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 Sobre a Deficiência Visual


CATEDRAL

Raymond Carver

1983

Um cego no escuro - Guilherme Kramer

Um cego, amigo de longa data da minha mulher, vinha passar a noite connosco. A mulher dele tinha morrido. Por esse motivo, estava a passar uns dias com a família dela, no Connecticut. Telefonou à minha mulher de casa dos sogros e combinaram as coisas. Ele vinha de comboio ― uma viagem de cinco horas ― e a minha mulher iria esperá-lo à estação. Ela já não o via desde o tempo em que trabalhara para ele durante um Verão, em Seattle, há dez anos atrás. Mas ela e o cego tinham mantido o contacto. Gravavam fitas e enviavam-nas pelo correio. Eu não estava muito entusiasmado com a noite; não o conhecia de lado nenhum. E o facto de ser cego aborrecia-me. O meu conceito de cegueira vinha dos filmes. Nos filmes, os cegos moviam-se lentamente e nunca riam. Às vezes eram conduzidos por cães especialmente treinados. Uma pessoa cega em minha casa... não era coisa que me agradasse muito.

No tal Verão, em Seattle, ela tinha precisado dum emprego. Não tinha dinheiro nenhum. O homem com quem ia casar no fim do Verão estava na escola de formação de oficiais. Ele também não tinha dinheiro. Mas ela estava apaixonada pelo tipo, ele estava apaixonado por ela, etc. Ela tinha visto um anúncio no jornal: PRECISA-SE Pessoa para ler a um cego e um número de telefone. Telefonou, foi até lá e foi logo aceite. Tinha trabalhado para o cego o Verão inteiro. Lia-lhe coisas: processos, relatórios e coisas do género. Ajudou-o a organizar o seu pequeno escritório no departamento distrital da assistência social. Tinham-se tornado bons amigos, a minha mulher e o cego. Como é que eu sei tudo isto? Ela contou-me. E disse-me mais outra coisa: no último dia que passou no escritório, o cego perguntou-lhe se podia tocar-lhe no rosto. Ela dissera que sim. Ela disse-me que ele lhe tocara com os dedos em todas as partes do rosto, do nariz até ao pescoço. Nunca mais se esquecera. Tinha até experimentado escrever um poema acerca disso. Estava sempre a experimentar escrever poemas. Todos os anos escrevia um ou dois poemas, geralmente acerca de qualquer coisa importante que lhe tivesse acontecido.

Quando começámos a sair juntos, ela mostrou-me o poema. No poema recordava os dedos e a maneira como lhe tinham percorrido o rosto todo. Contava o que sentira nessa ocasião, o que lhe passara pela cabeça quando o cego lhe tocara no nariz e nos lábios. Lembro-me de não ter achado o poema muito bom. Claro que não lhe disse. Talvez eu não perceba de poesia. Tenho de admitir que a poesia não é a primeira coisa que escolho quando pego num livro para ler.

De qualquer modo, o homem que desfrutou primeiro os seus favores, o futuro oficial, tinha sido seu namorado desde a infância. Por isso, tudo bem. Estou apenas a dizer que no fim do tal Verão, ela deixou que o cego lhe passasse as mãos pela cara, despediu-se dele, casou com o namorado que era agora oficial do quadro, e mudou-se para fora de Seattle. Mas tinham mantido o contacto, ela e o cego. Contactou-o pela primeira vez mais ou menos um ano mais tarde. Telefonou-lhe um dia à noite, de uma base aérea, no Alabama. Queria conversar. E conversaram. Ele pediu que ela lhe mandasse uma fita gravada a contar-lhe a sua vida. Ela mandou. Mandou a fita. Na fita contou ao cego coisas sobre o marido e sobre a sua vida no serviço militar. Disse ao cego que amava o marido, mas que não gostava do sítio onde estavam a viver e não gostava que ele fizesse parte da indústria militar. Disse ao cego que tinha escrito um poema onde ele entrava. Disse-lhe que estava a escrever outro poema acerca do que era ser mulher de um oficial da Força Aérea. Este poema não estava completo; estava ainda a escrevê-lo. O cego também gravou uma fita. Mandou-lhe a fita. Ela gravou outra fita. Levaram anos nisto. O oficial casado com a minha mulher foi colocado noutra base e depois noutra. Ela ia mandando fitas de Moody AFB, de McGuire, de McConnell e, finalmente, de Travis, perto de Sacramento, onde uma noite se sentiu só e desligada de todas as pessoas que ia perdendo durante todas aquelas mudanças. Tomou todos os comprimidos e cápsulas que encontrou no armário da casa de banho com uma garrafa de gim. Depois, meteu-se dentro da banheira com água quente e perdeu os sentidos.

