo. O
ponto adquirido na Rua
da Bomba, n.º 2,
custou-me trezentos mil
réis. Sobre o balcão
coloquei um rádio, que
vivia aberto para que os
meus fregueses pudessem
divertir-se escutando os
sucessos musicais do
momento.
Os dias foram
passando... a freguesia
aumentando... E aí o
fiado começou. De
repente, sem exagero,
quase todo mundo
estava-me comprando
fiado. Havia freguês que
me elogiava uma hora,
enaltecendo minha
cantoria, para no final
da conversa querer levar
um quilo de carne seca
para pagar depois. Mas
qual! Não nasci para
bodegueiro! E aí sendo
enrolado de todo jeito!Uma vez vendi um litro
de aguardente por dez
mil réis e a pessoa que
o comprou, mostrando-se
arrependida ― a desculpa
era a maior do mundo ― veio devolver a
aguardente! Quando
recebeu o dinheiro de
volta, e se retirou da
bodega, eu fui examinar
a aguardente. Destampei
a garrafa e tomei bem o
cheiro no nariz. Que
cachorro! Era água pura!Não posso esconder a
minha decepção. Não fui
à falência mais ligeiro
porque a cantoria me
salvava. Mas logo vi que
era ganhar por um lado e
perder por outro. Ali
estava o castigo de
querer mudar o meu
destino de trovador
errante.
Liquidei a bodega. O
prejuízo foi enorme. Mas
nem me incomodei. Muito
ao contrário, mais
feliz, comecei a cantar:
-
Voltei de novo a
cantar
Porque esta é a
minha sorte
Minhas cantigas me
dão
Roupa comida e
transporte.
-
Deixarei este dever
Quando um dia
receber O beijo fatal da
morte!
25.
― Desde 1942 que
resolvi ser francamente
um homem da cantoria.
Minha estrela para
negócios não brilhava
coma intensidade daquela
que me guiava para
minhas viagens pelo
sertão, quando eu
cantava para coronéis,
para homens ricos e de
muitos talentos. Todos
me queriam ouvir. E era
um prazer escutar, na
roda que se formava em
torno de mim, alguém se
surpreender:
― Espere , é esse o
cego Aderaldo?
Eu mesmo, de viola em
punho, a garganta
aberta, o peito altivo e
desfiar no ar a minha
inspiração. E assim
cantando, para ganhar a
vida, transitei pelos
lugares mais distantes.
Percorri Pernambuco; e
estive no Maranhão.
Voltei ao Piauí, onde
demorei em várias
cidades, aceitando
desafios.
Naturalmente tenho
muito a contar. Mas
sempre que quero
escrever minhas
memórias, penso num
problema que me parece
muito sério. Afinal de
contas, o que há de
interessar mais aos meus
leitores: as minhas
anotações de saudade ou
os meus versos? Embora
sinta que talvez fosse
melhor fazer as duas
coisas, prefiro dar mais
espaço aos meus versos,
porque neles está a
verdadeira história de
minha vida . Em cada
verso que fiz está a
marca, o instante exato
da inspiração, o que
valerá dizer, do meu
sentimento. Nos meus
versos, insisto, eu me
encontro de corpo
inteiro, como se eu me
pudesse enxergar a mim
mesmo.
26.
― De uns dez
anos para cá já não
aceito desafios. Sinto
que o meu corpo não é o
mesmo. Acho que já
escrevi no livro dos
cantadores populares uma
história bastante
extensa. Não posso mais
sofrer vexames, pois a
serenidade que só a
idade avançada autoriza
não permite mais que eu
me encha de ódio contra
os meus possíveis
antagonistas.
Aos oitenta e tantos
anos sinto-me mais
calmo, mais sereno.
Tenho minhas vontades de
ficar só, de me esquecer
do mundo... Cantador da
minha idade sabe que não
pode mais ter ligeirezas
de cantador de quarenta
anos... é chegado o
tempo de honrar a viola
nos momentos mãos
solenes. Por isso, desde
1945 que não aceito mais
desafios.
Hoje, eu canto para
entreter minha alma. E
só canto para os que
querem me ajudar a
entretê-la.
27.
― Na ordem das
confissões é preciso que
lhes diga: nunca me
casei. E na verdade
nunca tive vontade de me
casar. E sem me casar,
sempre tive uma vida de
chefe de família, pois,
ao todo, criei vinte e
seis meninos. O último
se chama Marconi. O
penúltimo, Mário Aderaldo Brito, casou-se
há dois anos. Foi
durante anos e anos o
meu acompanhante.
Francamente, sempre me
fez um homem feliz...
Sozinho no mundo,
espero, com a graça de
Deus, poder um dia fazer
a minha casinha e morar
num bosque ouvindo a
passarada cantar.
Sabendo por quê? Das
coisas que me lembro, do
tempo em que eu
enxergava ― o céu, as
árvores, os pássaros, os
rios ― são as que mais
me comovem. Eu queria
reuni-las para sempre
perto de mim...
28.
― Quando eu
morrer, gente, me deixem
mesmo em Fortaleza. Não
me levem para Quixadá. A
terra lá é dura, rija.
Eu quero o chão fofo,
mole, da beira-mar.
E quando assim se
proceder, que venha um
amigo descrever como eu
morri, como se acabou um
cego cantador e tocador
de viola.
FIM
Aderaldo Ferreira de Araújo é uma lenda da cantoria nordestina. Cego, tradição de um Homero ou de um Tirésias, cumpriria o destino traçado pelos deuses de ser privado da visão para ser apenas voz. Mas que conheceu a luz e a
cor até aos 18 anos. É a permanência da oralidade que está em foco. Seu cantar flui, interminável, como uma litania sertaneja. Ele está sempre apto para a peleja. Maneja voz e viola como armas, com uma destreza de mestre.
O sertão inteiro repete, ainda, de cor, o seu improviso e sabe histórias de repentes com a marca do génio. Os grandes nomes da cantoria cantam com ele. Até mesmo pegas que nunca existiram ganharam transmissão oral ou foram transcritos para
folhetos de cordel. Um cego andarilho, que não vendia histórias, papel reservado a eles na tradição européia, mas que ganhava a vida como um “performer” medieval. O importante não era apenas o que ele dizia, mas como dizia, a eloqüência da
voz, ao artifícios da retórica, a verve de quem sempre tinha um argumento a mais para exibir no ultimo instante e fazer calar o rival.
O Cego Aderaldo foi o maior jogral que o Nordeste já teve. E este livro é um esforço de registrar o que se perderia no eco das palavras ou que se transformaria em sementes na recriação deste canto que é de homem e ao mesmo tempo de todas as
vozes sertanejas. Um livro para ser lido em voz alta. Nos mercados, nos patamares das igrejas em tempo de festas, nos terreiros das fazendas, ainda se faz ouvir o tom plangente de sua viola e o matraquear de sua poética. Aderaldo está cada
vez mais vivo no coração e na lembrança de todos os que sabem puxar os fios e tecer essa histórias feita de mil-e-uma noites de rimas, ritmo e agilidade. É um saber tradicional que se cristaliza e se torna monumento feito de palavras e
sons.
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texto extraído da obra:
Eu sou o Cego Aderaldo
Maltese Editora
São Paulo, 1994
5.Dez.2011
Publicado por
MJA
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