CEGO OLIVEIRA,
"NEGRA LUZ PARIDA
DAS ENTRANHAS CEGAS"
Uma galeria de grandes nomes da comunidade cega do
Ceará estaria capenga não incluído fosse o nome de Pedro Oliveira, o Cego
Oliveira de Juazeiro do Norte, afilhado do Padim Cícero, dono de uma intuitiva
capacidade de narrar, em versos, as lendas e estórias da terra caririense e das
muitas outras de que ouviu falar sem poder vê-las.
Cego Oliveira situa-se no mesmo pedestal de Aderaldo, de Sinfrônio, de
Esmeraldino e muitos outros que, de viola ou de rabeca na mão e canções na alma,
encantaram não somente os sertanejos simples e anônimos nas feiras e nos
alpendres, mas impressionaram vivamente auditórios ilustres pelo Brasil afora.
De seu talento, de sua obra, de sua figura sofrida e humilde a esconder a força
de uma inteligência invulgar, cuidou carinhosamente o cineasta Rosemberg Cariri,
responsável pelo resgate de valioso acervo da cultura popular cearense, de modo
muito particular dos seus pagos araripinos.
Rosemberg produziu o filme "Cego Oliveira – Rabeca & Cantoria", no qual preserva
muita coisa da criatividade encantadora desse artista nascido na pobreza dos
rincões remotos do sul do Ceará. Também por iniciativa de Rosemberg, com apoio
da Secretaria da Cultura e Desporto ao tempo do Governo Ciro Gomes, tendo como
Secretário o poeta Augusto Pontes, existe um LP contendo em seus dois lados
vinte e duas músicas do folclore cearense na interpretação de Cego Oliveira, com
participação especial de seu irmão, Zé Oliveira. O disco é um documentário de
ouro da riqueza musical do Ceará e do Nordeste, valorizado pelo imenso poder de
sentimento contido na voz e no som da rabeca de Cego Oliveira.
CONTANDO A PRÓPRIA HISTÓRIA
Para o filme que produziu e dirigiu, Rosemberg
Cariri colheu vasto depoimento de Pedro Oliveira, do qual extraiu esta síntese
em que o famoso cantador e violeiro conta detalhes de sua vida:
"Bem, meus senhores, não vou contar para "vosmecês", nem toda a minha vida e nem
todo o meu sofrimento. Dou uma explicação... Meus pais eram José Cazuza e Maria
Ana da Conceição, eram alagoanos e vieram para Juazeiro em 1904. Chegando aqui
foram morar no sítio Baixio Verde, mas meu batizado foi em Juazeiro e quem me
batizou foi o meu Padrinho Cícero. Quer dizer que eu sou de Juazeiro, que no
lugar onde a gente se batiza é que é o natural da gente."
"Nasci cego e fui me criando no sofrimento, na obrigação de pedir esmolas, o que
eu achava muito ruim... Pedi a Deus que me desse uma luz, um seguimento, para eu
deixar esta vida de porta em porta. Quando foi no ano de 1929 um tio meu comprou
e me deu uma rabequinha. Bem, eu fui tentando, tentando, comecei a aprender...
Aí Nosso Senhor me deu este dote de eu pegar em cantoria."
O rapazola nascido em terras do Crato e abençoado no Juazeiro por Padre Cícero
arranhava bem a rabeca aí pelos começos dos anos trinta e recebia o apoio do
irmão, o Zé, que ao contrário dele – tolhido pela cegueira – aprendera a ler.
Passemos a palavra novamente a Pedro Oliveira: "Meu irmão sabia assinar o nome e
lia para mim os versos dos "rumances". Lia uma quadra e eu decorava, lia outra
quadra e eu decorava... Aí cheguei a cantar mais de 75 "rumances"... Primeiro
aprendi os versos do "Preguiçoso", depois desembestou: "Princesa Rosa", "Pavão
Misterioso", "Negrão André Cascadura", "João de Calais", "Zezinho e Mariquinha",
"Juvenal e o Dragão", "O Capitão do Navio", "Coco Verde e Melancia", "A Peleja
do Zé Pretim com Cego Aderaldo"...