Mas, em vez de morrer, ficou doente. Vomitou. O seu oficial ― porque é que ele há-de ter um nome? Era o seu amor desde criança, que mais quer ele? ― Chegou a casa vindo dum sítio qualquer, encontrou-a e chamou uma ambulância. Na devida altura, ela gravou tudo numa fita que mandou para o cego. Com o passar dos anos, gravou todo o género de coisas, e mandava as fitas mais depressa do que o vento. A não ser escrever um poema por ano, penso que a sua principal distracção era mandar aquelas fitas. Numa delas contou ao cego que tinha decidido separar-se do seu oficial por uns tempos. Noutra, falou-lhe do divórcio. Ela e eu começámos a sair juntos e, naturalmente, falou nisso ao cego. Contava-lhe tudo ou, pelo menos, assim me parecia. Uma vez perguntou-me se eu gostaria de ouvir a última fita que o cego lhe mandara. Isso acontecera há um ano. Disse-me que eu estava na fita. Eu disse-lhe que sim, que gostava de ouvir. Arranjei umas bebidas para ambos e sentámo-nos na sala de estar. Preparámo-nos para ouvir. Primeiro meteu a fita no gravador e carregou nalguns botões. Depois, empurrou uma alavanca. A fita chiou e alguém começou a falar em voz alta. Ela baixou o volume. Depois duns minutos de tagarelice, ouvi o meu nome da boca desse desconhecido, desse cego que eu nem conhecia. E a seguir, «de tudo o que me disseste acerca dele, só posso concluir...» Mas fomos interrompidos por um toque na porta, qualquer coisa, e nunca mais voltámos a ouvir a gravação. Talvez fosse o melhor; tinha ouvido o suficiente.

Agora, esse mesmo cego ia dormir em minha casa.

― Talvez o leve a jogar bowling ― disse eu à minha mulher. Ela estava junto do lava-Ioiça a rechear conchas de vieira com puré de batata. Pousou a faca e deu meia volta.

― Se tu me amas ― disse ela ― podes fazer isso por mim. Se não me amas... tudo bem. Mas se tivesses um amigo, qualquer amigo, que te viesse visitar, eu fá-lo-ia sentir-se em casa. ― E limpou as mãos a um pano da loiça.

― Eu não tenho amigos cegos ― disse eu.

― Tu não tens amigos nenhuns ― disse ela. ― Ponto final. Para além disso ― continuou -, a mulher dele morreu, bolas! Será que não percebes? O homem acabou de perder a mulher.

Não respondi. Ela tinha-me falado um pouco da mulher do cego.

Chamava-se Beulah. Beulah! Tinha um nome de mulher de cor. ― A mulher dele era negra? ― perguntei.

― Estás doido? ― disse a minha mulher. ― Perdeste o juízo ou quê? Pegou numa batata. Vi-a cair no chão e escorregar para debaixo do fogão. ― O que é que se passa contigo? Bebeste ou quê?

― Estou só a perguntar ― disse eu.

Naquele momento, a minha mulher contou-me mais pormenores do que aqueles que eu queria saber. Preparei uma bebida e sentei-me à mesa da cozinha a escutá-la. Pedaços da história começaram a fazer sentido.

Beulah tinha ido trabalhar com o cego no Verão seguinte à minha mulher ter deixado o emprego. Muito em breve, Beulah e o cego casaram pela igreja. Foi um casamento íntimo ― de qualquer modo quem é que queria ir a um casamento daqueles? ―, apenas os dois, o pastor e a mulher do pastor. Mesmo assim, foi um casamento pela igreja. Tinha sido esse o desejo de Beulah. Mas, nessa altura, já Beulah devia ter cancro. Depois de terem sido inseparáveis durante oito anos ― a palavra é da minha mulher: inseparáveis ― a saúde de Beulah começou rapidamente a deteriorar-se. Morreu num quarto de um hospital de Seattle, com o cego sentado a seu lado, a segurar-lhe a mão. Casaram-se, viveram e trabalharam juntos, dormiram na mesma cama ― tiveram sexo de certeza ― e depois o cego teve de enterrá-la. Tudo isto sem nunca ter visto como era o raio da mulher. Isso ultrapassava a minha capacidade de compreensão. Ao ouvir esta história, tive pena do cego por algum tempo. Mas depois, comecei a pensar na vida desgraçada que aquela mulher deve ter tido. Imagine-se uma mulher que nunca se vira através dos olhos do homem que amava; uma mulher que passava dia após dia sem ouvir um único elogio do ser amado; uma mulher cujo marido não podia ler a expressão do seu rosto, quer fosse de angústia, quer de outro sentimento melhor. Alguém que podia ou não usar maquilhagem ― que diferença fazia isso ao marido? Podia, se quisesse, usar sombra verde à volta dum olho, um alfinete espetado pelo nariz dentro, calças amarelas e sapatos roxos. Não fazia qualquer diferença. E, depois, ser arrancada à vida, com a mão dum cego na sua, os seus olhos sem visão marejados de lágrimas ― já estou a imaginar ― o seu último pensamento talvez tenha sido este: que ele nunca sonhara como era o aspecto dela e ela a apanhar o expresso para a sepultura. Robert ficou com uma pequena apólice de seguro e metade de uma moeda de vinte pesos mexicanos. A outra metade foi no caixão. Patético!

Assim, quando eram horas, a minha mulher foi buscá-lo à estação. Sem ter mais nada para fazer, a não ser esperar ― sem dúvida que o responsabilizava por isso ― estava a tomar uma bebida e a ver televisão, quando ouvi o carro chegar. Levantei-me do sofá com a bebida na mão e fui à janela dar uma espreitadela.

