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 Sobre a Deficiência Visual


Bloco de Notas das Urgências, 1977

Lucia Berlin


Lar para cegos em St. Paul, Minnesota - Jerome Liebling, 1963

 

Vi o Sr. Adderly, cego, no autocarro 51, há umas noites. A sua mulher, Diane Adderly, chegou cadáver há uns meses. Ele tinha encontrado o seu corpo aos pés da escada, com a sua bengala. A merdosa da enfermeira McCoy não parava de lhe dizer que parasse de chorar.

«É que não adianta de nada, Sr. Adderly.»

«Nada adianta. É tudo quanto posso fazer. Deixe-me em paz.»

Quando percebeu que a McCoy se tinha ido embora, para fazer preparativos, disse-me que era a primeira vez que chorava. Isso assustava-o, por causa dos seus olhos.

Pus a aliança dela no seu dedo mindinho. Tinha mais de mil dólares em notas sujas no seu soutien, e pus-lhas na carteira. Disse-lhe que eram de cinquenta, vinte e cem e que teria de encontrar alguém que o ajudasse com aquilo.

Quando, mais tarde, o vi no autocarro, ele deve ter-se lembrado da minha forma de andar ou do meu cheiro.

Não o vi, de todo, entrei simplesmente no autocarro e afundei-me no banco mais próximo. Ele até se levantou do banco junto ao motorista para vir sentar-se ao meu lado.

«Olá, Lucia», disse ele.

Foi muito engraçado a descrever-me o seu novo colega de quarto, desarrumado, no Lar Hilltop para Cegos. Não fazia ideia de como sabia que o seu colega de quarto era desarrumado, mas depois ocorreu-me e eu contei-lhe que imaginava uma coisa do tipo Irmãos Marx - creme de barbear no esparguete, escorregadelas em stuffaroni entornado, etc. Rimo-nos e ficámos em silêncio, de mãos dadas... de Pleasant Valley à Avenida Alcatraz. Ele chorou, de mansinho. As minhas lágrimas eram pela sua solidão, pela minha própria cegueira.

FIM

 

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Lucia Berlin (1936-2004)
nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e morreu precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a viver num parque de caravanas no Colorado.
Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza, recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga, excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida.  in Público

 

capa de 'Manual para mulheres de limpeza'

excerto de
Manual para Mulheres de Limpeza
título original: 'A Manual for Cleaning Women'  (2015)
Lucia Berlin
Alfaguara, 1.ª edição: Maio de 2016
pags.142 e 143
 

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7.Fev.2017
Publicado por MJA