Era um mundo de poesia. Aprendi também muitas
cantigas bonitas. Eu aprendia com o povo, nesse tempo não tinha rádio e essas
coisas modernas que tem hoje. O povo cantava e eu aprendia. Tinha muita música
bonita, de amor, de gracejo, de causos de valentia, de reinos encantados...
Essas músicas navegavam no mundo. Eu toquei muito nos "Reisados", depois perdi o
gosto... Um menino que eu tinha brincava nos "Reisados", quando foi um dia ele
morreu e eu perdi o gosto pelos "Reisados"...
SOPRANDO O PÍFARO
O som das bandas cabaçais parece vir açucarado
dos engenhos do Cariri, adoçando a voz, o sotaque, até o jeito de ser daquela
gente. O pífaro é o instrumento maior desse mundo sonoro. E encantou também Cego
Oliveira. Sem desprezar a rabeca, cuidou de aprender a tocar pífaro. É ele quem
conta:
"Eu também tinha muito interesse em tocar "pife". Quando eu ia para uma festa, a
coisa mais bonita que eu achava era uma banda cabaçal. Eu me interessei e
aprendi a tocar "pife", eu tocava o tempo todo, chegava a tocar um dia mais uma
noite. Mas depois eu peguei mesmo foi na vida da cantoria, com a rabeca...
Comecei a cantar nas feiras, em todo lugar onde eu fosse convidado. Eu cantava
em casamento, em batizado, em aniversário, em festa de renovação dos Santos e
até em sentinela de defunto... O defunto estirado na sala e a gente arrodeado,
cantando... Eu achava era bom uma sentinela. O povo tomava muita cachaça, era a
noite inteira à custa de cachaça para agüentar a função. As "incelença" eram
assim:
"Uma incelença
Nossa Senhora das Dores
Os anjos lá no céu
Estão cantando luvores;
Só foi quem mereceu
Esta capela de flores".
Duas incelença
Nossa Senhora das Dores"...
Cantava até completar as doze "incelença".
CANTADOR
"A vida do cantador foi a melhor que eu já
achei, porque trabalhar no pesado eu não posso, pegar no alheio eu não vou.
Assim, vou cantando... É como eu digo:
"Essa minha rabequinha
É meus pés, é minha mão
É minha roça de mandioca,
É minha farinha, o meu feijão,
É minha safra de algodão,
Dela eu faço profissão
Por não poder trabalhar,
Mas ao padre fui perguntar
Se cantar fazia mal.
Ele me disse: Oliveira,
Pode cantar bem na praça,
Porém se cantar de graça
Cái em pecado mortal"...
Aceitou e venceu muitos duelos com outros
violeiros e cantadores afamados por todos esses sertões. Como Zé Mergulhão, por
exemplo, um nome de respeito, tido como invencível, orgulhoso de sua fama.
Porém, certa vez, conta Cego Oliveira:
"Quando eu era novo era bom demais. Eu
chegava numa festa e me juntava mais os companheiros, a gente tocava rabeca,
"pife" e zabumba... Bebia cachaça e pintava o sete. Eu cantei com muitos
cantadores afamados do sertão. Uma vez o poeta Zé Mergulhão tava me aperriando
numa cantoria, com os versos malcriados querendo me encourar... Então eu cantei:
"Poeta Zé Mergulhão
Você procure a defesa,
Eu lhe dou a explicação
Com toda delicadeza,
Eu com a rabeca na mão,
Eu canto por precisão
E você por sem-vergonheza"...
MÁGOAS DO RÁDIO
E o tempo a caminhar enevoando os cabelos do
menestrel do Juazeiro. Muito sofrimento, algumas alegrias, a noite eterna a
iluminar-se pelos aplausos de quem escutava o som mavioso do seu instrumento e a
graça singela de seus versos.