Vi a minha mulher rir-se, enquanto estacionava o carro. Vi-a sair e abrir a porta. Estava ainda a sorrir. Calculem! Foi até ao outro lado do carro, mas o cego já tinha começado a sair. O cego ― vejam só ― usava barba! Um cego com barba! Era de mais, diria eu. O cego estendeu o braço para o assento de trás e tirou uma mala. A minha mulher deu-lhe o braço e fechou a porta do carro. Sempre a falarem, desceram o acesso para os carros e subiram os degraus do pátio da frente. Desliguei a televisão. Acabei a bebida, passei o copo por água e enxuguei as mãos. Depois fui à porta.

A minha mulher disse:

― Quero apresentar-te o Robert. Robert, este é o meu marido. Já te contei tudo acerca dele. ― Ela estava radiante agarrada à manga do cego.

O cego largou a mala e estendeu a mão.

Agarrei-a. Ele apertou com força, segurou-me a mão e depois largou-a.

― Sinto que já nos conhecemos ― disse ele numa voz possante.

― Eu também ― disse eu. Não sabia que mais dizer. Depois, acrescentei: ― Seja bem-vindo, já ouvi falar muito de si. ― Começámos então a andar, um pequeno grupo, do pátio até à sala de estar, com a minha mulher a levá-lo pelo braço. O cego transportava a mala na outra mão. A minha mulher ia dizendo coisas como: à esquerda, Robert; isso mesmo. Agora cuidado há aí uma cadeira. Assim é que é... Senta-te aqui. É o sofá. Comprámo-lo há duas semanas.

Ia começar a dizer qualquer coisa acerca do sofá velho. Eu gostava daquele velho sofá. Mas não disse nada. Depois, quis dizer outra coisa qualquer, só para conversar, acerca da viagem de comboio ao longo do rio Hudson. Como, na ida para Nova lorque, uma pessoa devia ir sentada do lado direito do comboio e no regresso de Nova lorgue, do lado esquerdo.

― Que tal foi a viagem de comboio? ― perguntei. ― A propósito, de que lado veio você sentado?

― Que pergunta é essa? De que lado? ― disse a minha mulher.

― Que diferença faz isso?

― Limitei-me a perguntar.

― Do lado direito ― disse o cego. ― Já não andava de comboio há perto de quarenta anos. Desde que era miúdo. Com os meus pais. Já se passaram muitos anos. Quase me tinha esquecido da sensação. Já tenho barba branca. Pelo menos é o que me dizem. Achas que me dá um aspecto distinto, minha querida? ― perguntou o homem à minha mulher.

― Estás com um ar distinto, Robert ― disse ela. ― Robert, Robert, não calculas como é bom ver-te. Finalmente, a minha mulher olhou para mim. Fiquei com a impressão de que ela não gostou daquilo que viu. Encolhi os ombros. Nunca tinha estado em contacto ou conhecido pessoalmente alguém que fosse cego. Este tinha perto de cinquenta anos e era bem constituído, calvo e de ombros descaídos, como se estivesse a carregar um grande peso sobre eles. Vestia calças castanhas e tinha sapatos castanhos, uma camisa castanha clara e um casaco leve. Todo elegante. Também usava barba comprida. Mas não trazia bengala ou óculos escuros. Sempre pensei que os óculos escuros eram imprescindíveis para um cego. Para dizer a verdade, preferia que ele tivesse um par de óculos. À primeira vista, os olhos dele pareciam iguais aos de outra pessoa qualquer. Mas, se reparássemos melhor, havia neles qualquer coisa diferente. Para começar, a íris era demasiado clara, e as pupilas pareciam mover-se à volta das órbitas sem que ele se apercebesse disso ou fosse capaz de as controlar. Arrepiante! Enquanto estava a olhar para a cara dele, vi a pupila esquerda virar-se para baixo, em direcção ao nariz, ao mesmo tempo que a outra fazia um esforço para se manter imóvel. Mas não passava de um esforço, uma vez que aquele olho andava a deambular sem ele saber e sem querer que isso acontecesse.

Eu disse:

― Deixe-me preparar-lhe uma bebida. De que é que gosta? Temos um pouco de tudo; é um dos nossos passatempos.

― Meu rapaz, eu sou um apreciador de scotch ― disse ele rapidamente, naquela voz grossa.

― Com certeza ― disse eu. Meu rapaz! ― Claro que é apreciador de scotch. Vê-se logo.

Passou os dedos pela mala de viagem que estava ao lado do sofá. Estava a orientar-se. Não o podia censurar por isso.

― Vou levá-la para o teu quarto ― disse logo a minha mulher.

― Não, não te incomodes ― disse o cego em voz alta. ― Posso levá-la quando for para cima.

― Um pouco de água no scotch? ― perguntei.

― Muito pouca ― respondeu.

― Já sabia ― disse eu.

Ele disse:

― Só uma pinta. O actor irlandês Barry Fitzgerald, lembram-se dele? Eu sou como ele. Quando bebo água ― costumava Fitzgerald dizer ―, bebo água. Quando bebo uísque, bebo uísque.

A minha mulher riu. O cego meteu a mão debaixo da barba. Levantou a barba lentamente e deixou-a cair.

Preparei as bebidas: três copos grandes com scotch e pouca água. Depois recostámo-nos e conversámos acerca das viagens de Robert. Primeiro, falámos do longo voo da Costa Ocidental até ao Connecticut. Depois, da viagem de comboio de Connecticut até aqui. Bebemos mais um copo, enquanto discutíamos esta parte da viagem.

