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Lar para cegos em St. Paul, Minnesota - Jerome
Liebling, 1963
Vi o Sr. Adderly, cego, no autocarro 51, há umas noites. A sua mulher, Diane
Adderly, chegou cadáver há uns meses. Ele tinha encontrado o seu corpo aos pés
da escada, com a sua bengala. A merdosa da enfermeira McCoy não parava de lhe
dizer que parasse de chorar.
«É que não adianta de nada, Sr. Adderly.»
«Nada adianta. É tudo quanto posso fazer. Deixe-me em paz.»
Quando percebeu que a McCoy se tinha ido embora, para fazer preparativos,
disse-me que era a primeira vez que chorava. Isso assustava-o, por causa dos
seus olhos.
Pus a aliança dela no seu dedo mindinho. Tinha mais de mil dólares em notas
sujas no seu soutien, e pus-lhas na carteira. Disse-lhe que eram de cinquenta,
vinte e cem e que teria de encontrar alguém que o ajudasse com aquilo.
Quando, mais tarde, o vi no autocarro, ele deve ter-se lembrado da minha forma
de andar ou do meu cheiro.
Não o vi, de todo, entrei simplesmente no autocarro e afundei-me no banco mais
próximo. Ele até se levantou do banco junto ao motorista para vir sentar-se ao
meu lado.
«Olá, Lucia», disse ele.
Foi muito engraçado a descrever-me o seu novo colega de quarto, desarrumado, no
Lar Hilltop para Cegos. Não fazia ideia de como sabia que o seu colega de quarto
era desarrumado, mas depois ocorreu-me e eu contei-lhe que imaginava uma coisa
do tipo Irmãos Marx - creme de barbear no esparguete, escorregadelas em
stuffaroni entornado, etc. Rimo-nos e ficámos em silêncio, de mãos dadas...
de Pleasant Valley à Avenida Alcatraz. Ele chorou, de mansinho. As minhas lágrimas eram pela sua solidão,
pela minha própria cegueira.
FIM
ϟ
Lucia Berlin (1936-2004)
nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e morreu
precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos
seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a
viver num parque de caravanas no Colorado.
Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza,
recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais
devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por
vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são
povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência
social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga,
excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis
não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu
conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da
biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua
própria vida. in Público
excerto de
Manual para Mulheres de Limpeza
título original: 'A Manual for Cleaning Women' (2015)
Lucia Berlin
Alfaguara, 1.ª edição: Maio de 2016
pags.142 e 143
7.Fev.2017
Publicado por
MJA
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