Devolva-se a palavra a Cego Oliveira:
"Hoje eu estou ficando velho, ficando distraído das coisas. Já esqueci muitos
versos... A profissão hoje em dia não dá mais pra quase nada, a gente quase não
recebe mais encomenda de cantoria. Ainda canto um pouquinho nas romarias,
enquanto houver romaria eu ganho um pouquinho que dá para viver. Antes de chegar
esses programas de rádio, esses violeiros modernos, eu era convidado para tudo
que era canto, pra toda a região. Tinha dia de sábado para eu ser convidado para
quatro casamentos e não dava vencimento... Essas cantorias de rádio foi quem
derrubou eu e muitos outros cantadores como eu."
DE PÉ NA ESTRADA
Cego Oliveira rompeu as fronteiras do Cariri. Seu
nome chegou à capital, e daí ganhou o mundo. Meteu o pé na estrada, visitou
terras distantes, onde pôde revelar o vigor do seu estro:
"Na profissão de cantoria eu já viajei pra São
Paulo, pro Rio de Janeiro, pra Fortaleza... Eu já cantei na televisão, mas ao
invés de melhorar ficou pior. Quando é no tempo de romaria, eu tou tocando a
minha rabequinha, aí chega um romeiro, fica olhando e diz: "– Ah!, esse cego aí
eu já vi, ele passou na televisão. Não dê esmola a ele que ele é rico, ele vive
passando na televisão"... Pois bem, e o pobre do besta aqui passando
necessidade. Eu passo é de um ano sem ver um pedaço de carne no prato."
SEM MEDO DA MORTE
Na época das filmagens de "Cego Oliveira – Rabeca
& Cantoria", Pedro Oliveira já estava bem idoso, mas firme na sua rabeca, forte
na sua voz de cantador. Ele disse pra Rosemberg:
"A vida, no meu entendimento, é esta luta que a gente leva. Deus é todo-poderoso
e é quem manda no destino de todos nós. Eu acredito na vida do outro mundo, mas
ninguém sabe como é... Agora, o que eu digo é o seguinte: do céu não vem carta,
nem telegrama, nem telefone pra ninguém.
Uma vez eu fui cantar num casamento, quando foi na hora de eu esbarrar a
cantoria, eu cantei uma "despedida" tão bonita que, quando terminei, uma mulher
disse:
– Faz pena um "home" desse ter que morrer um dia.
Mas eu não tenho medo da morte, não tenho um "tico" de medo da morte. Não tenho
medo da morte e nem medo de deixar o mundo. Eu não tenho o que deixar... Se eu
morrer é como se diz:
"Eu vou me embora
Vou cantar "gulora"...
Pedro Oliveira, nascido em 1912, naquele
pequeno sítio no Crato, morreu em 1997, aos 85 anos de idade, na terra que
adotou como sua, pois nela recebeu a bênção de seu "padim", Padre Cícero, o
Juazeiro do Norte.
DEPOIMENTOS
Ninguém poderá falar melhor de Pedro Oliveira
do que Rosemberg Cariri, o homem que imortalizou sua imagem num celulóide e sua
voz num vinil.
– "Mestre Oliveira, cantador de feira e pedidor de esmolas, o canto escancarado
de um povo, a voz rouca e forte cantando os amores e as misérias desta
Terra-Siará. A rabeca rústica, arrancando sons do fundo do tempo, de perdidas
culturas, de inumeráveis raças; vivo elo que se manteve através dos séculos e
encarnou o destino de um povo que teima na resistência, na luta contra os
dragões de todas as misérias" (Rosemberg Cariri).
"Nordeste:
Cordel, Repente E Canção" (produção de Tânia Quaresma, 1975) onde
se mostra o Ceguinho Pedro Oliveira cantando com a sua rabequinha numa
feira. Este vídeo tem apenas a intenção de divulgação do artista e
mostrar umas das artes do nordeste: o repente acompanhado por uma rabequinha.