Lembrei-me de que lera algures que os cegos não fumam porque, segundo a opinião geral, não podem ver o fumo que expelem. Pensei que só sabia isso sobre os cegos, e já não era mau. Mas este cego fumava o seu cigarro até ao filtro e, logo de seguida, acendia outro. Este cego encheu o cinzeiro de beatas que a minha mulher foi despejar.

Quando nos sentámos à mesa para jantar, bebemos mais um copo. A minha mulher encheu o prato de Roberto com bife, batatas e feijão verde. Pus-lhe manteiga em duas fatias de pão.

Eu disse:

― Está aqui pão com manteiga. ― Dei um gole na bebida. ― Vamos agora dizer uma oração ― disse eu, e o cego baixou a cabeça. A minha mulher olhou para mim de boca aberta. ― Oremos para que o telefone não toque e a comida não arrefeça.

Atirámo-nos à comida. Comemos tudo o que havia na mesa. Comemos como se o mundo fosse acabar daí a pouco. Nem falámos. Comemos. Esquartejámos. Pastámos naquela mesa. Estávamos a comer a sério. O cego localizou a comida imediatamente; sabia exactamente onde estavam as coisas no prato. Observei com espanto a maneira como comia a carne com a faca e o garfo. Cortava dois pedaços de carne, levava-os à boca com o garfo, depois ia buscar as batatas, a seguir o feijão verde e por fim pegava num naco de pão com manteiga e comia-o. Acompanhava tudo isto com um grande gole de leite. Também não parecia embaraçado por usar os dedos de vez em quando.

Acabámos com tudo, incluindo metade duma tarte de morango. Durante algum tempo ficámos sentados, como se estivéssemos atordoados. O suor escorria-nos pelo rosto. Finalmente, levantámo-nos da mesa, deixando lá ficar a loiça suja. Nem olhámos para trás. Voltámos novamente para a sala de estar e enterrámo-nos nos nossos lugares. Robert e a minha mulher sentaram-se no sofá. Eu sentei-me na poltrona. Tomámos mais duas ou três bebidas, enquanto eles falavam das coisas mais importantes que lhes tinham acontecido nos últimos dez anos. Durante a maior parte do tempo, limitei-me a ouvir. De vez em quando, entrava na conversa. Não queria que ele pensasse que eu tinha saído da sala, nem que ela julgasse que me sentia rejeitado. Falaram de coisas que lhes tinham acontecido ― a eles! ― nesses dez anos. Esperei em vão ouvir o meu nome nos lábios doces da minha mulher: «E então o meu querido marido apareceu na minha vida...», ou qualquer coisa do género. Mas não ouvi nada que se parecesse com isso. Mais conversa acerca de Robert. Ao que parecia, Robert tinha feito um pouco de tudo; um vulgar cego faz-tudo. Mais recentemente, ele e a mulher tinham conseguido uma representação qualquer com a qual, presumia eu, ganhavam a vida. O cego era, também, um radioamador. Contou, na sua voz possante, conversas que tinha tido com outros radioamadores em Guam, nas Filipinas, no Alasca, e até mesmo em Tahiti. Disse que tinha imensos amigos nesses lugares, se um dia decidisse visitá-los. De vez em quando, voltava o rosto cego para mim, metia a mão debaixo da barba e perguntava-me qualquer coisa. Há quanto tempo estava a desempenhar as minhas funções? (Três anos.) Gostava do meu trabalho? (Não gostava.) Ia continuar a trabalhar na mesma coisa? (Que outras opções havia?) Finalmente, quando pensei que ele estava a perder a pedalada, levantei-me e liguei a televisão.

A minha mulher olhou para mim com um ar irritado. Estava quase a explodir. Depois olhou para o cego e perguntou: ― Robert, tens televisão?

O cego disse:

― Minha querida, tenho dois televisores. Tenho um a cores e uma coisa a preto e branco, uma relíquia do passado. É engraçado, mas quando ligo a televisão ― e estou sempre a ligá-la ― ligo sempre o aparelho a cores. É engraçado, não acham?

Eu não sabia o que dizer. Não tinha nada a dizer. Nenhuma opinião. Por isso, comecei a ver as notícias e a tentar ouvir o que o comentador estava a dizer.

― Este é um aparelho a cores ― disse o cego. ― Não me perguntem como é que sei, mas tenho a certeza.

― Comprámo-lo há pouco tempo ― disse eu.

O cego deu mais um gole na bebida. Levantou a barba, cheirou-a e deixou-a cair. Inclinou-se para a frente, no sofá. Pôs o cinzeiro no sítio conveniente na mesinha do café, depois acendeu um cigarro com o isqueiro. Recostou-se no sofá e cruzou as penas pelos tornozelos.

A minha mulher levou a mão à boca e bocejou. Espreguiçou-se e disse: ― Acho que vou lá acima vestir o roupão. Vou mudar de roupa. Robert, fica à vontade.

― Eu estou à vontade ― disse o cego.

― Quero que te sintas à vontade aqui em casa ― disse ela.

― Eu estou à vontade ― repetiu o cego.

Depois de ela ter saído da sala, ficámos a ouvir o boletim meteorológico e o resumo dos jogos. Nessa altura, ela já tinha ido há tanto tempo que eu não sabia se ia voltar. Pensei que tivesse ido para a cama. E desejei que ela voltasse cá para baixo; não queria ficar sozinho com um cego. Perguntei-lhe se queria mais uma bebida e ele disse que sim. Depois, perguntei-lhe se queria dar uma «passa». Disse-lhe que tinha acabado de enrolar um «charro». Não era verdade, mas estava a planear fazê-lo em dois tempos.

― Vou experimentar contigo ― disse ele.

― Nem mais! ― disse eu. ― Assim é que é!

Preparei as bebidas e sentei-me no sofá ao lado dele. Depois, enrolei dois «charros» bem grossos. Acendi um e passei-lho. Levei-o até aos dedos dele. Pegou-lhe e deu uma «passa».

― Aguenta o máximo que puderes ― disse eu. Vi logo que ele não percebia nada daquilo.

A minha mulher desceu, entretanto, vestindo um roupão e os chinelos cor-de-rosa.

― O que é isto que estou a cheirar? ― perguntou.

― Pensei que devíamos fumar um pouco de cannabis ― disse eu. A minha mulher lançou-me um olhar selvagem. Depois olhou para o cego e disse: ― Robert, não sabia que fumavas.

Ele disse:

― A partir de agora fumo. Há uma primeira vez para tudo. Mas ainda não estou a sentir nada.

― Este produto é suave ― disse eu. ― É fraco. É droga que podemos controlar. Não nos dá a volta à cabeça.

― Não dá muito, não, meu rapaz ― disse ele e riu.

A minha mulher sentou-se também no sofá, entre nós os dois. Passei-lhe a «broca». Ela pegou-lhe, deu uma «passa» e devolveu-ma. ― Para onde é que isto vai? ― perguntou.

Depois disse:

― Eu não devia estar a fumar isto. Já mal posso manter os olhos abertos. Aquele jantar arrumou-me. Não devia ter comido tanto.

― Foi a tarte de morango ― disse o cego. ― Foi o que arrumou connosco ― disse ele e deu uma forte gargalhada. Depois sacudiu a cabeça.

― Ainda há mais tarde de morango ― disse eu.

― Queres mais, Robert? ― perguntou a minha mulher.

― Talvez daqui a pouco ― disse ele.

Concentrámo-nos na televisão. A minha mulher bocejou novamente e disse:

― Quando te apetecer deitar, a cama está pronta, Robert. Sei que tiveste um longo dia. Quando estiveres pronto para ir para a cama é só dizeres. ― Ela puxou-lhe o braço. ― Robert?

Ele despertou e disse:

― Gostei imenso de estar aqui. Sempre é melhor do que as gravações.

Eu disse: ― Aqui vai ele! ― E pus-lhe o «charro» entre os dedos. Ele deu outra «passa», aguentou o fumo e depois expirou. Parecia que fazia aquilo desde os nove anos.

― Obrigado, meu rapaz ― disse ele. ― Mas acho que já é suficiente. Parece-me que estou a começar a sentir qualquer coisa. ― Passou o «pontex» à minha mulher.

― Eu digo o mesmo ― disse ela. ― Idem. Eu também ― Pegou no «pontex» e passou-mo. ― Acho que vou ficar aqui sentada, no meio de vocês, com os olhos fechados. Mas não parem por minha causa, está bem? Nenhum de vocês. Se isso vos chatear, digam. Caso contrário, vou ficar aqui de olhos fechados até irem para a cama. A tua cama está pronta, Robert, quando te quiseres deitar. É ao cimo das escadas, mesmo do lado do nosso quarto. Vamos dizer-te onde é, quando estiveres pronto. Se eu adormecer, acordem-me. ― Acabou de dizer isto, fechou os olhos e adormeceu.

O noticiário terminou. Levantei-me e mudei de canal. Voltei a sentar-me no sofá. Quem me dera que a minha mulher não tivesse adormecido. A cabeça estava deitada de lado, nas costas do sofá, e tinha a boca aberta. Tinha-se virado de maneira que o roupão ficara aberto nas pernas, expondo uma coxa apetitosa. Estendi e mão para tapá-las e foi então que olhei para o cego. Que se lixe! Abri novamente o roupão.

― Quando te apetecer a tarte de morango, é só dizeres ― disse-lhe.

― Está bem ― disse ele.

Eu perguntei:

― Estás cansado? Queres que te leve até ao quarto de cama? Já estás pronto para ir para o vale dos lençóis?

― Ainda não ― disse ele. ― Não. Vou ficar aqui contigo, meu rapaz. Se não te importares... Vou ficar acordado até ires para a cama. Ainda não tivemos oportunidade de conversar. Percebes o que quero dizer? Tenho a sensação de que ela e eu monopolizámos a conversa. ― Levantou a barba e deixou-a cair. Pegou nos cigarros e no isqueiro.

― Acho bem ― disse eu. Depois acrescentei: ― Estou satisfeito com a tua companhia.

E acho que estava. Todas as noites fumava «charros» e ficava acordado o máximo possível, antes de ir para a cama. A minha mulher e eu raramente íamos para a cama ao mesmo tempo. Quando adormecia tinha sonhos. Às vezes despertava de um deles com o coração a bater.

Na televisão estava a dar qualquer coisa sobre a Igreja e a Idade Média. Nada do que habitualmente se vê na televisão. Apetecia-me ver outra coisa. Mudei de canal. Mas também não havia nada de interesse. Por isso, mudei outra vez para o primeiro canal, e pedi desculpa.

― Tudo bem, meu rapaz ― disse o cego. ― Não me faz diferença. Vê aquilo que te apetecer. Estou sempre a aprender coisas novas. O saber nunca tem fim. Não me vai prejudicar aprender qualquer coisa esta noite. Eu tenho ouvidos ― disse ele.

Não dissemos nada durante algum tempo. Ele estava inclinado para a frente, com a cabeça virada para mim e o ouvido direito na direcção do televisor. Muito desconcertante. De vez em quando, as pálpebras fechavam-se e abriam-se de novo. Às vezes, metia os dedos pela barba e dava um puxão, como se estivesse a pensar em qualquer coisa que estava a ouvir na televisão.

No écran, um grupo de homens vestidos com hábitos de monge estava a ser provocado e atormentado por uns homens vestidos de esqueleto e outros vestidos de diabo. Os homens vestidos de diabo tinham máscaras de diabo, chifres e longas caudas. Este cortejo aparatoso fazia parte de uma procissão. O inglês que estava a fazer a narração disse que aquilo tinha lugar em Espanha, uma vez por ano. Tentei explicar ao cego o que se estava a passar.

― Esqueletos? ― disse ele. ― Eu sei o que são esqueletos. ― E acenou a cabeça. A televisão mostrava agora uma catedral. Depois, havia uma perspectiva longa e lenta de uma outra. Finalmente, o filme mostrou aquela que é famosa, em Paris, com os seus pilares e espirais erguidos até alcançarem as nuvens. A máquina de filmar afastou-se para dar uma panorâmica da catedral e erguer-se de encontro ao céu. Havia momentos em que o narrador inglês não dizia nada; deixava apenas a máquina de filmar mover-se em torno das catedrais. Ou então davam uma panorâmica dos campos, com homens a caminharem atrás dos bois. Esperei o máximo que pude. Depois senti que tinha de dizer qualquer coisa.

― Estão agora a mostrar o exterior duma catedral. Gárgulas; pequenas estátuas esculpidas de modo a parecerem monstros. Acho que é na Itália ― disse eu. ― É mesmo; é na Itália. Há pinturas nas paredes duma igreja.

― São frescos, meu rapaz? ― perguntou, dando um gole na bebida. Peguei no meu copo, mas estava vazio. Tentei lembrar-me do que podia. ― Perguntaste-me se são frescos? Essa é uma boa pergunta. Não sei.

A máquina de filmar movimentava-se agora para uma catedral fora de Lisboa. As diferenças entre uma catedral portuguesa e as francesas e italianas eram poucas. Mas existiam. Principalmente no interior. Então ocorreu-me uma coisa e disse:

― Ocorreu-me uma coisa. Tens ideia do que é uma catedral? Quer dizer, o aspecto. Estás a perceber-me? Se alguém te diz a palavra catedral, tens alguma ideia sobre aquilo de que estão a falar? Digamos, sabes qual é a diferença entre ela e uma igreja baptista?

Ele deixou o fumo sair pela boca. ― Sei que centenas de trabalhadores levavam cem ou cento e cinquenta anos a construí-las ― disse ele. ― Claro que ouvi o homem dizer isso. Sei que gerações da mesma família trabalhavam na mesma catedral. Também o ouvi dizer isso. Os homens que começaram as suas vidas a trabalhar nelas não viveram o suficiente para assistirem ao fim da sua construção. Nesse sentido não diferem muito do resto dos mortais, pois não? ― Riu-se. Depois as pálpebras cerraram-se novamente. Dava marradas com a cabeça. Parecia estar a dormir uma soneca. Talvez estivesse a imaginar-se em Portugal. A televisão estava agora a mostrar outra catedral. Desta vez era na Alemanha. A voz do inglês prosseguia monotonamente.

― Catedrais ― disse o cego. Endireitou-se e abanou a cabeça para a frente e para trás. ― Para te dizer a verdade, meu rapaz, é tudo quanto sei... isso que acabei de dizer. Aquilo que ouvi dizer. Mas talvez pudesses descrever-me uma. Gostaria que o fizesses. Para falar com franqueza, não faço a mínima ideia.

Olhei intensamente para o plano da catedral, na televisão. Como é que podia começar a descrevê-la? Mas digamos que a minha vida dependia disso; vamos imaginar que estava a ser ameaçado por um louco que me dizia que tinha de o fazer, ou então...

Olhei um pouco mais para a catedral, antes de a imagem mudar para o campo. Era inútil. Voltei-me para o cego e disse:

― Para começar, são muito altas. ― Estava a olhar em volta da sala, à procura de pistas. ― Erguem-se para o alto. Sempre para cima, em direcção ao céu. Algumas delas são tão grandes que têm de ter suportes... para ajudá-las a manter-se de pé, se assim se pode dizer. Esses suportes chamam-se pilares. Por qualquer razão, fazem pensar em viadutos. Mas talvez também não saibas o que são viadutos. Às vezes as catedrais têm diabos e coisas assim, esculpidas na frontaria. Outras vezes têm senhores e senhoras. Mas não me perguntes porquê.

Ele acenava com a cabeça. Toda a parte superior do corpo parecia balouçar para a frente e para trás.

― Não estou a ter muito sucesso, pois não ― pergunto-lhe.

Parou de balouçar-se e inclinou-se para a frente, sentando-se na beira do sofá. Enquanto me escutava, passava os dedos pela barba. Eu não estava a transmitir-lhe a mensagem, notava-se perfeitamente. Apesar disso, ficou a aguardar que continuasse. Acenou a cabeça como que a encorajar-me. Tentei pensar em mais coisas para dizer. ― São na realidade muito grandes ― disse. ― São maciças e construídas de pedra ou de mármore. Antigamente, quando os homens construíam catedrais, queriam sentir-se perto de Deus. Naquele tempo, Deus era uma parte importante de cada um. A construção de catedrais é um exemplo disso. Lamento muito ― disse-lhe ―, mas é o melhor que posso fazer. Não sou muito bom neste tipo de coisas.

― Está tudo bem, meu rapaz ― disse o cego. ― Olha cá! Espero que não te importes que faça uma pergunta. Posso perguntar-te uma coisa? A pergunta é simples e a resposta do tipo «sim» ou «não». Estou curioso, mas não quero ofender-te. Afinal de contas és o meu anfitrião... Mas deixa-me perguntar-te se és, de um certo modo, uma pessoa religiosa. Não te importas que faça a pergunta?

Sacudi a cabeça. Claro que ele não podia ver. Para um cego, não há diferença entre um piscar de olhos e um aceno. ― Acho que não acredito. Em nada. Às vezes é difícil. Percebes o que quero dizer?

― Claro que percebo ― disse ele.

― Ainda bem.

O inglês continuava a falar. A minha mulher deu um suspiro. Respirou fundo e continuou a dormir.

― Tens de me desculpar ― disse eu. ― Mas não sou capaz de te descrever uma catedral. Não tenho talento para o fazer. Não posso acrescentar mais nada àquilo que já disse. O cego sentou-se muito quieto, com a cabeça para baixo, enquanto me escutava. Eu disse: ― Para falar verdade, as catedrais não têm para mim qualquer significado especial. Nenhum. Catedrais. São apenas coisas para serem vistas na televisão, ao fim da noite. Não passam disso.

Foi então que o cego aclarou a garganta. Tirou um lenço do bolso de trás. Depois disse:

― Eu compreendo, meu rapaz. Está OK. Acontece. Não te preocupes com isso ― disse. ― Ouve lá! És capaz de me fazer um favor? Acabei de ter uma ideia. Porque é que não arranjas papel grosso? E um lápis. Vamos fazer uma coisa. Vamos desenhar uma em conjunto. Arranja lá um lápis e papel grosso. Anda lá, meu rapaz, vai buscar o material ― disse.

Subi ao primeiro andar. As minhas pernas pareciam ter perdido as forças, como se eu tivesse entrado numa corrida. Olhei à volta do quarto da minha mulher. Encontrei algumas esferográficas dentro de um cestinho, em cima da mesa. Pus-me a pensar onde podia procurar o tipo de papel que ele queria.

Cá em baixo, na cozinha, encontrei um saco de compras com cascas de cebola no fundo. Despejei o saco e depois sacudi-o. Trouxe-o para a sala e sentei-me no chão, perto das pernas dele. Desviei umas coisas, alisei o saco e estendi-o em cima da mesinha do café.

O cego saiu do sofá e sentou-se ao meu lado, na alcatifa. Passou os dedos por cima do papel, para cima e para baixo. Pelas arestas; até mesmo pelas arestas. Tocou nos cantos.

― Está tudo bem ― disse ele. ― Vamos desenhá-la.

Pegou-me na mão, na mão que segurava o lápis. Fechou a mão dele sobre a minha. ― Vamos a isso, meu rapaz, começa a desenhar ― disse ele. ― Desenha. Vais ver. Eu vou acompanhar-te. Vai correr tudo bem. Já podes começar. Vais ver. Desenha ― disse o cego.

Então comecei. Primeiro, desenhei um caixote que se parecia com uma casa. Podia até ser a casa onde vivia. Depois pus-lhe um telhado. Em cada lado do telhado, desenhei coruchéis. Uma loucura.

― Óptimo! ― disse ele. ― Formidável. Estás a sair-te muito bem. Nunca imaginaste que um dia irias fazer uma coisas destas, não é verdade, meu rapaz? Todos nós sabemos que a vida é uma coisa estranha. Agora continua. Não desistas.

Desenhei janelas com arcos. Desenhei pilares esguios. Portas enormes. Não conseguia parar. A estação de televisão acabou a programação. Pus o lápis em cima da mesa e abri e fechei os dedos. O cego tacteava o papel. Passava as pontas dos dedos por cima do papel, por cima de tudo o que eu desenhara e acenava a cabeça.

― Estás a sair-te muito bem ― disse o cego.

Peguei outra vez no lápis e ele agarrou-me a mão. Continuei. Não sou nenhum artista, mas mesmo assim continuei a desenhar. A minha mulher abriu os olhos e olhou-nos pasmada. Endireitou-se no sofá, com o roupão ainda aberto, e disse:

― O que é que estão a fazer? Digam-me lá; eu quero saber. Não lhe respondi.

O cego disse: ― Estamos a desenhar uma catedral. Ele e eu estamos a trabalhar nisso. Carrega com força ― disse-me ele. ― Assim mesmo. Isso ― disse. ― Não restam dúvidas, meu rapaz. Tu conseguiste-o, tenho a certeza. Pensavas que não eras capaz. Mas és, não é verdade? Estás cheio de energia. Percebes o que quero dizer? Dentro de um minuto vai sair daqui qualquer coisa de importante. Como é que vai o braço? ― perguntou. ― Agora põe algumas pessoas. O que é uma catedral sem pessoas?

A minha mulher disse: ― O que é que se passa? Robert, o que é que estás a fazer? O que é que se passa? ― Não se passa nada ― respondeu o cego. ― Agora fecha os olhos ― disse-me ele.

Fechei-os. Fechei-os tal como me pediu.

― Estão fechados? ― perguntou. ― Não faças batota.

― Estão fechados ― respondi.

― Não os abras ― disse ele. ― Agora continua. Desenha. Continuámos a desenhar. Os dedos dele guiavam os meus, enquanto a minha mão deslizava pelo papel. Era uma sensação diferente de tudo o que experimentara na vida.

Então, ele disse:

― Acho que já está pronto. Parece-me que o conseguiste ― disse ele. ― Dá uma espreitadela. O que é que achas? Mas eu mantive os olhos fechados. Pensei ficar assim durante mais algum tempo. Pensei que era o que devia fazer.

― Então? ― perguntou. ― Estás a olhar?

Ainda tinha os olhos fechados. Eu estava em minha casa, tinha a certeza. Mas não tinha a sensação de estar dentro de qualquer coisa.

― É incrível ― disse eu.

FIM
 

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Raymond Carver nasceu em 1938, em Clatskanie (Oregon), no seio de uma família muito pobre. Depois de ter concluído o ensino secundário, empregou-se numa serração de madeiras e, aos 19 anos, casou. Para sustentar a família foi porteiro de um hospital, vendedor de enciclopédias, motorista de pesados, empregado numa bomba de gasolina, etc., conseguindo, porém, tempo para frequentar um curso de «escrita criativa».

Após vários dramas provocados pelo seu alcoolismo, a mulher deixou-o definitivamente em 1977. Em Junho de 1976, após uma cura de desintoxicação, a sua sorte começou a mudar, tornando-se conhecido com a publicação de Queres Fazer o Favor de te Calares? (Teorema, 1989. Em 1977, em Dallas, no Texas, conheceu a poetisa Tess Galagher, com quem partilhou os últimos onze anos da sua vida. Durante esse período publicou, sucessivamente, De que Falamos Quando Falamos de Amor (Teorema, 1987), Catedral (Teorema, 1987), Fires (1985) e Três Rosas Amarelas (Teorema, 1992), tendo-lhe sido concedidos vários prémios e distinções. Em 1988, entrou para a American Academy and Institute of Arts and Letters.
A poesia de Carver é tão importante como a sua prosa e encontra-se reunida em dois volumes: In a Marine Light (1985) e A New Path of the Waterfall (1989). Raymond Carver morreu, em consequência de um cancro, em 2 de Agosto de 1988.


Raymond Carver: vídeo 10 min

 

Blindness and sight in "Cathedral"
A motif is a theme that recurs throughout an artistic work. when noticed, you can find many instances of the motif replicated and developed throughout the text. One motif you might have noticed in Cathedral is the theme of blindness and sight. How does Carver weave it into the texture of the story? Is it used ironically? In this story, our narrator begins in blindness and ends with insight. Insight into what? Into what it means to be blind and how blindness is not at all what he thought it would be. He also learns that he has been, in a way, blind to his own ignorance and insecurity, and that ignorance is a kind of blindness. These sensitivities have been heightened, thanks to the visit from his wife’s friend Robert, an open-minded, generous, empathic human being who happens to be blind.

Our narrator, in the beginning of the story, can only see the man as a character type: a blind man, with all the stereotypical associations that go along with the tag. By the end, he has been forced to revise his understanding of blind people. Robert is self sufficient, self-assured, confident, gregarious, sensitive, and oddly perceptive. He has a heightened awareness, a sixth sense that tells him that the man he is visiting is a man in need of something meaningful in his life. Robert reaches out and unites with him, and the narrator learns to recognize the humanity in Robert and himself. He learns to see blindness not as a disability but as a kind of enabling, liberating awareness. You are not inside of anything anymore, he tells us at the story's end. You are not necessarily confined by sight, by spatial boundaries (personal space), and by self-consciousness. [...]

These moments of sudden insight and clarity, where a character discovers meaning in a powerful moment of experience, are called epiphanies. Many short stories are plotted in such a way as to culminate in these moments of coming into a new awareness.  J. Esch "On Raymond Carver's Cathedral"

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texto integral do conto:

CATEDRAL
Raymond Carver
1983
Título original: Cathedral
Edição original: Alfred A. Knopf, 1983
Tradução portuguesa: Carlos Santos
Colecção Estórias
Editorial Teorema - Lisboa, 1987

 


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Nov.2011
Publicado por MJA